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DIFAMAÇÃO
PESSOA COLECTIVA
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Sumário
Sumário: (da responsabilidade da Relatora) I. Compulsada a acusação particular, constata-se, tal qual refere a Sra. Juíza no despacho recorrido, que a responsabilidade criminal assacada ao arguido se mostra amparada, exclusivamente, na circunstância de este ser o legal representante da empresa responsável pela edição do programa. II. Consabidamente, a reforma introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4/9, veio consagrar, no art. 11º, n.º 2 do C.P., a responsabilidade penal das pessoas coletivas, mas restrita aos tipos criminais expressamente elencados e o crime ora em crise - difamação - não consta de tal catálogo. III. Tem sido unanimemente entendido pela jurisprudência que a posição de isenção, objectividade e imparcialidade que é exigida aos Tribunais é incompatível com quaisquer poderes/deveres de formulação de recomendações ou convites para aperfeiçoamento, rectificações, ou outras alterações, seja relativamente ao Ministério Público, seja em relação aos demais sujeitos processuais. IV. A entender-se diferentemente, estar-se-ia, deveras e concomitantemente, a legitimar a ingerência judicial nas competências do Ministério Público (e dos assistentes) e a fragilizar as garantias de defesa, constitucionalmente garantidas. V. Rejeitada a acusação por manifestamente infundada, não há lugar a convite para suprimento das deficiências, nem cumpre proceder à devolução dos autos à fase de inquérito, com vista à correção da acusação deduzida.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
1. Nos autos em referência, AA apresentou, em ... de ... de 2024, queixa por factos susceptíveis de integrarem a prática, em ... de ... de 2020, de crime de difamação, agravado pela publicidade e calúnia, p. e p. pelo art. 180º, 182º e 183º do C.P.
2. Requerida e admitida a constituição como assistente, AA deduziu acusação particular contra o arguido BB, na qualidade de representante legal da empresa VV , pela prática de crime de difamação, agravado pela publicidade e calúnia, p. e p. pelos art. 180.º, 182.º e 183.º do C.P.
3. O Ex.mo Magistrado do Ministério, por despacho de ... de ... de 2024, não acompanhou a acusação particular deduzida.
4. Remetidos os autos à fase de julgamento, a Sra. Juíza proferiu, em ... de ... de 2025, o seguinte despacho: «Veio o assistente deduzir acusação particular contra BB, na qualidade de representante legal da empresa VV pela prática de um crime de difamação agravado pela publicidade e calúnia prevista e punida pelos artigos 180.º, 182.º e 183.º do Código Penal. Dispõe o artigo 311.º n.º 2 al. a) do Código de Processo Penal que “se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.” Acrescenta o n.º 3 do mesmo normativo que “para efeitos do disposto no número anterior a acusação considera-se manifestamente infundada: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentem; ou d) se os factos não constituírem crime”. A acusação pode ainda ser manifestamente infundada por inexistência de crime; adiantando, é o caso dos presentes autos. O assistente imputa ao arguido, em suma, que “No dia ... de ... de 2020, entre as 14 horas e as 16 horas e 30 minutos, CC dirigiu-se aos estúdios da TV, para ser entrevistada no programa de televisão designado, "A tarde é Sua", tendo a entrevista sido conduzida pela conhecida apresentadora, DD e enquanto decorre a apresentação são transmitidas e divulgadas imagens e vídeos do assistente e de CC”, que entende difamatórias. Nesta sequência, e uma vez que “a entidade responsável pela edição do programa estava a cargo da empresa VV , NIPC ... cujo representante legal é o aqui arguido”, imputa o crime de difamação agravada ao arguido, pois que a “empresa VV , através do seu legal representante, BB, em seu nome directa ou indirectamente, por conta e no interesse da empresa responsável pela edição do programa, difunde imagens, que surgem no écran, e frases, que apareceram em rodapé durante a entrevista, que se consubstanciaram em comentários e juízos injuriosos, difamatórios e ofensivos contra a pessoa do assistente.” Resulta evidente da acusação particular, que se pretende imputar o crime de difamação à empresa VV ; contudo, e uma vez que o crime de difamação não pode ser cometido por pessoas colectivas, é acusado o arguido BB por ser o representante legal da empresa. Sucede, porém, que se confunde a circunstância de a pessoa colectiva poder ter responsabilidade criminal e, por maioria de razão, o titular de um seu órgão ou o seu representante que actuou por ela com culpa, pois a culpa da pessoa colectiva resulta da culpa da pessoa física que actuou em seu nome e no seu interesse, com responsabilidade objectiva. Cremos que, no caso do arguido, ocorreu a imputação de uma responsabilidade criminal objectiva, apenas por se tratar do representante legal de uma empresa; ora, a responsabilidade objectiva foi removida do direito criminal, não sendo possível a verificação de qualquer crime e consequente aplicação de uma pena sem a formulação de um juízo de censura, de dolo ou mera negligência. Com efeito, em momento algum se menciona que o arguido actuou com culpa, antes, apenas, que foi a empresa que actuou, através do seu legal representante, BB, em seu nome directa ou indirectamente, por conta e no interesse da empresa. E até poderia ser deste modo, não fosse o facto de se mencionar na acusação particular quem se entende serem os verdadeiros agentes do crime: o editor das imagens e a pessoa entrevistada. A acusação particular menciona um funcionário da empresa que procedeu à edição de vídeo, mas cuja identidade não se apurou. É diligência que faria parte do processo investigativo, sobretudo se o dito funcionário de facto existe, e se, como faz crer o assistente, actuou com culpa. Por outro lado, refere a acusação particular que a entrevista decorre com a entrevistada a referir "(. . .) eu estou a ser perseguida por esse homem desde que eu acabei com ele." "o senhor AA, a partir do momento que eu comecei a ver a pessoa que ele é, o mafioso que ele é, e o que ele é capaz de fazer, inclusive ameaçava-me a mim que queria fazer mal às pessoas com quem eu tinha estado." "dizia que ia dar cabo deles, (…)." "Ameaçou-me a mim, foi agressivo comigo (...)" "obcecado," "Esse homem é nojento (…)", pelo que também parece haver matéria difamatória prevista e punida pelos artigos 180.º, 182.º e 183.º do Código Penal, com base nestas declarações. Assim, porquanto não existe responsabilidade objectiva em processo penal e porquanto parecem estar devidamente identificados na acusação particular dois agentes potenciais do crime, rejeita-se a acusação particular por manifesta improcedência da mesma, face ao disposto no artigo 311º, nº2 al a) e n.º 3 do Código de Processo Penal. Decaindo a acusação particular, cairá igualmente o pedido de indemnização cível deduzido pelo assistente. Custas pela assistente, que se fixam em 2UC, nos termos do artigo 515.º n.º 1 al. e) do Código de Processo Penal. Valor da acção cível: € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros). Custas cíveis pelo assistente no que concerne ao pedido de indemnização civil, face do decaimento nos termos do artigo 523.º n.º 1 do Código de Processo Penal. Notifique-se».
5. AA interpôs recurso deste despacho. Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões: «I – O Tribunal a quo, rejeita a acusação particular por manifesta improcedência, com o fundamento na: 1.º Inexistência de crime dada a impossibilidade do crime de difamação ser cometido por pessoas colectivas e ser acusado o arguido BB por legalmente representar a empresa. 2.º Circunstância de ser confundido que a pessoa colectiva pode ter responsabilidade criminal e, por maioria de razão, o titular de um seu órgão ou o seu representante que actuou por ela com culpa, pois a culpa da pessoa colectiva resulta da culpa da pessoa física que actuou em seu nome e no seu interesse, com responsabilidade objectiva. 3.º Ocorrência da imputação de uma responsabilidade criminal objectiva, apenas por se tratar do representante legal de uma empresa e pelo facto da responsabilidade objectiva ter sido removida do direito criminal, não sendo possível a verificação de qualquer crime e consequente aplicação de uma pena sem a formulação de um juízo de censura, de dolo ou mera negligência. 4.º Questão de que em momento algum se menciona que o arguido actuou com culpa, antes, apenas, que foi a empresa que actuou, através do seu legal representante, BB, em seu nome directa ou indirectamente, por conta e no interesse da empresa. 5.º Questão de se mencionar na acusação particular quem se entende serem os verdadeiros agentes do crime: o editor das imagens e a pessoa entrevistada. II – Salvo o devido e melhor respeito, ao contrário do que vem expendido no douto despacho de rejeição não ocorrem os fundamentos que o Tribunal a quo refere. III – Vem alegado o elemento volitivo, isto é, a actuação com culpa do arguido, conforme resulta dos artigos 23.º, 24.º, 25.º, 31 e 37.º da acusação particular e PIC; IV – Relativamente ao elemento subjectivo do crime de difamação (artº 180º, do CP),mostra-se apenas necessário que o agente activo queira com o seu comportamento ofender a honra ou consideração alheias, ou previsse essa ofensa de modo que a mesma lhe pudesse ser imputada dolosamente. Tendo o arguido, permitido a edição e divulgação das imagens e notas de rodapé, imputando à pessoa do assistente, factos ofensivos da sua honra e consideração, agravado pelo facto de o ter feito através das redes sociais e internet, o que facilitou o respetivo acesso e publicidade, bem sabendo da falsidade das imputações feitas, que perduram e perdurarão até ao futuro, tais factos tipificam a prática dos crimes elencados na acusação particular. V – Vem alegada e imputada a responsabilidade da pessoa física que actuou em seu nome e no interesse da pessoa colectiva, cfr. 23.º, 24.º, 25.º, 31.º e 36.º da acusação particular e PIC; VI – Está identificado o agente potencial do crime, isto é, a pessoa física que, neste caso é responsável pela administração da pessoa colectiva e sobre ela detém poderes de gestão e direcção nos termos do disposto no artigo 79.º do Código das Sociedades Comercias, bem como de fiscalização que detém sobre os funcionários da empresa que dirige, cfr. artigo 39.º da acusação particular e PIC. VII – - Está identificado o agente (físico) que praticou por si ou no interesse da pessoa colectiva o tipo objectivo e subjectivo de crime; VIII – Estão narrados os factos, circunstâncias de tempo, modo e lugar, que fundamentam a aplicação ao arguido, BB, de uma pena, bem como o grau de participação que teve, considerando que à data dos factos era o responsável legal da pessoa colectiva e até confessou esses factos conforme decorre da certidão das declarações prestadas em sede de instrução no processo 651/21.0..., no qual prestou depoimento como testemunha; IX –- Estão indicadas as disposições legais aplicáveis; X – Está indicado o rol de testemunhas e a sua identificação, bem como se encontra assinada a acusação particular, os elementos objectivos e subjectivos estão preenchidos. XI – Face à enumeração taxativa do nº3 ao artº 311.º, do CPP (na redacção dada pela Lei nº 59/98, de 25/8) não se mostra possível a rejeição da acusação particular fundada na insuficiência de prova indiciária ou inexistência de crime. XII – A apreciação da suficiência dos indícios ou inexistência de crime, terá de ser requerida pelo arguido quando tiver sido acusado, e constitui competência do juiz de instrução e não do juiz do julgamento XIII – Como é sabido, aplica-se à acusação particular a disciplina legal da acusação deduzida pelo Ministério Público, ex vi do n.º 3 do artigo 285.º do CPP. XIV – Daqui resulta que o modelo processual penal vigente desde 1987 em Portugal se estrutura no princípio do acusatório, embora mitigado com uma vertente investigatória, (estrutura acusatória mitigada pelo princípio da acusação, segundo artigo 2.º n.º 2 ponto 4 da Lei 43/86 de 26 de Setembro, Lei de Autorização legislativa em matéria de processo penal) um dos seus traços estruturais radica exactamente na distinção clara entre a entidade que tem a seu cargo uma fase investigatória e, se for caso disso, sustenta uma acusação e uma outra entidade que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objecto dessa acusação. XV – Estabeleceu-se, normativamente, no artigo 311.º n.º 3 as situações que o legislador entendeu poder o juiz sustentarem uma rejeição da acusação, sem pôr em causa o modelo acusatório estabelecido. XVI – Nesta senda, ficou impedido o juiz de, quando profere o despacho ao abrigo do artigo 311.º, ter um papel equivalente ao Ministério Público ou outro sujeito processual, fazendo um juízo sobre a suficiência ou insuficiência de indícios que sustentam a acusação proferida. XVII – Ora esta taxatividade, legalmente estabelecida, não pode e não deve ser substituída por outra interpretação que não aquela que o legislador quis. XVIII – Assim, o Tribunal a quo ao rejeitar a acusação particular violou o princípio do acusatório. XIX – Os factos pelo quais foi deduzida acusação particular contra o arguido estão tipificados na lei, designadamente nos artigos 180.º, 182.º e 183.º do Código Penal, pelo que constituem a prática de crime. XX – Crime esse que foi, perpetrado pelo arguido BB, conforme referido, além do mais, no artigo 42.º da acusação particular. XXI – Pelo que, salvo o devido e melhor respeito o douto despacho que ora se recorre viola, os artigos, 311.° nº 2 e 3 e 312.° do C.P.P e n.º 5 do artigo 32.º da Constituição da República XXII – A acusação particular deduzida e o PIC cumprem os requisitos quanto à narração dos elementos subjetivosdo crime, com condições de viabilidade e cuja materialidade objetiva que dela consta possa ser provada em julgamento, devendo, portanto, ser considerada e admitida, o que se requer. Assim, pelo exposto, deverá julgar-se provido o recurso, revogando-se o despacho recorrido, substituindo-se por outro que admita a acusação particular e o pedido de indemnização civil deduzidos pelo Recorrente nos presentes autos Caso assim não se entenda, deverão os autos baixar aos serviços do Ministério Público e ali ser o assistente notificado para apresentar nova acusação particular».
6. O recurso foi admitido, por despacho de ... de ... de 2025, a subir imediatamente, nos próprios autos.
7. O Ex.mo Magistrado do Ministério respondeu ao recurso, propugnando pela sua improcedência. Aparta da resposta as seguintes conclusões: «Referente às conclusões III, IV, IX, X, XIII, XVI, XIX e XXII, tais carecem de fundamento uma vez que, atentos os argumentos elencados pela decisão recorrida, não é controvertida a questão de saber se a acusação particular contém o tipo objetivo e subjetivo do crime de difamação, se contém o rol de testemunhas, se está assinada, se foi cumprido o artigo 283.º e 285.º do Código de Processo Penal, se havia ou não indícios suficientes para acusar ou se os factos imputados são qualificáveis como crime de difamação, este não é objeto da decisão recorrida e, consequentemente, não é o objeto do recurso. b. Atenta a redação do artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d) do Código de Processo Penal, o despacho que rejeita a acusação particular por ser manifestamente infundada é um dever do juiz do tribunal de julgamento. c. Tal decisão e norma não são contrários ao princípio do acusatório, porquanto, tal princípio tem como conteúdo essencial uma divisão funcional entre quem acusa e quem julga, representando uma garantia de defesa do arguido e uma coordenada fundamental de divisão de funções no ordenamento jurídico penal, reforçado pela alteração do artigo 311.º do Código de Processo Penal pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto. d. O crime de difamação não é passível de ser cometido por entes coletivos uma vez que do elenco do artigo 11.º do Código Penal não consta o artigo 180.º do mesmo diploma. e. O cometimento de um crime exige uma ação humana positiva ou omissiva, ou seja, compreende qualquer comportamento humano que se tenha produzido sob o domínio da vontade do seu agente e que, mediante nexo causal, tenha como resultado um evento material ou jurídico. f. Na acusação particular, o assistente imputa um crime de difamação ao arguido, ainda que na mesma mencione que o crime foi praticado pela pessoa que profere as expressões difamatórias e um indivíduo não concretamente apurado que seria responsável pelos dizeres em rodapé durante a emissão televisa. g. Para tanto, imputa uma responsabilidade puramente objetiva ao arguido, pela mera circunstância de este ser o legal representante de uma sociedade comercial que produz um programa televiso onde, alegadamente, terá sido cometido um crime, o que não é penalmente admissível. h. Pelo exposto, o presente recurso deve ser liminarmente rejeitado por ser manifestamente infundado».
8. Neste tribunal, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta, louvada na resposta apresentada na primeira instância, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.
9. Cumprido o artigo 417.º, n.º 2 do C.P.P., veio o recorrente reiterar os fundamentos do recurso interposto.
10. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. O objecto do recurso, tal como demarcado pelo teor das conclusões da respectiva motivação, reporta ao exame das questões de saber se a Sra. Juíza incorreu em erro de jure ao rejeitar a acusação particular do assistente por manifestamente infundada e se - a concluir-se negativamente - deveria, de todo o modo, ter sido determinada a devolução dos autos à fase de inquérito para correcção da acusação.
2. Atentemos, antes de mais, no teor da acusação deduzida, que se transcreve: «1. O assistente é uma pessoa pacata, que sempre pautou o seu comportamento com seriedade, honestidade, no cumprimento das elementares regras sociais da boa educação e respeito pelos outros. 2.É uma pessoa respeitadora e respeitada, com bons relacionamentos nos diversos estratos sociais, sendo proprietário e sócio gerente de um estabelecimento comercial denominado "..." situado em .... Posto isto, 3.No dia ... de ... de 2020, entre as 14 horas e as 16 horas e 30 minutos, CC dirigiu-se aos estúdios da TV, para ser entrevistada no programa de televisão designado, "A tarde é Sua", tendo a entrevista sido conduzida pela conhecida apresentadora, DD. 4.Enquanto decorre a apresentação são transmitidas e divulgadas imagens e vídeos do assistente e de CC, as quais ainda que se encontram disponíveis no site da canal de televisão referido supra em 3. 0 que podem ser visualizadas no endereço eletrónico: https :/ /tviplayer. iol. pUprog rama/ a-tarde-e sua/53c6b3883004dc006243ce59/video/5f32d5060cf2b3ce9d347cc1, juntas aos autos. 5.Nesse programa de entretenimento são apresentadas diversas imagens, entre as quais, se destaca a imagem no canto superior direito onde é possível visualizar o assistente de joelhos de frente para CC a efetuar um pedido de casamento, na passadeira vermelha no conhecido Festival ..., na ... em ..., 6.Sendo que, ao longo da entrevista no programa dirigido pela apresentadora DD, são exibidas pelo canal de televisão, imagens publicas e também imagens privadas do assistente, sem qualquer consentimento prestado por este. 7.Ao longo e no decorrer da entrevista, as imagens foram difundidas e divulgadas, tanto para Portugal como para o resto do mundo, pelo canal televisivo TV 8.Com a agravante de serem colocadas notas de rodapé na imagem que estavam a ser transmitida em sinal aberto, alusivas ao assistente, com os seguintes dizeres: "CC recorda como conheceu milionário EE que a perseguiu". "Uma vida de sonho ... que se transformou num pesadelo". "CC foi perseguida e ameaçada por milionário EE". "CC revela o pesadelo que viveu com milionário EE". "CC viveu momentos de terror à mãos de milionário EE". 9.Como se disse, foram sendo sempre acompanhadas com imagens/fotografias de CC e do assistente, nas mais variadas situações de reserva da vida privada e do quotidiano do então casal de noivos; 10. O aqui assistente ficou completamente perplexo, atónito e surpreso com a entrevista televisiva e o vídeo da que o canal de televisão publicou no seu lnstagram e que chegou ao seu conhecimento e se encontra, ainda hoje, disponível no site da Youtube 11. Com a entrevista e a publicação das imagens que podem ser visualizadas por qualquer pessoa e para as quem quer ouvir, proferidas de viva-voz pelo denunciado, imputam expressões, suspeições e palavras diretamente direcionadas ao aqui assistente. 12. As palavras, expressões, suspeições levantadas e escritos proferidas, por diversas vezes, foram as seguintes: "CC recorda como conheceu milionário EE que a perseguiu". "Uma vida de sonho ... que se transformou num pesadelo". "CC foi perseguida e ameaçada por milionário EE". "CC revela o pesadelo que viveu com milionário EE". "CC viveu momentos de terror à mãos de milionário EE". "(...) eu estou a ser perseguida por esse homem desde que eu acabei com ele." "o senhor AA, a partir do momento que eu comecei a ver a pessoa que ele é, o mafioso que ele é, e o que ele é capaz de fazer, inclusive ameaçava-me a mim que queria fazer mal às pessoas com quem eu tinha estado." "dizia que ia dar cabo deles, (. . .)." "Ameaçou-me a mim, foi agressivo comigo (...)" "obcecado," "Esse homem é nojento (…)" 13. Tal situação, atento os meios de difusão, não só, televisiva como também através das redes sociais, teve e tem uma repercussão extremamente negativa no quotidiano do assistente, que se manifestam não só a nível profissional como, também, ao nível emocional e psicológico. 14. Compulsadas, nomeadamente as declarações prestadas em audiência de debate instrutório, no dia ...-...-2024 no âmbito do Processo n.º 651/21.0..., que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo de Instrução criminal de Cascais - Juiz 2, pela ali testemunha BB, Produtor de Programas de Televisão, verifica-se que a entidade responsável pela edição do programa estava a cargo da empresa VV , NIPC ... cujo representante legal é o aqui arguido. 15. Com efeito, foi confessado pelo arguido que todas as imagens que surgem no écran e todas frases que apareceram em rodapé durante aquela entrevista, são da responsabilidade da empresa da qual é o legal representante, no caso concreto, responsabilidade do editor do programa "A tarde é sua", tal como testemunhou o legal representante da empresa VV , em sede de debate instrutório, que, infelizmente, não se recorda quem era o funcionário/a na altura. 16. Ao longo do programa surgem imagens privadas do assistente, sem qualquer consentimento prestado por este. 17. Outrossim, as notas de rodapé que foram colocadas durante o programa, e constantes da acusação particular, imputaram suspeitas, comportamentos e atitudes sobre a pessoa do assistente, suscetíveis de atentarem contra o seu bom nome, honra e consideração do assistente. 18. Bem sabendo, o aqui arguido e legal representante da empresa VV , que as mesmas eram falsas e que se consubstanciaram em comentários e juízos injuriosos, difamatórios e ofensivos contra a pessoa do assistente. 19. Ao longo de toda a entrevista conduzida pela conhecida apresentadora DD, as imagens e frases foram exibidas, difundidas e divulgadas em Portugal e para o resto do mundo. 20. Tal situação, atento os meios de difusão, televisivo e redes sociais, teve e tem uma repercussão negativa no quotidiano do assistente, que se manifestam a nível profissional e pessoal. 21. Importa não olvidar que as imagens, palavras, expressões e suspeições que visaram o assistente, foram difundidas em canal aberto, nas redes sociais e por meios eletrónicos à distância (lnstagram e Youtube), facilitando a sua divulgação e tendo sido visualizados por milhares de pessoas em todo o mundo. 22. Todas as palavras, expressões e suspeições levantadas no decorrer do programa, nos factos supra expostos, contra o aqui Assistente, foram difundidos através do conhecido canal televisivo da TV e do seu Site, nas redes sociais e por meios electrónicos de comunicação à distância (lnstagram e Youtube) e visualizados por milhares de pessoas em todo o mundo, uma vez que, no programa são proferidas expressões e imputação de factos à pessoa do assistente ofensivos da sua honra e consideração, agravado pelo facto de o ter feito através das redes sociais e internet, o que facilitou o respetivo acesso e publicidade, bem sabendo da falsidade das imputações feitas, que perduram e perdurarão no futuro. 23. A empresa VV , através do seu legal representante, BB, em seu nome directa ou indirectamente, por conta e no interesse da empresa responsável pela edição do programa, difunde imagens, que surgem no écran, e frases, que apareceram em rodapé durante a entrevista, que se consubstanciaram em comentários e juízos injuriosos, difamatórios e ofensivos contra a pessoa do assistente. 24. O arguido, ao agir directa ou indirectamente, conforme descrito, fê-lo com plena consciência, conhecimento e objectivo de publicitar e assim prejudicar pessoal e profissionalmente, de ofender a honra, o bom nome, consideração e abalar a reputação profissional do Assistente, pelo que tal propósito foi conseguido. 25. O aqui arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta é prevista e punida por lei. 26. Cometeu, assim, em autoria material, dolosamente e na forma consumada, os crimes de difamação agravado pela publicidade e calúnia prevista e punida pelos artigos 180.º, 182.º e 183.º do Código Penal. 27. No crime de difamação, p. e p. no artigo 180º do Código Penal, está em causa a protecção do bem jurídico da honra, cujo conteúdo é constituído basicamente por uma pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros. 28. A previsão legal do tipo de crime não estabelece requisitos especiais, relativamente ao seu elemento subjectivo, bastando o dolo genérico - querer afectar a dignidade de outrem -, não sendo necessário para o preenchimento do tipo aquilo a que alguma doutrina denomina de animus injuriandi vel difamandi. 29. Portanto, o crime de difamação é um crime de dano, na medida em que se traduz numa imputação de factos objectivamente adequados para desacreditar alguém socialmente, e que é, como tal, compreendido pelo destinatário, o que foi conseguido. 30. Ou seja, não se protege a susceptibilidade pessoal de quem quer que seja, mas tão só a dignidade individual do cidadão, sendo uma das suas características a da sua relatividade, o que quer dizer que o carácter difamatório de determinada palavra ou acto é fortemente dependente do lugar ou do ambiente em que ocorre, das pessoas entre quem ocorre, do modo como ocorre. 31.º Assim, no caso em concreto, é fundamental o lugar em que os factos ocorreram (televisão em sinal aberto), bem como, os "terceiros" a quem o arguido se dirigiu, não podendo por isso negar-se o dolo por parte do arguido, a sua conduta bem demonstra que sabia que estava a preencher um tipo de crime, quis preenche-lo e utilizou para os devidos efeitos os meios que considerou aptos a satisfazer o seu fim, o de ofender a honra e consideração do assistente, abalando a sua reputação profissional. 32. O crime de difamação visa a tutela de um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior. O que se protege «é a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua boa reputação no seio da comunidade.» 33. No que respeita aos elementos objectivos deste tipo de crime, estes incluem a imputação de um facto ofensivo da honra a outra pessoa, a formulação de um juízo ofensivo da honra de outra pessoa ou a reprodução daquela imputação ou desse juízo. 34. E ao nível dos elementos subjectivos, é entendimento unânime na Doutrina e na Jurisprudência que se trata de um crime doloso e que basta para a sua verificação um dolo «genérico», em qualquer das modalidades elencadas no artigo 14.º, do CP. 35. Para a verificação do elemento subjectivo do crime em causa, não se exige que o agente queira ofender a honra e consideração alheias, bastando que saiba que, com o seu comportamento, pode lesar o bem jurídico protegido com a norma e que, consciente dessa perigosidade, não se abstenha de agir. 36. O arguido, na qualidade de legal representante da empresa responsável pela edição do programa, representou que a sua conduta preenchia um tipo de crime, assim como manifestou um esforço de querer dirigida à realização do facto representado, não se coibindo, ainda assim de divulgar todas aquelas expressões e frases. 37. À afirmação do dolo não basta o conhecimento e vontade de realização do tipo, sendo preciso, igualmente, que estejam presentes o conhecimento e a consciência, por parte do agente, do carácter ilícito da sua conduta. 38. Assim, o elemento intelectual do dolo «só poderá ser afirmado quando o agente actue com todo o conhecimento indispensável para que a sua consciência ética se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do seu comportamento», isto é, quando o agente actue com conhecimento da factualidade típica. 39. Efetivamente, ao divulgar aquela entrevista em sinal aberto, as imagens e notas de rodapé, quanto à pessoa do assistente, através dos meios de comunicação social e das redes sociais, bem sabendo que as mesmas não correspondiam à verdade, o arguido conhecia, nem poderia deixar de conhecer, que imputar ao assistente aquelas frases preenchia um tipo legal de crime, in casu, o crime de difamação. 40. Assim, o arguido tinha conhecimento de todos os elementos essenciais do facto típico, da parte objectiva do tipo de crime, tendo agido dolosamente e, portanto, preencheu, nesse aspecto subjectivo, o tipo legal de crime. 41. Com a divulgação de todas as palavras, expressões e suspeições, o aqui arguido, estava a ofender gravemente a honra, dignidade, consideração, do assistente, e foram proferidas e divulgadas com esse intuito. 42. O arguido, com a sua conduta, bem sabia ou devia saber, que, ao editar e divulgar tais factos e tais declarações, estava a ofender a honra, dignidade e consideração do aqui assistente. 43. O arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. 44. Pelo exposto, o arguido cometeu, assim, em autoria material, dolosamente e na forma consumada, o crime de difamação agravado pela publicidade e calúnia prevista e punida pelos artigos 180º, 182º e 183º do Código Penal».
3. Do alegado erro de jure na rejeição da acusação deduzida
Tal como já atrás referido, a Sra. Juíza do Tribunal a quo rejeitou a acusação deduzida, julgando-a manifestamente infundada, ao abrigo do disposto no art. 311º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d) do C.P.P.
Vejamos, então.
«A concepção típica de um processo acusatório implica a estrita ligação do juiz pela acusação e pela defesa, em sede de determinação do objecto do processo, bem como na vertente de ponderação dos poderes de cognição e dos limites da decisão, só assim ficando asseguradas as garantias de defesa, por só desse modo o arguido conhecer, na sua real dimensão, os factos de que é acusado, para que deles se possa convenientemente defender (Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1974, pág. 65).
Contém-se na dimensão ampla de que o processo criminal assegure todas as garantias de defesa, nos termos do n.º 1 daquele art. 32.º, consagrando-se como cláusula geral englobadora de todas as garantias que hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido, ou seja, de todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação (Gomes Canotilho/Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 2007, vol. I, pág. 516).
O processo acusatório, buscando assegurar a imparcialidade do julgador, atribui a órgãos distintos as funções de investigação e acusação, por um lado, e a função de julgamento dessa acusação, por outro. Deste modo pretende assegurar-se a objectividade do julgamento dos factos que são objecto da acusação; a acusação é condição processual de que depende sujeitar-se alguém a julgamento e por ela se define e fixa o objecto do julgamento (Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, tomo III, pág. 117).
Toda esta temática se revela, identicamente, como decorrência do direito a um processo equitativo, de harmonia com o art. 6.º, n.º 3, alínea a), da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
(…) O que se pretende com essas exigências é, afinal, que, em qualquer circunstância, o exercício do contraditório e as garantias de defesa não sejam esquecidos (…)»1
E é, pois, nesta senda que o art. 283º, n.º 3 do C.P.P. determina que a acusação, sob pena de nulidade, deve conter: «a) As indicações tendentes à identificação do arguido; b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c) a indicação das disposições legais aplicáveis; d) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respectiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspectos referidos no n.º 2 do artigo 128.º, as quais não podem exceder o número de cinco; e) A indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação; f) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer; g) A data e assinatura»
Já no que tange à fase de julgamento, o art. 311º, n.º 2 do Código de Processo Penal determina que: «Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) -De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; b)-De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respetivamente. 3- Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: a)- Quando não contenha a identificação do arguido; b)- Quando não contenha a narração dos factos; c)- Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d)- Se os factos não constituírem crime”2.
Tal como se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30 de Maio de 2007, processo n.º 9563/2006-3, in www.dgsi.pt., «Independentemente da análise da bondade desta norma legal – artigo 311º nº 3 do Código do Processo Penal -, o que é um facto é que a acusação só é manifestamente infundada, em conformidade com o disposto nas suas quatro alíneas, o que, em bom rigor, limita-se a impor ao juiz saneador um papel de aferição praticamente formal.
Com efeito, após a reforma processual penal imposta pela Lei nº. 59/98, introduzindo o nº. 3 ao artigo 311º do CPP, o juiz no saneamento na fase de julgamento, não pode apreciar a prova indiciária do inquérito e a sua valorização apenas compete ao Ministério Público. Só em sede de instrução será possível pôr em causa a (in)suficiência dos respectivos indícios.
Com efeito, conforme é referido no Acórdão nº 101/2001 do Tribunal Constitucional, 1ª secção, e proferido no processo nº 402/2000 (transcrição):
"A Lei nº. 59/98, de 25 de Agosto, procedeu a uma densificação/concretização dos critérios operativos do conceito de "acusação manifestamente infundada", elencando-os taxativamente, com o aditamento de um n.º 3 ao artigo 311º do Código de Processo Penal…".
Mais se lê no referido Acórdão e para melhor compreensão do alcance do preceito introduzido – nº 3 do artigo 311º do Código do Processo Penal - e com interesse para a presente decisão, que (transcrição):
"É pacífico na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que o processo penal português tem uma "estrutura acusatória integrada por um princípio de investigação oficial" (cfr., por todos, Figueiredo Dias, Princípios estruturantes do processo penal, in Código do Processo Penal, vol. II, tomo II, Assembleia da República, págs. 22 e 24), estabelecendo-se por força do princípio da acusação que a entidade julgadora não pode ter funções de investigação e de acusação no processo antes da fase de julgamento, podendo apenas investigar dentro dos limites da acusação fundamentada e apresentada pelo Ministério Público ou pelo ofendido (lato sensu).
Dito de outro modo, "rigorosamente considerada, a estrutura acusatória do processo penal implica: (a) proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação; (b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador; (c) proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento, isto é, o órgão que faz a instrução não faz a audiência de discussão e julgamento e vice-versa" (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., pág. 206)».
No que respeita à interpretação conjunta e, tanto quanto possível, harmoniosa dos citados normativos (por um lado, o disposto no art. 283º, n.º 3 e, por outro, o preceituado no art. 311º, n.º 2 do C.P.P.), tem sido defendido na doutrina e na jurisprudência que, nas situações em que não ocorreu a fase de instrução, as nulidades da acusação que, concomitantemente, em julgamento se subsumem a causas de rejeição da acusação, passam a ser de conhecimento oficioso, admitindo e reclamando até intervenção saneadora3.
Como refere Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 7ª Edição, 1996, p. 478 «Acusação manifestamente infundada é aquela que, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade. Caso típico é o dos factos descritos na acusação não integrarem qualquer infracção criminal».
No mesmo sentido, já o Acórdão da Relação do Porto de 15 de Março de 1991, CJ, XVI, Tomo 2, p. 293, considerava que «Manifestamente infundada é a acusação que, por forma clara e evidente, é desprovida de fundamento, seja por ausência de factos que a suportem, seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal, constituindo flagrante injustiça e violência para o arguido a designação do julgamento».
Delineado o paradigma legal aplicável e retomando o caso, é desde logo pacífico que está em causa a imputação ao arguido BB, na qualidade de representante legal da empresa VV , de um crime de difamação, agravado pela publicidade e calúnia, p. e p. pelos art. 180.º, 182.º e 183.º do C.P.
E compulsada a acusação particular, constata-se, tal qual refere a Sra. Juíza no despacho recorrido, que a responsabilidade criminal assacada ao arguido se mostra amparada, exclusivamente, na circunstância de este ser o legal representante da empresa responsável pela edição do programa4.
Consabidamente, a reforma introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4/9, veio consagrar, no art. 11º, n.º 2 do C.P., a responsabilidade penal das pessoas coletivas5, mas restrita aos tipos criminais expressamente elencados.
Todavia, o crime ora em crise - difamação - não consta de tal catálogo.
«Assim sendo, como é, na ausência de previsão legal de tal tipo de crime, facilmente terá de concluir-se que os factos vertidos na acusação não constituem qualquer crime relativamente à pessoa coletiva (…).
E afastada que está a possibilidade da pessoa coletiva em apreço poder ser responsabilizada penalmente no que tange ao crime de difamação, porquanto este não se encontra no elenco dos previstos no citado artigo 11º, nº2, sempre seria inócua a alegação de quaisquer factos de onde resultasse ter alguém - qualquer pessoa singular - atuado em nome e no interesse da pessoa coletiva.
Dito de outro modo, a menção na acusação aos factos integradores dos requisitos previstos nas alíneas a) e b) do nº2, do artigo 11º, só se tornaria necessária se a pessoa coletiva pudesse ser responsabilizada criminalmente.
O que não é o caso»6.
Termos em que se conclui que a acusação, nos termos em que foi deduzida, é manifestamente infundada, não merecendo, neste conspecto, o despacho revidendo qualquer censura ou reparo.
3.2. Das consequências da rejeição da acusação por manifestamente infundada
Supletivamente, a concluir-se pela rejeição da acusação, reclama o recorrente que a Sra. Juíza deveria, de todo o modo, ter determinado a devolução dos autos à fase de inquérito para correcção da acusação.
Todavia, na sequência do já decidido quanto à impossibilidade de responsabilização criminal de pessoa colectiva pela prática de putativo crime de difamação, a alvitrada correcção mostra-se liminar e substantivamente arredada.
Não obstante, sempre se acrescentará que, na sequência das considerações atrás tecidas a propósito da estrutura acusatória do (nosso) processo penal, ademais com assento constitucional7, e no que a este aspecto recursivo respeita, tem sido unanimemente entendido pela jurisprudência que a posição de isenção, objectividade e imparcialidade que é exigida aos Tribunais é incompatível com quaisquer poderes/deveres de formulação de recomendações ou convites para aperfeiçoamento, rectificações, ou outras alterações, seja relativamente ao Ministério Público, seja em relação aos demais sujeitos processuais89.
A entender-se diferentemente, estar-se-ia, deveras e concomitantemente, a legitimar a ingerência judicial nas competências do Ministério Público (e dos assistentes) e a fragilizar as garantias de defesa, constitucionalmente garantidas10.
Vale tudo por dizer que, rejeitada a acusação por manifestamente infundada, não há lugar a convite para suprimento das deficiências, nem cumpre proceder à devolução dos autos à fase de inquérito, com vista à correção da acusação deduzida.
Improcede, assim, totalmente o recurso interposto pelo assistente.
III. DISPOSITIVO
Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:
Julgar improcedente o recurso interposto pelo assistente AA;
Condenar o assistente no pagamento de taxa de justiça que se fixa em 3 UC.
Notifique.
Lisboa, 26 de Junho de 2025
Ana Marisa Arnêdo
Paula Cristina Bizarro
André Alves
_______________________________________________________
1. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26/10/2021, processo n.º 357/20.7PCSTB-A.E, in www.dgsi.pt.
2. Negritos nossos.
3. Na doutrina Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2.ª Ed., pág. 202 e na jurisprudência, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/5/2012, processo n.º 1312/10.0PBOER.L1-5 e do Porto de 13/5/2020, processo n.º 459/17.7GCVFR.P1, in www.dgsi.pt.
4. Confrontar maxime pontos 23º, 24º e 36º da acusação particular transcrita.
5. Anteriormente a responsabilidade penal das pessoas colectivas estava prevenida, somente, em legislação penal extravagante no espectro dos crimes económicos, contra a saúde pública, tributários e contra a propriedade industrial.
6. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 8/1/2025, processo n.º 300/23.1T9CTB.C1, in www.dgsi.pt.
7. Artigo 32º da C.R.P.
8. Neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/12/2008, processo n.º 9421/08 e de 24/5/2012, processo n.º 1312/10.0PBOER.L1-5, do Tribunal da Relação de Coimbra de 7/3/2018, processo n.º 189/14.1PFCBR.C1, e do Tribunal da Relação do Porto de 13/5/2020, processo n.º 459/17.7GCVFR.P1, todos in www.dgsi.pt.
9. É, aliás, neste contexto argumentativo que, a respeito do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, se funda o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2005 de 12/05/2005, publicado no D.R. I Série de 04/11/2005.
10. A propósito e no sentido sufragado os Acórdãos do S.T.J. de 27/4/2006, processo n.º 06P1403, dos Tribunais da Relação de Lisboa, de 30/1/2007, processo n.º 10221/2006-5, de Évora de 5/7/2016, processo n.º 40/14.2GBLGS.E1, de Coimbra, de 9/5/2012, processo n.º 571/10.3TACVL-A.C1) e de Guimarães de 19/6/2017, processo n.º 175/13.9TACBC.G1, todos in www.dgsi.pt.