DOMÍNIO PÚBLICO MARÍTIMO
PROPRIEDADE PRIVADA
ÓNUS DE PROVA
DOCUMENTO
Sumário

I. Tendo em vista afastar a dominialidade de um parcela de terreno cuja extrema é a praia, situando-se esta ainda na parte arenosa e enxuta, deixada a descoberto pelo lento recuo das águas do mar ou resultantes de aluvião formado pelas mesmas águas, cabe aos pretensos proprietários privados provar documentalmente que tal prédio era, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 dezembro de 1864.
II. Não pode ser considerado nessa tarefa probatória atribuída aos particulares que a prova apenas possa ser feita documentalmente através do justo título de aquisição, mas sim com base em documentos que, apreciados à época, nos permitam afastar quaisquer dúvidas sobre a matéria em discussão.
III. Figurando tal parcela de terreno (cuja extrema se indentifica como salgado, e configurando tal como praia ou mar) descrito num inventário de 1856, e ainda que o descrito não possa ser considerado título legítimo de aquisição na previsão do artº 1316º do CC, não deixa de existir tal descrição e atribuição de propriedade em termos documentais.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
AA, que também usa AA, BB, CC, que também usa DD, identificados nos autos, intentou a presente acção comum contra MINISTÉRIO PÚBLICO, que age em nome próprio, nos termos 19 do nº 1 do artigo 15º da Lei 54/2005, de 15 de Novembro, e REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA, pedindo que seja declarando que o prédio misto, localizado no Sítio do …, descrito na 27 Conservatória do Registo Predial de Porto Santo sob o n.º … e … inscrito na matriz predial urbana sob os artigos … e … e rústica sob o … artigo …, da secção “AG”, pertence, ou seja, é propriedade dos AA., declarando que a parcela de terreno, com a área de 3.877,00 m2, do referido terreno não faz parte do domínio público marítimo, ou seja, como parte integrante do prédio referido no artigo 1º desta peça processual, é propriedade dos Autores e já era objecto de propriedade particular antes de 31 de dezembro de 1864 e, consequentemente, não faz parte do domínio público da Região Autónoma da Madeira.
Argumentam, em síntese, que deve ser reconhecida a propriedade (prédio identificado nos autos) o qual se encontra, parcialmente, sobre parcela de leito ou margem das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis (oceano Atlântico, o qual banha a ilha do Porto Santo). Sendo que tal prédio era, por título legítimo, objecto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, tratando-se de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868 (cit. Lei nº 54/2005, de 5/11, art. 15º, nº 2).
Os réus contestaram, dizendo, em suma, que tal prédio faz parte integrante do domínio público marítimo.
Realizado o julgamento foi proferida sentença que julgou a acção com o seguinte dispositivo:
“1) Condenar os RR. a reconhecerem que o Prédio misto, ao sítio do …, freguesia e concelho do Porto Santo, identificado como: “tendo a área de 6.240,00 m2, dos quais 220,00 m2 são de superfície coberta e 6.020,00 m2 de área descoberta, de Terra de cultivo e duas casas sendo uma destinada a garagem com a área coberta de 31m2 e outra destinada a habitação de rés-do-chão com 189 m2, confrontando, pelo norte com EE, sul com a Praia, Leste com FF e Oeste com herdeiros de GG”, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto Santo, sob a ficha nº …-Porto Santo (que é o correspondente á descrição em livro nº …, a fls. 115 do livro B… e inscrito na respectiva matriz, a parte rústica sob o artigo cadastral nº …, da secção “AG”, que é correspondente ao antigo artigo predial nº … e a parte urbana sob os artigos … (destinado a garagem) e … (destinado a habitação), é propriedade dos AA.
2) Condenar os RR. a reconhecerem que o prédio referido em 1) não está integrado ou implantado, total ou parcialmente, no domínio público marítimo quer do Estado quer da Região Autónoma da Madeira, sendo assim, todo ele, propriedade privada.”
Inconformado veio o Ministério Público recorrer, pedindo a revogação da sentença com a subsequente absolvição do réu Ministério Público em representação do Estado-Comunidade, concluindo que:
«1 - O presente recurso versa sobre matéria de facto e de Direito;
2 – Discorda-se da sentença porque entende-se que a matéria que foi dada como provada não é suficiente para sustentar a decisão.
3 – Pela sentença dos autos, proferida no dia 05.02.2025, o Tribunal a quo julgou totalmente procedente por provada a ação interposta pelos AA. AA, BB e CC e em consequência, reconheceu, que os AA. são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, dos seguintes prédios:
• Do prédio misto, localizado no sítio do …, freguesia e concelho do Porto Santo 6.240,00 m2, dos quais 220.00 m2 são de superfície coberta e 6.020,00 m2 de área descoberta, composto por terra de cultivo e duas casas sendo uma destinada a garagem com a área coberta de 31 m2 e outra destinada a habitação de rés-do-chão com 189 m2, confrontando, pelo norte com EE, sul com a praia, leste com FF e oeste com herdeiros de GG, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto Santo, sob a ficha n.º … – Porto Santo (que é o correspondente à descrição em livro n.º …, a fls. 115 do livro B… e inscrito na respetiva matriz, a parte rústica sob o artigo cadastral n.º …, da secção “AG”, que é correspondente ao antigo artigo predial n.º … e a parte urbana sob os artigos …(destinado a garagem) e … (destinado a habitação), é propriedade dos AA;
• Condenar os RR. a reconhecerem que o prédio referido em 1) não está integrado ou plantado, total ou parcialmente, no Domínio Público Marítimo quer do Estado quer da Região Autónoma da Madeira, sendo assim, todo ele, propriedade privada.
3 – O Tribunal deu como provada a factualidade elencada no ponto I do presente recurso.
4 – Estes constituem a totalidade dos factos que sustentam a decisão.
5 – E o ora apelante impugna-a, por considerar que os factos vertidos nos pontos da matéria dada como provada são insuficientes para a sustentar;
6 – O artigo 15º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, prevê que os prédios abrangidos pelo Domínio Público Marítimo podem ser reconhecidos como propriedade privada, desde que, os autores provem, mediante documentos, que os mesmos estavam na posse de particulares desde 31.12.1864;
7 – Por seu turno, o n.º3 do mesmo preceito prevê que a situação do interessado não conseguir apresentar título que confirme a propriedade anterior àquela data, para determinar que igualmente se considerem privados, os prédios que comprovadamente nas datas em questão estivessem na posse, ainda que não titulada, de particulares ou na fruição de comunidades;
7 - Assim sendo, impõe a lei que o autor prove que é o proprietário actual dos prédios e que os mesmos estiveram de forma ininterrupta em posse privada, titulada ou não titulada, antes de 31.12.1864 até à actualidade;
8 - No caso em apreço, os autores arrogam-se proprietários do prédio identificado na decisão, com aquelas área, configuração e confrontações alegando que o mesmo era propriedade privada antes de 31.12.1864;
9 – O Mmo. Juiz considerou que os AA. não tinham feito prova documental de que o prédio que têm registado em seu nome esteja na propriedade legitima de particulares antes de 31.12.1864, com o qual se concorda;
10- Contudo, entendeu que os AA. tinham feito prova de que o mesmo prédio já estava em posse de particulares em 1856 porque num inventário dessa altura foi arrolada uma courela de terra na mesma localidade de Vale … que confrontava a sul com o “salgado”;
11 – Ora entendemos que essa circunstância não é suficiente para considerar que o prédio é o mesmo, até porque não há qualquer coincidência, aparte a referência ao “salgado” na confrontação entre os dois terrenos;
12 – Também é certo que, contrariamente, ao que afirmou o Mmo. Juiz na sentença, o ónus probatório acerca da identidade do terreno em posse privada antes de 1864, não é do réu, mas sim do AA. porque o thema decidindo diz respeito àquele preciso prédio e não a outro qualquer;
13 - No caso em apreço, os AA. arrogam-se proprietários do prédio identificado naquela decisão, com aquelas áreas, configuração e confrontações alegando que o mesmo era propriedade privada antes de 31.12.1864;
14- O apelante entende que a presunção de dominiliadade que o Estado beneficia não foi afastada;
15 – Além da primeira descrição do prédio datar de somente de 1944 e consequentemente os AA. não terem comprovado, por documentos que o terreno era propriedade privada antes de 31.12.1864, conforme o Mmo. Juiz entendeu, também não comprovaram que o prédio deles estava em posse de particulares antes da mesma data, porque a prova que apresentaram não permite declarar que se trata do mesmo prédio e porque em 1916 um dos supostos antepossuidores foi expropriado pelo Estado para a construção da Estrada …, conforme documento que eles próprios apresentaram;
17 – Em suma, entendemos que os AA. não fizeram prova suficiente para afastar a presunção de dominiliadade, sendo certo que tal ónus caberia aos mesmos.».
Também a ré RAM recorreu apresentando as seguintes conclusões:
« a) O tribunal a quo julgou a acção procedente por considerar estarem reunidos os pressupostos do n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro;
b) Para que se pudesse recorrer a aplicação desse n.º 3 do artigo 15.º da Lei 54/2005, ter-se-ia de provar que antes de 31 de dezembro de 1864 o concreto prédio objecto dos presentes autos estava na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa;
c) Acontece que da analise dos factos julgados como provados não é possível retirar tal conclusão;
d) Neste particular, o tribunal a quo limitou-se a referir na parte decisória da sentença que fundou a sua convicção quase exclusivamente no depoimento de HH e no pressuposto de que o prédio objecto dos presentes autos corresponde a um dos terrenos descritos no livro de encabeçamentos datado de 1771 e nos autos de inventário de 1856, sem que tal conclusão tenha qualquer correspondência ou suporte nos factos dados como provados;
e) Assim, e para todos os efeitos, não consta dos factos provados que, nas datas relevantes, o concreto o prédio objecto dos presentes autos se encontrava na posse em nome próprio de particulares;
f) Perante esta evidente desconformidade entre a matéria de facto dada como provada e a decisão de direito é forçoso concluir que se esta perante um erro de julgamento, fundamento suficiente para a revogação da decisão recorrida;
Subsidiariamente,
g) Caso assim na o se entenda, deve a sentença recorrida ser reformulada quanto a custas, repartindo equitativamente as mesmas entre as duas partes que integram o lado passivo;
h) A isenção de custas de que beneficia Ministério Publico não implica – nem poderia implicar – um aumento do montante a suportar pela Região Autónoma da Madeira, uma vez que não lhe poderá ser colocado um ónus adicional em virtude de uma isenção conferida por lei;
i) A imposição o deste o ónus adicional a uma das partes seria uma afronta ao espírito e justiça do sistema processual sobretudo quando a ambas as partes se encontram em juízo e são partes legítimas por mera prescrição legislativa;
j) Assim, e no limite, a responsabilidade pelas custas deverá ser repartida em partes idênticas pela Região Autónoma da Madeira e pelo Ministério Publico, sem prejuízo de a responsabilidade do pagamento da parcela referente a este ultimo dever ser suportada - nos termos do n.º 6 do artigo 26.º do Regulamentos das Custas Processuais – pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P.».
Responderam os AA. em contra alegações, com a seguinte síntese conclusiva:
« 1 - Os recorrentes não cumpriram com o imposto nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do art. 640º, do mencionado diploma, pelo não se deve conhecer do presente recurso.
2 - O art. 15, n.ºs 2 e 3, da Lei 54/2005 faz depender a propriedade privada de parcelas de terreno do tipo das que estão em causa na ação, da prova de as mesmas serem objecto de propriedade particular (ou comum) antes de 31 de dezembro de 1864 (ou estarem na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa) – e não da prova de actos aquisitivos determinados anteriores a 31 de dezembro de 1864.
3 - E o Meritíssimo Juiz “a quo” ao considerar provado nos números 7 e 8 dos Factos Provados que “No dia 25 de novembro de 1856 foi autuado um processo de apelação em autos de inventário originários do Juízo Ordinário da Comarca do Funchal, nos quais, II, autorizada pelo seu marido JJ, era apelante, e KK, filho de LL e do falecido KK, era apelado” e que “Nos autos de inventário referidos em 7), por óbito de KK (1º marido da Dona II, que depois de casada com MM, passou a usar II e era mãe do General MM), em que era interessada Dona II, a fls.23, sob a verba n.º 74 foi descrito o seguinte prédio: “Uma Quarella de terra lavradia no sítio dos Balditouros que leva em semeadura dous alqueires e meio de trigo avaliada em sessenta mil reis e confronta pelo Norte com o cabeço, a Sul com o Salgado, Leste com FF e oeste com Herdeiros do Capitam …” considerou que esta “quarella” ou parcela de terreno estava na posse de particulares.
4 - E verificou que a mesma “quarella” confrontava pelo sul com a praia e a leste com FF, pelo oeste com herdeiros de EE e pelo norte com o cabeço (ia até ao fim da encosta) e que hoje em dia na descrição predial do prédio em questão consta que ainda confronta com um FF e com um EE e pelo sul com a praia (ou salgado) – pelo que forçosamente se conclui que o prédio sub-judice provem dessa “quarella” que, assim, já em 1856 a mesma já estava na posse de particulares.
5 – Quanto ao alegado pelo Ministério Público de que “o prédio foi inscrito na matriz em 1983, não constando da referida inscrição matricial qualquer referência à existência de matriz anterior a essa data” e que “a matriz antiga não foi apresentada, como podia e devia, de modo ao tribunal poder inteirar-se do respectivo teor, incluindo confrontações, áreas e data da inscrição inicial. Estamos em crer que se o Arquivo Regional tem documentos de 1771 também deve lá ter as antigas matrizes da ilha do Porto Santo”, sempre se dirá que a matriz cadastral só entrou em vigor na Ilha do Porto Santo em 1983 e não faz a correspondência com a anterior matriz predial rústica, a qual, por sua vez, entrou em vigor em 1932. Assim não se pode apresentar o que não existe.
6 - Desde que se comprove que, antes de 31 de dezembro de 1864, havia posse particular dos prédios, mesmo que não titulada, é forçoso reconhecer a propriedade privada dos mesmos.
6 - Com a introdução do nº 3 do artigo 15º da Lei 54/2005, o legislador quis facilitar a prova exigida, designadamente, sem ser preciso o recurso à “probatio diabólica” da propriedade anterior a 1864 ou 1868.
7 - E a jurisprudência dominante, entende que com a entrada em vigor da Lei n.º 54/2005, o legislador alargou e simplificou os meios de prova - que passaram a poder ser por qualquer meio - de obter o reconhecimento de que o(s) prédio(s) eram objecto de propriedade particular antes de 31/12/1864 ou antes de 22/03/1968 – cfr. nº 3 do artigo 15º da referida Lei 54/2005.
8 – Aliás ficou devidamente comprovado, quer pelos documentos, juntos, quer pelo depoimento da testemunha HH, que os prédios situados no sítio do …, já eram propriedade particular, ou estavam na posse de particulares muito antes de 31 de dezembro de 1864.
9 – O Meritíssimo Juiz “a quo” na sua decisão não se baseou em “presunções”, mas sim em factos resultantes dos documentos juntos aos autos, que provam e bem, o justamente e fundamentadamente decidido.
10 - No entanto sempre se dirá que existe doutrina que defende que efectivamente existe uma presunção iúris tantum no artigo 15º nº 3 da Lei, como a Prof. NN in “As Limitações ao Direito de Propriedade Privada no Domínio Público Marítimo”, na sua Dissertação de Mestrado em Direito–Ciências Jurídico-Administrativas, publicado na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, págs. 46 e 47 «Numa segunda hipótese o particular apenas consegue provar a posse dos terrenos, anterior às datas já referidas, e já não a propriedade privada dos mesmos (cfr. n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro). Neste caso, “o interessado apenas poderá aspirar a que a Administração aceite a presunção de que os terrenos cuja propriedade ele invoca são particulares”. Os interessados têm a seu favor uma presunção iuris tantum, “o que equivale a considerar que até prova em contrário a ilidir a presunção, nos termos gerais do n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil, o terreno é particular”, sendo, portanto, admitidos quaisquer meios de prova.
11 – Com, também, incumbe aos AA., de acordo com aquele art. 15.º da Lei 54/2005, a prova «de toda a história de transmissões do bem e do reatamento do trato sucessivo até ao momento presente», pois, «o entendimento amplo do preceito, segundo o qual o particular interessado deve fazer prova de que o terreno permaneceu na condição de “propriedade privada” desde 1864 até ao momento actual, para além de não ter na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil), não está de acordo com a presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), nem é exigido pela razão de ser do regime jurídico em causa, que teve por objectivo a protecção de direitos adquiridos».
12 - O Tribunal formou a sua convicção relativamente aos Factos Provados 1 a 13, com base na prova documental junta aos autos, conjugada com as declarações credíveis das testemunhas, designadamente, da de HH.
13 - E o depoimento desta testemunha, licenciado em História, autor do Estudo junto aos autos e professor de História aposentado, que demonstrou ser conhecedor da história do Porto Santo, esclareceu que o Sítio dos Balditouros é o correspondente, actualmente, ao Sítio do …, referiu e contextualizou a história do Porto Santo, corroborando o por si relatado com documentos por si recolhidos, designadamente, no arquivo distrital da Região Autónoma da Madeira. O seu depoimento serviu para que o tribunal formasse a sua convicção quanto à ocorrência dos factos descritos de 6) a 10) (?) dos factos tidos como assentes.
14 - E não é com extractos avulsos do seu depoimento, que se pretende reverter todo o seu depoimento e as conclusões que se tiraram do mesmo.
15 - Pois é sabido que é no imediatismo da prova testemunhal que se afere melhor a sua veracidade e a sua pertinência.
16 - Como, também, deve ser tido em conta o princípio da aquisição processual (art. 515º do CPC), pelo que todo o depoimento das testemunhas não pode ser ignorado na parte que é relevante para a matéria dada como provada.
17 - Deste modo o Tribunal a quo aplicou correctamente a legislação adequável, designadamente os artigos, 10º nºs 1 e 2, artigo 11º nº 2, artigo 12º, artigo 15, nºs 1, 2 e 3, todos da Lei 54/2005, de 15.11 e o artigo 7º do Código do Registo Predial.»
Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Questões a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, saber se, no caso concreto:
- Estão ou não reunidos os pressupostos que permitem concluir pela propriedade privada do terreno em causa nos autos, ou, ao invés, se tal terreno está integrado no domínio público marítimo, quer do Estado, quer da Região Autónoma da Madeira.
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II. Fundamentação:
No Tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes Factos:
1) Encontra-se registada em nome dos AA., pela Ap. … de … 2008/09/10, a aquisição, por doação, do direito de propriedade sobre o prédio rústico e urbano sito ao Vale …, freguesia e concelho do Porto Santo, com a área de 6.240,00 m2, dos quais 220,00 m2 são de superfície coberta confrontando pelo Norte com EE, Sul com a Praia, Leste com FF e oeste com herdeiros de GG, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto Santo, sob a ficha nº …-Porto Santo (que é o correspondente à descrição em livro nº …, a fls. 115 do livro B-… e inscrito na respectiva matriz, a parte rústica sob o artigo cadastral nº …, da secção “AG”, com o valor patrimonial de € 358,32 (que é correspondente ao antigo artigo predial nº 3.397º) e a parte urbana sob os artigos … (destinado a garagem), com o valor patrimonial de € 22.906,35 e … (destinado a habitação), com o valor patrimonial de € 71 120.613,70, valor global de € 143.492,46 - docs. nºs 1 a 4, que se juntam (cfr. doc. nº 1 junto com a PI que aqui se dá por integralmente reproduzido).
2) Essa descrição nº … descrevia o prédio referido em 1) como: “Prédio rústico no Vale …, da Ilha do Porto Santo, confina pelo Norte com EE, Sul com a praia, Leste com FF e Oeste com herdeiros de GG. Na matriz predial sob o artigo …” (cfr. doc. nº 5 junto com a PI que aqui se dá por 80 integralmente reproduzido).
3) Os AA. e OO, que também usa OO, foram outorgantes na escritura de doação que fundamentou o registo referido em 1), outorgada a … 05/08/2008, exarada de fls. 59 a fls. 60 do livro de notas nº 85 …-A, do Cartório Notarial do Funchal, de PP (cfr. doc. nºs 3, 4 e 6 juntos com a PI que aqui se dá por integralmente reproduzidos).
4) O prédio em referência encontra-se implantado em terreno situado junto à praia, ou seja, confronta com a areia e esta com o mar, no sítio do …, da freguesia e concelho do Porto Santo e foi atravessado pela Estrada … (antes denominada Estrada …), tendo ficado fisicamente separado em duas parcelas.
a. – Uma, a norte da estrada com a área de 1.660,00 m2;
b. - Outra, a sul da estrada com a área de 3.877,00 m2;
c. – e a Estrada ocupou uma área de 703,00 m2.
(Cfr docs. nº 7 e 8, que se juntam com a PI e que aqui se dão por integralmente reproduzidos).
5) A parcela a sul da Estrada …, onde se encontram implantados os ditos prédios urbanos inscritos na respetiva matriz predial sob os artigos … e …, está situada na margem das águas do mar, dentro do limite de cinquenta metros, a contar da crista da linha que limita o leito dás águas naquele local e parcela situada a norte da dita estrada, está a mais de 50 metros. (Cfr docs. nº 7 e 8, que se juntam com a PI e que 106 aqui se dão por integralmente reproduzidos).
6) Do “Livro dos encabeçamentos das fazendas do Porto Santo, de 29 de maio de 1771” (cfr. doc. 12 junto com a PI que aqui se dá 109 por integralmente reproduzido) consta:
Fh. 1 - Dou Comissão ao Dezembargador QQ, Corregedor da Comarca da Ilha da Madeira, Para numerara e rubricar este livro com o seu sobrenome o QQ =O qual livro servirá para os encabeçamentos das fazendas 114 nesta Ilha do Porto Santo nos actuaes lavradores da mesma, de que erão os moradores desta Ilha da Madeira os senhorios; e no 116 fim delle fará enserramento na forma do estillo. Porto Santo vinte e nove de Mayo de mil settecentos settenta e hum. RR.
Fh. 23vº - Outra Longueirinha ou pedasso de terra citto na Amoreira Formosa ou Vai do Toiro parte pelo norte com SS, Sul e Leste, com a Praia, terra de oitavo, que foi cabeçada em TT viúva de UU actual lavrador dela para pagamento .... Na forma arbitrada De que continue esse termo que comigo achasse o dito VV por esta nam saber escrever WW o escrevi. XX. WW. Fh. 85vº - Huma longueira no Vale do Toiro, parte pelo norte com os herdeiros de capitam YY, Sul e Oeste com os herdeiros de Dona ZZ, com a Praia, terra de oitavo, foi encabeçada em AAA actual lavrador dela para pagar oitavo na forma arbitrada de que fiz este termo que comigo assignou .... WW o 134 escrevi. AAA .. WW.
Fh. 101 vº - Três longueiras no Vai do Toiro, uma para a parte da Vigia do Penedo, parte pelo Norte, com o BBB, Leste, com CCC 102) de DDD, Sul e Oeste, com D. EEE. Outra mais por cima, parte pelo Norte e Leste, com o ditto BBB, Sul e Oeste, com a ditta Dona EEE e com a Praia; e a que fica superior, a estas, parte pelo Norte e leste, com o padre FFF, de Maxico, Sul e Oeste com D. Marianna e o capitam YY, terras de oitavo, foram encabessadas em GGG actual lavrador dellas para pagar oitavo na forma arbitrada de que fiz este tenno, que comigo assignou HHH o escrevi. GGG. ARM, Governo Civil, nº 531, f. 23v; 85v°; 101vº-102.
7) No dia 25 de novembro de 1856 foi autuado um processo de apelação em autos de inventário originários do Juízo Ordinário da Comarca do Funchal, nos quais, II, autorizada pelo seu marido JJ, era apelante, e KK, filho de LL e do falecido KK, apelados.
8) Nos autos de inventário referidos em 7), por óbito de KK (1º marido da Dona II, que depois de casada com MM, passou a usar II e era mãe do General MM), em que era interessada Dona II, a fls.23, sob a verba n.º 74 foi descrito o seguinte prédio: “Uma Quarella de terra lavradia no sítio dos Balditouros que leva em semeadura dous alqueires e meio de trigo avaliada em sessenta mil reis e confronta pelo Norte com o cabeço, a Sul com o Salgado ( Praia ou mar ), Leste com FF e oeste com Herdeiros do Capitam …”( Hoje em dia na descrição predial do prédio em questão consta que ainda confronta com um FF e com um EE .)
9) A 7 de abril de 1864 o, (à data) Alferes, MM e II, outorgaram, no Funchal, testamento, no qual declararam ter, à data, uma filha de nome III, tendo a testadora declarado ter tido, de um primeiro casamento com KK quatro filhos que morreram todos antes dos pais, e que do segundo matrimónio com JJ não teve filhos.
10) Pelo Assento de Batismo, exarado a fls. 78v. e 79 do livro nº 2110, da Paróquia de Nossa Senhora da Piedade no Porto Santo, de 10-12-1892, de uma filha legítima, de nome JJJ (nascida a 27.07.1891), da referida KKK e do seu marido MM, então ainda Tenente, verifica-se que este MM era filho de MM e de Dona II e que aquela Dona KKK era filha de LLL e de Dona MMM (Cfr doc. nº 9, 182 que se junta com a PI e que aqui se dá por integralmente reproduzido). 11) Pela descrição n.º 36442, da Conservatória do Registo Predial do Porto Santo, é identificado o seguinte prédio: “Prédio rústico no Sítio do …, da Ilha do Porto Santo, confina pelo norte com EE, sul com a Praia, leste com FF e oeste com herdeiros de GG. Na matriz predial sob o art. …”.
12) Em novembro de 1944 foi efetuado, pela inscrição n.º … sob o prédio com a descrição n.º …, o registo de propriedade a favor KKK (que também usa KKK), por partilha (efetuada por escritura de 22 de dezembro de 1939) da herança do falecido marido, General MM (escritura de 22 de dezembro de 1939, de fls. 49v. a fls 76 do livro …-A do Notário da cidade de Lisboa, Dr. NNN – vide inscrição nº …, de 27 de novembro de 1944, apresentação 15, no doc. 5. junto com a PI e que aqui se dá por integralmente reproduzido).
13) Em Maio de 1948 foi efetuado, pela inscrição n.º …, sob o prédio com a descrição n.º …, o registo da aquisição, por compra (15 de abril de 1948) a KKK, viúva, do direito de propriedade a favor de OOO, casada com PPP (escritura de 15/04/1948, exarada a fls. 21v. do livro …-B do Notário do Funchal, Dr. QQQ – vide inscrição … de 25 de maio de 1948, apresentação 25, no doc. 5 e doc. 8A, juntos com a PI e que aqui se dão por integralmente reproduzidos).
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Foram considerados factos não provados os seguintes:
a) Que o prédio descrito em nos autos de inventário referido em 7) tivesse sido adjudicado a Dona II.
b) Nenhum outro com interesse para os autos.
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Da alegada impugnação da decisão relativa à matéria de facto:
No âmbito das alegações de recurso o Ministério Público anuncia na sua primeira conclusão que o presente recurso versa sobre matéria de facto e de Direito, porém, nem no corpo das suas alegações, nem nas suas conclusões, indica quais os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, pelo que inexiste qualquer impugnação dos factos, mas sim a apreciação da subsunção dos considerados ao direito, no que consubstancia um eventual erro de julgamento, a apreciar em conformidade.
Na verdade, no corpo das suas alegações sustenta que “entendemos que não podia ter o Tribunal recorrido dado como provado que as parcelas de terreno identificadas nos autos estão em propriedade privada antes de 31.12.1864 por falta/ insuficiência de prova”, no entanto, nesta análise apenas se socorre da fundamentação de direito da sentença recorrida, pelo que em sede de apreciação de direito, não sendo de considerar a existência de impugnação factual.
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III. O Direito:
A questão essencial a decidir prende-se com a classificação das parcelas de terreno identificadas nos autos como integrando o domínio público marítimo, ou, ao invés, se as mesmas pertencem aos Autores, situando-se no domínio da propriedade privada.
Nos termos da alínea a), do n.º 1, do artigo 84.º da Constituição, pertencem ao domínio público, entre outros bens, “as águas territoriais com os seus leitos e fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respetivos leitos”. Trata-se de uma disposição que assenta na convicção de que as águas, pela sua importância e afetação públicas, devem estar fora do comércio jurídico privado e de que são, portanto, inalienáveis, impenhoráveis e imprescritíveis.
Logo, as margens de águas públicas não integram, à luz da CRP, o domínio público por natureza. A sua classificação legal como dominiais surgiu com o artigo 2.º do Decreto Régio de 31 de dezembro de 1864, que incluiu no domínio público imprescritível os portos de mar e praias e os rios navegáveis e flutuáveis, com as suas margens, os canais de valas, os portos artificiais e as docas existentes ou que de futuro se construíssem (cfr. Diogo Freitas do Amaral/José Pedro Fernandes, Comentário à Lei dos Terrenos do Domínio Hídrico, Coimbra Editora, 1978, pág. 100). Segundo a doutrina, a atribuição de carácter dominial às praias – e, acrescentamos, às margens de cursos de água navegáveis e flutuáveis – implicou, tão-somente, a incorporação no domínio público dos terrenos marginais que já pertenciam ao domínio privado do Estado.
Não há ainda margem para dúvida quanto à classificação como bem imóvel das águas – artº 204º b) do CC, e a definição das mesmas como particulares nos termos previstos no artº 1386º do mesmo diploma, mormente o previsto na sua alínea d) que classifica como privadas as águas originariamente públicas que tenham entrado no domínio privado até 21 de Março de 1868, por preocupação, doação régia ou concessão.
Arredada que está tal consideração em concreto nos autos, foi considerado que o prédio em referência encontra-se implantado em terreno situado junto à praia, ou seja, confronta com a areia e esta com o mar, no sítio do …, da freguesia e concelho do Porto Santo e foi atravessado pela Estrada … (antes denominada Estrada …), tendo ficado fisicamente separado em duas parcelas: a. – Uma, a norte da estrada com a área de 1.660,00 m2; b. - Outra, a sul da estrada com a área de 3.877,00 m2; c. – e a Estrada ocupou uma área de 703,00 m2. Havendo ainda que considerar que no tocante à parcela a sul da Estrada …, onde se encontram implantados os prédios urbanos descritos nos autos e inscritos na respectiva matriz predial sob os artigos 1001º e 925º, a mesma está situada na margem das águas do mar, dentro do limite de cinquenta metros, a contar da crista da linha que limita o leito dás águas naquele local. Sendo que a parcela situada a norte da dita estrada, está a mais de 50 metros.
Logo, haveria que apreciar a sua dominialidade à luz dos diplomas que se seguiram ao despacho régio supra aludido, pois, o Decreto n.º 8 de 5 de dezembro de 1982, o Regulamento dos Serviços Hidráulicos, de 19 de dezembro de 1892, o Decreto n.º 5.787 – III, de 10 de maio de 1919, vulgarmente conhecido como “Lei das Águas”, e o Decreto-Lei n.º 12445, de 29 de setembro de 1926, não continham uma disposição semelhante à que viria a constar do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de novembro, e do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, ou seja, não tratavam especificamente o tema do reconhecimento de propriedade privada sobre margens de águas públicas. É só através do Decreto-Lei n.º 468/71, na definição prevista no artº 3º e da presunção de dominialidade das margens de águas públicas que esta se afirmaria o domínio público do Estado.
Esta dominialidade seria reiterada mais tarde, no artigo 4.º, alíneas a) e b), do Decreto-Lei n.º 477/80, de 15 de outubro, diploma que criou o inventário geral do património do Estado, no qual se estatui que integram o domínio público do Estado «as águas territoriais com os seus leitos, as águas marítimas interiores com os seus leitos e margens e a plataforma continental», e ainda «os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis com os respetivos leitos e margens e, bem assim, os que por lei forem reconhecidos como aproveitáveis para produção de energia elétrica ou para irrigação».
Em matéria de reconhecimento da propriedade privada sobre estes terrenos, o legislador nacional admitiu a persistência dos direitos de propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens de águas públicas, isto é, águas pertencentes ao domínio público hídrico, mas estabeleceu, na senda do que vinha propondo a Comissão do Domínio Público Marítimo, uma presunção ilidível de dominialidade. Por outras palavras, fez impender sobre o particular o ónus de provar a titularidade da propriedade sobre tais parcelas de terreno e de, assim, as subtrair ao domínio público hídrico a que, de outro modo, pertenceriam, por força do disposto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 468/71.
A Lei n.º 16/2003, de 4 de junho, que reviu, atualizou e unificou o regime jurídico dos terrenos do domínio público hídrico, não trouxe, quanto a esta matéria, quaisquer alterações de relevo. Seguiu-se a Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, onde se destacam, desde logo, os artigos 2.º a 5.º, que dispõem sobre a composição do domínio público hídrico.
No caso dos autos o que está em causa é efectivamente aferir da dominialidade do Estado, em concreto da Região Autónoma da Madeira, de tal parcela de terreno a sul, à luz da Lei ora vigente, ou seja a Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, com a redacção operada pelas sucessívas alterações, mormente com a Lei n.º 34/2014, de 19 de junho, e sendo a última a Lei n.º 31/2016, de 23/08, lei que estabelece a titularidade dos recursos hídricos, a qual no artº 15º sob a epígrafe “Reconhecimento de direitos adquiridos por particulares sobre parcelas de leitos e margens públicos”, estabelece, quer a competência dos tribunais comuns para decidir sobre a propriedade ou posse de parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, quer ainda especificamente o seguinte no seu nº 2 e 3: 2 - Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868. 3 - Na falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do número anterior, deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa.
Como se refere no Acórdão n.º 326/2015, de 23/06/2015, do Tribunal Constitucional (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “ a CRP optou por não declarar a dominialidade de todas as margens de águas públicas, costeiras ou não costeiras - aumentando, por conseguinte, a margem de conformação do legislador ordinário nesta matéria. Depois, porque o legislador português (…) optou por admitir expressamente a existência de margens de propriedade pública e de margens de propriedade privada, condicionando a segunda a um regime de prova muito exigente, sob pena de tais margens se considerarem públicas e, por conseguinte, dominiais (cfr. o artigo 5.º da Lei n.º 54/2005). Dito de outro modo, porventura mais consonante como o pensamento legislativo, tolera-se o direito de propriedade privada sobre margens de águas públicas, muito embora tendo presente que, na falta de comprovação daquele direito, o relevo dos terrenos para o interesse público alavanca necessariamente a sua dominialidade, ou seja, a assunção da conveniência de uma afetação e destino públicos, e, logo, a recondução à propriedade de entes públicos.”.
In casu, a questão coloca-se relativamente à margem do terreno relativamente à praia, sendo que quanto a esta importa ter presente o exposto no artigo subordinado ao tema “O reconhecimento da propriedade privada sobre terrenos do domínio público hídrico”, de Manuel António do Carmo Bargado ao aludir que: “Ao tratar da margem é importante fazer referência a outro conceito muito ligado a este (pois refere-se a uma espécie de que aquela é o género): o de praia. A “dominialização” das praias foi expressamente assumida em 1864, com a entrada em vigor do Decreto de 31 de Dezembro de 1864 (…). Porém, como refere Tavarela Lobo (in Manual do Direito de Águas, 2.ª edição revista e ampliada, vol. I, Coimbra Editora, 1999, pp. 212), «Já a Portaria de 13 de Março de 1864 (…), considera que “as praias e o mar adjacente sempre foram consideradas, pelo direito do Reino, bens nacionais e como tais nunca estiveram, nem poderiam estar, sob jurisdição municipal…”, doutrina perfilhada mais tarde, expressamente, pela Lei n.º 19 928, de 15 de Junho de 1931».
Até à publicação do Decreto-Lei n.º 468/71, a lei portuguesa nunca consagrou de forma clara outra acepção de praia que não fosse a correspondente ao littus maris do direito romano (cfr., v.g., art. 8.º do Decreto de 1 de Agosto de 1884 e n.º 1 do art. 1.º do Decreto n.º 8, de 31 de Dezembro de 1892)( Cfr. Freitas do Amaral e José Pedro Fernandes, Comentário à Lei dos Terrenos do Domínio Hídrico, pp. 89-90.).
Discutiu-se, mais tarde, se o Código Civil de 1867 – cujo artigo 380º, nº 2, na sua versão originária, apenas mencionava entre as coisas públicas «as aguas salgadas das costas, enseadas, bahias, fozes, rias e esteiros, e o leito d´ellas» - tinha implicado que as praias tivessem deixado de pertencer ao domínio público.
Entenderam alguns civilistas (Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, vol. III, Coimbra Editora, 1930, pp. 126-127; Guilherme Moreira, As Águas no Direito Civil Português, Livro I, Coimbra, 1920, p. 255) que tal não tinha sucedido e que as praias se tinham mantido no domínio público, pelo menos num sentido restrito, ou seja, «a porção de terra que o mar cobre na enchente da maré, ou nas maiores marés, e que deixa descoberta na vazante, ou marés menores»( Tavarela Lobo, Manual, ob. cit., p. 215.).
No entanto, Afonso Queiró sustentava o entendimento de que o Decreto de 31 de
Dezembro de 1864, ao referir-se expressamente e pela primeira vez no nosso direito às praias, incluindo-as no domínio público, só podia ter-se referido às praias em sentido amplo, ou seja, «os terrenos, ordinariamente arenosos e enxutos, deixados a descoberto pelo lento recuo das águas do mar ou resultantes de aluvião formado pelas mesmas águas» (As praias e o domínio público, Estudos de Direito Público, Universidade de Coimbra, II volume, obra dispersa, tomo I, p. 366).
Segundo o mesmo autor ( in ob. Cit. pp. 373), verificavam-se em relação às praias, na parte não coberta pelas águas marítimas, todos os requisitos exigidos pelo Código Civil (de acordo com o conceito genericamente definido no corpo desse preceito- artº 380º do então CC) para a qualificação como coisas públicas, na medida em que eram geralmente propriedade do Estado, encontravam-se debaixo da sua administração e estavam afectas a vários tipos de usos públicos.
Consagrando esta noção de praia em sentido lato, o Decreto-Lei n.º 468/71 veio
estabelecer, no seu artigo 3.º, n.º 521, que a margem se estende até onde o terreno apresentar a natureza de praia, “devendo entender-se que reveste natureza dominial em toda essa extensão”( Que corresponde, sem alterações, ao n.º 5 do art. 11.º da Lei n.º 54/2005.) Porém, «nem sempre será fácil saber se determinado terreno deverá, em face da definição, considerar-se praia e designadamente em que pontos a praia termina para dar início a uma duna, elemento que frequentemente prolonga as superfícies arenosas das praias. E é particularmente necessário conhecer onde termina o terreno qualificável como praia porque, nos termos do n.º 5 do art. 3.º, quando a margem tiver natureza de praia em extensão superior à estabelecida nos números anteriores, ela estende-se até onde o terreno apresentar tal natureza»( Freitas do Amaral e José Pedro Fernandes, in ob. cit. pp 93).” ( in Revista Julgar on line 2013, escrito em data anterior à actual revisão da lei nº 54/2005, operada em 2013 e em 2016, pág. 7 a 9 ).
Desta análise e do contido quanto à prova dos factos, não restam dúvidas que a referência a “salgado” no âmbito da confrontação do prédio é o equivalente a praia ou mar e como tal foi considerado pelo Tribunal a quo, nem foi posto em causa nos autos.
Deste modo, o que releva é considerar a aplicabilidade do artº 15º da Lei nº 54/2005, por forma a aferir do direito invocado pelos Autores, não olvidando que ao exigir-se a prova reportada a momento anterior a 1864, quando acoplada a uma presunção ilidível de dominialidade, tal pode ser problemático.
Com efeito, a presunção da dominialidade destes terrenos não “obsta que possam subsistir direitos de natureza privada já existentes”( Ac. do STJ, de 04/06/2013, referente ao Processo n.º 6584/06.2TBVNG.P1.S1, in www.dgsi). Assim, não obstante estes terrenos se encontrarem sujeitos “a uma presunção juris tantum de propriedade pública”( no mesmpo Acórdão), não invalida que os interessados comprovem a sua propriedade sobre essas mesmas parcelas, desde que a prova seja anterior a essas datas.
A relevância da data de 31 de dezembro de 1864 para efeitos da prova da propriedade privada, assenta na circunstância supra aludida de ter sido nessa data que as margens de águas públicas foram objeto de declaração de dominialidade, através do decreto régio então publicado. Pelo que a partir dessa data as margens de águas públicas passaram a estar excluídas do comércio jurídico privado.
Por outro lado, sendo este também o entendimento do Juiz a quo, não restam dúvidas que em matéria de distribuição do ónus da prova, esta ocorre por banda dos AA., ou seja, é o particular que se intitula proprietário a quem compete fazer tal prova.
Na apreciação da inconstitucionalide de tal norma no que concerne ao ónus de prova, decidiu-se no Ac. do Tribunal Constitucional a que vemos fazendo referência, julgar não inconstitucional a norma do artigo 15.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, na redação conferida pela Lei n.º 78/2013, de 21 de novembro, quando interpretada no sentido de a obrigatoriedade da prova a efectuar pelos autores se reportar a data anterior a 31 de dezembro de 1864.
É certo que se admite algum embaraço nessa exigência no âmbito de tal Acórdão ao considerar, por um lado, que “os diplomas anteriores a 1971 não continham, apesar dos argumentos doutrinais, uma presunção de dominialidade semelhante à que constava do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 468/71 e à que atualmente consta do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, nem qualquer ónus de intentar uma ação de reconhecimento da propriedade privada sobre os terrenos marginais.”. Por outro lado, “impendendo, desde 1892, sobre a administração pública, o dever de pôr em marcha a classificação e demarcação das bacias hidrográficas, contendo uma série de informações relevantes para a atual ação de reconhecimento, tais como a navegabilidade ou flutuabilidade das águas e dos troços, ou a largura das margens confinantes – e que permitiriam ter atempadamente “dissipado” eventuais “dúvidas” sobre a situação jurídica dos bens em causa -, tal dever jamais haver sido cumprido.”.
Todavia e apesar de tais apontados embaraços acaba por se concluir na mesma decisão que “Reconhecendo-se embora a existência de instrumentos jurídicos que permitiriam acautelar, pelo menos em parte, os interesses públicos que o regime jurídico vigente visa salvaguardar – nomeadamente, as servidões administrativas e outras restrições de utilidade pública -, não se duvida que a dominialidade pública é o que melhor garante aqueles. Não se olvide que as margens das águas públicas constituem condição de acesso a vias de comunicação – leia-se, a cursos de água navegáveis ou flutuáveis –, apresentando impacto evidente no exercício de liberdades fundamentais, como a liberdade de circulação, consagrada no artigo 44.º da CRP. Ainda que algumas dúvidas possam subsistir, elas não se afiguram suficientes para pôr em causa a conformidade constitucional da norma do artigo 15.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), da Lei n.º 54/2005”.
Donde, haverá que aferir se se mantém a presunção de dominialidade do Estado, por se entender que a mesma não foi afastada, como preconizam as recorrentes, sendo sim de considerar a existência do Domínio Público Estadual, ainda que tal margem do mar diga respeito ao arquipélago da Madeira. Pois, tal como se decidiu no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 131/2003, essencialmente na parte que parafraseia J.J. Gomes Canotilho: “[d]ada a natureza não soberana das Regiões Autónomas, elas não podem ser titulares daquele domínio público intrinsecamente ligado à soberania do Estado (mar territorial, etc), sem prejuízo das competências administrativas que lhe sejam atribuídas sobre ele” ( em sentido contrário se decidiu no Ac. desta Relação, datado de 12/01/2012, proferido no Processo n.º 1224/08.8TBSCR.L1-2, in www.dgsi, ao sustentar que “as margens do mar que não sejam propriedade privada, nos termos do art. 12.º, n.º 3 da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, integram, no âmbito das Regiões Autónomas, o domínio público da respetiva Região”). Deste modo, sempre estará em causa a dominialidade do Estado e não em concreto da RAM.
A previsibilidade contida no artº 15º da Lei a que vemos fazendo referência, e adoptando a esquematização de alguns autores (Designadamente de Diogo Freitas do Amaral e José Pedro Fernandes e Manuel Bargado, in. Ob. supra referidas), existem quatro situações possíveis no que respeita aos meios de reconhecimento da propriedade privada de leitos ou margens de águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis. Assim, nessa esquematização e tendo por base o exposto por Catarina Moreira de Lima: “Numa primeira hipótese o interessado quer ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre parcelas de leitos ou margens de águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis e dispõe de documento que comprova a aquisição dessa propriedade. Para esse documento ser admissível o interessado deve provar que antes de 31 de dezembro de 1864 ou, no caso de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868, esses terrenos já eram, por título legítimo204 – de acordo com o n.º 1 do artigo 1259.º do CC – objeto de propriedade particular ou comum (cfr. o n.º 2 do artigo 15.º).
Numa segunda hipótese o particular apenas consegue provar a posse dos terrenos, anterior às datas já referidas, e já não a propriedade privada dos mesmos (cfr. n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro). Neste caso, “o interessado apenas poderá aspirar a que a Administração aceite a presunção de que os terrenos cuja propriedade ele invoca são particulares”( Cfr. Diogo Freitas do Amaral e José Pedro Fernandes, Comentário á Lei, ob. cit., p. 129). Os interessados têm a seu favor uma presunção iuris tantum, “o que equivale a considerar que até prova em contrário a ilidir a presunção, nos termos gerais do n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil, o terreno é particular”( Cfr. Manuel Bargado, in “O reconhecimento da propriedade privada”, ob. cit., p. 457), sendo, portanto, admitidos quaisquer meios de prova.
Contempla-se uma terceira situação quando se mostre que os documentos anteriores a 1864 ou 1868 se tornaram ilegíveis ou foram destruídos, por incêndio ou facto de efeito equivalente ocorrido na conservatória ou registo competente (cfr. n.º 4 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro). Neste caso, presumir-se-ão particulares os terrenos em relação aos quais se prove que, antes de 01/12/1892207, eram objeto de propriedade ou posse privadas.
Por último, podem ocorrer situações que já não se encontram sujeitas ao regime de prova analisado anteriormente, conforme prevê o n.º 5 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro.”. ( tema publicado no reportório da FDUP, sob o tema “As limitações ao direito de propriedade privada no Domínio Público Marítimo”, pág. 46-47).
Ora, toda análise levada a cabo e sintetizado pela autora referida, Catarina Moreira de Lima, tem por base a redacção do artº 15º anterior à redacção da Lei nº Lei n.º 34/2014, de 19/06, no qual se previa que: 1 - Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis pode obter esse reconhecimento desde que intente a correspondente acção judicial até 1 de Janeiro de 2014, devendo provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objecto de propriedade particular ou comum antes de 31 de Dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de 1868.
2 - Sem prejuízo do prazo fixado no número anterior, observar-se-ão as seguintes regras nas acções a instaurar nos termos desse número:
a) Presumem-se particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais, na falta de documentos susceptíveis de comprovar a propriedade dos mesmos nos termos do n.º 1, se prove que, antes daquelas datas, estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa;
b) Quando se mostre que os documentos anteriores a 1864 ou a 1868, conforme os casos, se tornaram ilegíveis ou foram destruídos por incêndio ou facto semelhante ocorrido na conservatória ou registo competente, presumir-se-ão particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais se prove que, antes de 1 de Dezembro de 1892, eram objecto de propriedade ou posse privadas.
Ora, como vimos, tal lei foi alterada pela Lei nº 34/2014, bem como outras alterações posteriores como deixamos referido, mas que neste caso não relevam, e a partir dessa data eliminou-se o prazo previsto no nº 1 para a interposição da acção, manteve-se no nº 1 a competência dos Tribunais comuns, e no que concerne às regras de prova previu-se no nº 2 e no nº 3 que: 2 - Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868.
3 - Na falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do número anterior, deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa.(sublinhado nosso).
É à luz de tal diploma e alteração que deve ser apreciado o caso em apreço.
Logo, somos em concordar com o recorrente Ministério Público, pois na actual Lei não existe a presunção que estabelecia no artº 15º nº 2 alínea a), pelo que na falta de documentos susceptíveis de comprovar a propriedade, compete ao particular fazer prova da posse antes de 31/12/1864 – cf. artº 342º nº 1 do CC. No entanto, importa aferir do que resulta dos autos.
Em primeiro lugar, e tal como resulta da decisão recorrida, nos termos previsto no nº 2 do artº 15º cabia aos AA. provar documentalmente que tal prédio era, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 dezembro de 1864. Como se alude em tal decisão “Constituem, assim, justo título ou título legítimo de aquisição, entre outros, os expressamente previstos no artigo 1316.º do Código Civil, isto é, o contrato, a sucessão por morte, usucapião, a ocupação e a acessão, não sendo tal previsão taxativa atenta a utilização, na parte final do artigo, da fórmula “e demais modos previstos na lei”, prosseguindo-se ainda que “Dos factos dados como provados não resultam dúvidas de que parte do prédio propriedade dos AA. (extrema Sul) se encontra dentro do domínio público marítimo, aliás, excluindo-se uma divergência quanto à área do prédio, ambas as RR. reconhecem aquele facto.”.
Todavia, entendemos que ao contrário do entendimento contido na sentença, ao referir que não estará em causa nos autos a prova documental da titularidade, arredando-se, assim, a aplicação do nº 2 do artº 15º, acaba de forma incorrecta quanto ao ónus de prova por entender que estará provada a posse, face à presunção de que os AA. beneficiam, assente nessa mesma prova documental. Pelo que por aplicação de uma presunção de titularidade privada assente no nº 2 alínea a) do artº 15º, que deixou de existir na actual versão de tal preceito, conclui que existe posse.
Ora, o busilis existe sobre o que se entende por título legítimo.
Como se decidiu no Acórdão do STJ de 16/02/2023, (proc. nº457/18.3T8ABF.E1.S1, in www.dgsi.pt) , na interpretação do artº 15º “se é certo que não se pretende tornar impossível a tarefa probatória atribuída aos particulares, não é menos verdade que a interpretação a conferir ao referido dispositivo legal não poderá deixar de ser rigorosa, impondo uma exigência probatória incompatível com quaisquer dúvidas sobre a matéria em discussão. (…) Entendemos que o único entendimento que tem um mínimo de correspondência na lei é o de que, sendo certo que a demonstração da propriedade privada tem de ser feita documentalmente (cit. nº 2 do artº 15º da Lei n.º 54/2005, de 15-11), tal prova documental pode realizar-se através de quaisquer documentos e não apenas do justo título de aquisição. Na verdade, considerando que a vontade expressa do legislador tem em si ínsita a ponderação do interesse público subjacente ao estabelecimento do domínio hídrico do Estado e os direitos adquiridos dos particulares e também os princípios da segurança e certeza jurídicas, é manifesto que o legislador optou por consagrar uma solução segundo a qual os direitos dos particulares apenas poderiam afastar o mencionado interesse público, caso fossem demonstrados por via da prova documental.
Porém, também parece evidente que o legislador não tomou posição quanto ao tipo de documentos admissíveis para efeitos de prova, motivo pelo qual entendemos ser evidente que os particulares poderão lançar mão de todos os documentos de que disponham para demonstrar os factos dos quais decorra que os prédios reivindicados eram objecto de propriedade privada desde data anterior aos marcos temporais mencionados.
Este STJ já se pronunciou, em acórdão de 14-07-2021 (Nuno Pinto Oliveira), nos seguintes termos: “ainda que o art. 15.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005 exija uma certa espécie de prova, não fixa a força da prova documental produzida”. Trata-se de um caso onde foram apreciadas cartas topográficas, enquanto prova documental sujeita ao princípio da livre apreciação. Neste sentido, vejam-se, ainda, os acórdãos proferidos em 23-03-2021 (Graça Amaral), de 23-03-2021 (Graça Amaral), de 09-06-2021 (Ricardo Costa) e de 09-03-2022 (Nuno Ataíde das Neves).”
Nestes arestos, o STJ, ainda que em alguns casos de forma implícita, considerou admissível a valoração de diversos documentos, ainda que sujeitos ao princípio da livre apreciação de prova – posição que também aqui sufragamos.
Ora, tal como se alude na decisão: “O prédio dos AA., descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto Santo, sob o art. …, tem a descrição em livro: N.º …, livro n.º 103.
Tal prédio confronta a Norte com EE; Sul com Praia; a Leste com FF e Oeste com RRR, está situado no Sítio do Vale ….
No que respeita à área do prédio, o qual teve parte expropriada, o tribunal formou a sua convicção quanto à mesma no teor do levantamento topográfico e planta cadastral (Cfr docs. nº 7 e 8 juntos com a PI e que aqui se dão por integralmente reproduzidos), sendo que, os mesmos não foram, na sua génese, colocados em causa pela peritagem feita, sendo que, a divergência de área prendeu-se com o limite Sul, aquele que, precisamente confronta com o mar, sendo que dúvidas não existem, independentemente da área, que parte do prédio encontra-se, efetivamente, dentro do domínio público marítimo. Assim, o tribunal formou a sua convicção quanto à área do mesmo que resultou no facto assente n.º 4. Continuemos.
No dia 25 de novembro de 1856 foi autuado um processo de apelação em autos de inventário originários do Juízo Ordinário da Comarca do Funchal, nos quais, II, autorizada pelo seu marido JJ, era apelante, e KK, filho de LL e do falecido KK, apelados.
Nestes autos de inventário do referido KK (1º marido da Dona II, que depois de casada com MM, passou a usar II e era mãe do General MM), em que era inventariada Dona II, a fls.23, sob a verba n.º 74 foi descrito o prédio: “Uma Quarella de terra lavradia no sítio dos Balditouros que leva em semeadura dous alqueires e meio de trigo avaliada em sessenta mil reis e confronta pelo Norte com o cabeço, a Sul com o Salgado ( para ou mar), Leste com FF e oeste com Herdeiros do Capitam …”( Hoje em dia na descrição predial do prédio em questão consta que ainda confronta com um FF e com um EE).
A 7 de abril de 1864 o, (à data) Alferes, MM e II, outorgaram, no Funchal, testamento, no qual declararam ter à data uma filha de nome III, tendo a testadora declarado ter tido, de um primeiro casamento com KK quatro filhos que morreram todos antes dos pais, e que do segundo matrimónio com JJ não teve filhos.
Pelo Assento de Batismo, exarado a fls. 78v. e 79 do livro nº 2110, da Paróquia de Nossa Senhora da Piedade no Porto Santo, de 10-12-1892, de uma filha legítima, de nome JJJ (nascida a 27.07.1891), da referida KKK e do seu marido MM, então ainda Tenente, verifica-se que este MM era filho de MM e de Dona II e que aquela Dona KKK era filha de LLL e de Dona MMM (Cfr doc. nº 9, que se junta com a PI e que aqui se dá por integralmente reproduzido).
Pela descrição n.º 36442, da Conservatória do Registo Predial do Porto Santo, é identificado o seguinte prédio: “Prédio rústico no Sítio do …, da Ilha do Porto Santo, confina pelo norte com EE, sul com a Praia, leste com FF e oeste com herdeiros de GG. Na matriz predial sob o art. …”.
Em novembro de 1944 foi efetuado, pela inscrição n.º … sob o prédio com a descrição n.º …, o registo de propriedade a favor KKK (que também usa KKK), por partilha (efetuada por escritura de 22 de dezembro de 1939) da herança do falecido marido, General MM (escritura de 22 de dezembro de 1939, de fls. 49v. a fls 76 do livro …-A do Notário da cidade de Lisboa, Dr. NNN – vide inscrição nº …, de 27 de novembro de 1944, apresentação 15, no doc. 5. que se junta com a PI e que aqui se dão por integralmente reproduzidos).
Em Maio de 1948 foi efetuado, pela inscrição n.º …, sob o prédio com a descrição n.º …, o registo da aquisição, por compra (15 de abril de 1948) a KKK, viúva, do direito de propriedade a favor de OOO, casada com PPP (escritura de 15/04/1948, exarada a fls. 21v. do livro …-B do Notário do Funchal, Dr. QQQ – vide inscrição … de 25 de maio de 1948, apresentação 25, no doc. 5 e doc. 8A, que se juntam com a PI e que aqui se dão por integralmente reproduzidos).
Aqui chegados, cumpre referir que os AA. entendem que o prédio identificado, no dia 25 de novembro de 1856, nos autos de inventário de KK, como “Uma Quarella de terra lavradia no sítio dos Balditouros que leva em semeadura dous alqueires e meio de trigo avaliada em sessenta mil reis e confronta pelo Norte com o cabeço, a Sul com o Salgado(praia ou mar), Leste com FF e oeste com Herdeiros do Capitam …” corresponde ao prédio inscrito a favor dos AA., ou seja, que se tratando do mesmo prédio, demonstrando que era privado (por título legítimo) em data anterior às referidas no art. 15.º, n.º 2, da Lei subjacente, demonstrado ficariam os pressupostos para a procedência da presente ação.” Acresce que tal como se alude na decisão “A identificação de 25 de novembro de 1856 (inventário) refere a palavra “quarella”. Segundo o dicionário Infopédia, Cou.re.la. é um feminino, e pode ser: 1. parcela de terra cultivada, comprida e estreita 2. antiga unidade de medida agrária, correspondente a 100 braças de comprimento por 10 de largura 3. montado de sobreiros. A palavra provém do latim tardio quadrella-, diminutivo de quadra- , «um quarto; uma quarta parte». Vejamos então se “parcela de terra cultivada, comprida e estreita” encontra mais alguma correspondência, in casu, na Ilha do Porto Santo. Cumpre então ter presente que a Ilha do Porto Santo teve “encabeçamentos”, ou seja, atribuição de terras régias a pessoas para que pudessem agricultá-las a fim de debelar a fome, sendo que, do “Livro dos encabeçamentos das fazendas do Porto Santo, de 29 de maio de 1771” encontramos o Rei a atribuir aos lavradores do Porto Santo, designadamente no Sítio do Vale do Toiro, “longeirinha ou pedasso de terra”, as quais, muitas delas, confrontavam com o salgado (mar), contudo, por essa utilização foi instituído o pagamento da oitava, o que, demonstra que a dominialidade do Rei/coroa não foi afetada por esse ato que seria, atualmente, uma concessão de exploração, não sendo tais terras introduzidas no domínio privado.”.
Donde, ainda que o inventário e o aí descrito não possa ser considerado título legítimo de aquisição na previsão do artº 1316º do CC, não deixa de existir em tal título a descrição contida no inventário, pelo que não é dispiciendo considerar o que resulta dos autos, no que toca à prova documental da titularidade.
Com efeito, não há que olvidar o contido nos autos de inventário, de 25 de novembro de 1856, por óbito de KK,no qual foi arrolado um prédio identificado como “Uma Quarella de terra lavradia no sítio dos Balditouros que leva em semeadura dous alqueires e meio de trigo avaliada em sessenta mil reis e confronta pelo Norte com o cabeço, a Sul com o Salgado( praia ou mar), Leste com FF e oeste com Herdeiros do Capitam …”.
Donde, face a tal facto não pode deixar de ser considerado que tal prédio, nos termos descritos, estava arrolado nos autos de inventário de um particular, sendo de atender que se tal sucedeu foi porque o prédio era, nessa data, privado.
Acresce que, reforçando tal titularidade expõe-se na sentença, ainda que por forma reforçar a posse, que “cumpre referir que a estrada regional que passa a Norte do prédio veio a ser construída após a expropriação, por parte da Junta Geral do Distrito do Funchal, no ano de 1916, de várias parcelas de terrenos de cultivo, incluindo parcelas sitas no Sítio do Touro, sendo que, do anúncio efetuado no diário da Madeira de 8 de março de 1916 (fls. 55, doc. 16 junto com a PI), resulta a menção do General SSS, como expropriado, o qual foi o 3.º marido da viúva do KK, no inventário do qual, a 25 de novembro de 1856, foi arrolado o referido prédio. Veja-se que parte do prédio foi expropriado podendo concluir que se trata da parcela identificada como 18, isto pelas confrontações da parcela em causa com as identificadas na descrição n.º 364442. Esse mesmo prédio (após a expropriação) foi, posteriormente, em 1939, alvo de partilha face à morte de SSS, tendo, posteriormente, em 1948, o prédio em causa, sido vendido a TTT, a qual, por sua vez, em 2008, procedeu à sua doação para os AA. Assim, dúvidas não resultam de que o prédio propriedade dos AA., já se encontrava na posse de particulares, pelo menos, desde 25 de novembro de 1856 até à atualidade, ou seja, já se encontrava na posse de particulares desde data anterior 31 de dezembro de 1864.”.
Como se alude no Acórdão do STJ supra aludido “impondo o artigo 15.º, n.º 2, a), da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, que a prova da existência do direito de propriedade privada anterior a 31 de Dezembro de 1864 seja documental, caso transpuséssemos para a prova deste direito de propriedade as exigências que imperam na ação de reivindicação, a única prova possível seria a resultante da inscrição registral em data anterior a 31 de Dezembro de 1864. Ora, uma vez que um sistema registral predial público em Portugal, verdadeiramente, só foi instituído após esta data (Em Portugal, em que a transmissão da propriedade foi durante muito tempo efetuada por simples “traditio” física, como refere CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, chegou-se ao século XIX sem que a publicidade predial tenha feito a mais tímida ou longínqua aparição entre nós (em Publicidade e Teoria dos Registos, Livraria Almedina, Coimbra, 1966, pág. 147), existindo apenas descrições dispersas e avulsas de terras e seus donos nos forais, nos alvarás de concessão e nos tombos da Casa Real, dos municípios, das ordens religiosas, das casas principescas, nos registos Chancelaria etc. (CUNHA GONÇALVES, Tratado de Direito Civil, em Comentário ao Código Civil Português, vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 1932, pág.546). Em 1801, um Alvará Régio de 9 de Junho, que nunca teve concretização, determinou que em cada Comarca houvesse um Matemático, que fosse um Cosmógrafo, que procedesse à formação de vários livros, sendo que num se deveriam descrever todas as herdades e outros bens rurais e urbanos com as suas dimensões e demarcações e noutro se deveriam registar os títulos de cada um dos possuidores das respetivas propriedades, ordenando-se que sempre que uma propriedade passasse de um possuidor para outro, fosse o novo possuidor obrigado a fazer registar o seu competente título sob pena de não ser reconhecido por senhor daquela propriedade.
Pelo Decreto de 26 de outubro de 1936, foi criado o Registo das Hipotecas, posto em execução pelo polémico Decreto de 3 de Janeiro de 1837, o qual correspondia a um registo público obrigatório, mas restrito aos encargos que incidiam sobre bens prediais. Apenas eram registados os prédios hipotecados por convenção, última vontade ou lei; litigiosos por ação sobre o domínio ou penhora; doados ou por qualquer outro contrato alienados, com reserva de usufruto. Só pela Lei Hipotecária de 1 de julho de 1963, que teve na sua base a proposta de um Código de Crédito Predial da autoria de Carvalho Martens, inspirada no sistema registral germânico, se prevê finalmente a criação de um verdadeiro registo público de bens prediais, tendo a sua entrada em vigor apenas ocorrido em 1 de Abril de 1867 com a instalação das repartições necessárias. Sobre estes primeiros passos de um registo público predial em Portugal, vide, além das obras já referidas nesta nota, FERREIRA DE MELLO, em Commentário Crítico Explicativo à Lei Hypotecária Portugueza de 1 de julho de 1863, Typografia de António Augusto Leal, Porto, 1864, Azevedo Souto, Registo Predial, Lisboa, 1914, e MÓNICA JARDIM, em Efeitos Substantivos do Registo Predial. Terceiros para Efeitos de Registo, Almedina, Coimbra, 2013, pág. 329-345. ), não é crível que o legislador o tivesse elegido como único meio de prova, pelo que se entende ser admissível que a prova documental da existência de um direito de propriedade privada anterior a 31 de Dezembro de 1864, possa ser feita através da apresentação de documento que traduza uma pretérita aquisição derivada do direito de propriedade que na época fosse admitido pela ordem jurídica então vigente”.
No tocante ao argumento do apelante, Ministério Público, ao aludir que considerando que a primeira descrição do prédio datar de somente de 1944, tal não permite declarar que se trata do mesmo prédio. Aludindo no corpo das suas alegações que 1944 é o registo mais antigo não se vendo nele referência a qualquer prédio anterior e a matriz antiga não foi apresentada, como podia e devia, de modo ao tribunal poder inteirar-se do respectivo teor, incluindo confrontações, áreas e data da inscrição inicial. Mais dizendo que “estamos em crer que se o Arquivo Regional tem documentos de 1771 também deve lá ter as antigas matrizes da ilha do Porto Santo”.
Importa ter presente que foi com a aprovação em 1867 do Código Civil, que se veio também lançar o sistema do registo predial em Portugal. E ao mesmo tempo vai avançar também o sistema das matrizes fiscais. Como alude Rodrigo Sarmento de Beires (na obra “O cadastro e a propriedade rústica em Portugal” Fundação Francisco Manuel dos Santos, pág. 141) “As alterações tributárias, longamente debatidas na primeira metade do século XIX, levaram à criação da contribuição predial, no último dia de 1852, extinguindo a décima e outros impostos anexos. A sua «importância era fixada anualmente, pelo que houve necessidade de se proceder ao cadastro dos bens situados nos concelhos.» Foram para isso «criadas as primeiras matrizes prediais». Embora se previsse inicialmente que «o arrolamento da propriedade fosse feito com base nas declarações dos contribuintes», como estes procurassem evitar a declaração «por forma a escapar ao pagamento do imposto», houve necessidade de passar a ser a Administração a proceder a esse levantamento. É um processo que se vai arrastar e que só será concluído com a reorganização dos serviços fiscais e cadastrais do Estado Novo, que vão cobrir finalmente todo o País através do levantamento geral dos prédios, com base em informadores locais por freguesia. Em face do exposto, a análise dos números dos prédios rústicos tem de ter em conta a consequente variação do grau de cobertura ou abrangência da identificação predial.”. Logo, não existe evidencias de um registo cadastral anterior, ou nomeadamente de 1771.
Resta, por fim, aferir das custas, pretendendo a recorrente Região Autónoma da Madeira que estas sejam consideradas repartidas entre ambas as partes, sob pena de se considerar um ónus adicional à recorrente, dada a isenção do MºPº. Ora, como deixámos referido, em última análise estamos perante o domínio público do Estado, figurando a RAM na defesa de tal direito, entendemos assim, que a par da isenção prevista no artº 4º nº 1 alínea a) do RCP, também haverá que considerar a isenção prevista na alínea g) do mesmo preceito. Pelo que quer na acção, quer na apelação será de considerar tal isenção, sendo de considerar nas custas de parte o previsto no nº 6 do artº 26º do RCP.
Deste modo, improcede a apelação ainda que com diferente fundamento, alterando-se, porém, a decisão quanto a custas.
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IV. Decisão:
Por todo o exposto, Acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelos Réus e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida.
As custas da acção e da apelação serão pelas rés, beneficiando ambas da respectiva isenção.
Registe e notifique.

Lisboa, 26 de Junho de 2025
Gabriela de Fátima Marques
Maria Teresa Mascarenhas Garcia
João Manuel Cordeiro Brasão