EXAME CRÍTICO DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA
NORMA PENAL EM BRANCO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
Sumário

Sumário:
(da responsabilidade do Relator)
I. O art.º 374º, n.º 2, do C.P.P determina que na elaboração da sentença, após o primeiro momento de enumeração dos factos provados e não provados que fundamentam a decisão, se siga o segundo momento que compreende o exame crítico da prova que deve fazer-se através de uma exposição tanto quanto possível completa, mas concisa dos motivos de facto e de direito que levaram à convicção do Tribunal, expondo as razões que em função das regras da experiência comum e ou da lógica, que levaram a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou que valorasse de determinada forma os meios de prova, em ordem a que os destinatários fiquem cientes do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.
II. A deficiência da fundamentação só constitui nulidade (art.º 379.º, n.º1, al. a), do CPP) quando for de tal forma relevante que impeça o conhecimento da razão para determinado facto ter sido dado como provado ou não provado, ou os raciocínios subjacentes à qualificação jurídica da conduta do arguido, ou à determinação das medidas das penas, ou dos montantes indemnizatórios.
III. Na impugnação ampla da matéria de facto (erro de julgamento), a falta das especificações prescritas, nos referidos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º, do CPP compromete a possibilidade do Tribunal de recurso sindicar a matéria de facto fixada no acórdão recorrido, tornando inviável a modificação da decisão sobre a matéria de facto, por se tratar de deficiência substancial da própria motivação ou de insuficiência do próprio recurso, insusceptível de aperfeiçoamento, com a consequência de, nesta parte, o recurso não poder ser conhecido, devendo ser rejeitado.
IV. Mostram-se verificados os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito criminal previsto no art.º 152.º-B, n.º 1, 2 e 3, alínea b), do Código Penal (Violação de Regras de Segurança) no caso concreto, em que ficaram provados os seguintes factos:
a. A ofendida é trabalhadora, sendo a arguida sua entidade patronal e os arguidos pessoas singulares gerentes da sociedade.
b. No exercício das sua funções de empregada de lavandaria/dobradora e, quando utilizava uma calandra dobradora 2, destinada a passar/engomar roupa de cama, após introduzir uma capa de édredon no interior do equipamento, apercebendo-se da existência de uma fronha no interior da capa e, a fim de a retirar, colocou a mão esquerda no interior do equipamento em movimento, ficando com a mão e o respectivo braço esquerdo presos entre a plataforma e o rolo.
c. A mão da trabalhadora ficou presa no equipamento porque o mecanismo de protecção de dedos da calandra, responsável pela paragem automática do equipamento, encontrava-se desactivado.
d. Sofrendo, em consequência, a ofendida ofensa à integridade física grave (art.º 144.º, als. a) e b) do CP),) decorrente das lesões, que determinaram amputado do seu antebraço esquerdo ficando com sequelas daí decorrentes e correspondendo a 60% de Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho.
e. O equipamento não dispunha de sinalização de segurança nem instruções para operar o mesmo.
f. Não tinha sido ministrada à trabalhadora pela entidade patronal, formação adequada à manipulação da calandra.
g. Os arguidos pessoas singulares, agiram em seu nome e por conta e no interesse da sociedade arguida, de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que agiam em desconformidade com as regras legais e regulamentares vigentes que conheciam, não dando a devida formação aos trabalhadores para operarem a calandra, nem se certificando da existência do mecanismo de protecção de dedos da calandra, assim sujeitando AA ao perigo produzido pela sua conduta, deixando-a operar na mesma sem o dispositivo de segurança activado, como o fez, agindo os arguidos sem o cuidado que o dever geral de prudência aconselha, omitindo as precauções de segurança exigidas no manuseamento da máquina em causa, que eram capazes de adoptar e que deviam ter adoptado, para evitar um resultado que representaram, que sabiam ser possível, mas com o qual não se conformaram (negligência consciente), dando assim causa a que a ofendida sofresse as lesões supra descritas, sujeitando-a ao perigo concreto e concretizado de perigo com ofensa grave para a sua integridade física.
V. A norma do artigo 152º-B do Código Penal constitui uma norma penal em branco, conforme com o principio da legalidade e da tipicidade penal com a Constituição da República Portuguesa, porquanto a sua previsão legal não determina quais as concretas acções ou omissões cujo incumprimento poderá determinar a cominação legal, sendo que no caso concreto, em causa a não observação pelos arguidos de disposições legais e regulamentares, previstas no n.º 1, e n.º 2 al. c) do art.º 16.º do DL 50/2005 de 25/02, que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2001/45/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Junho, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho, e revoga o Decreto-Lei n.º 82/99, de 16 de Março, sobre e epigrafe “Riscos de contacto mecânico”, bem como preceituado no art.º 8.º “informação dos trabalhadores” relativo ao dever de informar do empregador aos trabalhadores; bem como o art.º 20.º da Lei 102/2009 de 10/09 .
VI. A conduta do trabalhador tem vindo a ser abordada, com reflexos laborais, penais e civis, considerando-se que haverá que distinguir-se várias situações, em particular, as seguintes: a) a existência de acção “imprudente” do trabalhador; b) a acção “imprudente” do trabalhador em conjugação com a conduta omissiva do empregador ao não fornecer os meios de segurança necessários e exigíveis ao caso; c) a acção do trabalhador que contraria as ordens expressas do empregador quanto às regras a cumprir e aos meios de protecção a utilizar (conduta temerária).
VII. A conduta do trabalhador deve ser analisada e enquadrada com as condições gerais em que a actividade laboral é prestada, tendo presentes as funções da trabalhadora constantes do contrato de trabalho, na medida em que recai sobre a entidade empregadora e não sobre a trabalhadora, o dever de vigiar o cumprimento das regras de segurança (legais e regulamentares), facultando os meios necessários a tal, sob pena de se criarem mecanismos de “desresponsabilização” do empregador inaceitáveis.
VIII. Ainda que a ofendida, no caso concreto, tenha contribuído também com a sua conduta para a produção do acidente, ao introduzir a mão esquerda no interior da capa de édredon e com isso tenha contribuído para as lesões causadas ao seu braço esquerdo e a consequente amputação, como veio a ocorrer, a conduta imprudente da ofendida/vitima não exclui a conduta omissiva da entidade empregadora, ao não fornecer os meios de segurança necessários e exigíveis ao caso e não vigiar o estado do dispositivo de protecção de dedos, conduta omissiva essa que vinha ocorrendo antes do comportamento da ofendida/vítima, e persistindo no tempo, contribuiu de forma decisiva para a produção do evento.
IX. Os elementos subjectivos do tipo de ilícito dados como provados, não sendo em regra apreensíveis directamente, resultam da factualidade objectiva provada, das circunstâncias objectivas no que respeita ao grau de representação, previsão conformação do agente, que, com segurança, os permite inferir com base em presunção natural, podendo, para além dos meios de prova directos, o tribunal socorrer-se de procedimentos lógicos de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido (facto-consequência) a partir de um facto conhecido (facto-base), válidos também no processo penal, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei, de acordo com o art.º 125.º, do CPP, não ocorrendo qualquer violação do art.º 127.º do mesmo diploma, nem da Constituição da República Portuguesa.
X. Considerando as dores, o sofrimento, as lesões, as sequelas, o dano estético permanentes, o quantum doloris, o défice funciona permanente físico, o dano biológico na sua vertente não patrimonial, a repercussão das sequelas e dos danos nas atividades de lazer e convívio social, o dano do foro intimo e sexual, ponderando a pouco gravidade da culpa da lesada (art.º 570.º, do CC), o montante indemnizatório fixado de €40.000,00 mostra-se justo e equitativo, tendo presente o disposto nos art.ºs 496.º e 563.º a 566.º, do CC.

Texto Integral

Acordam os Juízes Desembargadores, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I- RELATÓRIO
1.
O Ministério Público acusou, para julgamento em processo comum com intervenção do Tribunal Singular, os arguidos:
BB, Lda., pessoa colectiva n.º ..., com sede na ...,
CC, filha de DD e de EE, natural da freguesia de ..., concelho de Lisboa, nascida em ...-...-1970, divorciada, gerente, residente na ..., e
FF, filho de GG e de HH, natural da freguesia do ..., concelho de Lisboa, nascido em ...-...-1973, divorciado, ... de empresa, residente na ...,
imputando-lhes os factos constantes da acusação de fls. 646 e ss - que aqui se dão por integralmente reproduzidos – sustentando que a arguida BB, Lda., é responsável por um crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelos artigos 11.º e 152.º-B, n.º 1 e 3, alínea a), ambos do Código Penal, e que os arguidos CC e FF, cometeram em co-autoria material, na forma consumada, um crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelo artigo 152.º-B, n.º 1 e 3, alínea a), conjugado com os artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 3.ª parte, todos do Código Penal.
*
2.
Realizado o julgamento, e após ter sido comunicada a alteração não substancial dos factos e a alteração da qualificação jurídica, nos termos do disposto no artigo 358º, nº 1 e 3 do CPP, passando a ser imputado aos arguidos a prática de um crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelos artigos 11.º, 15º e 152.º-B, n.º 1, 2 e 3, alínea b), ambos do Código Penal, foi proferida Sentença condenatória em .../.../2023, em que que foi decidido:
V – Decisão
1. Pelo exposto e decidindo, julgo a acusação pública deduzida pelo Ministério Público procedente por provada e, em consequência:
a. Condeno a arguida BB, Lda., pela prática de um crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelos artigos 11.º, 15º e 152.º-B, n.º 1, 2 e 3, alínea b), do Código Penal, na pena de 140 dias de multa à taxa diária de €100,00, o que perfaz um montante global de €14.000,00;
b. Condeno a arguida CC, pela prática de um crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelos artigos 15º e 152.º-B, n.º 1, 2 e 3, alínea b), do Código Penal, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão, que suspendo na sua execução por cinco anos, sujeita à condição de pagar à ofendida AA, metade do valor da indemnização infra fixada, durante o período de suspensão, em cinco prestações anuais, no valor mínimo de €4.000,00 cada uma;
c. Condeno o arguido FF, pela prática de um crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelos artigos 15º e 152.º-B, n.º 1, 2 e 3, alínea b), do Código Penal, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão, que suspendo na sua execução por cinco anos, sujeita à condição de pagar à ofendida AA, metade do valor da indemnização infra fixada, durante o período de suspensão, em cinco prestações anuais, no valor mínimo de €4.000,00 cada uma;
d. Condeno os arguidos nas custas do processo – artº 514º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC - artºs 374º e 513º do Cód. Proc. Penal e artigo 8º, nº 5 do Regulamento das Custas Processuais.
*
2. Julgo procedente por provado, o pedido de indemnização cível deduzido pela demandante, AA e em consequência condeno, os Demandados BB, Lda., CC e FF a indemnizarem, solidariamente, a Demandante, no valor de € 40.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora à taxa legal de 4%, desde a presente data até integral pagamento.
Custa cíveis a cargo dos Demandados – artigo 523º do CPP e 527º, nº 1 e 2 do CPC.
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Notifique e deposite.
Após trânsito:
- remeta boletim à DSIC – artigos 372.º, n.º 5, 373.º, n.º 2 do Código de Processo Penal e 7.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 37/..., de ....
3.
Inconformados com o Acórdão Condenatório, os arguidos, vieram em .../.../2024, interpor recursos separados mas que em tudo idênticos, com excepção da parte relativa à pena aplicada, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. O presente Recurso tem como Objecto:
− A Nulidade da Sentença por Falta de Exame Critico da Prova.
− O Erro de Julgamento da Matéria de Facto submetida a apreciação do Tribunal a quo.
− O Não Preenchimento dos Elementos Objectivos e Subjectivos do Crime de Violação das Regras de Segurança;
− A violação dos Princípios da Presunção da Inocência e In Dubio Pro Reo referente à Condenação dos Recorrentes pelo Crime de Violação das Regras de Segurança; e,
− A Não Verificação Cumulativa dos Pressupostos de Responsabilidade Civil.
− A Inconstitucionalidade da Norma constante do Artigo 127.º do Código de Processo Penal na dimensão normativa com que foi aplicada pelo Tribunal a quo na Sentença Recorrida.
− E, ad cautelum, o exacerbado quantum da Medida da Pena de Prisão aplicadas aos Recorrentes bem como da pena de multa aplicada à empresa recorrente.
2. Efectuado o Julgamento e produzida a Prova que suportava a querela do Ministério Público, e também a que abonava o seus caracteres, vieram os Recorrentes a ser condenados por Um (01) Crime de Violação de Regras de Segurança, previsto e punido pelos Artigos 11.º, 15.º e 152.º-B N.ºs 1, 2 e 3 alínea b) do Código Penal na Pena de Um (01) Ano e Quatro (04) Meses de Prisão suspensa na execução pelo período de 5 anos com a obrigação de pagar à Ofendida durante o período da Suspensão em cinco prestações anuais no valor de €4.000,00; e solidariamente com a Arguida BB, Lda. no Pedido de Indemnização Civil no valor de €40.000,00 (Quarenta mil euros) a título de Danos Não Patrimoniais a favor da Demandante acrescido de Juros à Taxa Legal até ao integral Pagamento.
3. Todavia, a Douta Sentença Recorrida, através do Julgamento da matéria que lhe foi dada a apreciar, deu por provados factos que se apresentam manifestamente inconciliáveis quer com a Prova produzida em Audiência de Julgamento, quer com a que se encontra junta aos Autos.
4. Da mesma forma que deu por Provados e Não Provados factos que se contradizem e excluem entre si mesmos o que implica que esta Decisão, na sua essência, para lá de não esclarecedora seja contraditória e ambígua nas suas próprias razões e fundamentos.
5. Certo é que, igualmente, o que se teve como Provado está em manifesta desconformidade com o que realmente se provou e não provou em Audiência de Julgamento, desde logo, porque as conclusões vertidas na Sentença Recorrida são claramente ilógicas e inaceitáveis.
6. Da Nulidade da Sentença por Falta de Exame Crítico da Prova
6.1 Escrutinado o teor da Sentença Recorrida constata-se que essa Decisão do Tribunal a quo padece de - manifesta e exuberante - Falta de Fundamentação.
6.2 Por conseguinte, tendo em conta o teor da Sentença Recorrida, impõe-se afirmar, o Tribunal a quo não procedeu a um exame crítico da Prova em termos minimamente aceitáveis.
6.3 O Tribunal a quo refere nas páginas 07 a 17 da Sentença Recorrida as Provas relativamente às quais lançou mão para dar como provada a matéria de facto onde alavancou a condenação da Recorrente e dos seus Co-Arguidos.
6.4 Nessa parte da Sentença Recorrida, o Tribunal a quo, refere que para dar como provada essa factualidade socorreu-se das Declarações prestadas pelos Recorrentes, dos Depoimentos das Testemunhas indicadas na Acusação e nas arroladas pelos Arguidos, do teor de Documentos. No resto dá sinais de ter esquecido que existem os Autos inúmera outra Documentação designadamente Sentença do Tribunal de Trabalho acerca dos factos que perfazem o Objecto destes Autos que é clara na conclusão de que os Recorrentes nada têm de ver com estas factualidades.
6.5 Ademais, as considerações tecidas a esse propósito, pelo Tribunal a quo, são manifestamente vagas, imprecisas, erradas e totalmente inexistentes no que respeita a alguma Prova Documental, na verdade o Tribunal a quo (nas 10 páginas que dedicou à Motivação da sua Decisão) mais não fez que transcrever excertos do Depoimento de Testemunhas que nada atesta ou demonstra.
6.6 Na verdade, o Tribunal a quo não especifica em termos minimamente aceitáveis o motivo pelo qual entendeu que as Declarações dos Recorrentes, em determinado segmento, são desprovidas de credibilidade, sejam por si sós, sejam por confronto com a restante Prova existente no Processo e produzida em Audiência de Julgamento, e noutras já tem total credibilidade.
6.7 Tal como não especifica ou concretiza, de modo suficientemente claro e objectivo, o motivo pelo qual retirou credibilidade a alguma da Prova Testemunhal produzida em Audiência de Julgamento em face do que depuseram outras Testemunhas.
6.8 No que respeita à Prova Testemunhal o Tribunal a quo limitou-se a citar - com falta de rigor - alguns trechos dos depoimentos das Testemunhas, mesmo quando algumas dessas partes dos depoimentos são contraditadas por outros Depoimentos e Prova de outra natureza como a documental e a pericial.
6.9 O Tribunal a quo, a bem de ver, limitou-se a dar como provados determinados factos (vá-se lá saber por que razão ou motivo) enunciando em seguida, relativamente a alguma dessa factualidade (a que lhe apeteceu), qual a Prova de que se terá socorrido para dar como demonstrados esses factos ignorando (injustificadamente) por completo a fundamentação probatória das remanescentes factualidades que considerou assentes (provadas).
6.10 Não especificando, nomeadamente, quanto aos poucos factos que o fez, o motivo pelo qual, em termos minimamente lógicos, essa Prova difere, contraditando-a ou atestando-a, da restante.
6.11 Certo é que se impunha, em vista do exame crítico das Provas a que se refere a última parte do N.º 2 do Artigo 374.º do Código de Processo Penal, que se explicitasse de modo concreto e objectivo, designadamente, as razões que levaram o Tribunal a quo a descredibilizar, e porquê, as Declarações dos Recorrentes, bem assim, como a considerar mais relevante o Depoimento de uma Testemunha do que todas as demais inquiridas no decurso do Processo e ouvidas em Audiência de Julgamento.
6.12 Nesta parte, e como tal, a Sentença Recorrida viola o que se encontra preceituado no N.º 2 do Artigo 374.º do Código de Processo Penal razão pela qual, atento o que dispõe a alínea a) do N.º 1 do Artigo 379.º do Código de Processo Penal, está ferida de Nulidade. Que ora se invoca e argui com as legais consequências daí advenientes.
7. Do Erro de Julgamento da Matéria de Facto
7.1 Com efeito, a Sentença Recorrida padece desta maleita, entenda-se Erro de Julgamento, por ter cometido, salvo melhor opinião, uma gritante (e não menos preocupante em perspectiva do aqui Subscritor) desacertada decisão da matéria de facto que logrou dar como assente, note-se provada.
7.2 Na verdade, o Tribunal a quo elencou, na matéria que considerou provada, factos que estão em flagrante oposição com a Prova produzida em Julgamento e com toda a que se encontra entranhada nos Autos, nomeadamente, nos Pontos 9, 10, 11, 12, 13 e 14.
7.3 Todavia a Prova produzida em Julgamento, jamais permitirá extrair estas ilações, ou, menos ainda, autoriza que se possam verter tais conjecturas (sem qualquer fundamento ou sentido) na factualidade provada da Sentença Recorrida.
7.4 A Prova produzida em Julgamento e incorporada nos Autos, na sua máxima avaliação, não permite considerar como praticados estes factos pelos Recorrentes, entenda-se, as factualidades e conclusões descritas nestes pontos dos factos dados por provados.
7.5 É isto que resulta, com facilidade de interpretação, daquilo que se produziu em Julgamento e de tudo o que se encontra entranhado nos Autos, inclusive dos próprios meios de Prova invocados pelo Tribunal a quo na sua motivação.
7.6 Ademais, a Prova que se produziu em Julgamento e toda aquela que se encontra junta aos Autos permite - flagrantemente - atestar que os Recorrentes, nas circunstâncias de tempo, modo e espaço ali descritas, não descuraram ou violaram quaisquer Regras de Segurança.
7.7 Acontece que a Prova que foi utilizada para, ao que aparenta, fundamentar estas factualizações e conclusões exige e impõe precisamente o seu contrário. Isto é, a apreciação probatória de tudo o que se produziu em Julgamento e se encontra entranhado no Processo, neste particular, exigia que o Tribunal a quo tivesse dado todos estes factos como Não Provados.
7.8 Para uma justa e correcta reapreciação probatória, desta matéria, impõe- se convocar perante V/Ex.ª, Venerandos Desembargadores, o acervo probatório produzido em Julgamento e juntos aos Autos.
7.9 Dessas Declarações, Depoimentos e Documentação extrai-se, sem grandes rodeios ou floridos, que os Recorrentes nada têm que ver com a prática do Ilícito que se descreve ter ocorrido naquelas circunstâncias de tempo, modo e lugar.
8. O Não Preenchimento dos Elementos Objectivos e Subjectivos do Crime de Violação das Regras de Segurança
8.1 Os Recorrentes foram condenados pela prática do Crime de Violação das Regras de Segurança previsto e punido pelos Artigos 11.º, 15.º, e 152.º-B N.ºs 1, 2 e 3 alínea b) do Código Penal.
8.2 De tudo o que foi produzido em Julgamento e de toda a Prova que consta dos Autos, verifica-se que não existe qualquer prova directa a ligar os Recorrentes a nenhum dos factos com ressonância criminal considerados provados.
8.3 Assim, verifica-se que o Tribunal a quo mais não fez que fundar a sua convicção, quanto ao juízo probatório, em elementos de prova indirecta ou indiciária.
8.4 Da leitura destes factos provados, verifica-se que em alguns deles estamos perante imputações vagas e meramente conclusivas do Tribunal a quo, as quais os Recorrentes não só não puderam refutar em sede de Julgamento por não ser possível defenderem-se de factos que não conhecem, como o próprio Tribunal a quo não podia, em consequência disso mesmo, formar, nessa parte, uma convicção concreta sobre o objecto do processo que lhe foi dado julgar, para além do mais, por inexistência total de prova a esse respeito.
8.5 Assim, forçoso é concluir que não existem quaisquer Provas nos Autos ou foram produzidas em Julgamento que permitam condenar os Recorrentes pelo Crime de Violação de Regras de Segurança.
8.6 Assim, tendo em conta a Prova produzida em Julgamento e toda aquela que se encontra entranhada nos Autos outra coisa não restava ao Tribunal a quo que não fosse dar todas essas factualidades como não provadas por se ter demonstrado que os Recorrentes não as praticaram ou, no pior dos cenários, absolve-los em linha com o que se encontra consagrado nos Princípios da Presunção da Inocência ou do In Dubio Pro Reo.
8.7 Por conseguinte, a condenação dos Recorrentes pela prática do Crime de Violação das Regras de Segurança viola o Principio da Presunção da Inocência - acolhido no N.º 2 do Artigo 32.º da Constituição da Republica Portuguesa, N.º 2 do Artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e N.º 1 do Artigo 48.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia - e o Principio do In Dubio Pro Reo, motivo pelo qual devem V/Ex.ªs declarar Nula a Sentença Recorrida e reenviarem o Processo para novo Julgamento.
8.8 Por conseguinte devem V/Ex.ªs, Venerandos Desembargadores, declarar Nula a Sentença Recorrida e reenviarem o Processo para novo Julgamento.
9. Da Não Verificação Cumulativa dos Pressupostos de Responsabilidade Civil
9.1. A responsabilidade civil corresponde ao conjunto de factos que dão origem à obrigação de indemnizar os danos sofridos por outrem.
9.2. Essa responsabilidade pode ser subjectiva, quando depende da existência de culpa do agente, ou objectiva, quando é independente da culpa do agente.
9.3. Atendendo à modalidade de responsabilidade extracontratual, os pressupostos da mesma encontram- se elencados no artigo 483.º, n.º1 do C.C.
9.4. O referido artigo faz depender a constituição da obrigação de indemnização da existência de uma conduta do agente (facto voluntário), a qual represente a violação de um dever imposto pela ordem jurídica (ilicitude), sendo o agente censurável (culpa), a qual tenha provocado danos (dano), que sejam consequência dessa conduta (nexo de causalidade entre o facto e o dano).
9.5. Relativamente ao pressuposto do dano, cumpre referir que este se apresenta como uma condução essencial da responsabilidade, sendo qualificado como a frustração de uma utilidade que era objecto de tutela jurídica.
9.6. Para o cálculo do dano nesta situação concreta, é necessária uma avaliação concreta dos efeitos da lesão no âmbito do património do lesado (consistindo, assim, a indemnização na compensação da diminuição verificada nesse património, em virtude da lesão).
9.7. Contudo, a Prova produzida em julgamento não consente que se dê por provada quaisquer factos imputáveis à Recorrente e aos seus Co-Arguidos pelo que deverão para lá da absolvição do Crime em que foram condenados também no pedido de indemnização civil.
9.8. Como já introduzimos anteriormente, a obrigação de indemnizar, e de acordo com o disposto no artigo 483º do C.C. depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: o facto (voluntário do agente); a ilicitude desse facto; a imputação do facto ao lesante; o dano; e, simultaneamente, um nexo de causalidade entre aquele facto e esse dano em questão.
9.9. Mais, dispõe o artigo 563º do C.C. que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
9.10. Consideramos importante referir e, consequentemente, aprofundar o elemento do dano neste caso em concreto.
9.11. Ora, conforme Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 31/05/2011, Processo N.º 851/04.7BBGC.P1.S1, o dano é “um requisito da responsabilidade civil conectado com o ilícito, sendo o genus (dano em sentido lato) constituído pela species (prejuízos ou danos em sentido estrito) caracterizado pela deterioração ou perda de bens jurídicos (patrimoniais ou não) da esfera jurídica do lesado”.
9.12. Por outro lado, relativamente à Recorrente e seus Co-Arguidos, nunca poderia estar preenchido o nexo causal.
9.13. Veja-se que os Recorrentes não tiveram qualquer responsabilidade nas factualidades dadas por assentes na Sentença Recorrida, isto é, os Recorrentes não tinham qualquer domínio do facto.
9.14. Assim, também por falta dos requisitos legais dos quais depende a responsabilidade civil, conforme acima escalpelizado, deverão os Recorrentes serem igualmente absolvido do pedido.
10. Da Inconstitucionalidade da Norma constante do Artigo 127.º do Código de Processo Penal na dimensão normativa com que foi aplicada na Sentença Recorrida
10.1. Decorre da Sentença Recorrida que o Tribunal a quo, na apreciação da Prova que lhe foi submetida julgar, lançou mão do Princípio da Livre Apreciação da Prova plasmado no Artigo 127.º do Código de Processo Penal.
10.2. Aliás, afirma-o, ainda que de forma tímida e acanhada, no teor da própria fundamentação da Sentença Recorrida, veja-se último parágrafo da pág. 17, quando menciona a prova de determinados factos resultam “…as regras da experiência comum….”.
10.3. Contudo, é inconstitucional a norma do Artigo 127.º do Código de Processo Penal, na dimensão normativa com que foi aplicada na motivação da Sentença Recorrida, segundo a qual a livre convicção do julgador é suficiente para, sem prova directa, sem indicação de factos base e sem indicação de regras de experiência ou de ciência em concreto, adquirir por dedução, ou presunção natural a prova de factos em julgamento, violando, consequentemente, o Tribunal a quo, com a Decisão que proferiu o Princípio da Normalidade na utilização da Prova Indirecta.
10.4. Como V/Ex.ªs melhor sabem, apenas é constitucionalmente conforme à Constituição da República Portuguesa, a dimensão normativa do Artigo 127.º do Código de Processo Penal, segundo a qual as presunções devem ser graves, precisas e concordantes, permitindo que perante os factos conhecidos (ou um facto preciso), se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras de experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros, no valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção e na medida desse valor está o rigor da presunção.
10.5. A Sentença Recorrida afirmando fixados, por presunção natural, factos que nem estão indiciados por quaisquer factos base, nem decorrem, por raciocínio lógico, da aplicação aos factos base de quaisquer regras de experiência, importa uma dimensão materialmente inconstitucional do Artigo 127.º do Código de Processo Penal, sobretudo, como nestes Autos, quando interpretado no sentido de que a Livre Convicção do Julgador é suficiente para - sem prova directa, sem indicação de factos base e sem indicação de regras de experiência ou de ciência - adquirir por dedução, ou presunção natural a prova de factos em julgamento, sem fazer apelo ao peso específico das presunções, que devem ser «graves, precisas e concordantes”.
10.6. Por conseguinte, é Inconstitucional a norma inserta no Artigo 127.º do Código de Processo Penal na dimensão normativa com que foi aplicada na Sentença Recorrida pelo Tribunal a quo por afronta directa ao que se encontra Constitucionalmente consagrado no Texto e Princípios da Constituição da República Portuguesa.
-Conclusões dos recorrentes CC e FF na parte relativa às penas:
11. Das Penas aplicadas aos Recorrentes
11.1. O Tribunal a quo, no seu Douto entendimento, considerou que a Pena a aplicar à Recorrente pela prática das factualidades que lhe foram dadas a apreciar deveria ser de Um (01) Ano e Quatro (04) Meses de Prisão suspensa na execução pelo período de 5 anos com a obrigação de pagar à Ofendida durante o período da Suspensão em cinco prestações anuais no valor de €4.000,00.
11.2. Ainda que a Prova produzida em julgamento, pelas razões já aduzidas, não permita consubstanciar o juízo de condenação formulado pelo Tribunal a quo, ainda assim - por mera cautela de patrocínio de quem já viu demasiados inocentes injustamente condenados em penas privativas da liberdade, ainda que suspensa mediante injunções de pagamento - pronunciamo-nos por uma Pena mais reduzida a aplicar aos Recorrentes.
11.3. A questão que ora se submete à arguta apreciação de V/Exªs é a da Medida da Pena, Um ano e Quatro meses de Prisão, aplicada pelo Distinto Tribunal a quo, que os Recorrentes, mui respeitosamente, preconizam como excessivas, peticionando outras mais benévolas, sem, todavia, terem a pretensão de in concreto Vos indicar qual.
11.4. Não os absolvendo do Crime de que injustamente se encontra condenados, para efeitos de determinação da medida da Pena que lhe virão a aplicar, tendo presente o supra exposto, relevem V/Ex.ªs, Venerandos Desembargadores, que os Recorrentes, conforme decorre da
Prova junta aos Autos e da que foi produzida em Audiência de Julgamento:
− Não tem contra si quaisquer Processos pendentes em Portugal;
− São pessoas conscienciosas e moralmente irrepreensíveis;
− São empreendedores e trabalhadores;
− São urbanos no trato e comportamento;
− São pessoas de imensos afectos e imbrincadas relações sociais e familiares, amigos e comunidade; e,
− Ainda que nos últimos tempos tenham tido uma vivência sofrida, são pessoas familiar e socialmente integradas.
11.5. Deste modo, pese embora a Prova produzida em Julgamento não permita consubstanciar o juízo de condenação formulado pelo Tribunal a quo, ainda assim, atento o supra exposto, pronunciamo-nos pela aplicação de uma Pena mais reduzida aos Recorrentes por conta das factualidades que V/Ex.ªs eventualmente venham a considerar demonstradas eles terem praticado.
11.6. Com efeito, quanto a este ponto, impõe-se afirmar que a Pena infligida aos Recorrentes (Um ano e Quatro meses de Prisão) é naturalmente desproporcional e desadequada perante as necessidades de justiça que o caso de per si reclama. Sobretudo se se estabelecer uma comparação e analogia com outros Autos, similares e idênticos, em que as Penas aplicadas não raras vezes, por maior número e mais graves crimes, são manifestamente inferiores àquelas que lhe foram aplicadas.
11.7. Deste modo acredita-se que outra Pena, em concreto mais benévola, logo mais Justa, será a adequada a satisfazer as premissas de tutela que o caso concreto reivindica, não se frustrando a Justiça com isso, antes pelo contrário, será ela sem qualquer dúvida a sua grande vencedora!
11.8. Razão pela qual os Recorrentes - não sendo por V/Ex.ªs absolvidos do Crime pelo qual foi iniquamente condenado no Tribunal a quo - discordam da dosimetria das Penas que lhe foram aplicadas, e pugnam, no essencial, por outra mais adequada aos critérios de Justiça que o caso em concreto reclama, nomeadamente uma Pena não muito afastada do limite mínimo desse Ilícito.

Em suma, nos presentes Autos, não só ficou cabalmente provado que os Recorrentes não praticaram o Crime de Violação das Regras de Segurança em que foram condenados, como foi criada uma clara e razoável dúvida quanto a esses factos por que vinham acusados e em relação às suas Culpas nos mesmos, pelo que devem ser absolvidos daquele.
Nestes termos, nos melhores e demais de Direito que os Venerandos Desembargadores da Relação de Lisboa suprirão, deve o presente Recurso dos Recorrentes CC e FF obter Provimento e, em consequência, ser Declarada a Nulidade da Sentença Recorrida e remetido o Processo para Novo Julgamento;
Ou, caso assim não se entenda, o que só por mera hipótese académica se concede, ser Alterada a Matéria de Facto indicada e Revista a Decisão de Direito que sobre a mesma recaiu, Absolvendo-se, em sequência, os Recorrentes do Crime de Violação das Regras de Segurança e do Pedido de Indemnização Civil pelo qual foram Julgados e Condenados pelo Tribunal a quo e alterada a Medida da Pena de Prisão aplicadas aos Recorrentes pela prática do Crime de Violação das Regras de Segurança para perto dos limites mínimos dessa sanção.
Mas sempre, conhecendo-se e declarando-se as Nulidades que invocam e arguiram, bem assim, como a Inconstitucionalidade que suscitam.
-Conclusões da recorrente BB, Lda. na parte relativa à pena
11. Da Pena aplicada à Recorrente
11.1. O Tribunal a quo, no seu Douto entendimento, considerou que a Pena a aplicar à Recorrente pela prática das factualidades que lhe foram dadas a apreciar deveria ser de 140 dias de multa à taxa de €100,00.
11.2. Ainda que a Prova produzida em julgamento, pelas razões já aduzidas, não permita consubstanciar o juízo de condenação formulado pelo Tribunal a quo, ainda assim - por mera cautela de patrocínio pronunciamo-nos por uma Pena de Multa mais reduzida a aplicar à Recorrente.
11.3. Razão pela qual a questão que ora se submete à arguta apreciação de V/Exªs é, exclusivamente, a da Medida da Pena de Multa, €14.000,00, que a Recorrente, mui respeitosamente, preconiza como excessivas, peticionando outra mais benévola, sem, todavia, ter a pretensão de in concreto Vos indicar em rigor qual.
11.4. Deste modo acredita-se que outra Pena – de Multa pelo Crime de Violação das Regras de Segurança - em concreto mais benévola, logo mais Justa, será a adequada a satisfazer as premissas de tutela que o caso concreto reivindica, não se frustrando a Justiça com isso, antes pelo contrário, será ela sem qualquer dúvida a sua grande vencedora!
11.5. Razão pela qual a Recorrente discorda da dosimetria da Pena de Multa que lhe foi aplicada, e pugna, no essencial, por outra mais adequada aos critérios de Justiça que o caso em concreto reclama, nomeadamente uma Pena de Multa não muito afastada do limite mínimo à taxa diária perto do mínimo.

Em suma, nos presentes Autos, não só ficou cabalmente provado que a Recorrente não praticou o Crime de Violação das Regras de Segurança em que foi condenada, como foi criada uma clara e razoável dúvida quanto a esses factos por que vinha acusada e em relação à sua Culpa nos mesmos, pelo que deve ser absolvida daquele.
Nestes termos, nos melhores e demais de Direito que os Venerandos Desembargadores da Relação de Lisboa suprirão, deve o presente Recurso da Recorrente BB, Lda.. obter Provimento e, em consequência, ser Declarada a Nulidade da Sentença Recorrida e remetido o Processo para Novo Julgamento; Ou, caso assim não se entenda, o que só por mera hipótese académica se concede, ser Alterada a Matéria de Facto indicada e Revista a Decisão de Direito que sobre a mesma recaiu, Absolvendo-se, em sequência, a Recorrente do Crime de Violação das Regras de Segurança e do Pedido de Indemnização Civil pelo qual foi Julgada e Condenada pelo Tribunal a quo e alterada a Medida da Pena de Multa aplicada à Recorrente pela prática do Crime de Violação das Regras de Segurança para perto dos limites mínimos dessa sanção. Mas sempre, conhecendo-se e declarando-se as Nulidades que invoca e arguiu, bem assim, como a Inconstitucionalidade que suscita
4.
Na sequência da não admissão dos recursos, e procedência da reclamação interposta desse despacho, por este Tribunal de Recurso foi determinada a admissão dos mesmos, e na sequência, veio a ser proferido em .../.../2024, o seguinte despacho:
Em cumprimento do decidido pela Exma. Sra. Juiz Desembargadora Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, por legais, tempestivos, apresentados por quem para tanto possui legitimidade e se mostra representado por advogado, admito os recursos interpostos pelos arguidos (cfr. artigo 399.º, 401.º, n.º 1, alínea b), 411.º, n.º 1 a 3, 412.º e 414.º, todos do Código de Processo Penal).
Os recursos sobem imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 2, alínea a), 408.º, n.º 1, alínea a), todos do Código de Processo Penal.
Notifique, nos termos do artigo 411.º, n.º 6 do Código de Processo Penal.
5.
O Ministério Público veio apresentar em .../.../2024, resposta aos recursos idênticas, dela se extraindo as seguintes conclusões (transcrição).
1. A sentença proferida nos autos condenou os arguidos pela prática de um crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelos artigos 11.º, 15º e 152.º-B, n.º 1, 2 e 3, alínea b), do Código Penal.
2. Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões apresentadas pela Recorrente, assistente nos autos, as questões por si suscitadas prendem-se com: a nulidade da sentença; o erro de julgamento na apreciação que o Tribunal a quo fez da prova; a violação do princípio in dubio pro reo e da presunção da inocência; o não preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do crime de violação das regras de segurança; a inconstitucionalidade da norma constante do art. 127.º do Código de Processo Penal na dimensão normativa com que foi aplicada pelo Tribunal a quo na sentença recorrida; e a medida das penas aplicadas.
3. A sentença recorrida não padece do vício de nulidade por falta de fundamentação, porquanto a mesma cumpre o dever de fundamentação consagrado nos arts. 374.º do Código de Processo Penal e 205.º da Constituição da República Portuguesa.
4. Os Recorrentes pretendem que o Tribunal de recurso decida em sentido diverso daquele que decidiu o Tribunal a quo, dando uma maior credibilidade às declarações dos arguidos e desvalorizando os depoimentos das testemunhas.
5. O recurso da matéria de facto não se destina a sindicar a apreciação que o julgador fez da prova, mas sim a apreciar erros de julgamento e se as provas produzidas conduzem a conclusões fácticas diversas.
6. Para provocar uma alteração da decisão em matéria de facto, não basta a existência de provas que, simplesmente, permitam ou até sugiram conclusão diversa daquele que proferiu o Tribunal a quo; exige-se que imponham decisão diversa daquela que o Tribunal proferiu.
7. Os Recorrentes não cumpriram o ónus de especificação das concretas provas que impõem decisão diversa, consagrado no art. 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, limitando-se a comentar a prova e a questionar a apreciação que o Tribunal fez da prova, pelo que o Tribunal de recurso não poderá fazer uma nova apreciação da matéria de facto.
8. A sentença recorrida não padece de qualquer dos vícios constantes do art. 410.º do Código de Processo Penal.
9. A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação da prova, p. e p. pelo artigo 127º, do Código de Processo Penal, sendo que, muito embora o Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspetos fácticos, não pode sindicar a valoração da prova efetuada pelo tribunal de 1.ª Instância, em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento da outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto.
10. O princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127.º do Código de Processo Penal, mostra-se respeitado quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova, como sucede na sentença em apreciação.
11. O Tribunal a quo não chegou a um estado de dúvida sobre a prática dos factos submetidos a julgamento pelos arguidos, pelo que a sentença recorrida não violou o princípio in dubio pro reo.
12. Na ausência de confissão/admissão dos factos – e dificilmente se concebendo outra prova que incida directamente sobre eles – resta ao julgador a apreciação de prova indirecta com vista ao apuramento do elemento subjectivo do crime.
13. Os factos provados são claros e suficientes, e integram os elementos objectivo e subjectivo do crime de violação das regras de segurança, p.p. pelo art. 152.º A, n.ºs 1, 2 e 3, al. b) do Código Penal, como bem resulta da fundamentação de direito da douta sentença recorrida.
14. A interpretação do art. 127.º do Código de Processo Penal pelo Tribunal na sentença recorrida respeita as normas constitucionais.
15. As penas aplicadas aos arguidos respeitam o disposto no art. 71.º, n.º 1 do Código Penal, por se mostrarem adequadas e proporcionais às exigências de prevenção geral e especial do caso concreto e, ainda, à culpa dos arguidos.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a sentença proferida nos autos nos seus exactos termos,
Com o que Vossas Excelências farão a costumada JUSTIÇA!
6.
Remetidos os autos a este Tribunal, nos termos e para os efeitos no art.º 416º do C.P.P., foram os autos com vista à Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, formulou em .../.../2025, o seguinte Parecer:
[art. 416.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]
Os recorrentes requereram a realização de audiência nos termos do disposto no art. 411.º, n.º 5, do CPP.
Para tanto, especificaram como ponto a debater oralmente o ponto II.B das respetivas motivações, ou seja, o erro de julgamento da matéria de facto quanto aos factos provados 9, 10, 11, 12, 13 e 14.
No entanto, como bem observou o Ministério Público na 1.ª instância, na resposta aos recursos, para cuja fundamentação se remete, a impugnação da matéria de facto não observa o disposto no art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, designadamente quanto à razão de ser de as provas por eles indicadas imporem decisão diversa, antes evidenciando uma distinta interpretação da prova.
Tal inobservância implica que a matéria de facto se deva ter por assente e, como tal, a rejeição do recurso nesta parte, conforme disposto nos arts. 417.º, n.º 4, e 420.º, n.º 1, al. c), ambos do CPP.
E, a entender-se assim, mostra-se inútil a realização de audiência, pelo que o recurso será de conhecer em conferência.
Desta forma, consignamos que subscrevemos o teor da resposta aos recursos apresentada pela nossa Colega na 1.ª instância, à qual, pela sua proficiência e clareza, nada aditamos, pelo que somos de parecer que os recursos não merecem provimento.
*
No exame preliminar foi indeferida a realização da audiência, considerando-se que o objecto do recurso interposto deveria ser conhecido em conferência.
*
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o artigo 419º do Código de Processo Penal, cumpre decidir.
II-DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DOS RECURSOS:
Questões a decidir no recurso:
Constitui jurisprudência e doutrina assente que o objecto do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 417º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP1, os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP).2
Na Doutrina, por todos, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Volume II, 5.ª Edição atualizada, pág. 590, “As conclusões do recorrente delimitam o âmbito do poder de cognição do tribunal de recurso. Nelas o recorrente condensa os motivos da sua discordância com a decisão recorrida e com elas o recorrente fixa o objecto da discussão no tribunal de recurso… A delimitação do âmbito do recurso pelo recorrente não prejudica o dever de o tribunal conhecer oficiosamente das nulidades insanáveis que afetem o recorrente… não prejudica o dever de o tribunal conhecer oficiosamente dos vícios do artigo 410.º, n.º2 que afetem o recorrente…”
Estruturalmente o recurso pode ter como fundamentos concretos:
i. Questões processuais, traduzidas em nulidades ou irregularidades do processado ou nulidades ou irregularidades da sentença (art.os 379.º e 410.º, n.º3, do CPP).
ii. Questões formais que dizem respeito à patologia da sentença, traduzida em erros endógenos da sentença, resultantes sem mais da leitura da sentença, sem elementos exteriores a ela, os designados vícios da sentença-Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação, a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão ou erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, n.º2, do CPP) ou vício da falta de fundamentação e exame crítico da prova (art.º 374.º, n.º2, do CPP) e
iii. Questões materiais, traduzidas em erro de julgamento em matéria de facto ou erros de julgamento em matéria de direito (art.º 412.º, n.ºs 2 e 3 do CPP).
(neste sentido Fernando Gama Lobo, Código de Processo Penal Anotado, 4.ª Edição, Almedina pág. 947).
Em conformidade, atentas as conclusões formuladas pelos recorrentes e a resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público, as questões a decidir nos presentes recursos, por ordem de precedência logico-jurídica, são as seguintes:
i) Nulidade da sentença por falta de exame crítico da prova, nos termos conjugados do disposto nos arts.º 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a) do C.P.P. .
ii) Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento, em particular, quanto aos factos provados 9 a 14.
iii) (In) Verificação de vícios a que alude o art.º 410.º, n.º2, do CPP, e especial erro notório na apreciação da prova, a que alude o art.º 410.º, n.º2, do CPP, por violação do princípio da presunção de inocência e in dubio pro reo.
iv) Erro de direito decorrente de errada subsunção dos factos ao crime de violação das regras de segurança, por ausência de verificação dos elementos objectivos e subjectivos.
v) inconstitucionalidade da norma do art.º 127.º, do CPP na interpretação dada pelo Tribunal.
vi)da medida das penas aplicadas.
vii) Não verificação dos pressupostos da responsabilidade civil no que respeita ao pedido cível.
III -FUNDAMENTAÇÃO
Factos relevantes para apreciação das questões objecto dos recursos:
III.1- Na sessão de audiência de .../.../2023 foi proferido despacho de alteração não substancial de factos e da qualificação jurídica nos seguintes termos:
Analisada a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, sobretudo as declarações prestadas pelos arguidos, verifica-se que se encontra indiciado que: - Ao actuarem da forma descrita, os arguidos procederam de forma livre, permitindo que os funcionários operassem a máquina, não dando qualquer formação adequada aos seus funcionários, entre os quais a ofendida, ou instruções adequadas sobre a forma de operar a referida máquina, deixando-os operar na mesma sem o dispositivo de segurança activado, como o fez, agindo sem o cuidado que o dever geral de prudência aconselha, omitindo as precauções de segurança exigidas no manuseamento da máquina em causa, que eram capazes de adoptar e que deviam ter adoptado, para evitar um resultado que representaram, que sabiam ser possível, mas com o qual não se conformaram, dando assim causa a que a ofendida sofresse as lesões supra descritas, sujeitando-a ao perigo concreto e concretizado de perigo com ofensa grave para a sua integridade física. Mais resulta indiciado que a conduta imputada aos arguidos os pode comprometer com a prática em autoria material e na forma consumada de um crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelos artigos 11.º, 15º e 152.º-B, n.º 1, 2 e 3, alínea b), ambos do Código Penal e não de um crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelo artigo 152.º-B, n.º 1 e 3, alínea a), conjugado com os artigos 11º e 14.º, n.º 1, todos do Código Penal.
Tais circunstâncias configuram uma alteração não substancial de factos e da qualificação jurídica, que ora se comunica, em cumprimento do disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal. Dada a palavra ao (à) ilustre Defensor (a) do (a) arguido (a), pelo (a) mesmo (a) foi dito nada ter a requerer”
III.2- foram dados como provados e não provados pelo Tribunal de 1.ª Instância na Sentença recorrida os seguintes factos:
“A) Factos Provados
Da instrução e discussão da causa e com interesse para a boa decisão da mesma resultaram provados os seguintes factos:
1. A ofendida AA foi admitida como trabalhadora da sociedade BB, Lda., em ...-...-2016, na categoria profissional de “dobradora”.
2. A gerência da sociedade BB, Lda. cabia a CC e FF, este último ainda que de facto, que agiam em nome e no interesse da referida sociedade.
3. No dia ...-...-2016, AA desempenhava as suas funções de empregada de lavandaria/dobradora de calandra, nas instalações da sociedade arguida, sitas na ..., sob as ordens, direcção e fiscalização dos arguidos.
4. O equipamento de trabalho que utilizava, a calandra dobradora 2, destinava-se a passar/engomar e dobrar roupa de cama – lençóis, fronhas, etc., - até 15 mm de espessura, sendo que a alimentação das peças no equipamento é feita por dois trabalhadores que, posicionados em pontos opostos, as introduzem na plataforma metálica, revestida por fitas/bandas introdutoras a toda a largura que, em permanente movimento, as faz deslizar para o interior do equipamento, submetendo-as ao calor do rolo, entre 150º e 180º.
5. No dia referido, pelas 15h00m, na execução das suas funções, quando AA introduzia uma capa de edredão na plataforma metálica da calandra, apercebeu-se da existência de uma fronha no interior da capa e, a fim de a retirar, colocou a mão esquerda no interior do equipamento em movimento, ficando com a mão e o respectivo braço esquerdo presos entre a plataforma e o rolo, durante um período de tempo não concretamente apurado.
6. Durante tal período, II, que trabalhava juntamente com a ofendida, tentou puxá-la sem êxito, tendo sido JJ, a accionar o botão de STOP do equipamento, ao ouvir o pedido de socorro de II.
7. Como consequência directa e necessária do acidente, AA sofreu queimaduras na mão e braço esquerdo, que posteriormente conduziram à amputação do seu antebraço esquerdo.
8. Tais lesões determinaram à ofendida uma IPP de 60 % com IPATH, e bem assim, como consequência permanente, status pós-amputação pelo terço proximal do úmero esquerdo (membro dominante), com coto bem almofadado com alodinia, compensado com prótese estética do membro e status pós-enxertia nos membros inferiores (coxas), que afectaram a possibilidade de utilizar o corpo, sendo causa de desfiguração grave.
9. Na data e hora dos factos, o mecanismo de protecção de dedos da calandra supra-referida em 3, responsável pela paragem automática do equipamento assim que um trabalhador coloque a extremidade dos dedos sob o mesmo, encontrava-se desactivado, o que permitiu que a mão de AA ficasse presa no equipamento.
10. O referido equipamento também não dispunha de sinalização de segurança, nem das instruções de segurança para operar o mesmo.
11. Ainda, desde que começou a trabalhar para a sociedade arguida, a ofendida AA não recebeu qualquer formação adequada, no âmbito da Segurança e Saúde no Trabalho, considerando o seu posto de trabalho, porquanto os arguidos nunca solicitaram, ministraram ou mandaram ministrar formação adequada sobre os riscos profissionais da manipulação da referida calandra.
12. Os arguidos bem sabiam que os seus funcionários, e em especial AA, operavam a calandra dobradora 2, sem as respectivas condições de segurança, designadamente, dispositivos de protecção de dedos, contrariando todas as disposições legais e regulamentares existentes, expondo-os assim a perigos de grave ofensa para o corpo e a saúde, particularmente a acidentes como o que veio a suceder.
13. Os arguidos conheciam a existência de normas de segurança para operar a calandra e sabiam que deviam dar formação e informação aos trabalhadores que trabalhavam com a mesma, assim como sabiam que AA não tinha essa formação e que não a deviam deixar trabalhar na máquina sem essa formação, e não obstante tal conhecimento, permitiram-no.
14. Os arguidos sabiam, ainda, que a falta de formação de AA e informação colocavam a sua integridade física em perigo, e que tal perigo aumentava, sem o dispositivo de protecção de dedos da calandra, como efectivamente veio a acontecer.
15. Ao actuarem da forma descrita, os arguidos singulares, agiram em seu nome e por conta e no interesse da sociedade arguida, de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que agiam em desconformidade com as regras legais e regulamentares vigentes, não dando a devida formação aos trabalhadores para operarem a calandra, nem se certificando da existência do mecanismo de protecção de dedos da calandra, assim sujeitando AA ao perigo produzido pela sua conduta.
Mais se provou que:
16. Ao actuarem da forma descrita, os arguidos procederam de forma livre, permitindo que os funcionários operassem a máquina, não dando qualquer formação adequada aos seus funcionários, entre os quais a ofendida, ou instruções adequadas sobre a forma de operar a referida máquina, deixando-os operar na mesma sem o dispositivo de segurança activado, como o fez, agindo sem o cuidado que o dever geral de prudência aconselha, omitindo as precauções de segurança exigidas no manuseamento da máquina em causa, que eram capazes de adoptar e que deviam ter adoptado, para evitar um resultado que representaram, que sabiam ser possível, mas com o qual não se conformaram, dando assim causa a que a ofendida sofresse as lesões supra descritas, sujeitando-a ao perigo concreto e concretizado de perigo com ofensa grave para a sua integridade física.
17. A arguida aufere um salário de € 1.100,00
18. Vive com o arguido FF, três filhos, com 13, 15 e 24 anos de idade e a mãe da arguida, em casa arrendada pela qual pagam a renda mensal de € 780,00.
19. Pagam mensalmente de propinas do colégio dos filhos, o valor mensal de € 1.000,00.
20. A mãe da arguida recebe uma pensão no valor mensal de € 1.100,00.
21. Contribuiu com metade da retribuição, que é de €500,00, a uma pessoa que ajuda a cuidar da mãe.
22. O arguido é licenciado em gestão de empresas
23. O arguido aufere um salário mensal líquido de € 1400,00.
24. A sociedade arguida está sem actividade desde finais de ....
25. Não foi declarada a cessação da actividade porque tem uma divida de €60.000,00 à Segurança Social, que os arguidos estão a pagar, com ajuda dos familiares, em prestações mensais de 3.500,00.
26. Os arguidos não têm antecedentes criminais registados.
Do Pedido de Indemnização Cível:
27. À data da prática dos factos a demandante tinha 32 anos de idade.
28. A demandante teve dores e desconforto constante à adaptação às próteses.
29. A demandante sente uma profunda tristeza.
30. Durante o período em que esteve com o braço preso à máquina sujeito a elevadas temperaturas, a demandante sofreu medo, angústia, desespero e dores insuportáveis.
31. A demandante sente vergonha de se apresentar perante a sociedade, com o braço amputado.
32. A nível íntimo, a demandante sente vergonha de se despir perante o seu companheiro, o que afecta a sua vida sexual, com os aspetos negativos que daí advêm, desde logo, o afastamento emocional.
33. O dano corporal sofrido põe em causa a sua capacidade para o trabalho e, com poucos recursos económicos, não poderá provir para o sustento do seu agregado familiar.
34. A recuperação cirúrgica não se mostra possível: a Demandante tem prótese, à qual ainda se está a adaptar.
35. A Demandante vê-se privada de se dedicar a certas atividades lúdicas, de lazer e de convívio social.
36. A demandante era uma pessoa saudável e bem disposta.
Factos Não Provados
Com relevância para a boa decisão da causa não resultaram provados os seguintes factos:
a. Nas circunstâncias aluídas em 5, o braço da ofendida ficou preso durante cerca de 11 minutos.
b. Os arguidos sabiam que a sua conduta poderia produzir o resultado que produziu agindo indiferentes às consequências para a trabalhadora.
c. Agiram os arguidos da forma descrita, bem sabendo que o incumprimento das suas obrigações de formar e informar os trabalhadores era idóneo a produzir o resultado verificado, tendo querido incumprir o dever de formação e informação em relação à actividade desenvolvida, o que quiseram e conseguiram.”
III.3 Na decisão recorrida, foi efectuado pelo Tribunal recorrido a seguinte Motivação da Decisão de Facto (transcrição):
“O Tribunal formou a sua convicção com base na valoração conjunta e crítica da prova produzida em sede de audiência de julgamento, designadamente a prova documental junta aos autos, que analisou criticamente e em conjunto com as declarações dos arguidos e das testemunhas inquiridas.
Assim, para prova dos factos constantes dos pontos 1, 3 (até ...) 4, 5 (até rolo), 6, 7 e 9 dos factos provados, atendeu-se às declarações de ambos os arguidos e das testemunhas inquiridas que quanto a estes factos foram unânimes. Ou seja, não há dúvidas de que a ofendida foi admitida como trabalhadora da sociedade arguida em ........2016 com a categoria profissional de dobradora e que no dia ........2016, pelas 15h00m quando se encontrava a desempenhar as suas funções nas instalações da sociedade arguida sita no ..., quando introduzia uma capa de edredão na plataforma metálica da calandra, ao verificar a existência de um fronha no interior da capa, a fim de a retirar colocou a mão e braço no interior do equipamento , tendo ficado com o braço preso dentro da máquina por um período não concretamente apurado. Não há duvidas também que o sistema de protecção de dedos da máquina estava desactivado, nesse dia. Também não há dúvidas que a referida máquina se destinava a passar/engomar roupa de casa até 15 mm de espessura e que a alimentação das peças no equipamento era feito por dois operários, um em cada extremidade da máquina e que nesse dia, a ofendida estava a trabalhar com o colega II, que tentou puxá-la, sem êxito, tendo sido outro colega, JJ, quem acionou o botão STOP, quando ouviu o pedido de socorro da ofendida. Também resulta de todos os depoimentos que com este acidente a ofendida sofreu queimaduras na mão e braço que posteriormente conduziram à amputação do antebraço esquerdo da ofendida.
A prova do facto a que alude o ponto 8, resulta da documentação clínica, de fls. 89-90, auto de exame directo, de fls. 150 e 196 e da certidão de fls. 341-342 com auto de exame por Junta Médica.
Estes factos não foram postos em causa pelos arguidos.
Questiona o arguido que represente a sociedade arguidapontos 2 e 3, parte final.
Quanto a estes factos, diz o arguido que estaria na empresa apenas para ajudar a sua companheira, também arguida. Contudo do seu depoimento resulta, desde logo, que dava instruções aos chefes de equipa e dos depoimentos das testemunhas, designadamente, II, que trabalhou para a sociedade arguida durante dois anos, resulta de forma muito evidente que era o arguido quem era considerado o patrão e a pessoa que estava mais tempo presente na empresa. Este depoimento foi corroborado pelo depoimento da testemunha KK, que trabalhou na sociedade arguida desde ... a ...1.../2018, com as funções de chefe de equipa, referiu-se ao arguido como o gerente da empresa. A ofendida AA referiu que foi o “ Sr FF que assinou o contrato”, a testemunha LL, funcionário da empresa durante seis meses, entre ... e ..., referiu que o arguido se apresentou como dono da empresa. A testemunha MM na ..., funcionário na sociedade arguida no período de ... a ..., com as funções de chefe de equipa, referiu que era o Sr. FF que lhe dava as ordens e que lhe pagava. A testemunha NN, funcionária da sociedade arguida até ... e durante três a quatro anos, disse que o arguido era o patrão, motivo pelo qual se deram como provados todos os factos constantes deste ponto, designadamente que o arguido representa a empresa, sendo incompreensível que o arguido negue esta evidência.
Não admitem que não tivessem dado formação profissional à ofendida e aos seus colegas e que a máquina não dispusesse de sinalização de segurança e de instruções de segurança – pontos 10 e 11
Quanto à formação a arguida referiu que deu à ofendida 15 dias de formação antes de começar a laborar com a mesma, dada pela pessoa que trabalhava numa empresa a quem adquiriram a máquina e que contrataram. Concretizando no que consistia a formação, referiu que a ensinaram a colocar e a recolher a roupa na máquina e que não podia desactivar o botão, que era visível e que estando para cima estava desactivado). Esclareceu que eram os chefes de turno que davam a formação, sem contudo conseguir esclarecer em concreto que formação era ministrada. Afirma que ninguém conseguia trabalhar com a máquina se não fosse ensinada, resultando do seu depoimento que se referia à forma como deviam manusear a roupa, para que não enrolasse dentro da máquina, para, por exemplo não ficar com dobras. Ou seja, a arguida confunde formação de segurança com formação para laborar. Quanto as regras de segurança, ainda assim afirmou sem qualquer margem para dúvidas que antes do acidente não existia na máquina qualquer autocolante para procedimentos de segurança. Apenas os botões, sendo que após o acidente a ACT disse-lhe que era preciso colocar sinalização na máquina.
O arguido afirma também que aos funcionários da sociedade arguida era dada formação pela pessoa que contrataram e que conhecia a máquina que compraram e que ficou responsável pela manutenção da máquina e chefe de produção. Referiu-se também às formações dadas na área da saúde e higiene (primeiros socorros) por empresas externas. Contudo e quanto a estes factos, do depoimento do arguido resulta também com muita clareza que a pessoa que contrataram para fazer a manutenção da máquina e dar a formação sobre o seu funcionamento, não soube resolver o problema, quando constatou que a ofendida tinha o braço preso dentro da máquina, tendo sido o arguido que à distância lhe explicou o que devia fazer e que veio a resultar, mas demasiado tarde, pois antes destas instruções a pessoa que conhecia bem a máquina andou a procurar dentro da empresa por peças metálicas para tentar levantar o rolo, e ferramentas para desmontar sabe-se lá o quê, enquanto o braço da ofendida continuava dentro da máquina sujeito a temperaturas superiores a 180 graus.
Assim, e como sabemos, a circunstância dos arguidos negarem a prática dos factos não releva pois o Tribunal pode lançar mão da demais prova produzida.
Assim, a prova dos factos a que aludem os pontos 10 e 11, atendeu-se ao depoimento das testemunhas, que quanto aos mesmos foram também unânimes, infirmando totalmente as declarações dos arguidos. Atendeu-se igualmente às declarações da arguida na parte em que o seu depoimento é corroborado pelos depoimentos das testemunhas, em que admite a inexistência de avisos nas máquinas. Com efeito, a testemunha II, colega da ofendida, que em conjunto com esta se encontrava a introduzir roupa na máquina em causa, referiu ao Tribunal todas as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que os factos ocorreram, explicando com mágoa, que, estando muito perto da ofendida, o acidente ocorreu porque não sabia desligar a máquina, pois apenas lhes era ensinado como colocar roupa na máquina, desconhecendo para que serviam os botões, não tendo visto, até ao acidente, nenhum sinal de perigo ou instruções na máquina. Afirmou também que, e relativamente ao funcionamento da máquina, nunca tiveram formação. Foi-lhes dada formação, mas depois do acidente. Até àquela altura, nem sequer sabia a temperatura que era atingida dentro da máquina e que existia um sistema de segurança, acrescentando que ele também teria tentado tirar a fronha.
A testemunha KK, que prestou um depoimento hostil e muito colado ao dos arguidos, ainda assim, relatou alguns factos com coerência, referindo que orientava as pessoas para começarem a trabalhar, posicionando-as nos locais de trabalho. Esclareceu que a ofendida e a testemunha II se encontravam nesse dia no lado da introdução da roupa na máquina. Quanto a formação referiu-se à formação externa em segurança e higiene no trabalho, à semelhança das demais testemunhas, referindo que quanto ao funcionamento da máquina em causa, “eles entravam e era o colega que passava os conhecimentos”, sendo que, segundo declarou, “o tempo médio de permanência na empresa era de 15 dias”(sic) a “rotatividade era enorme”(sic). Quanto ao mais, apesar de afirmar que a ofendida era muito experiente e que todos sabiam como desligar a máquina, não conseguiu explicar porque motivo não teria a ofendida pedido aos colegas que o fizessem ou a ele próprio e porque motivo não teria a seu colega II accionado/activado o sistema de protecção de dedos, pois nesta fase já de nada servia o tal botão “stop.”
Relevante para a prova destes factos, foi o depoimento da testemunha e ofendida AA, que apesar dessa qualidade prestou um depoimento sereno, sem qualquer contradição e muito claro quanto a estes factos, tendo dado nota da hora em que ocorreu o acidente, e que quando o Sr. KK lhe disse para ir para a máquina em causa, a mesma já estava a funcionar. Explicou que ela e o colega OO meteram uma capa na máquina e que meteu a mão dentro da máquina. Acrescentou que quando fazia isso a calandra parava, mas nesse dia não parou, tendo ficado logo presa e assim permaneceu durante cerca de meia hora. Referiu que nunca lhe entregaram qualquer documento com as regras e perigos da máquina (como aliás foi confirmado pela arguida). Referiu também que a máquina não tinha autocolantes nem avisos (como aliás confirmado pela arguida). Disse também que nunca recebeu qualquer formação sobre esta máquina. Disse ainda que só o Sr. KK mexia na máquina, não sabendo porque é que a máquina parava. Referiu ainda que nunca recebeu prémios de produtividade, tendo negado ter assinado o documento de fls. 448. Não se olvide que ensinar aos funcionários a utilidade de todos os botões da máquina, na versão dos arguidos, é ilógica e contraditória, na versão dos arguidos pois, para quê ensinar se estavam proibidos de mexer na máquina.
A testemunha PP, funcionário da sociedade arguida durante cinco anos, desde ... a ..., referiu ter sido o “braço direito da CC e do FF”. Disse que representava a empresa na falta daqueles, que eram os responsáveis da empresa e que ajudava na gestão diária. Corroborou o depoimento da testemunha QQ, referindo que todos os meses tinham 2 a 3 funcionários novos. Referiu que não há nenhuma formação especifica na área. Referiu também que a ACT “mandou meter chamadas de atenção dos botões”, o que fizeram depois do acidente. Esta testemunha à semelhança de todas as demais, não sabia que se desligava o sensor. Apesar de exercer funções na área dos pagamentos e registo de horários, não se lembrava se havia prémios de produtividade, o que seria estranho, não fosse ter sido notória também a sua colagem aos arguidos, pois a resposta lógica para alguém que processa salários e registo de horários teria que afirmar se havia ou não prémios, sendo incompreensível a resposta que deu. Tal como a arguida e a ofendida também referiu que não eram entregues documentos/manuais dos equipamentos aos trabalhadores.
Relevante foi igualmente a testemunha LL, que trabalhou para a empresa durante 6 meses entre ... e .... Referiu que nesse dia estava do lado oposto ao da ofendida (na saída da roupa). Referiu que assim que ouviu um grito da ofendida, correu para perto dela e vendo que tinha o braço preso carregou no botão stop mas tal não impediu que o braço continuasse preso. Referiu ainda que a máquina tinha “milhares” de botões e que carregou naquele por instinto pois nunca ninguém lhe explicou o que havia a fazer em caso de acidente. Acrescentou que a ofendida enquanto teve o braço preso desmaiou várias vezes. Disse que os ensinamentos que recebeu foi como passar a roupa, tendo-lhe sido dito que era preciso esticar a roupa muito bem e nada mais. O desconhecimento dos riscos era tal, que esta testemunha afirmou mesmo que os homens também metiam a mão, mas não lhes aconteceu nada porque tinham mais agilidade e conseguiam tirar as fronhas.
A testemunha MM na ..., funcionário na sociedade arguida no período de ... a ..., com as funções de chefe de equipa, prestou um depoimento muito confuso, não sendo perceptível se estaria de facto a falar da máquina onde ocorreu o acidente. Desde logo, disse que o sistema de segurança era desactivado puxando uma barra que estaria por cima da máquina, quando as outras testemunhas falavam num botão.
Quanto aos avisos que existiriam na máquina contrariou o que a própria arguida admitiu, pois afirmou que já existiam autocolantes e que a ACT colocou mais autocolantes, “para reforçar”. Contudo quando questionada em que língua estavam escritos os avisos não soube responder, sendo que trabalhou na sociedade arguida vários anos como chefe.
Em face destas contradições este depoimento não mereceu credibilidade na parte que contraria as declarações da arguida. De qualquer modo, este depoimento foi relevante para dar estes factos como provados, pois, conforme disse a testemunha, todos sabiam que por vezes era desligado o sistema de segurança.
A testemunha RR, que referiu ter feito averiguação por acidente de trabalho, contudo não se lembrou dos factos de que teve conhecimento, remetendo para um relatório que teria emitido. Ainda assim confirmou que nas máquinas existiam apenas sinais e não avisos, quando questionada sobre a língua em que estariam os avisos, e que estes foram colocados mais tarde por ordem da ACT.
Negam também que soubessem ou tivessem dado instruções para que o sistema de protecção de dedos estivesse, desativado nesse dia – pontos 12 e 16
A testemunha LR, funcionária da sociedade arguida no período de ... a ..., com as funções de chefe de turno, relatou ao Tribunal, corroborando os depoimentos das testemunhas AA, II e TT de que os operários “não tinham autorização para mexer na máquina. Se alguma coisa corresse mal tinham que se afastar e chamar o chefe”. Referiu também que não tinham a certeza que o sistema era desligado. Mas era falado. Apesar de dizer isto, afirma que nunca foi instaurado nenhum processo disciplinar a nenhum funcionário. Este depoimento foi relevante para dar por provados os factos constantes dos pontos 12 e 16, ao referir para além do mais que todos sabiam que por vezes era desligado o sistema de segurança e por conseguinte caso o arguido não soubesse, o que é estranho para quem está permanentemente na lavandaria, como referiu, saberia através da sua companheira, pois esta admitiu que sabia e que estava atenta.
A testemunha UU, funcionária da sociedade arguida durante 3 a 4 anos até ... foi relevante também para a prova dos factos constantes dos pontos 12 e 16, pois, sem qualquer dúvida, afirmou que acontecia muitas vezes a barra estar levantada e que nas vezes que viu comunicava aos chefes.
Na versão dos arguidos seriam os trabalhadores que desactivavam a máquina para, aumentando a sua produtividade, receberem prémios. Esta versão não convenceu, desde logo porque não ficou demonstrado que os trabalhadores recebessem prémios de produtividade. Por outro lado, tais aumentos beneficiariam em primeira linha os próprios arguidos e por conseguinte, o que é verdade para os trabalhadores também o é para os arguidos, pelo que, na versão dos arguidos, a hipótese dos sistemas de segurança ser desactivado pelos arguidos também se teria de colocar, caso o fundamento fosse o aumento de produtividade. Contudo mesmo admitindo que os trabalhadores fizessem isso, faziam-no porque desconheciam os riscos que corriam, como ficou amplamente demonstrado pelos depoimentos prestados de forma unânime.
A versão dos arguidos não é verossimel, pois sabendo a ofendida da existência do botão que activava o sistema de protecção de dedos e que o mesmo estaria visível e acessível, fica por explicar porque teria a ofendida metido a sua mão e braço dentro da máquina sem que antes tivesse accionado o aludido botão para que a máquina parasse.
Do confronto de todos os depoimentos resulta muito evidente que a máquina em questão estava dotada de um sistema de protecção de dedos, mas que esse sistema estava desactivado. É verdade que não foi possível apurar quem o desactivou. Contudo também é verdade que estamos perante uma empresa familiar como referiu a arguida e confrontando novamente todos os depoimentos, todos sabiam que este sistema era muitas vezes desactivado e ninguém referiu que tivessem sido tomadas medidas pelos arguidos para que tal deixasse de acontecer, sendo que as instalações têm câmaras (as testemunhas foram dizendo que se sentiam permanentemente observados) (os arguidos disseram que o acidente foi captado pelas câmaras de videovigilância) e por conseguinte era possível e muito fácil aos arguidos saber quem o fazia, se é que alguém o fazia e contra a vontade dos mesmos.
Assim como não é verosímil que a ofendida tivesse conhecimento dos riscos que corria com o manuseamento daquela máquina.
Não é também verosímil a versão dos arguidos de que não soubessem que o sistema era desactivado a miude e que fossem os operários a desactivar tal botão para a roupa correr melhor, pois não seriam eles os beneficiários de uma maior produção, sendo que não se logrou demonstrar que a ofendida recebia prémios de produtividade, desde logo porque a ofendida negou tal facto e os arguidos não infirmaram este depoimento, demonstrando tal facto, com a única prova admissível para este facto - recibos de ordenado. De qualquer modo, a arguida afirmou que os funcionários não estavam autorizados a mexer no botão assim como a testemunha LR.
Quanto a formação afirmou a arguida que foi dado à ofendida o regulamento de segurança, assim como a todos os funcionários, tendo tal afirmação sido negada pelo arguido, que sem qualquer hesitação afirmou que o manual de segurança junto em audiência, não foi dado à ofendida, nem a outros funcionários, mas apenas aos chefes de produção.
O arguido, ao contrário da arguida (que disse que antes do acidente não havia autocolantes com normas de procedimentos na máquina) afirmou que não sabe porque a ACT disse que não estavam afixadas normas de utilização da máquina. Ao contrário da arguida, afirmou que a ofendida não falava português. Quanto à desactivação do sistema de segurança, o arguido afirmou que nunca viu nenhum funcionário desactivá-lo. Contudo a arguida afirmou que os funcionários desactivavam o botão e que “nós sabíamos disso e estávamos atentos”(sic).
Por último, cumpre ainda dizer que a alegação e insistência exaustiva com as testemunhas de que a ofendida e os seus colegas faltaram a uma formação, antes do acidente, é totalmente irrelevante para a decisão, pois a mesma nada teve que ver com o funcionamento desta ou de outra máquina, mas apenas com primeiros socorros.
Relevante para a prova dos factos insertos nos pontos 10, 11 e 12 foi também a certidão emitida pela ACT de fls. 288-299, onde consta a fls. 299 que foram verificadas as seguintes situação irregulares:
- inexistência de informação e formação aos trabalhadores sobre a actividade desempenhada, utilização de equipamentos de trabalho e riscos inerentes à sua utilização;
- inexistência de instruções de trabalho junto dos equipamentos de trabalho para a sua correcta utilização em segurança;
- inexistência de sinalização de segurança nos equipamentos de trabalho.
Atendeu-se ainda ao teor da certidão de fls. 4-32 dos autos (autos de noticia por contra-ordenações), a certidão permanente da sociedade arguida de fls. 39-43, documentação clínica, de fls. 89-90, auto de exame directo, de fls. 150 e 196, certidão emitida pela ACT de fls. 288-299, certidão de fls. 341-342 com auto de exame por Junta Médica, relatório de averiguação de acidente de trabalho de fls. 464 a 503,
Quanto ao elemento subjectivo - pontos 13 a 16 - resultou da factualidade objectiva provada e que, com segurança permite inferir com base em presunção natural essa motivação.
No que respeita aos antecedentes criminais dos arguidos, a convicção do Tribunal atendeu ao teor do Certificado de Registo Criminal juntos aos autos.
Quanto às condições pessoais dos arguidos atendeu-se às suas declarações nas quais se fez fé.
A prova dos factos constantes dos pontos 23 a 32 resultam das declarações da demandante, das regras da experiência comum e também por não terem sido impugnados pelos demandados.
Quanto aos factos dados como não provados e constantes da alínea a) assim resultou porque da dinâmica pós acidente relatado pelas testemunhas presenciais, com a ofendida a desmaiar várias vezes, resulta que o período que a ofendida esteve com o braço preço rondaria os cerca de 30 minutos. Acresce que, e considerando o relatado pelo arguido de que esteve ao telefone com o chefe de equipa, QQ a explicar-lhe o que devia fazer, sendo que antes disso este funcionário ainda andou à procura de uma barra de ferro para tentar, como tentou levantar o cilindro que prendia o braço da ofendida, sendo que após o telefonema com o arguido, foi também buscar uma chave “lá acima” para desactivar algumas funções da máquina, para fazer a inversão de marcha, o tempo que a ofendida ficou com o braço preso é seguramente mais próximo dos 30 minutos referidos pela ofendida do que os onze minutos, motivo pelo qual se deram como não provados estes.
Quanto aos factos constantes das alíneas b) e c), porque se demonstrou, que se demonstrou o que consta do ponto 16, ou seja, que os arguidos agiram com negligência e não com dolo, como consta destas alíneas.”
III.4 Na decisão recorrida, foi efectuado pelo Tribunal recorrido o seguinte enquadramento jurídico-penal: (transcrição)
“Os arguidos vêm pronunciados pela prática de um crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelos artigos 11.º e 152.º-B, n.º 1, 2 e 3, alínea b), ambos do Código Penal.
De acordo com o artigo 152.º-B, comete este crime “1 - Quem, não observando disposições legais ou regulamentares, sujeitar trabalhador a perigo para a vida ou a perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde, é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - Se o perigo previsto no número anterior for criado por negligência o agente é punido com pena de prisão até três anos.
3 - Se dos factos previstos nos números anteriores resultar ofensa à integridade física grave o agente é punido:
a) Com pena de prisão de dois a oito anos no caso do n.º 1;
b) Com pena de prisão de um a cinco anos no caso do n.º 2.”
Preceitua o artigo 11.º, do mesmo diploma, com a epígrafe - Responsabilidade das pessoas singulares e colectivas, que:
“1 - Salvo o disposto no número seguinte e nos casos especialmente previstos na lei, só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal.
2 - As pessoas colectivas e entidades equiparadas, com excepção do Estado, de outras pessoas colectivas públicas e de organizações internacionais de direito público, são responsáveis pelos crimes previstos nos artigos 152.º-A e 152.º-B, […], quando cometidos:
a) Em seu nome e no interesse colectivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou
b) […]
3 – […]
4 - Entende-se que ocupam uma posição de liderança os órgãos e representantes da pessoa colectiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua actividade.
5 – […]
6 – […]
7 - A responsabilidade das pessoas colectivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes nem depende da responsabilização destes.
8 – […]
9 - Sem prejuízo do direito de regresso, as pessoas que ocupem uma posição de liderança são subsidiariamente responsáveis pelo pagamento das multas e indemnizações em que a pessoa colectiva ou entidade equiparada for condenada, relativamente aos crimes:
a) Praticados no período de exercício do seu cargo, sem a sua oposição expressa;
b) Praticados anteriormente, quando tiver sido por culpa sua que o património da pessoa colectiva ou entidade equiparada se tornou insuficiente para o respectivo pagamento; ou
c) Praticados anteriormente, quando a decisão definitiva de as aplicar tiver sido notificada durante o período de exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.
10 - Sendo várias as pessoas responsáveis nos termos do número anterior, é solidária a sua responsabilidade.
O artigo 16º, do Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25/02, que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2001/45/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Junho, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho, e revoga o Decreto-Lei n.º 82/99, de 16 de Março, sobre e epigrafe “Riscos de contacto mecânico”, preceitua:
1 - Os elementos móveis de um equipamento de trabalho que possam causar acidentes por contacto mecânico devem dispor de protectores que impeçam o acesso às zonas perigosas ou de dispositivos que interrompam movimento dos elementos móveis antes do acesso a essas zonas.
2 - Os protectores e os dispositivos de protecção:
a) Devem ser de construção robusta;
b) Não devem ocasionar riscos suplementares;
c) Não devem poder ser facilmente neutralizados ou tornados inoperantes;
d) Devem estar situados a uma distância suficiente da zona perigosa;
e) Não devem limitar a observação do ciclo de trabalho mais do que o necessário.
Por outro lado, e quanto ao dever de informar, de acordo com o disposto no artigo 8º do citado diploma legal:
“ 1 - o empregador deve prestar aos trabalhadores e seus representantes para a segurança, higiene e saúde no trabalho a informação adequada sobre os equipamentos de trabalho utilizados
2 - A informação deve ser facilmente compreensível, escrita, se necessário, e conter, pelo menos, indicações sobre:
a) Condições de utilização dos equipamentos;
b) Situações anormais previsíveis;
c) Conclusões a retirar da experiência eventualmente adquirida com a utilização dos equipamentos;
d) Riscos para os trabalhadores decorrentes de equipamentos de trabalho existentes no ambiente de trabalho ou de alterações dos mesmos que possam afectar os trabalhadores, ainda que não os utilizem directamente.
Quanto a formação específica, preceitua o artigo 20º, nº 1 da Lei 102/2009, de 10.09 que o trabalhador deve receber uma formação adequada no domínio da segurança e saúde no trabalho, tendo em atenção o posto de trabalho e o exercício de actividades de risco elevado.
De acordo com o disposto no artigo 15º da citada lei, o empregador deve assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspetos do seu trabalho e deve zelar, de forma continuada e permanente, pelo exercício da atividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador.
Por último dispõe o artigo 10.º, do Código Penal, sobre a epígrafe “Comissão por acção e por omissão”:
“1 - Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei.
2 - A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.
3 - No caso previsto no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada.”
Trata-se de um crime de perigo comum, na medida em que atinge um número indiferenciado e indiferenciável de objectos de acção, que corporizam diversos bens jurídicos, como seja, a vida, a integridade física e o património de outrem -, cuja tutela é antecipada para um momento anterior ao resultado, porque a prática de certos actos cria um risco de lesão de bens jurídicos relevantes.
O crime de violação de regras de segurança constitui um crime de perigo concreto, na medida em que pressupõe "a sujeição do trabalhador a uma situação de perigo concreto para a vida, o corpo ou a saúde, com violação das disposições legais ou regulamentares vigentes à data do facto" 3 e de resultado, pois a sua consumação exige a "(efectiva) "sujeição" do trabalhador à realização da actividade fora das indispensáveis condições de segurança", embora não exija a lesão dos bens jurídicos tutelados.4
Trata-se de um crime específico próprio, pois, "pressupõe e exige uma relação de subordinação laboral, sendo o agente do crime "a pessoa que detém uma posição de "domínio" sobre o trabalhador, no âmbito da actividade (trabalho) por este exercida, e sobre a qual recai a obrigação de garantir as condições de segurança no trabalho, previstas pelas respectivas disposições legais, regulamentares ou técnico­-profissionais".5 Quanto ao agente, trata-se de um crime específico próprio fundado na relação de vigilância existente entre o empregador e o trabalhador. Ou seja o tipo legal é violado por pessoas sobre quem recai um dever especial que sobre eles impende. Trata-se do dever do cumprimento das normas de segurança e em especial o dever de informação sobre o risco, pois a referida informação é um meio imprescindível para que o trabalho se realize sob os parâmetros adequados de protecção.
Em suma, o crime de violação de regras de segurança é um crime de perigo concreto, específico, omissivo e de violação de dever de garante que que recai sobre a pessoa a quem incumbe directamente evitar a violação do bem jurídico penalmente protegido.6.
E o preenchimento deste tipo de ilícito tanto pode ter lugar por via de acção como por omissão.
A conduta do trabalhador tem vindo a ser abordada, com reflexos laborais e penais, havendo que distinguir várias situações, em particular as seguintes:
a) a existência de acção “imprudente” do trabalhador;
b) a acção “imprudente” do trabalhador em conjugação com a conduta omissiva do empregador ao não fornecer os meios de segurança necessários e exigíveis ao caso;
c) a acção do trabalhador que contraria as ordens expressas do empregador quanto às regras a cumprir e aos meios de protecção a utilizar (conduta temerária).
No entanto, a conduta do trabalhador deve ser analisada e enquadrada com as condições gerais em que a actividade laboral é prestada, na medida em que recai sobre a entidade empregadora o dever de vigiar o cumprimento das regras de segurança, facultando os meios necessários a tal, sob pena de se criarem mecanismos de “desresponsabilização” inaceitáveis.”7
Por outro lado, só há responsabilidade se existir um nexo de causalidade entre a conduta do agente e o resultado ocorrido.
Importa pois averiguar se a ofensa à integridade física da ofendida teve origem no comportamento activo ou omissivo dos arguidos.
É incontornável que foi violada a norma de segurança contida no artigo 16º do Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25/02, quanto à calandra que estava a ser manuseada pela ofendida onde ocorreu o acidente, uma vez que apesar de dispor de dispositivo destinado à protecção do operador, evitando o contacto mecânico com os elementos móveis, não estava ligado.
Foram violadas as regras de segurança aplicáveis ao caso e constantes do citado artigo 16° do D. L. n.º 50/2005, por não terem sido cumpridas as regras de segurança exigidas considerando o tipo de equipamento utilizado - funcionamento da máquina e forma como o trabalho era prestado. Estas regras envolviam a necessidade da existência de protectores activos que impeçam o acesso às zonas perigosas ou de dispositivos que interrompam o movimento das máquinas no acesso a essas zonas.
O conceito de “dispositivo de interrupção de movimento dos elementos móveis" a que se refere esta norma, não é coincidente com o botão de paragem de emergência (stop). Todas as máquinas têm um sistema de ligar e de desligar, pelo que a identificação desse sistema com o conceito de “dispositivo de interrupção de movimento dos elementos móveis", levaria ao esvaziamento da previsão legal.
O que a lei estabelece é algo mais exigente - a colocação de dispositivos que, independentemente da vontade do operador, interrompam necessariamente o movimento das partes móveis da máquina, em caso de acesso a essas zonas. Só assim se evita aquilo que aconteceu nos autos.8
É sobre os responsáveis da empresa, ora arguida, também arguidos nestes autos, na qualidade de empregadores, que impendia o dever jurídico de evitar o contacto entre a trabalhadora, ora ofendida, e as partes móveis da máquina.
No caso “sub judice”, “se o dispositivo em questão não pudesse ser facilmente neutralizado e se estivesse activo e interrompesse o movimento das partes móveis da máquina em caso de acesso a essas zonas ou protectores que impedissem o acesso a essas zonas, o acidente dos autos não teria ocorrido.
É verdade que a ofendida contribuiu também com a sua conduta para a produção do acidente, ao introduzir as mãos no interior da capa de edredon.
Ou seja, a actuação da ofendida contribuiu para as lesões causadas ao seu braço e a consequente amputação, como veio a ocorrer. Mas resultou igualmente provado que se tivessem sido implementadas as mencionadas barreiras físicas e electrónicas, estas barreiras operariam automaticamente evitando que o braço da ofendida ficasse preso no interior da máquina, provocando as referidas lesões.
Destarte, aquela conduta omissiva dos arguidos existindo antes do comportamento da ofendida/vítima, e persistindo no tempo contribuiu de forma decisiva para a produção do evento.
Assim, a conduta imprudente da ofendida/vitima não exclui a conduta omissiva ao não fornecer os meios de segurança necessários e exigíveis ao caso, que existia antes do facto criminoso. 9
"Por isso, todas as condições que, de alguma forma, contribuíram para que o resultado se tivesse produzido são causais em relação a ele e devem ser consideradas em pé de igualdade, já que o resultado é indivisível e não pode ser pensado sem a totalidade das condições que o determinaram".10
Em suma, a conduta da vitima, neste caso, com relevância penal para a produção do evento, não afasta, a existência da omissão relevante em termos de responsabilidade criminal dos arguidos que tinham o denominado dever de garante.
Dispõe o artigo 15º, do Código Penal, que “age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a)representar como possível a realização e um facto que preenche o tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa actuação; ou
b)não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto”.
Assim, o artigo 15.º, alíneas a) e b), tipifica duas modalidades de negligência: a consciente e a inconsciente.
Estamos no domínio da negligência consciente quando o agente representa como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, mas actua sem se conformar com essa realização, e no domínio da negligência inconsciente quando o agente nem representa sequer tal possibilidade de realização.
Ambas pressupõem, contudo, a omissão de um dever de cuidado, adequado a evitar a realização de um tipo legal de crime, que se traduz num dever de previsão ou de justa previsão daquela realização, e que o agente, segundo as circunstâncias concretas do caso e as suas capacidades pessoais podia ter cumprido.
O que se pune na negligência não é a vontade do resultado que, por definição, falta, mas a violação de certos deveres objectivos de cuidado, postos em conexão com certos resultados proibidos que, em virtude da sua gravidade ou da sua frequência, a lei quer muito particularmente evitar.
Para o homem médio, colocado naquelas circunstâncias e segundo a experiência normal, há-de ser previsível que da violação do dever objectivo de cuidado resulte a produção do resultado típico que seria evitável através do cumprimento do dever objectivo de cuidado.
A previsibilidade relevará em sede de culpa onde se considerarão as capacidades pessoais do agente para prever a produção do resultado típico.
Quando o agente, nas circunstâncias em que se encontrava, podia ou devia, segundo as regras da experiência geral e as suas capacidades e qualidades pessoais, ter representado como possíveis as consequências da sua conduta poder-se-á afirmar o conteúdo da culpa própria da negligência e punir-se o agente que, não obstante a sua capacidade pessoal, não usou o necessário cuidado objectivo para evitar o resultado, cuja produção ele teve como possível ou podia ter previsto 11
Se, contrariamente, "...o agente não pode, concretamente, prever o resultado, (...) apesar da média das pessoas o poder fazer, não poderá ter lugar relativamente a ele qualquer censura, pois não lhe é exigível outro comportamento."12
Dos factos supra descritos impõem a conclusão segura que as lesões sofridas pela ofendida se ficaram a dever a culpa dos arguidos pois tais normas impunham um dever de cuidado que os arguidos não respeitaram.
Fazendo um juízo de prognose póstuma, e de acordo com a experiência normal, a violação daquelas regras de cuidado é idónea a produzir lesões no corpo e na saúde dos trabalhadores que operam com a aludida máquina. As lesões corporais são consequências normais e típicas da violação do dever objectivo de cuidado imposto pelos referidos preceitos legais em matéria de segurança e saúde no trabalho.
A conduta dos arguidos foi, assim, causal, do acidente que originou as lesões na ofendida sendo que as lesões sofridas por aquela não teriam ocorrido sem a violação das regras de cuidado que se impunham aos arguidos. A violação das regras de cuidado foi, desse modo, causa adequada das lesões.
Assim, a conduta apurada dos arguidos, integra sem dúvida os elementos objectivos do ilícito em causa, tendo agido com negligência, devendo pelo mesmo serem os arguidos condenados.”
III.5 Na decisão recorrida, foi efectuado pelo Tribunal recorrido a seguinte determinação concreta da medida da pena:(transcrição)
“Escolha e Medida da Pena
Resulta da conjugação do disposto no artigo 152º-B nºs 1, 2 e 3, alínea b), com os limites fixados nos artºs 41º, nº 1 e 47º, nº 1 e 90º-B, nº 2 e 5 do Código Penal que a conduta dos arguidos CC e FF é abstractamente punida com pena de 1 a 5 anos de prisão e a conduta da arguida BB, Lda. é punida com a pena de 120 a 600 dias de multa à taxa diária de €100 a €10.000.
De acordo com o disposto no artigo 40.º do Código Penal, a aplicação de uma pena visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Com efeito, como ensina Figueiredo Dias “abandonado que está o modelo retributivo e de expiação, a aplicação de uma pena ou medida de segurança é comandada exclusivamente por finalidades de prevenção, nomeadamente, de prevenção geral positiva” 13.
Assim, a determinação da medida concreta da pena a aplicar aos arguidos – de acordo com os limites acima referidos - rege-se pelos critérios vertidos no n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, aplicável “ex vi” do disposto no artigo 40.º do mesmo diploma: a culpa do agente – que, não “sendo o fundamento último da pena, define, em concreto, o seu limite máximo absolutamente intransponível por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir”14 - e as exigências de prevenção.
Vejamos, pois, separadamente, cada uma das finalidades acima enunciadas.
No caso “sub judice”, verifica-se que as necessidades de prevenção geral são elevadas, atenta a natureza dos bens jurídicos protegidos, a vida e a integridade física do ser humano.
Quanto às exigências de prevenção especial, reputam-se de diminutas, face à ausência de antecedentes criminais dos arguidos, e encontrarem-se os arguidos, pessoas singulares, integrados, social, profissional e familiarmente.
No que respeita à culpa, os arguidos actuaram com negligência.
O grau de ilicitude do facto, é elevado dada a perigosidade da máquina em causa e a circunstância de ser múltipla a violação de normas de segurança.
Tudo visto e ponderado, e tendo em conta os limites mínimo e máximo abstractamente aplicáveis ao crime de que vem acusados, considera-se adequado à culpa dos arguidos CC e FF e às necessidades de prevenção geral e especial, a aplicação de uma pena de 1 ano e 4 meses de prisão.
Quanto à sociedade arguida, considera-se adequado a aplicação de uma pena de 140 dias de multa.
Quanto a quantitativo da pena de multa, deve atender-se à situação económica e financeira dos arguidos e aos seus encargos pessoais, tendo presente, por um lado, a dignificação da pena de multa enquanto medida punitiva e dissuasora, e por outro, que aquele quantitativo não deve exceder o montante de que o agente possa dispor, sem prescindir da satisfação das suas necessidades básicas.
Assim, atentas as condições económicas e financeiras da sociedade arguida fixa-se o quantitativo diário, no mínimo legal, ou seja em €100,00.
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Penas de Substituição
Considerando que se aplicaram pena de um ano e quatro meses de prisão, constatamos que sanção é susceptível, em abstracto, de ser suspensa na sua execução.
De acordo com o artigo 50.º n.º 1 do Código Penal, aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente.
In casu, considerando os antecedentes criminais do arguido, e estando o arguido inserido social e profissionalmente, julgo que, não é necessário o cumprimento efectivo da pena de prisão supra determinada, porquanto considero que é, neste momento, possível fazer um juízo de prognose favorável no sentido de a simples censura dos factos e a ameaça de prisão realizarem, por ora, de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Acrescenta o n.º 2 da citada norma que o tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
Nos termos do disposto no artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, dentro dos deveres impostos conta-se o de pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado.
No caso vertente a ofendida peticionou uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de €40.000,00, e que se analisará infra.
Destarte, e por se entender que esta é a pena substitutiva que melhor se adequa ao caso concreto, decido suspender a execução da pena de 1 ano e 4 meses de prisão aplicada aos arguidos CC e FF, pelo período de cinco anos, sujeita às seguintes condições:
- Pagar a indemnização, correspondente a metade do valor que se fixará infra, durante o período de suspensão, em cinco prestações anuais, no valor mínimo de €4.000,00 cada uma.
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Do Pedido de Indemnização Cível:
Pelo demandante civil AA foi deduzido pedido cível no valor de €40.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais acrescido de juros à taxa legal até integral pagamento.
Estatui o artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
Nos termos do artigo 483.º do Código Civil, a responsabilidade civil implica a verificação dos seus pressupostos, a saber: facto ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
No caso dos autos existe um facto voluntário dos demandados que se traduziu na violação das regras de segurança, tendo a demandante sido amputada no seu braço esquerdo, tendo-lhe sido atribuída uma incapacidade para o trabalho de 60%, em consequência de ter manobrado uma máquina com o sistema de segurança desactivado.
Tal facto é ilícito porquanto é violador do direito à integridade física da demandante.
Esta conduta é também culposa uma vez que a conduta em questão é merecedora de um juízo de reprovação e censurabilidade por parte da nossa ordem jurídica.
Efectivamente, os demandados podiam e deviam ter agido de outro modo, evitando a prática da conduta, não o tendo porém, feito.
Também se verificou um dano, entendendo-se este como a perda ou diminuição de bens, direitos ou interesses protegidos pelo Direito.
No que concerne a danos não patrimoniais, prevê o artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, que “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.”.
O n.º 4, do mesmo normativo, determina que “O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.”
Nas palavras do Professor Antunes Varela, “o montante da reparação deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida”15.
A finalidade desta indemnização é, pois, a de minorar/atenuar o mal sofrido.
No caso dos autos, o demandante sofreu danos não patrimoniais elevados, consistentes em prejuízos não patrimoniais decorrentes das incapacidades temporárias e permanentes, quer para a vida em geral, quer para o trabalho, e dos sofrimentos físicos e psíquicos passados, presentes e futuros em consequência dos factos.
Por conseguinte, as lesões físicas e psíquicas sofridas não são despiciendas.
Pede a demandante a condenação dos demandados, no pagamento, a título de danos não patrimoniais do valor de €40.000,00.
Pelo exposto, e atenta a factualidade provada, entende o Tribunal que o montante peticionado pela Demandante se mostra adequado à reparação dos danos sofridos, sendo que este valor não foi considerado pelos Demandados como excessivo.
Finalmente, refira-se que existe nexo de causalidade entre o dano verificado e a conduta dos demandados (artigo 563.º do Código Civil), porquanto os factos perpetrados por estes foram causa adequada dos danos não patrimoniais verificados.
Juros de Mora
Ao valor da indemnização devida acrescem juros de mora, nos termos do disposto nos artigos 805.º e 806.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código Civil.
Os juros de mora devidos (vencidos e vincendos) correspondem à taxa legal supletiva de juros civis (porquanto a responsabilidade em que assenta a obrigação em questão é a aquiliana), a qual é de 4% (Portaria n.º 291/03, de 08 de Abril).
Relativamente ao momento a partir do qual se inicia a contagem dos juros de mora, determina o artigo 805.º, n.º3, do Código Civil, que “se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número.”.
Assim, os juros incidentes sobre as quantias peticionadas a título de danos não patrimoniais, são devidos juros desde a presente data, na qual os mesmos foram liquidados.”(fim de transcrição)
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IV- FUNDAMENTOS DO RECURSO E RESPECTIVA APRECIAÇÃO
Apreciemos agora, as questões a decidir:
IV.1-Nulidade da Sentença por Falta de Exame Crítico da Prova, nos termos conjugados do disposto nos Arts.º 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a) do C.P.P.
Vem o arguido recorrer, com fundamento na falta de exame crítico das provas, pelo Tribunal recorrido, alegando, além do mais, que:
“(…) na verdade o Tribunal a quo (nas 10 páginas que dedicou à Motivação da sua Decisão) mais não fez que transcrever excertos do Depoimento de Testemunhas que nada atesta ou demonstra.
6.6 Na verdade, o Tribunal a quo não especifica em termos minimamente aceitáveis o motivo pelo qual entendeu que as Declarações dos Recorrentes, em determinado segmento, são desprovidas de credibilidade, sejam por si sós, sejam por confronto com a restante Prova existente no Processo e produzida em Audiência de Julgamento, e noutras já tem total credibilidade.
6.7 Tal como não especifica ou concretiza, de modo suficientemente claro e objectivo, o motivo pelo qual retirou credibilidade a alguma da Prova Testemunhal produzida em Audiência de Julgamento em face do que depuseram outras Testemunhas.
6.8 No que respeita à Prova Testemunhal o Tribunal a quo limitou-se a citar - com falta de rigor - alguns trechos dos depoimentos das Testemunhas, mesmo quando algumas dessas partes dos depoimentos são contraditadas por outros Depoimentos e Prova de outra natureza como a documental e a pericial.
6.10 Não especificando, nomeadamente, quanto aos poucos factos que o fez, o motivo pelo qual, em termos minimamente lógicos, essa Prova difere, contraditando-a ou atestando-a, da restante.
6.11 Certo é que se impunha, em vista do exame crítico das Provas a que se refere a última parte do N.º 2 do Artigo 374.º do Código de Processo Penal, que se explicitasse de modo concreto e objectivo, designadamente, as razões que levaram o Tribunal a quo a descredibilizar, e porquê, as Declarações dos Recorrentes, bem assim, como a considerar mais relevante o Depoimento de uma Testemunha do que todas as demais inquiridas no decurso do Processo e ouvidas em Audiência de Julgamento”.
Analisemos então se ocorre omissão do exame crítico da prova no que respeita aos factos provados pelo Tribunal recorrido em sede de motivação da decisão de facto nas páginas 7 a 17 da sentença recorrida.
Invocam os arguidos o vício da nulidade da sentença, previsto na alínea a) do n.º1, do artigo 379º, do C.P.P que remete para o disposto no artigo 374º, nº 2, do citado diploma, o qual é um dos regimes especiais - exclusivo das sentenças, como alude o art.º 97º, nº 1 a) e 2 do citado diploma, - que estabelecem consequências para este tipo de actos, para além do regime regra das nulidades, previsto nos artigos 119º e 120º, do CP.P.
As nulidades aqui previstas referem-se a questões nucleares ou estruturais, destes actos decisórios, desde logo a omissão ou insuficiência da fundamentação ou do dispositivo da sentença.
Assim, preceitua o art.º 379º, do C.P.P, sob a epígrafe à “nulidade da sentença”, que:
1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
(…)
2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º
De acordo com o n.º 3, do art.º 410º, do C.P.P, “o recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal à matéria de direito, e inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.”
Dispõe o art.º 374º, n.º 2, do C.P.P, referente aos “requisitos da sentença” que ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
O dever de fundamentação tem natureza constitucional, encontrando-se plasmada no art.º 205.º, da CRP e do art.º 97.º, n.º5, do CPP.
As sentenças ou acórdãos judiciais, enquanto atos decisórios, carecem necessariamente de fundamentação, através da enumeração ou especificação da matéria de facto provada e não provada (reportada pelo menos à factualidade constante da acusação e/ou da pronúncia, da contestação do arguido, do pedido cível do demandante) e da motivação explícita do processo de convencimento ou da convicção do julgador - art.º 205.º, n.º 1, da CRP, 97.º, n.ºs 1, al. a) e 5, e 374º, ambos do C.P.P.
O dever de fundamentação abarca todos os vectores da decisão judicial ( da matéria de facto à medida concreta da pena).
Na elaboração da sentença, após o primeiro momento de enumeração dos factos provados e não provados que fundamentam a decisão, segue o segundo momento que compreende o exame crítico da prova que deve fazer-se através de uma exposição tanto quanto possível completa, mas concisa dos motivos de facto e de direito que levaram à convicção do Tribunal, expondo as razões que em função das regras da experiência comum e ou da lógica, que constituem o substracto racional que levou a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou que valorasse de determinada forma os meios de prova, sendo certo que os motivos de facto que fundamentam a decisão não são os factos provado, mas sim as razões de ciência reveladas extraídas das provas, a razão de determinada opção relevante por um ou por outro meio de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, valor de documentos e exames que o tribunal privilegiou na formação da convicção. Em ordem a que os destinatários fiquem cientes do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.
A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do seu exame crítico garante que a sentença seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas e que não foi arbitrária, não impondo, porém, a lei a menção a inferências indutivas levadas a cabo pelo tribunal ou a critérios de valoração da prova (neste sentido Fernando Gama Lobo, Código de Processo penal, em anotação ao art.º 374.º, do CPP Anotado, citando o Ac. STJ de 09/01/1997 in CJ-V-I-172.)
Não esclarece a lei processual, a profundidade exigível a esse exame crítico, que terá de ser ajustada às necessidades de cada caso, porquanto essa tarefa será em princípio, e de acordo com as regras da normalidade, mais sumária se por exemplo o julgador se fundou numa confissão integral e sem reservas do arguido, e terá, naturalmente, de ser mais profunda quando sobre a mesma materialidade exista prova entre si contraditória.
Esse exame crítico não tem, naturalmente, de reproduzir por escrito o teor de cada depoimento, assim como não tem, necessariamente, de se reportar a cada facto concreto de forma individualizada, porém, terá de, pelo menos, dar nota explicativa das provas que recaíram sobre os factos e das razões pelas quais se conferiu maior credibilidade e/ou peso probatório comparativo a uma prova, em detrimento da outra.
A crítica é a afirmação da sua credibilidade ou incredibilidade, ou seja, em derradeira operação valorativa, a afirmação das provas que que lhe merecem aceitação e das que lhe merecem rejeição, a razão porque umas são elegíveis e outras não, não enfermando de contradições ou lacunas de pensamento, não violadora das regras da experiência e do bom senso (neste sentido por todos Fernando Gama Lobo, Código de Processo penal Anotado, Maia Gonçalves, Código de Processo penal Anotado, Ac. STJ de 23/04/2008 proc. 05P662, de 21/03/2007 proc. 07PO24, de 26/10/2000, proc. 2528/2000 in www.dgsi.pt e Ac. STJ de 09/01/1997 in CJ V-I, pág. 172.).
Como ressalta da leitura da norma referida, a fundamentação não se satisfaz com a mera indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, nem com a súmula dos depoimentos/declarações que fundaram a convicção, exigindo-se, ao invés, um exame crítico dessas mesmas provas, o que se encontra em correspondência lógica com o processo mental desenvolvido pelo julgador na análise da prova que determinou a formação da sua convicção. Este é um processo complexo porquanto implica o convencimento ou não da ocorrência de factos, convencimento que não pode ter por fundamento ou justificação senão a prova produzida e avaliada de harmonia com regras da experiência e da lógica, exame crítico esse que é exigido pelo princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º do CPP ( veja-se por todos JOSÉ MOURAZ LOPES, Gestão Processual: tópicos para um incremento da qualidade da decisão judicial, JULGAR - N.º 10 – 2010, disponível in julgar.pt; no mesmo sentido v. SARA M. RODRIGUES, in O dever de fundamentação das decisões proferidas pela Autoridade da Concorrência em Processo Sancionatório, in Revista Julgar, julgar.pt e, entre outros).
A livre convicção não se confunde com convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é um livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passível de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever”, no ensinamento do Professor Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, vol. I, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pág. 201 a 206, que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana.
De acordo com o aludido princípio da livre apreciação da prova, o julgador é livre ao apreciar as provas, estando tal apreciação apenas vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório sendo que “A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspetivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento. Isto é, na outorga, não de um poder arbitrário, mas antes de um dever de perseguir a chamada verdade material, verdade prático-jurídica, segundo critérios objectivos e susceptíveis de motivação racional.” – cfr. Professor Figueiredo Dias, ob. e loc. citados e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08.02.2012, proferido no processo nº 38/10.0 TAFIG.C1, disponível in www.dgsi.pt/jtrc.
O Tribunal Constitucional nos Acórdãos n.ºs 172/94, Diário da República, 2.ª série, de 19 de Julho de 1994 e n.º 573/98, Diário da República, 2.ª série, de 13 de Novembro de 1998, já se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade da interpretação do art.º 374.º, n.º 2 do CPP segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1.ª instância.
O Julgador deverá explanar qual o entendimento de que se serviu para os factos serem julgados provados ou não provados com base naquele meio de prova a razão pela qual o tribunal valorou aquele meio de prova e não outro.
Porém, fundamentar não significa uma exposição exaustivamente, o que decorre, desde logo, da leitura do preceito em análise por referência à expressão “concisa” aí contemplada, mas que se quer completa. Sendo a absoluta falta de fundamentação cominada com nulidade, por força do art.º 379.º, n.º1, al. a), do CPP.
Volvendo ao caso dos autos é a seguinte a motivação da decisão de facto do Tribunal recorrido:
Em jeito de introito refere que:
“O Tribunal formou a sua convicção com base na valoração conjunta e crítica da prova produzida em sede de audiência de julgamento, designadamente a prova documental junta aos autos, que analisou criticamente e em conjunto com as declarações dos arguidos e das testemunhas inquiridas.
Continua, agrupando logicamente conjuntos de factos e motivando-os nas declarações dos arguidos e no depoimento unanime das testemunhas:
Assim, para prova dos factos constantes dos pontos 1, 3 (até ...) 4, 5 (até rolo), 6, 7 e 9 dos factos provados, atendeu-se às declarações de ambos os arguidos e das testemunhas inquiridas que quanto a estes factos foram unânimes. Ou seja, não há dúvidas de que a ofendida foi admitida como trabalhadora da sociedade arguida em ........2016 com a categoria profissional de dobradora e que no dia ........2016, pelas 15h00m quando se encontrava a desempenhar as suas funções nas instalações da sociedade arguida sita no ..., quando introduzia uma capa de edredão na plataforma metálica da calandra, ao verificar a existência de um fronha no interior da capa, a fim de a retirar colocou a mão e braço no interior do equipamento , tendo ficado com o braço preso dentro da máquina por um período não concretamente apurado. Não há duvidas também que o sistema de protecção de dedos da máquina estava desactivado, nesse dia. Também não há dúvidas que a referida máquina se destinava a passar/engomar roupa de casa até 15 mm de espessura e que a alimentação das peças no equipamento era feito por dois operários, um em cada extremidade da máquina e que nesse dia, a ofendida estava a trabalhar com o colega II, que tentou puxá-la, sem êxito, tendo sido outro colega, JJ, quem acionou o botão STOP, quando ouviu o pedido de socorro da ofendida. Também resulta de todos os depoimentos que com este acidente a ofendida sofreu queimaduras na mão e braço que posteriormente conduziram à amputação do antebraço esquerdo da ofendida.
A prova do facto a que alude o ponto 8, resulta da documentação clínica, de fls. 89-90, auto de exame directo, de fls. 150 e 196 e da certidão de fls. 341-342 com auto de exame por Junta Médica.
Refere que estes factos não foram postos em causa pelos arguidos.
Segue então com a motivação dos demais pontos da matéria de facto provada impugnados pelos arguidos, explicando quais os meios de prova em que se basearam e porque não relevou o depoimento do arguido que representa a sociedade, perante os depoimentos das testemunhas que elenca e cujos depoimentos mereceram credibilidade bem como o depoimento da ofendida que considerou um depoimento sereno, sem qualquer contradição e muito claro:
Questiona o arguido que represente a sociedade arguidapontos 2 e 3, parte final.
Quanto a estes factos, diz o arguido que estaria na empresa apenas para ajudar a sua companheira, também arguida. Contudo do seu depoimento resulta, desde logo, que dava instruções aos chefes de equipa e dos depoimentos das testemunhas, designadamente, II, que trabalhou para a sociedade arguida durante dois anos, resulta de forma muito evidente que era o arguido quem era considerado o patrão e a pessoa que estava mais tempo presente na empresa. Este depoimento foi corroborado pelo depoimento da testemunha KK, que trabalhou na sociedade arguida desde ... a ...1.../2018, com as funções de chefe de equipa, referiu-se ao arguido como o gerente da empresa. A ofendida AA referiu que foi o “ Sr FF que assinou o contrato”, a testemunha LL, funcionário da empresa durante seis meses, entre ... e ..., referiu que o arguido se apresentou como dono da empresa. A testemunha MM na ..., funcionário na sociedade arguida no período de ... a ..., com as funções de chefe de equipa, referiu que era o Sr. FF que lhe dava as ordens e que lhe pagava. A testemunha NN, funcionária da sociedade arguida até ... e durante três a quatro anos, disse que o arguido era o patrão, motivo pelo qual se deram como provados todos os factos constantes deste ponto, designadamente que o arguido representa a empresa, sendo incompreensível que o arguido negue esta evidência.
Não admitem que não tivessem dado formação profissional à ofendida e aos seus colegas e que a máquina não dispusesse de sinalização de segurança e de instruções de segurança – pontos 10 e 11
Quanto à formação a arguida referiu que deu à ofendida 15 dias de formação antes de começar a laborar com a mesma, dada pela pessoa que trabalhava numa empresa a quem adquiriram a máquina e que contrataram. Concretizando no que consistia a formação, referiu que a ensinaram a colocar e a recolher a roupa na máquina e que não podia desactivar o botão, que era visível e que estando para cima estava desactivado). Esclareceu que eram os chefes de turno que davam a formação, sem contudo conseguir esclarecer em concreto que formação era ministrada. Afirma que ninguém conseguia trabalhar com a máquina se não fosse ensinada, resultando do seu depoimento que se referia à forma como deviam manusear a roupa, para que não enrolasse dentro da máquina, para, por exemplo não ficar com dobras. Ou seja, a arguida confunde formação de segurança com formação para laborar. Quanto as regras de segurança, ainda assim afirmou sem qualquer margem para dúvidas que antes do acidente não existia na máquina qualquer autocolante para procedimentos de segurança. Apenas os botões, sendo que após o acidente a ACT disse-lhe que era preciso colocar sinalização na máquina.
O arguido afirma também que aos funcionários da sociedade arguida era dada formação pela pessoa que contrataram e que conhecia a máquina que compraram e que ficou responsável pela manutenção da máquina e chefe de produção. Referiu-se também às formações dadas na área da saúde e higiene (primeiros socorros) por empresas externas. Contudo e quanto a estes factos, do depoimento do arguido resulta também com muita clareza que a pessoa que contrataram para fazer a manutenção da máquina e dar a formação sobre o seu funcionamento, não soube resolver o problema, quando constatou que a ofendida tinha o braço preso dentro da máquina, tendo sido o arguido que à distância lhe explicou o que devia fazer e que veio a resultar, mas demasiado tarde, pois antes destas instruções a pessoa que conhecia bem a máquina andou a procurar dentro da empresa por peças metálicas para tentar levantar o rolo, e ferramentas para desmontar sabe-se lá o quê, enquanto o braço da ofendida continuava dentro da máquina sujeito a temperaturas superiores a 180 graus.
Assim, e como sabemos, a circunstância dos arguidos negarem a prática dos factos não releva pois o Tribunal pode lançar mão da demais prova produzida.
Assim, a prova dos factos a que aludem os pontos 10 e 11, atendeu-se ao depoimento das testemunhas, que quanto aos mesmos foram também unânimes, infirmando totalmente as declarações dos arguidos. Atendeu-se igualmente às declarações da arguida na parte em que o seu depoimento é corroborado pelos depoimentos das testemunhas, em que admite a inexistência de avisos nas máquinas. Com efeito, a testemunha II, colega da ofendida, que em conjunto com esta se encontrava a introduzir roupa na máquina em causa, referiu ao Tribunal todas as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que os factos ocorreram, explicando com mágoa, que, estando muito perto da ofendida, o acidente ocorreu porque não sabia desligar a máquina, pois apenas lhes era ensinado como colocar roupa na máquina, desconhecendo para que serviam os botões, não tendo visto, até ao acidente, nenhum sinal de perigo ou instruções na máquina. Afirmou também que, e relativamente ao funcionamento da máquina, nunca tiveram formação. Foi-lhes dada formação, mas depois do acidente. Até àquela altura, nem sequer sabia a temperatura que era atingida dentro da máquina e que existia um sistema de segurança, acrescentando que ele também teria tentado tirar a fronha.
A testemunha KK, que prestou um depoimento hostil e muito colado ao dos arguidos, ainda assim, relatou alguns factos com coerência, referindo que orientava as pessoas para começarem a trabalhar, posicionando-as nos locais de trabalho. Esclareceu que a ofendida e a testemunha II se encontravam nesse dia no lado da introdução da roupa na máquina. Quanto a formação referiu-se à formação externa em segurança e higiene no trabalho, à semelhança das demais testemunhas, referindo que quanto ao funcionamento da máquina em causa, “eles entravam e era o colega que passava os conhecimentos”, sendo que, segundo declarou, “o tempo médio de permanência na empresa era de 15 dias”(sic) a “rotatividade era enorme”(sic). Quanto ao mais, apesar de afirmar que a ofendida era muito experiente e que todos sabiam como desligar a máquina, não conseguiu explicar porque motivo não teria a ofendida pedido aos colegas que o fizessem ou a ele próprio e porque motivo não teria a seu colega II accionado/activado o sistema de protecção de dedos, pois nesta fase já de nada servia o tal botão “stop.”
Relevante para a prova destes factos, foi o depoimento da testemunha e ofendida AA, que apesar dessa qualidade prestou um depoimento sereno, sem qualquer contradição e muito claro quanto a estes factos, tendo dado nota da hora em que ocorreu o acidente, e que quando o Sr. KK lhe disse para ir para a máquina em causa, a mesma já estava a funcionar. Explicou que ela e o colega OO meteram uma capa na máquina e que meteu a mão dentro da máquina. Acrescentou que quando fazia isso a calandra parava, mas nesse dia não parou, tendo ficado logo presa e assim permaneceu durante cerca de meia hora. Referiu que nunca lhe entregaram qualquer documento com as regras e perigos da máquina (como aliás foi confirmado pela arguida). Referiu também que a máquina não tinha autocolantes nem avisos (como aliás confirmado pela arguida). Disse também que nunca recebeu qualquer formação sobre esta máquina. Disse ainda que só o Sr. KK mexia na máquina, não sabendo porque é que a máquina parava. Referiu ainda que nunca recebeu prémios de produtividade, tendo negado ter assinado o documento de fls. 448. Não se olvide que ensinar aos funcionários a utilidade de todos os botões da máquina, na versão dos arguidos, é ilógica e contraditória, na versão dos arguidos pois, para quê ensinar se estavam proibidos de mexer na máquina.
A testemunha PP, funcionário da sociedade arguida durante cinco anos, desde ... a ..., referiu ter sido o “braço direito da CC e do FF”. Disse que representava a empresa na falta daqueles, que eram os responsáveis da empresa e que ajudava na gestão diária. Corroborou o depoimento da testemunha QQ, referindo que todos os meses tinham 2 a 3 funcionários novos. Referiu que não há nenhuma formação especifica na área. Referiu também que a ACT “mandou meter chamadas de atenção dos botões”, o que fizeram depois do acidente. Esta testemunha à semelhança de todas as demais, não sabia que se desligava o sensor. Apesar de exercer funções na área dos pagamentos e registo de horários, não se lembrava se havia prémios de produtividade, o que seria estranho, não fosse ter sido notória também a sua colagem aos arguidos, pois a resposta lógica para alguém que processa salários e registo de horários teria que afirmar se havia ou não prémios, sendo incompreensível a resposta que deu. Tal como a arguida e a ofendida também referiu que não eram entregues documentos/manuais dos equipamentos aos trabalhadores.
Relevante foi igualmente a testemunha LL, que trabalhou para a empresa durante 6 meses entre ... e .... Referiu que nesse dia estava do lado oposto ao da ofendida (na saída da roupa). Referiu que assim que ouviu um grito da ofendida, correu para perto dela e vendo que tinha o braço preso carregou no botão stop mas tal não impediu que o braço continuasse preso. Referiu ainda que a máquina tinha “milhares” de botões e que carregou naquele por instinto pois nunca ninguém lhe explicou o que havia a fazer em caso de acidente. Acrescentou que a ofendida enquanto teve o braço preso desmaiou várias vezes. Disse que os ensinamentos que recebeu foi como passar a roupa, tendo-lhe sido dito que era preciso esticar a roupa muito bem e nada mais. O desconhecimento dos riscos era tal, que esta testemunha afirmou mesmo que os homens também metiam a mão, mas não lhes aconteceu nada porque tinham mais agilidade e conseguiam tirar as fronhas.
A testemunha MM na ..., funcionário na sociedade arguida no período de ... a ..., com as funções de chefe de equipa, prestou um depoimento muito confuso, não sendo perceptível se estaria de facto a falar da máquina onde ocorreu o acidente. Desde logo, disse que o sistema de segurança era desactivado puxando uma barra que estaria por cima da máquina, quando as outras testemunhas falavam num botão.
Quanto aos avisos que existiriam na máquina contrariou o que a própria arguida admitiu, pois afirmou que já existiam autocolantes e que a ACT colocou mais autocolantes, “para reforçar”. Contudo quando questionada em que língua estavam escritos os avisos não soube responder, sendo que trabalhou na sociedade arguida vários anos como chefe.
Em face destas contradições este depoimento não mereceu credibilidade na parte que contraria as declarações da arguida. De qualquer modo, este depoimento foi relevante para dar estes factos como provados, pois, conforme disse a testemunha, todos sabiam que por vezes era desligado o sistema de segurança.
A testemunha RR, que referiu ter feito averiguação por acidente de trabalho, contudo não se lembrou dos factos de que teve conhecimento, remetendo para um relatório que teria emitido. Ainda assim confirmou que nas máquinas existiam apenas sinais e não avisos, quando questionada sobre a língua em que estariam os avisos, e que estes foram colocados mais tarde por ordem da ACT.
Negam também que soubessem ou tivessem dado instruções para que o sistema de protecção de dedos estivesse, desativado nesse dia – pontos 12 e 16
A testemunha LR, funcionária da sociedade arguida no período de ... a ..., com as funções de chefe de turno, relatou ao Tribunal, corroborando os depoimentos das testemunhas AA, II e TT de que os operários “não tinham autorização para mexer na máquina. Se alguma coisa corresse mal tinham que se afastar e chamar o chefe”. Referiu também que não tinham a certeza que o sistema era desligado. Mas era falado. Apesar de dizer isto, afirma que nunca foi instaurado nenhum processo disciplinar a nenhum funcionário. Este depoimento foi relevante para dar por provados os factos constantes dos pontos 12 e 16, ao referir para além do mais que todos sabiam que por vezes era desligado o sistema de segurança e por conseguinte caso o arguido não soubesse, o que é estranho para quem está permanentemente na lavandaria, como referiu, saberia através da sua companheira, pois esta admitiu que sabia e que estava atenta.
A testemunha UU, funcionária da sociedade arguida durante 3 a 4 anos até ... foi relevante também para a prova dos factos constantes dos pontos 12 e 16, pois, sem qualquer dúvida, afirmou que acontecia muitas vezes a barra estar levantada e que nas vezes que viu comunicava aos chefes.
Na versão dos arguidos seriam os trabalhadores que desactivavam a máquina para, aumentando a sua produtividade, receberem prémios. Esta versão não convenceu, desde logo porque não ficou demonstrado que os trabalhadores recebessem prémios de produtividade. Por outro lado, tais aumentos beneficiariam em primeira linha os próprios arguidos e por conseguinte, o que é verdade para os trabalhadores também o é para os arguidos, pelo que, na versão dos arguidos, a hipótese dos sistemas de segurança ser desactivado pelos arguidos também se teria de colocar, caso o fundamento fosse o aumento de produtividade. Contudo mesmo admitindo que os trabalhadores fizessem isso, faziam-no porque desconheciam os riscos que corriam, como ficou amplamente demonstrado pelos depoimentos prestados de forma unânime.
A versão dos arguidos não é verossimel, pois sabendo a ofendida da existência do botão que activava o sistema de protecção de dedos e que o mesmo estaria visível e acessível, fica por explicar porque teria a ofendida metido a sua mão e braço dentro da máquina sem que antes tivesse accionado o aludido botão para que a máquina parasse.
Do confronto de todos os depoimentos resulta muito evidente que a máquina em questão estava dotada de um sistema de protecção de dedos, mas que esse sistema estava desactivado. É verdade que não foi possível apurar quem o desactivou. Contudo também é verdade que estamos perante uma empresa familiar como referiu a arguida e confrontando novamente todos os depoimentos, todos sabiam que este sistema era muitas vezes desactivado e ninguém referiu que tivessem sido tomadas medidas pelos arguidos para que tal deixasse de acontecer, sendo que as instalações têm câmaras (as testemunhas foram dizendo que se sentiam permanentemente observados) (os arguidos disseram que o acidente foi captado pelas câmaras de videovigilância) e por conseguinte era possível e muito fácil aos arguidos saber quem o fazia, se é que alguém o fazia e contra a vontade dos mesmos.
Assim como não é verosímil que a ofendida tivesse conhecimento dos riscos que corria com o manuseamento daquela máquina.
Não é também verosímil a versão dos arguidos de que não soubessem que o sistema era desactivado a miude e que fossem os operários a desactivar tal botão para a roupa correr melhor, pois não seriam eles os beneficiários de uma maior produção, sendo que não se logrou demonstrar que a ofendida recebia prémios de produtividade, desde logo porque a ofendida negou tal facto e os arguidos não infirmaram este depoimento, demonstrando tal facto, com a única prova admissível para este facto - recibos de ordenado. De qualquer modo, a arguida afirmou que os funcionários não estavam autorizados a mexer no botão assim como a testemunha LR.
Quanto a formação afirmou a arguida que foi dado à ofendida o regulamento de segurança, assim como a todos os funcionários, tendo tal afirmação sido negada pelo arguido, que sem qualquer hesitação afirmou que o manual de segurança junto em audiência, não foi dado à ofendida, nem a outros funcionários, mas apenas aos chefes de produção.
O arguido, ao contrário da arguida (que disse que antes do acidente não havia autocolantes com normas de procedimentos na máquina) afirmou que não sabe porque a ACT disse que não estavam afixadas normas de utilização da máquina. Ao contrário da arguida, afirmou que a ofendida não falava português. Quanto à desactivação do sistema de segurança, o arguido afirmou que nunca viu nenhum funcionário desactivá-lo. Contudo a arguida afirmou que os funcionários desactivavam o botão e que “nós sabíamos disso e estávamos atentos”(sic).
Por último, cumpre ainda dizer que a alegação e insistência exaustiva com as testemunhas de que a ofendida e os seus colegas faltaram a uma formação, antes do acidente, é totalmente irrelevante para a decisão, pois a mesma nada teve que ver com o funcionamento desta ou de outra máquina, mas apenas com primeiros socorros.
Relevante para a prova dos factos insertos nos pontos 10, 11 e 12 foi também a certidão emitida pela ACT de fls. 288-299, onde consta a fls. 299 que foram verificadas as seguintes situação irregulares:
- inexistência de informação e formação aos trabalhadores sobre a actividade desempenhada, utilização de equipamentos de trabalho e riscos inerentes à sua utilização;
- inexistência de instruções de trabalho junto dos equipamentos de trabalho para a sua corecta utilização em segurança;
- inexistência de sinalização de segurança nos equipamentos de trabalho.
Atendeu-se ainda ao teor da certidão de fls. 4-32 dos autos (autos de noticia por contra-ordenações), a certidão permanente da sociedade arguida de fls. 39-43, documentação clínica, de fls. 89-90, auto de exame directo, de fls. 150 e 196, certidão emitida pela ACT de fls. 288-299, certidão de fls. 341-342 com auto de exame por Junta Médica, relatório de averiguação de acidente de trabalho de fls. 464 a 503,
Quanto ao elemento subjectivo - pontos 13 a 16 - resultou da factualidade objectiva provada e que, com segurança permite inferir com base em presunção natural essa motivação.
No que respeita aos antecedentes criminais dos arguidos, a convicção do Tribunal atendeu ao teor do Certificado de Registo Criminal juntos aos autos.
Quanto às condições pessoais dos arguidos atendeu-se às suas declarações nas quais se fez fé.
A prova dos factos constantes dos pontos 23 a 32 resultam das declarações da demandante, das regras da experiência comum e também por não terem sido impugnados pelos demandados.
Quanto aos factos dados como não provados e constantes da alínea a) assim resultou porque da dinâmica pós acidente relatado pelas testemunhas presenciais, com a ofendida a desmaiar várias vezes, resulta que o período que a ofendida esteve com o braço preço rondaria os cerca de 30 minutos. Acresce que, e considerando o relatado pelo arguido de que esteve ao telefone com o chefe de equipa, QQ a explicar-lhe o que devia fazer, sendo que antes disso este funcionário ainda andou à procura de uma barra de ferro para tentar, como tentou levantar o cilindro que prendia o braço da ofendida, sendo que após o telefonema com o arguido, foi também buscar uma chave “lá acima” para desactivar algumas funções da máquina, para fazer a inversão de marcha, o tempo que a ofendida ficou com o braço preso é seguramente mais próximo dos 30 minutos referidos pela ofendida do que os onze minutos, motivo pelo qual se deram como não provados estes.
Quanto aos factos constantes das alíneas b) e c), porque se demonstrou, que se demonstrou o que consta do ponto 16, ou seja, que os arguidos agiram com negligência e não com dolo, como consta destas alíneas. (sublinhados nossos).
Deste excerto da decisão recorrida, na parte relativa à motivação da decisão de facto, decorre que o Tribunal recorrido, além de indicar as provas que serviram para formar a convicção do tribunal no que respeita quer aos factos provados que foram agrupados, examinou criticamente as provas produzidas, em especial os meios de prova oral, que serviram para formar a convicção do tribunal quanto a esses factos, denotando-se que realizou um raciocínio mental e critico de conjugação e complementação entre todos os meios de prova que indica, evidenciando que realizou criticamente uma operação de selecção dos meios probatórios em que se baseou e considerou relevantes para a decisão da causa, referiu igualmente quais os meios de prova que lhe mereceram credibilidade em detrimento de outros, explicando de forma compreensível e coerente porque desacreditou no depoimento dos arguidos explicando porque “Não é também verossímil a versão dos arguidos”. De todas estas operações e raciocínios concluiu pela prova dos factos provados e pela não prova dos factos não provados.
Não é verdade que o Tribunal recorrido se limitou a citar alguns trechos dos depoimentos, nem que das “10 páginas que dedicou à Motivação da sua Decisão mais não fez que transcrever excertos do Depoimento de Testemunhas” nem teceu considerações vagas e imprecisas, nem a verdade que o Tribunal não tenha explicado porque desacreditou numas e acreditou noutras, como decorre com meridiana clareza, da motivação da decisão de facto, limitando-se os recorrentes a tecer esses considerações, de forma conclusiva, sem exemplificar em concreto, por referência à motivação das decisão de facto do Tribunal, onde tal ocorre.
Arguem os recorrentes, ademais, que:
6.4 Nessa parte da Sentença Recorrida, o Tribunal a quo, refere que para dar como provada essa factualidade socorreu-se das Declarações prestadas pelos Recorrentes, dos Depoimentos das Testemunhas indicadas na Acusação e nas arroladas pelos Arguidos, do teor de Documentos. No resto dá sinais de ter esquecido que existem os Autos inúmera outra Documentação designadamente Sentença do Tribunal de Trabalho acerca dos factos que perfazem o Objecto destes Autos que é clara na conclusão de que os Recorrentes nada têm de ver com estas factualidades.
Efectivamente, resulta da motivação de facto da decisão recorrida ter o Tribunal “a quo” fundado a sua convicção na prova documental junta aos autos “para prova dos factos o Tribunal baseou-se na prova documental junta aos autos , que analisou criticamente e em conjunto com as declarações dos arguidos e das testemunhas(…)”, dando prevalência necessariamente aqueles que contendem com as questões a decidir, sendo certo que o Tribunal ateve-se a documentos juntos aos autos nomeadamente para fundamentar as respostas aos factos 8, 10, 11 e 12, não sendo de exigir e não se impõe, atento o volume do processo, que o Tribunal “a quo” se pronunciasse a respeito de cada documento, especificamente, na medida em que não lhe era exigível efetuar a prova pela negativa, mas antes analisar toda a prova que serviu para alicerçar e justificar o seu raciocínio e fundamentar a factualidade provada e apurada, e que justificou a condenação dos recorrentes.
Não existe, pois, a alegada falta de exame crítico, à luz da livre convicção, o que é evidenciado pelas passagens por nós destacadas supra, que não enfermam de contradições de pensamento, não se inferindo qualquer violação de regras da experiência e do bom senso.
No acórdão recorrido em crise, não foi ademais violado o princípio da livre apreciação da prova inserto no art.º 127.º, do CPP, que em conjunto com o princípio da imediação enfatiza a livre convicção do Julgador da primeira instância, que realizou o julgamento e proferiu a sentença condenatória, nem se evidenciando a violação das regras da experiência e da lógica, estando fundamentada.
Assim, analisada por nós a fundamentação exarada pela primeira instância, e que acima deixámos transcrita, afigura-se-nos não assistir razão ao recorrente, não se denotando omissão ou insuficiência.
Resulta, pois, da fundamentação em análise que o tribunal colectivo a quo cumpriu as exigências previstas no artigo 374.º, n.º 2, do CPP, de acordo com a sua valoração da prova, expondo a conclusão a que chegou do raciocínio empreendido na valoração da prova que encetou, não deixando de se pronunciar quanto às questões que devesse apreciar.
Nessa medida, julgamos não verificada a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al.s a) ou c) do CPP, improcedendo o recurso nesta parte.
IV.2- Da impugnação ampla da matéria de facto/erro de julgamento em particular quanto aos factos provados constantes dos pontos 9 a 14 (art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do CPP).
O ordenamento jurídico-processual-penal consagra duas formas de impugnação da matéria de facto.
Uma designada por impugnação ampla, que consiste na reapreciação da prova gravada e que tem de ser invocada pelo recorrente, pois não é de conhecimento oficioso, recaindo sobre o recorrente o duplo ónus de especificação previsto no art.º412º, nº3 e 4 do CPP.
Outra, designada por impugnação restrita (revista alargada), que consiste na invocação dos vícios previstos nas alíneas a), b) e c) do nº2 do art.410º, do CPP que, aliás, são de conhecimento oficioso.
São duas formas distintas de “atacar” a matéria de facto, estando por isso sujeitas a regimes processuais diferentes.
O erro de julgamento (em sentido amplo) e o erro notório na apreciação da prova são institutos distintos e como tal não devem ser confundidas.
Assim, enquanto o erro notório na apreciação da prova, constitui um vício intrínseco da sentença, e por isso, tem de resultar por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum do respectivo texto (art.410º, nº2, do CPP), o erro de julgamento não se confina a esse domínio, tratando-se de uma forma ampla de impugnação da matéria de facto, que todavia, deve ser exercida com observância do disposto no art.412º, nºs 3 e 4 do CPP, o que aqui não acontece.(Cf. Acórdão da Relação de Évora de 19/12/2019 processo 572/16.8T9TMR.E2, Relator GILBERTO CUNHA).
O erro de julgamento, ínsito no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4, do artigo 412º, do Código de Processo Penal, embora não vise a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, mas um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, isto é, erros in judicando (violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (violação de normas de direito processual), que o recorrente deverá expressamente indicar e se lhe impõe o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº 3, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.
Neste sentido, entre muitos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-09-2021, proferido no Processo n.º 797/14.0TAPTM.E2.S1 (Relator: NUNO GONÇALVES): No nosso sistema, o objeto do recurso ordinário é a sindicância da decisão impugnada, constituindo um remédio processual que permite a reapreciação, por um tribunal superior das questões que a decisão recorrida apreciou ou deveria ter conhecido e decidido. No julgamento do recurso não se decide, com rigor, uma causa, mas apenas questões específicas e delimitadas, que tenham sido objeto de decisão anterior pelo tribunal recorrido.
Assim, impõe-se-lhe:
-a especificação dos “concretos pontos de facto” que considera incorrectamente julgados, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado;
-a especificação das “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida, acrescendo que o recorrente deve explicitar por que razão essa prova impõe decisão diversa.
-a especificação, se for caso disso, das “provas que devem ser renovadas”, que só se satisfaz com a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento no tribunal de primeira instância e das razões para crer que aquela renovação da prova permitirá evitar o reenvio do processo – cfr. artigo 430º, nº 1, do citado diploma.
- Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (n.º4 do art.º 412.º, do CPP).
No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto é que o recorrente indique a sua decisão de facto, em alternativa à decisão de facto que consta da decisão recorrida, justificando, em relação a cada facto alternativo, que propõe porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.
Como se afirma no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nº 3/2012 de 08.03.2012, publicado no D.R. I Série, nº 77, de 18.04.2012, “Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório.
A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.
O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto.
Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.”.
Tal como entendimento exarado no seguinte aresto do TRL de 02.12.2020 proc. 3606/15.0T9SNT.L15 (in www.dgsi.pt):
“para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla tem o recorrente nas suas conclusões de especificar quais os pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, quais as provas (específicas) que impõe decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as(…) ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportem entendimento divergente, com indicação de início e termo desses segmentos”.
No mesmo sentido, pronunciou-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-04-2021, proferido no Processo n.º 522/18.7PBELV.E1 (Relator: Paulo Ferreira da Cunha): O ónus que recai sobre o recorrente é de uma impugnação especificada, impugnatória de factos concretos, fazendo em cada ponto referência aos meios de prova que considere relevantes. A lei é exigente quanto ao modo de impugnação do recurso em matéria de facto, de harmonia com o disposto no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, sendo que a modificabilidade da decisão da 1.ª instância apenas ocorre nos termos apontados no art. 431º do CPP, entre os quais a impugnação da matéria de facto nos termos do art. 412.º, n.º 3, do mesmo diploma. Na impugnação da matéria fáctica não basta mera referência ou indicação genérica dos pontos de facto e das provas dissonantes, mas deve especificar-se os concretos pontos de facto e as concretas provas que impõem decisão diversa. (…) Torna-se necessário a indicação expressa dos concretos pontos de facto e das concretas provas que para esses concretos pontos de facto, impõem solução diversa. (destaques nossos).
Ademais, em caso de impugnação alargada e reapreciação da matéria de facto, o tribunal ad quem deverá avaliar “se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte adequado naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si e, consequentemente, a Relação só pode alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais, de manifesto erro na apreciação da prova. O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e da oralidade. (...) Por outro lado, a reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão (Acórdão da Relação de Coimbra de 12-09-2012, proferido no processo n.º 245/09.8 GBACB.C1) destaque nosso.
Como refere o Acórdão deste TRL de 11.03.2021, Proc. nº 179/19.8JDLSB.L1-9 relator ABRUNHOSA DE CARVALHO:
I - A deficiência da fundamentação só constitui nulidade, quando for de tal forma relevante que impeça o conhecimento da razão para determinado facto ter sido dado como provado ou não provado, ou os raciocínios subjacentes à qualificação jurídica da conduta do Arg., ou à determinação das medidas das penas, ou dos montantes indemnizatórios;
II – Os Tribunais da Relação têm poderes de intromissão em aspectos fácticos (art.ºs 428º e 431º/b) do CPP), mas não podem sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto;
III – Normalmente, esses erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar;
IV - Quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes;
(…).”
Volvendo ao caso dos autos, examinadas as conclusões de recurso, secundadas pelas motivações, é mister concluir que os recorrentes não cumprem as exigências previstas nos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º, do CPP não especificando , quais as provas concretas que em seu entender imporiam decisão diversa não fazendo a especificação previstas na alínea b) por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, não indicando concretamente as passagens em que se funda a impugnação que impunham decisão diversa. Mais não indicam com clareza se se há factos alternativos (apresentando a sua versão) a serem dados como provados ou apenas se os factos deviam passar, para o elenco dos factos não provados, face à sua leitura das provas.
Estando a prova gravada, não satisfaz essa exigência a remissão feita em termos genéricos para determinados meios de prova, como por exemplo, depoimentos ou declarações, sem precisar nos termos atrás mencionados as passagens concretas dos mesmos em que se funda a impugnação, mesmo no sentido de pretender que se deem como não provados.
Os recorrentes teriam de indicar, com toda a clareza e precisão, o que é que, na matéria de facto, concretamente, querem ver modificado, apresentando a sua versão probatória e factual oposta à decisão de facto exarada na sentença que impugna, e quais os motivos exatos para tal modificação, o que exige que os recorrentes apresentem o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida e o correlacione comparativamente com o facto individualizado que considera erradamente julgado.
No caso concreto, resulta à evidência da peça recursiva, que os recorrentes, não impugnam de forma válida, amplamente a matéria de facto, não podendo deixar de ser notado que a alegação de erro de julgamento pelos recorrentes é feita de forma vaga, conclusiva e sem a devida concretização.
Ademais, o recurso da matéria de facto não visa a reapreciação de toda a prova produzida, não constitui um segundo julgamento mas, apenas, a detecção e correcção de erros de julgamento, incidindo sobre concretos pontos da matéria de facto, que os recorrentes devem identificar, bem como especificar as concretas provas que demonstram a existência do erro, não sendo de sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra. Uma alteração da matéria de facto deverá ocorrer apenas se a análise da prova o impuser, como decorre do art. 412.º, n.º 3, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal, nomeadamente quando fique demonstrado que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados é, pelo menos, desprovida de razoabilidade .
Nestas circunstâncias, na esteira do douto acórdão da Relação do Porto, de 28/05/2003, acessível em www.dgsi.pt entendemos que este Tribunal só pode sindicar a decisão em matéria de facto no âmbito do art.º 410º, nº2 do CPP, e não amplamente, não havendo sequer lugar a convite ao recorrente para apresentar as especificações em falta.
Efectivamente, a falta das referidas especificações compromete a possibilidade do Tribunal de recurso sindicar a matéria de facto fixada no acórdão recorrido, tornando inviável a modificação da decisão sobre a matéria de facto, e não contendo também o corpo das motivações essa especificação, não se trata de insuficiência das conclusões, mas sim de deficiência substancial da própria motivação ou de insuficiência do próprio recurso, insusceptível de aperfeiçoamento, com a consequência de nesta parte o recurso não poder ser conhecido (neste sentido Ac. TRG de 14.04.2020, proc. 621/19.8T9VNF.G1 in www.dgsi.pt.)
Ademais, um qualquer convite ao aperfeiçoamento, de qua alias, até beneficiou das aludidas conclusões redundaria na concessão de um alargamento do prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso (neste sentido Acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 07.10.2004, 05/07/2007, 04/10/2006, Ac TRL de 24.01.2012, in proc. 708/07.0JDLSB.L1 e os Ac TC n.º 259/2002, de 18.06.2002, e 140/2004, de 10.03.2004, in www.tribunalconstitucional.pt.).
Na verdade, é lapidar a afirmação nesse aresto e no acórdão do Tribunal Constitucional nº259/2002, de 18/6/2002, publicado no D.R. II Série, de 13/12/2002, que aí se cita, quando a deficiência de não se ter concretizado as especificações previstas nas alíneas a), b) e c), do nº3 do art.412º, do CPP, reside tanto na fundamentação como nas conclusões, não assiste ao recorrente o direito de apresentar uma segunda motivação, quando na primeira não indicou os fundamentos do recurso ou a completar a primeira, caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos.
O Tribunal Constitucional posteriormente no acórdão nº140/2004, de 10/3/2004, publicado no D. R. II Série, nº91 de 17/4/2004, veio uma vez mais proclamar que não é inconstitucional a norma do art.412º, nºs 3, al.b), e nº4, do CPP quando interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a rejeição do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências.
Rejeita-se assim, a impugnação alargada da matéria de facto, dada a impossibilidade de se proceder à sindicância da matéria de facto por essa via.
IV.3 (In) Verificação de vícios a que alude o art.º 410.º, n.º2, do CPP, e especial erro notório na apreciação da prova, por violação do princípio da presunção de inocência e in dubio pro reo.
Analisando os fundamentos do recurso em termos de impugnação restrita da matéria de facto a fim de concluir se ocorre algum dos vícios de erro notório na apreciação da prova ou de insuficiência para a decisão da matéria de facto, aliás de conhecimento oficioso (Cfr. Jurisprudência uniformizadora: Ac. Do STJ n.º 7/95 de 19/10/95, in DR de 28/12/1995), previstos no n.º2 do art.º 410.º, do CPP, em especial o “erro notório” na apreciação da prova, traduzido na violação do in dubio pro reo diremos que em comum aos três vícios aí previstos, o vício que inquina a sentença ou o acórdão em crise tem que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum (parte final do n.º2 do referido art.º). Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vício a que alude a alínea a), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), vício endógeno da sentença, com assento exclusivamente na matéria de facto considerada provada (não releva a não provada) ocorrerá, como ensina Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82). quando exista “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher… só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.”
Em suma, se as premissas da sentença, no que toca à matéria de facto, são suficientes para alcançar a conclusão condenatória que se alcançou então não há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; se os factos reportados na sentença como provados, não constituem um acervo factual de elementos, inclusivamente de ordem típica, que consubstanciem o necessário e suficiente para se chegar à conclusão condenatória a que se chegou, então há insuficiência para a decisão da matéria de facto considerada provada. (cf. Fernando Gama Lobo, Código de Processo Penal Anotado, 4.ª edição, Almedina, pág. 954.)
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (vício a que alude a alínea b), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), consiste na “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).
O vício da “contradição insanável da fundamentação só existe quando numa análise global, se possa concluir que em termos lógicos e racionais, a decisão não fica suficientemente esclarecida, dada a colisão entre os vários fundamentos invocados, enquanto o vício da “contradição insanável entre a fundamentação e a decisão” só existirá, quando, perante a mesma análise global e de acordo com o mesmo tipo de raciocínio, seja de concluir que a fundamentação em análise justifica um decisão precisamente oposta ou no mínimo não concordante com a tomada. (cfr. Fernando Gama Lobo, Código de Processo Penal Anotado, 4.ª edição, Almedina, pág. 954.)
O erro notório na apreciação da prova (vício a que alude a alínea c), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), constituiu uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. Ou, dito de outro modo, há tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. citados.
Um tal vício de erro notório na apreciação da prova não se verifica quando a discordância resulta da forma como o tribunal apreciou a prova produzida. O simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal e expressa na decisão recorrida não conduz ao aludido vício.
Se os factos descritos na decisão e considerados provados e não provados se apresentam, aos olhos de um homem dotado de mediana inteligência e experiência da vida, contraditórios ou de verificação impossível, no contexto daquela descrição e a respectiva análise crítica pelo Juiz não obedece a claros princípios de racionalidade, ou viola regras de prova vinculada ou conhecimentos comuns inquestionáveis. (cfr. Fernando Gama Lobo, Código de Processo Penal Anotado, 4.ª edição, Almedina, pág. 958.)
O erro notório na apreciação da prova constitui vício intrínseco e endógeno da decisão, independente de qualquer elemento que lhe seja exterior, designadamente de meios de prova produzidos [ressalvada a desconsideração de prova de valor legalmente vinculado] ou que o deveriam ter sido, e que decorre de aquela assentar em premissas ou chegar a conclusões entre si excludentes ou frontalmente contrariadas por regras científicas ou por qualquer regra da normalidade e experiência.
Veja-se o Ac. STJ datado de 09/05/2024 no processo 54/22.9PEBRR.S1 relator Jorge Gonçalves:
“Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto relevante, acarretando a normal consequência de uma decisão de direito viciada por falta de suficiente base factual, ou seja, os factos dados como provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador. Dito de outra forma, este vício ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto contida no objeto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduziria à solução legal.
Quanto à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada – e assim é porque, como já se disse, todos os vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P., reportam-se à decisão de facto e consubstanciam anomalias decisórias, ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto.
Finalmente, o vício do erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a alínea c) do n.º2 do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, verificando-se, igualmente, este vício quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis. O requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio - ou, talvez melhor dito (se partirmos de um critério menos restritivo, na senda do entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ou do entendimento do acórdão do STJ, de 30.01.2002, Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, sumariado em SASTJ), ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, consistindo, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido.”
Os três vício, consubstanciam, em suma, vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto [constituem vícios da decisão relativa à matéria de facto e não do julgamento], verificando-se quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
No caso dos autos os recorrentes não concretizam em que medida ocorre qualquer dos vícios previstos no art.º 410.º, do CPP limitando-se a proferir afirmações conclusivas como as seguintes: “uma gritante desacertada decisão da matéria de facto” “ na matéria que considerou provada, factos que estão em flagrante oposição com a Prova produzida em Julgamento e com toda a que se encontra entranhada nos Autos” “a Prova que foi utilizada para, ao que aparenta, fundamentar estas factualizações e conclusões exige e impõe precisamente o seu contrário”, sem densificar que provas, que factos estão em flagrante oposição com a prova e que impõe o contrário.
Cingindo-nos ao texto da decisão recorrida conjugada com as regras da experiência comum, para além da matéria de facto provada não ser insuficiente para fundamentar a decisão de direito não resulta que o Tribunal não tenha investigado toda a matéria de facto relevante, não aparentando qualquer contradição ou incompatibilidade entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão (art.º 410.º, n.2 alíneas a) e b) a contrario).
Relativamente à apreciação da prova (alínea c) do mesmo art.º), vemos que o Tribunal no que respeita aos factos provados 1, 3 (até ...) 4, 5 (até rolo) 6, 7 e 9 considerou as declarações de ambos os arguidos e das testemunhas que foram unânimes.; a prova do ponto 8 resultou de documentação dos autos; os pontos 2 e 3 parte final fundaram-se quer no depoimento do arguido FF, bem como do depoimento das testemunhas II, VV pessoa, LL, MM na ... e NN, e da ofendida AA, que mereceram credibilidade ao Tribunal e cuja razão de ciência se mostra referida. Os pontos 10 e 11 no depoimento de ambos os arguidos CC e FF, explicando que não obstante negarem os factos, o tribunal lançou mão da demais prova (depoimentos das testemunhas II, WW, VV pessoa, LL, RR e da ofendida AA que foram unanimes e infirmaram o dito pelos arguidos, explicando porquê, e a razão de ter desacreditado a testemunha MM na ..., em parte, baseando-se ainda nos documentos de fls. 288-299 da ACT bem como a documentação relativas ao auto de notícia, à sociedade arguida, a documentação clínica e d a ACT de fls. 4-32, 39-43, 89-90, 150, 196, 341-342 e 464 a 503. Juntando os pontos 12 e 16 fundamentou o Tribunal no depoimento das testemunhas LR, II, LL, UU e da ofendida AA, indicando a razão de ciência e explicando porque consideraram não ser credível a versão dos arguidos, tendo ainda em conta a documentação supra referida.
Na análise desta prova não se vê que tenham sido violadas as regras da experiência ou que a apreciação seja manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, ou que tenham sido violadas as regras sobre prova vinculada ou das leges artis.
Quanto aos factos 13 a 16 no que respeita ao elemento subjectivos, o Tribunal referiu ter resultado da factualidade provada e que, com segurança a permite inferir, sendo certo que em relação ao facto 16 também se baseou na prova supra referida.
É consensual na doutrina e jurisprudência que para além dos meios de prova directos, o tribunal pode socorrer-se de procedimentos lógicos de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido, válidos também no processo penal, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei, de acordo com o art.º 125.º, do Código de Processo Penal.
Saliente-se que o Tribunal Constitucional no Acórdão 521/2018 de 17/10/2018 (Processo n.º 321/2018 3ª Secção Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro) (in www.tribunalconstitucional.pt) decidiu mesmo não julgar inconstitucional, por violação dos princípios da presunção de inocência e da estrutura acusatória do processo penal, consagrados nos n.ºs 2 e 5 do artigo 32.º, da constituição, o art.º 125.º, do CPP , na interpretação de que a prova indiciária e a prova por presunções judiciais são admissíveis em direito penal e em direito processual penal. A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros.
Ora, nos termos do art. 127º do Cód. Proc. Penal, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” sendo que os factos atinentes ao elemento subjectivo, não sendo em regra, apreensível directamente, decorrendo antes da materialidade dos restantes factos, analisada à luz das regras da experiência comum, constituem inferências que se retiram dos restantes factos provados, das circunstancias objetivas, idóneas claras no que respeita ao grau de representação, previsão e conformação ou não do agente, não sendo demais relembrar que os factos provados 15 e 16 relativos ao elemento subjectivo nem sequer foram objecto de impugnação expressa dos arguidos nas motivações e conclusões dos recursos.
Os factos 17 a 32 foram igualmente fundamentados na prova produzida e devidamente mencionada na motivação. Os factos não provados também eles foram elencados e motivados.
Alegam os recorrentes, ainda que a propósito da questão relativa ao enquadramento jurídico penal dos factos, na conclusão 8.6, a violação do in dubio pro reo, ao dar o Tribunal como provados esses factos, considerando a prova existente nos autos e a produzida em julgamento, não concretizando, porém, quais os meios de prova a que se refere.
É certo que o princípio in dubio pro reo, emanado do princípio político-jurídico da presunção de inocência, até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (art. 32.°, n.° 2, da CRP), vem sendo assumido, genericamente, que se encontra, intimamente ligado ao da livre apreciação da prova (art. 127.º do CPP), do qual constitui faceta, e este último apenas comporta as excepções integradas no princípio da prova legal, ou tarifada, ou as que derivem de uma apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova produzida e ofensiva das regras da experiência comum.
O princípio in dubio não é uma regra para a apreciação da prova, pois que apenas se aplica depois de finalizada a valoração e apreciação crítica da prova. O princípio in dubio pro reo é, assim, apenas uma regra de decisão da prova.
O uso do princípio in dubio pro reo só deve ocorrer quando, após a produção e a apreciação dos meios de prova relevantes, o julgador se defronte com a existência de uma dúvida razoável sobre a verificação dos factos e, perante ela, se lhe imponha decidir a favor do arguido. Não se trata, pois, de uma dúvida hipotética, abstrata ou de uma mera hipótese.
Como princípio que se projecta em sede de apreciação da prova, muito embora também se possa colocar em sede de impugnação ampla da matéria de facto e de reapreciação da prova pelo Tribunal de recurso, o que no caso não se operou, atenta rejeição por falta de cumprimento dos requisitos, a sua violação é também tradicionalmente tratada como erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal), e, por isso, tal como sucede com os demais vícios da sentença, tem que resultar ou decorrer do próprio texto da decisão recorrida.
O princípio in dubio pro reo resulta, igualmente, do princípio da culpa, que se retira dos artigos 18º n.º 2 e 27º da CRP. Com efeito, o princípio da culpa, é um princípio material de direito penal substantivo e sem determinação da culpa, não pode recair sobre quem quer que seja um juízo de censurabilidade.
Neste sentido, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de novembro de 2002, Proc. nº 3316/02-5ª in www.dgsi.pt: “I – O princípio in dubio pro reo constitui um princípio probatório segundo o qual a dúvida em relação à prova da matéria de facto tem sempre de ser valorada favoravelmente ao arguido, e traduz o correspetivo do princípio da culpa em direito penal, sendo a dimensão jurídico processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena”.
Se o juiz não lograr tal convicção, isso equivale a duvidar. Na dúvida in dubio pro reo. A dúvida que fundamenta o apelo ao princípio in dubio pro reo deve ser insanável, razoável e objetivável. (neste sentido Ac. STJ de 12/01/2023 processo n.º 569/20.3JAAVR.P1.S1 relatora LEONOR FURTADO in www.dgsi.pt).
A doutrina e a jurisprudência têm, assim, adotado o critério anglo-saxónico da dúvida razoável (a doubt for which reasons can be given).
Como escreve FERNANDO GAMA LOBO “O princípio in dubio pro reo não é mais do que um corolário da presunção de inocência, consagrado constitucionalmente no art.º 32.º, n.º2 da CRP. Produto da Revolução Francesa, repousa na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art.º 11.º) e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art.º 6.º). Tem na apreciação da prova o seu campo jurídico de aplicação natural e lógico, a qual é da competência do Juiz. Com efeito enquanto não for demonstrada a culpabilidade do arguido, não é admissível a sua condenação. Tal princípio, serve para resolver a dúvida que surjam numa situação probatória incerta. Mas a dúvida tem que ser do juiz e não dos restantes intervenientes processuais(…).” in Código de Processo Penal Anotado, 4.ª edição.
Porém, o Tribunal de recurso, em sede de impugnação restrita, apenas pode censurar o uso feito desse princípio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo - e não os sujeitos processuais ou algum deles - chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido.
Ora, no caso concreto, o Tribunal de 1ª Instância não manifestou qualquer dúvida a respeito de qualquer dos factos dados como provados, nomeadamente, os 1 a 14 impugnados expressamente pelos recorrentes, com apoio nos meios de prova disponíveis e lendo-os criticamente à luz das regras da experiência comum, justificando devidamente a versão que acolheu, como se denota da motivação.
Como vimos supra, o percurso seguido pelo Tribunal a quo na convicção formada e nos motivos dela determinantes, mostra-se, perfeitamente explicado, de forma lógica e objetivável e explicável pelas regras da experiência comum e, nessa medida, porque beneficiou da imediação e da oralidade, deve prevalecer e ser acolhida.
Logo, é patente a falta de fundamento legal para a invocada violação do princípio in dubio pro reo, (art.º 32.º, n.º2, da CRP) nem ocorrendo erro notório a que alude no art.º 410.º, n.º2, al. c), do CPP no que a esse princípio concerne, nem qualquer outros dos vícios a que se reporta o mesmo art.º que é lícito ao Tribunal de recurso conhecer mesmo oficiosamente, porquanto a matéria de facto provada é suficiente para a decisão, não existindo contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, sendo melhor analisado no tratamento da última questão, a integração dos factos no crime de ameaça.
Sendo os vícios de conhecimento oficioso, não permite nem consente o texto da decisão recorrida a afirmação de que ocorre erro notório na apreciação da prova pelo Tribunal recorrido, insuficiência para a decisão da matéria de facto, ou qualquer contradição entre a fundamentação e a fundamentação e a decisão.
Em suma, no caso dos autos e analisado o texto do Acórdão recorrido, na fundamentação de facto e supra transcrita, é notório que o Tribunal evidencia, na sua exposição motivacional uma posição segura e inequívoca em especial relativamente aos factos dados como provados. A fundamentação realizada pelo Tribunal recorrido é lógica e escorreita, despida de contradições, sem vícios de raciocínio, ou erro crasso, e a decisão encontra-se escorada no circunstancialismo fundamentador absolutamente conforme às regras da experiência comum.
Consequentemente improcede o recurso quanto à impugnação da matéria de facto.
Está assim, definitivamente fixada a matéria de facto provada tal qual realizada pelo tribunal da primeira instância.
Improcede, pois, o recurso interposto pelos arguidos também neste segmento.
IV.4- Erro de direito decorrente de errada subsunção dos factos ao crime de violação das regras de segurança, por ausência de verificação dos elementos objectivos e subjectivos do crime de violação das regras de segurança.
Os recorrentes vão dizendo nas conclusões de recurso relativamente a esta questão, de forma conclusiva, que não se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime pelo qual foram condenados em primeira instância, porque no seu dizer não existe prova directa a ligar os recorrentes aos factos, tratando-se de imputações vagas e imprecisas, ocorrendo violação do in dubio pro reo.
No fundo, neste ponto das conclusões os recorrentes voltam a insistir na falta de prova para concluir pela não verificação do crime, pedindo a sua absolvição, o que contende com a impugnação da matéria de facto (ampla e restrita) já por nós tratada e não com o enquadramento jurídico-penal da matéria de facto dada como provada.
Ainda assim, diremos que o Tribunal recorrido enquadrou jurídico-penalmente os factos no crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelos artigos 11.º e 152.º-B, n.º 1, 2 e 3, alínea b), ambos do Código Penal.
De acordo com o artigo 152.º-B, do CP pratica este crime “1 - Quem, não observando disposições legais ou regulamentares, sujeitar trabalhador a perigo para a vida ou a perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde, é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - Se o perigo previsto no número anterior for criado por negligência o agente é punido com pena de prisão até três anos.
3 - Se dos factos previstos nos números anteriores resultar ofensa à integridade física grave o agente é punido:
a) Com pena de prisão de dois a oito anos no caso do n.º 1;
b) Com pena de prisão de um a cinco anos no caso do n.º 2.(…)”
Os bens jurídicos protegidos por este tipo legal são a vida, a integridade física e a saúde psíquica ou mental do trabalhador por conta de outrem (Cf. Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, em anotação ao artigo 152-B, pág. 543 e ss.
No que respeita ao tipo objectivo de ilícito, este tipo de crime pressupõe e exige uma relação de subordinação laboral. O agente deste crime é a pessoa que detém uma posição de “domínio” sobre o trabalhador, no âmbito da actividade de trabalho por este exercida, e sobre a qual recai a obrigação de garantir as condições de segurança no trabalho, previstas pelas respectivas disposições legais, regulamentares ou técnico-profissionais. Sujeito passivo ou vítima é o respectivo trabalhador/empregado”.
Como explica o mesmo autor na obra supra citada, “não constituindo o exercício de uma actividade perigosa, sem as condições que eliminem ou reduzam substancialmente o perigo, uma infracção in se, então parece que estamos perante um crime específico próprio, em que é a relação de subordinação laboral (a posição de domínio e a obrigação de garantir as condições de segurança no trabalho) que confere “dignidade penal” à sujeição do trabalhador à realização de actividades perigosas, sem que estejam cumpridas as respectivas condições de segurança”, fundando-se pois, na relação de vigilância existente entre empregador e trabalhador.
Agente da prática dos crimes de violação de regras de segurança e de omissão de instalação de meios ou aparelhagem em local de trabalho e destinados a prevenir acidentes é a pessoa que detém uma posição de “domínio” sobre o trabalhador, no âmbito de uma relação laboral, sobre a qual recai a obrigação de garantir as condições de segurança no trabalho, previstas em regras legais, regulamentares e técnicas.
Afirma ainda o mesmo Professor que “é um crime de perigo concreto (quanto ao bem jurídico) de lesão da vida ou de lesão grave da integridade física ou da saúde do trabalhador. Por exemplo, o trabalhador que é “obrigado” a realizar uma actividade manifestamente perigosa sem a observância das disposições legais ou regulamentares … ou em condições sem segurança (por exemplo, o trabalhado a grande altura, sem qualquer protecção contra quedas). Mas, diferentemente da generalidade dos tipos legais de crime de perigo concreto (em que, além de se ter de provar a actividade perigosa, tem ainda de se provar que essa actividade efectivamente pôs em perigo o bem jurídico respectivo), neste caso a sujeição do trabalhador à realização de uma actividade manifestamente perigosa (para a vida, integridade física ou saúde) sem serem observadas as respectivas regras ou condições de segurança (isto é, eliminadoras ou minimizadoras do perigo) já co-envolve e constitui um efectivo perigo; o que significa que basta provar a sujeição do trabalhador à prática da actividade perigosa e a não observância das condições em que essa actividade pode ser exercida”.
Estamos perante um crime de resultado, (quanto ao objecto da acção) “na medida em que é necessário para a sua consumação que o agente consiga o resultado de (efectiva) “sujeição” do trabalhador à realização da actividade fora das indispensáveis condições de segurançacom perigo para a vida ou a perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde – cfr. obra supra citada pág. 544.
O tipo objectivo consiste assim na mera sujeição do trabalhador a uma situação de perigo concreto para a vida, o corpo ou a saúde, com a violação de disposições legais ou regulamentares vigentes à data do facto.
No que respeita ao tipo subjectivo de ilícito, o mesmo é tripartido (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 6ª Ed. actualizada, pág. 698):
-o crime previsto no nº 1 do art.º 152.º, n.º1 exige o dolo de perigo: dolo em relação à não observância das regras legais e regulamentares e dolo em relação ao perigo que a actividade imposta ao trabalhador implica para a vida, integridade física ou saúde deste, quando não são cumpridas aquelas regras.
Em relação do dolo do perigo para o trabalhador, a pessoa, sob cujas ordens se encontra o trabalhador, tem que representar o perigo que o trabalhador corre com a actividade que lhe é ordenada, e tem, pelo menos, de se conformar com esse perigo.
Em relação ao dolo da não observância das regras de segurança, legais ou regulamentares, podem levantar-se alguns problemas relacionados com o erro sobre tais regras, tanto mais que este crime não prevê a punição da negligência relativamente à não observância das regras de segurança.
-O nº 2 do art.º 152.º. B, quando o perigo for criado por negligência .
-dolo de perigo e negligência em relação ao resultado agravante (art.ºs 152.º, B, n.ºs 3 e 4).
No dizer do Professor Américo Taipa de Carvalho “além de, obviamente, se referir a actividades perigosas, parece pressupor que o “superior” do trabalhador não cumpre as regras de segurança (apesar de as conhecer), ou de forma consciente não as cumpre integralmente, ou não as cumpre por as desconhecer, sendo certo que, ao ordenar ao trabalhador determinada actividade perigosa, o faz porque está convencido que não há, para o trabalhador, um efectivo perigo (seja porque pensa, errónea e levianamente, que a actividade não é perigosa, seja porque nem sequer representa a perigosidade da actividade ou, se a representa, está convencido que, tendo por exemplo em conta as advertências de cuidado feitas ao trabalhador ou as preocupações de cuidado que este tem na sua actividade, tal perigo não existe)” – cfr. obra supra citada, págs. 545-546.
Ou seja o tipo legal é violado por pessoas sobre quem recai um dever especial que sobre eles impende. Trata-se do dever do cumprimento das normas de segurança e em especial o dever de informação sobre o risco, pois a referida informação é um meio imprescindível para que o trabalho se realize sob os parâmetros adequados de protecção.
Em suma, o crime de violação de regras de segurança é um crime de perigo concreto, específico, omissivo e de violação de dever de garante que que recai sobre a pessoa a quem incumbe directamente evitar a violação do bem jurídico penalmente protegido.
E o preenchimento deste tipo de ilícito tanto pode ter lugar por via de acção como por omissão. Ademais só há responsabilidade se existir nexo de causalidade entre a conduta do agente e o resultado.
Trata-se de um crime de perigo comum, na medida em que atinge um número indiferenciado e indiferenciável de objectos de acção, que corporizam diversos bens jurídicos, como seja, a vida, a integridade física e o património de outrem -, cuja tutela é antecipada para um momento anterior ao resultado, porque a prática de certos actos cria um risco de lesão de bens jurídicos relevantes.
O que se incrimina é a inobservância em si de normas legais, regulamentares ou técnicas.
A norma do artigo 152º-B do Código Penal constitui uma norma penal em branco, porquanto a sua previsão legal não determina quais as concretas acções ou omissões cujo incumprimento poderá determinar a cominação legal, dizendo apenas “não observando disposições legais ou regulamentares”.
Mostra-se, porém, ultrapassada a questão da desconformidade constitucional da remissão para essas normas. Efectivamente, o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional, por violação do princípio da legalidade criminal, o artigo 277.º do CP, na parte em que faz também essa remissão (Acórdãos n.ºs 102/2008 e 119/2008). O Tribunal entendeu, em síntese, que “uma norma penal em branco só é suscetível de violar o princípio da legalidade (no sentido de exigência de lei formal expressa que contemple o tipo legal de crime) e, como seu corolário, o princípio da tipicidade (no sentido da exigência de uma descrição clara e precisa do facto punível), quando a remissão feita para a norma complementar põe em causa a certeza e a determinabilidade da conduta tida como ilícita, impedindo que os destinatários possam apreender os elementos essenciais do tipo de crime.”
Destarte, o legislador juntou as questões postas pelo concurso de normas ou concurso aparente de crimes, estabelecendo uma relação de subsidiariedade entre o tipo legal de violação de regras de segurança e os outros tipos legais, dispondo o artigo 152.º-B que o agente é punido com a pena aí prevista, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
Uma das alterações mais significativas do CP, introduzida em 2007, foi a responsabilização das pessoas coletivas e entidades equiparadas por determinados crimes previstos na parte especial do Código. No catálogo de crimes está o de violação de regras de segurança (artigo 152.º-B) e o de infração de regras de construção, dano em instalações e perturbação de serviços (artigo 277.º).
Efectivamente, dispõe o artigo 11.º, do CP, com a epígrafe - Responsabilidade das pessoas singulares e colectivas, que:
“1 - Salvo o disposto no número seguinte e nos casos especialmente previstos na lei, só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal.
2 - As pessoas colectivas e entidades equiparadas, com excepção do Estado, de outras pessoas colectivas públicas e de organizações internacionais de direito público, são responsáveis pelos crimes previstos nos artigos 152.º-A e 152.º-B, […], quando cometidos:
a) Em seu nome e no interesse colectivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança;
(…)
4 - Entende-se que ocupam uma posição de liderança os órgãos e representantes da pessoa colectiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua actividade.
7 - A responsabilidade das pessoas colectivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes nem depende da responsabilização destes.
(…)
9 - Sem prejuízo do direito de regresso, as pessoas que ocupem uma posição de liderança são subsidiariamente responsáveis pelo pagamento das multas e indemnizações em que a pessoa colectiva ou entidade equiparada for condenada, relativamente aos crimes:
a) Praticados no período de exercício do seu cargo, sem a sua oposição expressa;
b) Praticados anteriormente, quando tiver sido por culpa sua que o património da pessoa colectiva ou entidade equiparada se tornou insuficiente para o respectivo pagamento; ou
c) Praticados anteriormente, quando a decisão definitiva de as aplicar tiver sido notificada durante o período de exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.
10 - Sendo várias as pessoas responsáveis nos termos do número anterior, é solidária a sua responsabilidade.
No direito vigente, as pessoas coletivas podem ser responsabilizadas pela prática dos crimes previstos nos artigos 152.º-B e 277.º, quando cometidos em seu nome no interesse coletivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança – isto é, quando cometidos pelos órgãos e representantes da pessoa coletiva e por quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua atividade – ou quando cometidos por quem aja sob a autoridade das pessoas que ocupam uma posição de liderança, em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem (n.ºs 2, 4 e 5 do artigo 11.º). Sem prejuízo da responsabilidade individual dos respetivos agentes e sem que a responsabilidade da pessoa coletiva dependa da responsabilização destes (n.º 7 do artigo 11.º).
De acordo com o modelo de imputação do facto à pessoa coletiva legalmente estabelecido, o facto criminoso imputa-se à pessoa coletiva e equiparada por via da actuação (em nome e no interesse da pessoa coletiva) de pessoa física que ocupe uma posição de liderança ou de quem aja sob a autoridade de quem ocupa essa posição de liderança, o que acarreta duas consequências fundamentais com relevo processual penal.
Na primeira: há que identificar o agente do facto de conexão determinante da responsabilidade penal da pessoa coletiva, ou seja, há que identificar alguém que ocupe uma posição de liderança ou aja sob a autoridade de quem ocupe essa posição. A responsabilidade penal do ente coletivo depende sempre da atuação das pessoas físicas que o artigo 11.º, n.º 2, explicita e só dessas.
Na segunda: o facto de conexão determinante da responsabilidade penal da pessoa coletiva há de resultar de uma violação dos deveres que incumbem à pessoa física concreta que ocupe uma posição de liderança. Pelo que, em concreto, nem todos quantos ocupem uma posição de liderança poderão vincular a pessoa colectiva ao ponto de esta ser criminalmente responsabilizada.
Revisitando o caso concreto, o Tribunal recorrido considerou verificados os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito criminal 152.º-B, n.º 1, 2 e 3, alínea b), ambos do Código Penal, considerando o perigo criado por negligência.
Efectivamente, no caso a ofendida era trabalhadora, sendo a arguida sua entidade patronal e os arguidos pessoas singulares gerentes da mesma (Cfr. factos provados 1 e 2).
Ademais, resultou ofensa à integridade física grave da trabalhadora (art.º 144.º, als. a) e b) do CP), quando no exercício das sua funções de empregada de lavandaria/dobradora e quando utilizava a calandra dobradora 2, destinada a passar/engomar roupa de cama, após introduzir uma capa de edredon no interior do equipamento, apercebendo-se da existência de uma fronha no interior da capa e, a fim de a retirar, colocou a mão esquerda no interior do equipamento em movimento, ficando com a mão e o respectivo braço esquerdo presos entre a plataforma e o rolo (factos provados 3 a 5), sofrendo a ofendida as lesões descritas em 7 e 8, tendo sido amputado o seu antebraço esquerdo ficando com sequelas daí decorrentes e correspondendo a 60% de Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho, tratando-se de desfiguração grave (factos provados 7 e 8).
No dia e hora dos factos o mecanismo de protecção de dedos da calandra responsável pela paragem automática do equipamento assim que o trabalhador coloque a extremidade dos dedos sob o mesmo encontrava-se desactivado, razão pela qual a mão da trabalhadora ficou presa no equipamento (facto provado 9), sendo que o mesmo equipamento não dispunha de sinalização de segurança nem instruções para operar o mesmo (factos provados 9 e 10).
Resulta provada a ausência de formação adequada à manipulação da calandra ministrada à trabalhadora (facto provado 11), sabendo os arguidos que ela assim desempenhava a sua actividade profissional, nomeadamente sem dispositivo de protecção de dedos, expondo-a em perigo, bem sabendo da existência de normas de segurança para operar a calandra e que deviam dar formação aos trabalhadores, colocando a sua integridade física em perigo que era ainda maior sem o dispositivo de protecção de dedos da calandra (factos provados 13 e 14).
Ademais resultou provado (factos provados 15 e 16 note-se, não impugnados explicitamente pelos arguidos em sede de impugnação da matéria de facto) que Ao actuarem da forma descrita, os arguidos singulares, agiram em seu nome e por conta e no interesse da sociedade arguida, de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que agiam em desconformidade com as regras legais e regulamentares vigentes, não dando a devida formação aos trabalhadores para operarem a calandra, nem se certificando da existência do mecanismo de protecção de dedos da calandra, assim sujeitando AA ao perigo produzido pela sua conduta. E que ao actuarem da forma descrita, os arguidos procederam de forma livre, permitindo que os funcionários operassem a máquina, não dando qualquer formação adequada aos seus funcionários, entre os quais a ofendida, ou instruções adequadas sobre a forma de operar a referida máquina, deixando-os operar na mesma sem o dispositivo de segurança activado, como o fez, agindo sem o cuidado que o dever geral de prudência aconselha, omitindo as precauções de segurança exigidas no manuseamento da máquina em causa, que eram capazes de adoptar e que deviam ter adoptado, para evitar um resultado que representaram, que sabiam ser possível, mas com o qual não se conformaram, dando assim causa a que a ofendida sofresse as lesões supra descritas, sujeitando-a ao perigo concreto e concretizado de perigo com ofensa grave para a sua integridade física.
Destes factos (15 e 16), não expressamente impugnados, resulta que os arguidos admitem que agiram em desconformidade com as regras legais e regulamentares e que não deram a formação aos trabalhadores, nem se haviam certificado da existência do mecanismo de protecção de dedos da calandra, permitindo, ainda assim, que os trabalhadores operassem a máquina, sem o dispositivo de protecção activado, violando os deveres de cuidado que lhes eram impostos, actuando com negligência consciente como decorrente do seguinte segmento “omitindo as precauções de segurança exigidas no manuseamento da máquina em causa, que eram capazes de adoptar e que deviam ter adoptado, para evitar um resultado que representaram, que sabiam ser possível, mas com o qual não se conformaram.”
Relativamente à não observação de disposições legais ou regulamentares, o Tribunal recorrido considerou o disposto no DL 50/2005 de 25/02:
“O artigo 16º, do Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25/02, que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2001/45/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Junho, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho, e revoga o Decreto-Lei n.º 82/99, de 16 de Março, sobre e epigrafe “Riscos de contacto mecânico”, preceitua:
1 - Os elementos móveis de um equipamento de trabalho que possam causar acidentes por contacto mecânico devem dispor de protectores que impeçam o acesso às zonas perigosas ou de dispositivos que interrompam movimento dos elementos móveis antes do acesso a essas zonas.
2 - Os protectores e os dispositivos de protecção:
a) Devem ser de construção robusta;
b) Não devem ocasionar riscos suplementares;
c) Não devem poder ser facilmente neutralizados ou tornados inoperantes;
d) Devem estar situados a uma distância suficiente da zona perigosa;
e) Não devem limitar a observação do ciclo de trabalho mais do que o necessário.
Por outro lado, e quanto ao dever de informar, de acordo com o disposto no artigo 8º do citado diploma legal:
“ 1 - o empregador deve prestar aos trabalhadores e seus representantes para a segurança, higiene e saúde no trabalho a informação adequada sobre os equipamentos de trabalho utilizados
2 - A informação deve ser facilmente compreensível, escrita, se necessário, e conter, pelo menos, indicações sobre:
a) Condições de utilização dos equipamentos;
b) Situações anormais previsíveis;
c) Conclusões a retirar da experiência eventualmente adquirida com a utilização dos equipamentos;
d) Riscos para os trabalhadores decorrentes de equipamentos de trabalho existentes no ambiente de trabalho ou de alterações dos mesmos que possam afectar os trabalhadores, ainda que não os utilizem directamente.
Considerou ainda no que respeita à formação a Lei 102/2009 de 10/09.
“Quanto a formação específica, preceitua o artigo 20º, nº 1 da Lei 102/2009, de 10.09 que o trabalhador deve receber uma formação adequada no domínio da segurança e saúde no trabalho, tendo em atenção o posto de trabalho e o exercício de actividades de risco elevado.
De acordo com o disposto no artigo 15º da citada lei, o empregador deve assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspetos do seu trabalho e deve zelar, de forma continuada e permanente, pelo exercício da atividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador.”
Por último dispõe o artigo 10.º, do Código Penal, sobre a epígrafe “Comissão por acção e por omissão”:
“1 - Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei.
2 - A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.
3 - No caso previsto no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada.”
Considerou o Tribunal recorrido violados, e acertadamente, esses dispositivos legais pelos arguidos:
“Importa pois averiguar se a ofensa à integridade física da ofendida teve origem no comportamento activo ou omissivo dos arguidos.
É incontornável que foi violada a norma de segurança contida no artigo 16º do Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25/02, quanto à calandra que estava a ser manuseada pela ofendida onde ocorreu o acidente, uma vez que apesar de dispor de dispositivo destinado à protecção do operador, evitando o contacto mecânico com os elementos móveis, não estava ligado.
Foram violadas as regras de segurança aplicáveis ao caso e constantes do citado artigo 16° do D. L. n.º 50/2005, por não terem sido cumpridas as regras de segurança exigidas considerando o tipo de equipamento utilizado - funcionamento da máquina e forma como o trabalho era prestado. Estas regras envolviam a necessidade da existência de protectores activos que impeçam o acesso às zonas perigosas ou de dispositivos que interrompam o movimento das máquinas no acesso a essas zonas.
O conceito de “dispositivo de interrupção de movimento dos elementos móveis" a que se refere esta norma, não é coincidente com o botão de paragem de emergência (stop). Todas as máquinas têm um sistema de ligar e de desligar, pelo que a identificação desse sistema com o conceito de “dispositivo de interrupção de movimento dos elementos móveis", levaria ao esvaziamento da previsão legal.
O que a lei estabelece é algo mais exigente - a colocação de dispositivos que, independentemente da vontade do operador, interrompam necessariamente o movimento das partes móveis da máquina, em caso de acesso a essas zonas. Só assim se evita aquilo que aconteceu nos autos.”
É facto que “se o dispositivo em questão não pudesse ser facilmente neutralizado e se estivesse activo e interrompesse o movimento das partes móveis da máquina em caso de acesso a essas zonas ou protectores que impedissem o acesso a essas zonas, o acidente dos autos não teria ocorrido.” Mais resultou igualmente provado que “se tivessem sido implementadas as mencionadas barreiras físicas e electrónicas, estas barreiras operariam automaticamente evitando que o braço da ofendida ficasse preso no interior da máquina, provocando as referidas lesões.”
Ponderou ainda o Tribunal recorrido a conduta da trabalhadora.
Efectivamente, a questão da conduta do trabalhador tem vindo a ser abordada, com reflexos laborais e penais, considerando-se que haverá que distinguir-se várias situações, em particular as seguintes: a) a existência de acção “imprudente” do trabalhador; b) a acção “imprudente” do trabalhador em conjugação com a conduta omissiva do empregador ao não fornecer os meios de segurança necessários e exigíveis ao caso; c) a acção do trabalhador que contraria as ordens expressas do empregador quanto às regras a cumprir e aos meios de protecção a utilizar (conduta temerária).
Todavia, a entanto, a conduta do trabalhador deve ser analisada e enquadrada com as condições gerais em que a actividade laboral é prestada, tendo presentes as funções da trabalhadora constantes do contrato de trabalho, na medida em que recai sobre a entidade empregadora o dever de vigiar o cumprimento das regras de segurança, facultando os meios necessários a tal, sob pena de se criarem mecanismos de “desresponsabilização” inaceitáveis.(Veja-se neste sentido e por todos o Acórdão do TRE de 04/04/2023 processo 58/08.4GCSTB.E1, www.dgsi.pt).
Considerou o Tribunal recorrido, com o que se concorda que “Ainda que a ofendida tenha contribuído também com a sua conduta para a produção do acidente, ao introduzir as mãos no interior da capa de edredon e com isso tenha contribuído para as lesões causadas ao seu braço e a consequente amputação, como veio a ocorrer, a conduta imprudente da ofendida/vitima não exclui a conduta omissiva ao não fornecer os meios de segurança necessários e exigíveis ao caso, que existia antes do facto criminoso tendo aquela conduta omissiva dos arguidos existindo antes do comportamento da ofendida/vítima, e persistindo no tempo contribuiu de forma decisiva para a produção do evento.”
Está provado, ademais, nexo de causalidade entre a conduta omissiva e o resultado como decorre dos factos provados 9 a 16.
É sobre os responsáveis da empresa, ora arguida, também arguidos nestes autos, na qualidade de empregadores, que impendia o dever jurídico de evitar o contacto entre a trabalhadora, ora ofendida, e as partes móveis da máquina.
Tal como dispõe o artigo 15º, do Código Penal“age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a)representar como possível a realização e um facto que preenche o tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa actuação; ou
b)não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto”.
O artigo 15.º, alíneas a) e b), tipifica duas modalidades de negligência: respectivamente a consciente e a inconsciente.
A negligência é encarada quer como elemento da ilicitude quer como elemento da culpa. Ao nível do tipo de ilícito temos a) a previsibilidade objectiva do perigo para determinado bem jurídico; a) a não observância do cuidado objectivamente adequado a impedir as produção do resultado típico; c) a verificação do resultado típico e a imputação objectiva desse resultado à omissão do dever objectivo de cuidado, devendo ter-se em conta a teoria da imputação objectiva, sendo o resultado apenas imputável objectivamente ao agente quando: ele cria um risco de produção do resultado; o risco é proibido, e o risco criado e proibido seja aquele que se realizou no processo causal. Sendo que ao nível do tipo de culpa o juízo de censurabilidade e de imputação ao agente pressupõe a imputabilidade; a previsibilidade subjectiva e a possibilidade de o agente de o agente ter cumprido o dever objectivo de cuidado.
Estamos, no caso em análise, no domínio da negligência consciente (factos provados 12 a 16) porquanto os arguidos representaram como possível a realização de um facto que preenche o tipo de crime, mas actua sem se conformarem com essa realização.
E assim, decidiu acertadamente o Tribunal recorrido:
“Dos factos supra descritos impõem a conclusão segura que as lesões sofridas pela ofendida se ficaram a dever a culpa dos arguidos pois tais normas impunham um dever de cuidado que os arguidos não respeitaram.
Fazendo um juízo de prognose póstuma, e de acordo com a experiência normal, a violação daquelas regras de cuidado é idónea a produzir lesões no corpo e na saúde dos trabalhadores que operam com a aludida máquina. As lesões corporais são consequências normais e típicas da violação do dever objectivo de cuidado imposto pelos referidos preceitos legais em matéria de segurança e saúde no trabalho.
A conduta dos arguidos foi, assim, causal, do acidente que originou as lesões na ofendida sendo que as lesões sofridas por aquela não teriam ocorrido sem a violação das regras de cuidado que se impunham aos arguidos. A violação das regras de cuidado foi, desse modo, causa adequada das lesões.
Assim, a conduta apurada dos arguidos, integra sem dúvida os elementos objectivos do ilícito em causa, tendo agido com negligência, devendo pelo mesmo serem os arguidos condenados.”.
Há, pois que concluir pela verificação do tipo de crime (quer no seu elemento objectivo quer no subjectivo) pelo qual os arguidos foram condenados em primeira instância.
Improcede, assim, também este segmento do recurso.
IV.5-Da inconstitucionalidade da norma constante do art.º 127.º, do CP na dimensão normativa com que foi aplicada pelo Tribunal na Sentença Recorrida.
Argumentam os arguidos recorrentes que:
10.1. Decorre da Sentença Recorrida que o Tribunal a quo, na apreciação da Prova que lhe foi submetida julgar, lançou mão do Princípio da Livre Apreciação da Prova plasmado no Artigo 127.º do Código de Processo Penal.
10.3. Contudo, é inconstitucional a norma do Artigo 127.º do Código de Processo Penal, na dimensão normativa com que foi aplicada na motivação da Sentença Recorrida, segundo a qual a livre convicção do julgador é suficiente para, sem prova directa, sem indicação de factos base e sem indicação de regras de experiência ou de ciência em concreto, adquirir por dedução, ou presunção natural a prova de factos em julgamento, violando, consequentemente, o Tribunal a quo, com a Decisão que proferiu o Princípio da Normalidade na utilização da Prova Indirecta.
10.4. apenas é constitucionalmente conforme à Constituição da República Portuguesa, a dimensão normativa do Artigo 127.º do Código de Processo Penal, segundo a qual as presunções devem ser graves, precisas e concordantes, permitindo que perante os factos conhecidos (ou um facto preciso), se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras de experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros, no valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção e na medida desse valor está o rigor da presunção.
10.5. A Sentença Recorrida afirmando fixados, por presunção natural, factos que nem estão indiciados por quaisquer factos base, nem decorrem, por raciocínio lógico, da aplicação aos factos base de quaisquer regras de experiência, importa uma dimensão materialmente inconstitucional do Artigo 127.º do Código de Processo Penal, sobretudo, como nestes Autos, quando interpretado no sentido de que a Livre Convicção do Julgador é suficiente para - sem prova directa, sem indicação de factos base e sem indicação de regras de experiência ou de ciência - adquirir por dedução, ou presunção natural a prova de factos em julgamento, sem fazer apelo ao peso específico das presunções, que devem ser «graves, precisas e concordantes”.
10.6. Por conseguinte, é Inconstitucional a norma inserta no Artigo 127.º do Código de Processo Penal na dimensão normativa com que foi aplicada na Sentença Recorrida pelo Tribunal a quo por afronta directa ao que se encontra Constitucionalmente consagrado no Texto e Princípios da Constituição da República Portuguesa.
Mais uma vez os recorrentes limitam-se a invocar conclusivamente que o Tribunal Colectivo fez uso de prova indirecta e de presunções, sem invocar quais os factos que foram dados como provados através de prova indirecta e de presunções.
Como decorre da Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o princípio inserto no art.º 127.º, do CPP estabelece três critérios para a apreciação da prova:
1. O primeiro é a apreciação da prova meramente objectiva quando a lei o determina (por exemplo na apreciação do caso julgado (art.º 84.º) na apreciação da prova pericial (art.º 163ª) na apreciação do valor probatório de alguns documentos (art.º 169.º) na confissão integral e sem reservas (art.º 344.º);
2. O segundo também objectivo advém de conhecimentos científicos genéricos e das regras da experiência comum, da normalidade do pensar e agir humano;
3. O terceiro será eminentemente subjectivo que resulta da livre convicção objectivável e motivável do julgador (neste sentido Acórdão do STJ de 18/01/2010, processo 3105/00, in www.dgsi.pt. e Fernando Gama Lobo, Código de Processo penal Anotado, Almedina, 4.ª Edição)
É certo que, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, inserto no art.º 127.º, do CPP, o julgador é livre ao apreciar as provas, estando tal apreciação apenas vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório sendo que “A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspetivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento. Isto é, na outorga, não de um poder arbitrário, mas antes de um dever de perseguir a chamada verdade material, verdade prático-jurídica, segundo critérios objectivos e susceptíveis de motivação racional.” – cfr. Professor Figueiredo Dias, ob. e loc. citados e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08.02.2012, proferido no processo nº 38/10.0 TAFIG.C1, disponível in www.dgsi.pt/jtrc.
Ademais, ainda que os recorrentes não concretizem relativamente a que factos o Tribunal se baseou em presunções e prova indirecta inadmissível, como já referido, para além dos meios de prova directos, o tribunal pode socorrer-se de procedimentos lógicos de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido, válidos também no processo penal, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei, de acordo com o art.º 125.º, do Código de Processo Penal, constando do artigo 349º, do Código Civil, estando conforme a constituição como o já citado acórdão do Tribunal Constitucional no Acórdão 521/2018 de 17/10/2018 (Processo n.º 321/2018 3ª Secção Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro).
Veja-se por todos, também o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18-01-2023 processo 1197/07.4PBMTS.P1, in www.dgsi.pt:
“IV – Encontra-se consolidado o entendimento de que para a prova dos factos em processo penal é perfeitamente legítimo o recurso à prova indireta, também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial.
V – Acresce que a nossa lei adjetiva penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objetivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e de acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.
VI – Naturalmente, quando a base do juízo de facto é indireta, impõe-se um particular rigor na análise dos elementos que sustentam tal juízo, a fim de evitar erros, pois que a presunção de inocência que impera em direito processual penal exige que não seja afetada pela utilização de presunções judiciais.
VII – Assim sendo, a utilização de uma presunção judicial para determinar a culpa pela prática de um ilícito criminal deve ser particularmente sólida, bem fundamentada, não dando margem para o erro judiciário, ou seja, além da prova fundamentada dos factos básicos deve existir uma conexão racional forte entre esses factos e o facto consequência.”
Enquanto a prova directa se refere directamente ao tema da prova, a prova indirecta ou indiciária refere-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova.
A prova indirecta (ou indiciária) não é um “minus” relativamente à prova directa. Pelo contrário, pois se é certo que na prova indirecta intervêm a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência que vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova directa intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho. No entanto, a prova indirecta exige um particular cuidado na sua apreciação, uma vez que apenas se pode extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, por forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis.
A nossa lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova, quer a directa, quer a indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objectivável, valorada por si e na conjugação dos vários elementos de prova, analisados de acordo com as regras da experiência.
Com efeito, nos termos do art. 127º do Cód. Proc. Penal, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” – é o princípio da livre apreciação da prova, no entanto, “não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão” (Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, p. 111).
É certo que os factos subjectivos constantes dos pontos 13 a 16 foram dados como provados porque resultaram da factualidade objectiva provada e que, com segurança permite inferir com base em presunção natural essa motivação, como já analisado supra, não se vendo na operação qualquer violação o aplicação do art.º 127.º, que viole a constituição, sendo que os provados 15 e 16 atinentes ao elemento subjectivo nem tão pouco foram objecto de impugnação pelos arguidos nas motivações e conclusões dos recursos.
No acórdão recorrido não se vê que tenha sido violado o princípio da livre apreciação da prova inserto no art.º 127.º, do CPP, nem o Tribunal aplicou tal princípio numa dimensão materialmente inconstitucional.
Assim, improcede também este segmento do recurso.
IV.6-Da medida da pena aplicada aos arguidos.
Consideram os arguidos que as penas de 1 ano e 4 meses em que foram condenados deviam ser reduzidas, porque desproporcionais e desadequadas, sem indicarem as que julgam mais adequadas o mesmo acontecendo com a pena de multa em que a arguida pessoa colectiva foi condenada.
Para apreciação da questão da determinação da medida concreta da pena importa considerar o disposto nos art.s 40º e 71º do Código Penal.
Responde o art.º 40º do C. Penal, à questão de saber quais são as finalidades, dispondo no seu nº 1 que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, acrescentando no seu nº 2 que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, em concordância com o que estabelece o art.º 71º, nº 1 do mesmo código.
Com a inserção deste dispositivo estiveram no pensamento legislativo somente razões pragmáticas. Tratou-se tão só de dar ao interprete e ao aplicador do direito criminal critérios de escolha e medida das penas e das medidas de segurança, em vista de serem atingidos os fins últimos para os quais todos os outros convergem, que são a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo que a medida da culpa condiciona a própria medida da pena, sendo assim um limite inultrapassável desta (neste sentido Maia Gonçalves, Código penal Português anotado e comentado, 8.ª Edição Almedina Coimbra pág. 291).
Dispõe o art.º 71.º do C. Penal (Determinação da medida da pena) que:
“1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c)Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.” (destaque nosso)
Deste modo, são elementos fundamentais da operação da escolha e determinação da pena, a protecção dos bens jurídicos e a reintegração social do agente, logo, fins de prevenção – geral e especial – por um lado, e a sua limitação pela medida da culpa do agente, por outro.
A prevenção geral reflecte a necessidade comunitária da punição do caso concreto e a culpa, dirigida ao agente do crime, constitui o limite inultrapassável da pena (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 214 e ss.).
É sabido que a determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (de harmonia com o disposto nos art.º 71.º, n.º 1 e 40.º do CP), deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela do bem jurídico em causa e às exigências sociais decorrentes daquela lesão.
Para que se possa determinar o substrato da medida concreta da pena, dever-se-ão ter em conta todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra o arguido, nomeadamente, os fatores de determinação da pena elencados no art.º 71.º, n.º 2, do CP.
Da análise conjugada de tais normativos e como é jurisprudência firmada, a medida da culpa constituirá o limite máximo da medida da pena concreta, funcionando as exigências de prevenção geral como seu limite mínimo, dentro da moldura abstracta aplicável ao tipo de crime, necessário à reafirmação da norma jurídico-penal violada pela conduta do agente.
Por outro lado, concretizando os critérios enunciados no citado art.º 71º, os mesmos poderão ser perspectivados como:
- os atinentes ao grau de ilicitude e que contendem com as referidas exigências de prevenção geral (como sejam o grau de violação ou perigo de violação do interesse ofendido; o número de interesses ofendidos e suas consequências, a eficácia dos meios de agressão utilizados),
- os reportados ao grau de culpa (designadamente, o grau de violação dos deveres impostos ao agente; o grau de intensidade da vontade criminosa; os sentimentos manifestados no cometimento do crime; os fins ou motivos determinantes; a conduta anterior e posterior; a personalidade do agente),
- e os que se referem à influência da aplicação da pena sobre a pessoa do agente, ou seja, às exigências de prevenção especial, mormente, as condições pessoais do agente e a sua situação económica.
Volvendo ao caso dos autos, considerando que o crime é punível apenas com pena de prisão ( 1 a 5 anos de prisão para as pessoas singulares e 120 a 600 dias de multa à taxa diária de €100 para a pessoa colectiva), não há que efectuar a operação prévia de escolha da pena.
Considerou o Tribunal recorrido que:
Resulta da conjugação do disposto no artigo 152º-B nºs 1, 2 e 3, alínea b), com os limites fixados nos artºs 41º, nº 1 e 47º, nº 1 e 90º-B, nº 2 e 5 do Código Penal que a conduta dos arguidos CC e FF é abstractamente punida com pena de 1 a 5 anos de prisão e a conduta da arguida BB, Lda. é punida com a pena de 120 a 600 dias de multa à taxa diária de €100 a €10.000.
No caso “sub judice”, verifica-se que as necessidades de prevenção geral são elevadas, atenta a natureza dos bens jurídicos protegidos, a vida e a integridade física do ser humano.
Quanto às exigências de prevenção especial, reputam-se de diminutas, face à ausência de antecedentes criminais dos arguidos, e encontrarem-se os arguidos, pessoas singulares, integrados, social, profissional e familiarmente.
No que respeita à culpa, os arguidos actuaram com negligência.
O grau de ilicitude do facto, é elevado dada a perigosidade da máquina em causa e a circunstância de ser múltipla a violação de normas de segurança.
Tudo visto e ponderado, e tendo em conta os limites mínimo e máximo abstractamente aplicáveis ao crime de que vem acusados, considera-se adequado à culpa dos arguidos CC e FF e às necessidades de prevenção geral e especial, a aplicação de uma pena de 1 ano e 4 meses de prisão.
Quanto à sociedade arguida, considera-se adequado a aplicação de uma pena de 140 dias de multa.
Quanto a quantitativo da pena de multa, deve atender-se à situação económica e financeira dos arguidos e aos seus encargos pessoais, tendo presente, por um lado, a dignificação da pena de multa enquanto medida punitiva e dissuasora, e por outro, que aquele quantitativo não deve exceder o montante de que o agente possa dispor, sem prescindir da satisfação das suas necessidades básicas.
Assim, atentas as condições económicas e financeiras da sociedade arguida fixa-se o quantitativo diário, no mínimo legal, ou seja em €100,00.”
Analisados os fundamentos do Tribunal recorrido na operação de determinação da medida concreta da pena, conclui-se que o mesmo observou o disposto nos art.s 40º e 71º do Código Penal, mormente os fins das penas e os critérios enunciados neste último normativo.
Importa nesta sede ressaltar que é indubitável que neste tipo de crime são prementes as exigências de prevenção geral, embora diminutas as razões de prevenção especial no caso concreto atenta a total integração (familiar, social e profissional) dos arguidos e a ausência de quaisquer antecedentes criminais(factos provados 17 a 26).
Ponderando todos os factores supra e mencionados pelos recorrentes, entendemos ser justa, proporcional e adequada a medida concreta das penas fixada pelo Tribunal recorrido, fixadas bem perto dos limites mínimos quer da prisão quer da multa, e a pecar, pecam é por serem benévolas e não por excessivas e desproporcionais.
Ademais, quer na operação pela pena de prisão quer na determinação concreta da pena não se vislumbram quaisquer incorreções ou distorções no processo aplicativo ou na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena, nem foram desrespeitados os princípios gerais e as operações de determinação impostas por lei, nem foram violadas regras da experiência.
Assim, não se vê, na ponderação e conjugação dos vários factores e princípios que concorrem na operação de determinação concreta da pena, que o tribunal recorrido tenha revelado desproporção ou inadequação ou incorrido em violação de qualquer preceito, nomeadamente, os art.ºs 40.º, 70.º e 71.º do CP.
Pelo que consideramos adequadas e proporcionais as penas fixadas, mantendo-se a condenação realizada pelo Tribunal a quo.
IV.7-Dos pressupostos da responsabilidade civil no que respeita ao pedido cível.
O Tribunal de 1ª Instância julgou totalmente procedendo o pedido de indemnização civil, condenando os recorrentes/demandados solidariamente a pagarem à Demandante a quantia de € 40.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida dos juros de mora legais desde a data da sentença até integral pagamento.
Fundou a condenação nas seguintes considerações:
“Pelo demandante civil AA foi deduzido pedido cível no valor de €40.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais acrescido de juros à taxa legal até integral pagamento.
Estatui o artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
Nos termos do artigo 483.º do Código Civil, a responsabilidade civil implica a verificação dos seus pressupostos, a saber: facto ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
No caso dos autos existe um facto voluntário dos demandados que se traduziu na violação das regras de segurança, tendo a demandante sido amputada no seu braço esquerdo, tendo-lhe sido atribuída uma incapacidade para o trabalho de 60%, em consequência de ter manobrado uma máquina com o sistema de segurança desactivado.
Tal facto é ilícito porquanto é violador do direito à integridade física da demandante.
Esta conduta é também culposa uma vez que a conduta em questão é merecedora de um juízo de reprovação e censurabilidade por parte da nossa ordem jurídica.
Efectivamente, os demandados podiam e deviam ter agido de outro modo, evitando a prática da conduta, não o tendo porém, feito.
Também se verificou um dano, entendendo-se este como a perda ou diminuição de bens, direitos ou interesses protegidos pelo Direito.
No que concerne a danos não patrimoniais, prevê o artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, que “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.”.
O n.º 4, do mesmo normativo, determina que “O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.”
Nas palavras do Professor Antunes Varela, “o montante da reparação deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida”16.
A finalidade desta indemnização é, pois, a de minorar/atenuar o mal sofrido.
No caso dos autos, o demandante sofreu danos não patrimoniais elevados, consistentes em prejuízos não patrimoniais decorrentes das incapacidades temporárias e permanentes, quer para a vida em geral, quer para o trabalho, e dos sofrimentos físicos e psíquicos passados, presentes e futuros em consequência dos factos.
Por conseguinte, as lesões físicas e psíquicas sofridas não são despiciendas.
Pede a demandante a condenação dos demandados, no pagamento, a título de danos não patrimoniais do valor de €40.000,00.
Pelo exposto, e atenta a factualidade provada, entende o Tribunal que o montante peticionado pela Demandante se mostra adequado à reparação dos danos sofridos, sendo que este valor não foi considerado pelos Demandados como excessivo.
Finalmente, refira-se que existe nexo de causalidade entre o dano verificado e a conduta dos demandados (artigo 563.º do Código Civil), porquanto os factos perpetrados por estes foram causa adequada dos danos não patrimoniais verificados.”
Como resulta do disposto no artigo 129º do CP, o pagamento a que o demandado cível pode ser condenado em processo penal é sempre uma indemnização, que se funda na prática de um facto ilícito, sendo formulado ao abrigo do princípio da adesão previsto no art.º 71.º, do CPP.
Nos termos do disposto no art. 129º do CP, “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.” Sendo a norma jurídica basilar aplicável à situação «sub judice» do disposto no art.º 483.º, do CC,
Afigura-se-nos que a sentença recorrida faz uma análise globalmente acertada da temática da responsabilidade civil, seja teoricamente aos nível dos seus pressupostos, seja na sua aplicação ao caso concreto, merecendo pois a nossa concordância, a qual considerou acertadamente verificados, no caso, todos os pressupostos da responsabilidade civil previsto no art.º 483.º, do CC.
Ademais, considerando as, dores, sofrimentos, lesões e sequelas sofridas pela demandada, o dano estético permanentes, o dano do foro intimo e sexual, o quantum doloris, o défice funciona permanente físico, o dano biológico na sua vertente não patrimonial, a repercussão das sequelas e dos danos nas atividades de lazer e convívio social (ver factos provados 7, 8 e 27 a 36), ponderando a pouco gravidade da culpa da lesada (art.º 570.º, do CC), o montante fixado mostra-se justo e equitativo, tendo presente o disposto nos art.ºs 496.º e 563.º a 566.º, do CC, nada mais havendo a acrescentar por desnecessário.
Assim, improcede igualmente este segmento do recurso.
*
V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em:
V.I- Negar provimento aos recursos interpostos pelos arguidos BB, Lda., CC, FF, confirmando a sentença recorrida.
*
Condenam-se os arguidos/recorrentes nas custas do recurso, fixando-se em 4 ucs a taxa de justiça devida por cada um deles, nos termos dos artigos 513º e 514º, ambos do Código de Processo Penal e tabela III do Regulamento das Custas Processuais aprovado pelo Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de fevereiro com as sucessivas alterações legislativas.
***
Lisboa, 26 de Junho de 2025
Elaborado e integralmente revisto pela Relatora (art.º 94.º n.º2 do C. P. Penal)
Assinado digitalmente pela Relatora e pelos Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos
Os Juízes Desembargadores,
Maria de Fátima R. Marques Bessa
Ana Paula Guedes
Ivo Nelson Caires B. Rosa
_______________________________________________________
1. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995
2. Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção.
3. Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, p. 411
4. Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial, I, 2a ed. Coimbra, 2012, p. 544.
5. cf. Taipa de Carvalho, obra cit., I, p. 543
6. Acordão do TRE de 4.4.2013, in www.dgsi.pt
7. Idem e Acordão do TRP de 24.05.2018, in www.dgsi.pt
8. idem
9. idem
10. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, pg. 306
11. Figueiredo Dias, Pressupostos da Punição, p.71).
12. vide Eduardo Correia, Direito Criminal, Vol. I, p. 428).
13. Perfilhando idêntico entendimento quanto à finalidade prosseguida com a aplicação de uma pena, o Acórdão do S.T.J., de 12.03.1997, in www.dgsi.pt.
14. Neste sentido, Acórdão do STJ, de 17.03.1999, in www.dgsi.pt.
15. VARELA, Antunes, Das Obrigações em Geral, Almedina, 1.º volume, páginas 627 e 628.
16. VARELA, Antunes, Das Obrigações em Geral, Almedina, 1.º volume, páginas 627 e 628.