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IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
IN DUBIO PRO REO
AMEAÇA
MAL FUTURO
Sumário
(Sumário da responsabilidade da Relatora) I. Para ser conhecida, pelo Tribunal de recurso, a impugnação ampla da matéria de facto (erro de julgamento), uma das formas de impugnação da matéria de facto, tem o recorrente, nas suas conclusões, o ónus de especificar os pontos concretos de facto que considera incorrectamente julgados, as provas concretas que impõe decisão diversa da recorrida, as provas que, sendo caso disso, devem ser renovadas, bem como, estando a prova gravada, de transcrever ou indicar a passagem ou passagens das declarações/depoimentos da gravação áudio, que suportem entendimento diverso, com indicação do início e termo desses segmentos em cumprimento do previsto no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP, sob pena de não pode ser conhecida, por incumprimento das formalidades legalmente prescritas, nos referidos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º, do CPP. II. Se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte adequado naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si, a Relação só pode alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais, não podendo subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do Julgador construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade, só podendo a reapreciação da prova, determinar a alteração à matéria de facto se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. III. O uso do princípio in dubio pro reo (regra de decisão da prova) só deve ocorrer quando, após a produção e a apreciação dos meios de prova relevantes, o Julgador se defronte com a existência de uma dúvida razoável sobre a verificação dos factos e, perante ela, se lhe imponha decidir a favor do arguido. Não se trata, pois, de uma dúvida hipotética, abstrata ou de uma mera hipótese. IV. Como princípio que se projecta em sede de apreciação da prova, a sua violação é tradicionalmente tratada como erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal) e, por isso, tal como sucede com os demais vícios da sentença, tem que resultar ou decorrer do próprio texto da decisão recorrida. V. Porém, no caso de impugnação alargada da matéria de facto a Relação, que conhece de facto, pode também censurar a violação do princípio in dubio pro reo se, reapreciada a prova, chegou a um estado de dúvida razoável que se impunha, ainda que o Tribunal recorrido não tenha manifestado ou sentido dúvida. VI. O critério de aferição do conceito de futuro no âmbito do crime de ameaça tem sido comumente discutido na doutrina, como na jurisprudência, sendo hoje pacificamente assumido que o mal futuro cominado na ameaça não se situa necessariamente num futuro longínquo ou mais ou menos distante. É futuro todo o mal que não se inicia com a ameaça ou imediatamente a seguir a ela, independentemente do tempo verbal utilizado, reportado ao momento presente. VII. Haverá ameaça de mal futuro sempre que se não esteja perante uma execução iminente, pelo que o mal anunciado terá a característica de mal futuro desde que não se trate já duma tentativa criminosa. O mal iminente é ainda mal futuro porque é um mal que ainda não aconteceu, embora possa estar próximo ou prestes a acontecer, se o mal se iniciar imediatamente após a concretização da ameaça, estaremos já no domínio da execução do crime ameaçado, ou, pelo menos, da tentativa. VIII. As expressões, no presente do indicativo, proferidas pelo arguido, em voz alta e com foros de seriedade, para o ofendido “vou-te matar, esse carro é meu”, “vou-te matar, queres resolver com ou sem polícia” , verificados os demais elementos do tipo de ilícito e do tipo de culpa do crime de ameaça, reúnem também aqueloutro requisito que o arguido diz não se verificar, relativo à natureza futura do mal ameaçado.
Texto Integral
Acordam as Juízas Desembargadoras, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I- RELATÓRIO
1.
Para ser julgado perante tribunal singular, foi proferido despacho de pronúncia em .../.../2024 pelos factos e crime de ameaça agravada imputado pelo Ministério Público na acusação pública deduzida contra AA, solteiro, nascido em ...-...-1978, filho de BB e de CC, empresário, residente na ....
2.
Realizado o julgamento, foi proferido Acórdão condenatório em .../.../2025 pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Sintra – JC Criminal-Juiz 5, em que foi decidido o seguinte:
V- Decisão:
Pelo exposto decide o Tribunal:
A) Condenar o arguido AA pela prática em ... de ... de 2022, de um crime de ameaça agravada dos artigos 153º e 155º, nº 1, al. a) do CP, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à taxa diária de € 8,50 (oito euros e cinquenta cêntimos) no total de € 935,00 (novecentos e trinta e cinco euros).
B) Condenar o arguido nas custas do processo, com taxa de justiça que se fixa em 2 UC´s.
Notifique e deposite, nos termos do artigo 372.º, n.º 5 do Cód. Proc. Penal. Após trânsito:
Comunique ao registo criminal.
3.
Inconformado com Acórdão Condenatório, o arguido veio interpor recurso, em .../.../2025, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição): I - O presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos. II - O arguido vinha acusado na prática em autoria material de um crime de ameaça agravada p. e p. pelos artigos 153º, n.º 1 e 155º n.º 1, al. a) do CP. III - O tribunal a quo condenou o arguido pela prática de um crime de ameaça agravada p. e p. pelos artigos 153º, n.º 1 e 155º n.º 1, al. a) do CP, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária € 8,50, no total de 935,00€. IV - O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (…). V – O douto tribunal a quo indevidamente deu como provados os factos constantes nos pontos 1º a 4º que constam da sentença recorrida. VI - As duas audiências de discussão e julgamento não decorreram com a devida imparcialidade, que se pretendia, e que existiu um pré-juízo sob o arguido devido à sua “musculada compleição física”. VII - O douto tribunal a quo, no nosso entendimento, assentou a sua convicção exclusivamente nos depoimentos do ofendido e da testemunha DD, cônjuge do ofendido que, supostamente, estava ao telefone com aquele aquando dos factos. VIII - Inexiste nos presentes autos, qualquer registo telefónico que confirme a versão do ofendido, mormente, que se encontrava em chamada com a sua mulher. IX - Apenas existem as parcas declarações do ofendido e da sua mulher. X - Em sede de declarações do ofendido EE, a digna procuradora questionou ao ofendido de quais as expressões concretas proferidas pelo arguido, ao que responde o seguinte (00:06:00 a 00:06:50 do áudio correspondente às declarações de EE): TestemunhaEE: - Como queres resolver? Esse carro é meu! DignaProcuradora: Mais nada? Palavras que ele tenha dito? TestemunhaEE: Como é que queres resolver? Com ou sem polícia? Como é que queres resolver? DignaProcuradora: Mais nada? TestemunhaEE: Mais nada! MmªJuiz: Disse que o ia matar, foi o que Sr. acabou de dizer! TestemunhaEE: Sim… MmªJuiz: Que o ia matar? TestemunhaEE: Eu mato-te e desfaço-te como queres resolver? Sinceramente, não sei o que ele queria resolver, porque eu não percebi. DignaProcuradora: Eu vou-te matar, eu desfaço-te, mais alguma coisa? TestemunhaEE: Como queres resolver com ou sem polícia? DignaProcuradora: Foi isso, só? Mais nada? TestemunhaEE: Sim… XI – Verifica-se que a testemunha espontaneamente respondeu à digna procuradora que o arguido tinha apenas questionado o ofendido de como ele queria resolver a situação se com ou sem polícia. XII - Só após insistência do douto tribunal a quo ao evidenciar que o arguido teria dito que o ia matar é que a testemunha, pouco convicta disse sim. XIII - Apesar de o ofendido ter evidenciado várias vezes que o arguido lhe teria questionado se queria resolver o assunto com ou sem polícia. XIV - Só após insistência do douto tribunal, mesmo depois da digna procuradora ter questionado por duas vezes o que o arguido teria dito à testemunha, é que o ofendido anuí em dizer que o arguido lhe teria ameaçado de morte. XV - Nunca tendo o ofendido evidenciando em concreto o que o arguido lhe disse. XVI - As questões deduzidas pelo douto tribunal certamente quinaram as respostas do ofendido em claro prejuízo do arguido. XVII – Não julgamos que as mesmas tenham a absoluta espontaneidade como afirmado pelo douto tribunal. XVIII - Foi após a digna procuradora ter questionado por duas vezes o ofendido se o arguido não teria dito mais nada e do ofendido EE ter respondido duas vezes “mais nada” que, a meritíssima juiz do tribunal a quo interrompe e afirma “Disse que o ia matar”. XIX - Posteriormente, a defesa questionou ao ofendido, novamente e uma vez que, como se percebe, a testemunha EE não teria conseguido concretizar as afirmações, quais as concretas expressões utilizadas pelo arguido, tendo o douto tribunal a quo interrompido o depoimento e respondendo no lugar do ofendido prejudicando a defesa do arguido em clara violação do princípio da imediação (00:07:40 a 00:08:44 do áudio correspondente às declarações de EE): Mandatáriodoarguido: Já em instâncias da inquirição pela digníssima procuradora disse quais seriam as concretas palavras e eu questiono novamente, se efetivamente o Sr. AA, o aqui arguido disse que o ia matar ou não? MeritíssimaJuiz: Ó Sr. Dr. já disse que sim, não vamos estar aqui a questionar a testemunha o que já disse cinquenta vezes! Já disse não tem dúvidas, ficou estupefacto com a situação inusitada, diz que nem sequer estava mal-estacionado, nem estava a prejudicar o património de ninguém, apesar de ter falado daquela história de esse carro é meu, não foi o que ele disse? TestemunhaEE: Sim. MeritíssimaJuiz: Esse carro é meu, vou-te matar, como é que queres resolver isto, com ou sem polícia, foi isto que foi suficiente para o senhor se pôr dali a andar. Mandatáriodoarguido: E disse também que o Sr. AA vem em direção a si, aproximou-se muito? Ficou a quantos metros de sim? MeritíssimaJuiz: Pelo menos o da fotografia. XX - Nas duas primeiras perguntas feitas pela defesa, diretamente ao ofendido, o douto tribunal a quo, responde no lugar da testemunha, não dando qualquer hipótese à defesa de, enfim, se defender. XXI - O douto tribunal inquinou as declarações do ofendido em prejuízo do arguido em instância da resposta às perguntas feitas pelo MP e pela defesa. XXII - Para além do depoimento da testemunha EE, não se verifica mais nenhuma prova que evidencie de forma clara e sem dúvidas de que o arguido efetivamente ameaçou o ofendido e, muito menos, que o ameaçou de morte. XXIII - No que concerne às declarações da testemunha DD, cônjuge do ofendido, verifica-se que a mesma não concretizou o que o arguido alegadamente disse a EE. XXIV - Apenas referindo que ouviu do outro lado (da chamada) “a voz agressiva do senhor a ameaçar” (00:01:45 a 00:01:50 do áudio das gravações da testemunha DD). XXV - Em sequência a digna procuradora questionou à testemunha DD o que teria ouvido, respondendo a testemunha o seguinte: TestemunhaDD: Ameaçava que ia acabar com ele, que não tinha medo de ninguém, que o meu marido poderia chamar a polícia que quisesse, que não tinha medo de ninguém (00:01:50 a 00:02:05) DignaProcuradora: Então e depois? (00:02:05) TestemunhaDD: Depois o meu marido não falava nada, o que eu ouvia era o meu marido a perguntar “o que é que se passa? O que eu fiz?” Parecia que ele não estava a perceber o que se passava ali (…) O que eu ouvia era só a voz do senhor a ameaçar, mas muito agressiva mesmo (00:02:06 a 00:02:27) DignaProcuradora: É isso que a senhora sabe? (00:02:40) DD: Exatamente (00:02:42). XXVII - O douto tribunal evidenciou à testemunha DD que esta tinha vindo com umas conclusões que retirou do que tinha ouvido, tendo pedido à testemunha para concretizar o que realmente ouviu, tendo esta respondido o seguinte: TestemunhaDD: Eu não disse que eram ameaças, ele falava com um tom agressivo (00:03:25 a 00:03:28) MeritíssimaJuiz: Um tom agressivo? Mas um tom agressivo como assim? (00:03:29 a 00:03:32) TestemunhaDD: Dizia que ia acabar com o EE, eu acabo contigo, eu não tenho medo de ti. Podes chamar quem tu quiseres, podes chamar a polícia que quiseres que eu não tenho medo de ti, eu acabo contigo agora, na hora (00:03:34 a 00:03:45) MeritíssimaJuiz: Mas disse isso por algum motivo? (00:03:46 a 00:03:47) TestemunhaDD: Isso já não sei (00:03:48) MeritíssimaJuiz: A conversa começou aí? (00:03:49) TestemunhaDD: Foi o que eu ouvi do outro lado do telefone. (00:03:50 a 00:03:53). XXVIII – Constata-se que o depoimento da testemunha DD não é coincidente com o depoimento da testemunha EE, porquanto, aquela testemunha evidenciou que o arguido o queria matar, enquanto, a testemunha DD disse que ouviu o arguido a dizer que “iria acabar com ele agora, na hora”. Ora, XXIX – Pelo que se denota divergência entre o depoimento das duas testemunhas que, são marido e mulher, em que um supostamente diz que foi ameaçado de morte e outra que diz que o arguido disse que iria acabar com o marido dela no momento. XXX - Em ambos os casos não estamos perante um anúncio de um mal futuro, mas sim, a admitir-se como verdade que tais expressões foram efetivamente proferidas pelo arguido, o que por mera hipótese académica aqui se coloca, estaríamos perante um anúncio de um mal iminente, mal esse que não aconteceu. XXXI - Não obstante, o depoimento do cônjuge do ofendido não merece a credibilidade que foi dada pelo douto tribunal, tendo em consideração a divergência de declarações prestadas e tendo em consideração a ligação familiar que a testemunha tem com o ofendido. XXXII - No nosso humilde entendimento, não se pode considerar “absolutamente credível o relato do ofendido e da sua mulher.” XXXIII – Estaríamos, no máximo, perante um alegado anúncio de um mal iminente e não futuro, até porque, nem naquele dia, nem até à presente data, nada mais aconteceu com relevância para os presentes autos, entre o arguido e o ofendido, conforme evidenciado pelo cônjuge do ofendido (00:04:14 a 00:04:32): Mandatáriodoarguido: Tem conhecimento se depois desse dia, aconteceu mais alguma coisa com o seu marido que tenha a ver com esta situação? TestemunhaDD: Não Mandatáriodoarguido: Foi só esta situação e daquilo que ouviu, não é? TestemunhaDD: Exatamente. XXXIV – Conforme constatado pela testemunha DD, nada mais sucedeu, para além das alegadas expressões que supostamente o arguido proferiu. XXXV - Diante da incerteza e da falta de convicção demonstradas por ambas as testemunhas, DD e EE, ao relatarem de forma concreta o que teria sido dito pelo arguido, é necessário considerar que subsiste uma dúvida razoável quanto a ter ocorrido, de facto, uma ameaça à vida do ofendido EE. XXXVI - O único elemento probatório que concretizou a alegada ameaça de morte foram as declarações do ofendido e após muita insistência na sua inquirição o que não revela espontaneidade. XXXVII - Nas declarações do arguido, da testemunha DD e da testemunha FF, esta que presenciou os factos in loco, não se retiram qualquer ameaça à vida do ofendido EE. XXXVIII - O douto tribunal a quo, sustentou a sua convicção apenas nas declarações do ofendido, após várias insistências, sendo que o Sr. EE, estranhamente, não sabia por que tinha sido interpelado pelo arguido. XXXIX – Resta nos questionar por que razão o arguido se dirigiria ao ofendido EE, se este nada estava a fazer ao carro daquele. XL - As declarações de EE não colhem a credibilidade que o tribunal a quo quis dar. XLI - Não terá o ofendido EE, depois de se deparar com os danos que fez no carro do arguido, se deslocado à esquadra da PSP de modo a inverter a realidade dos factos? XLII - Certo é que não sabemos se o arguido efetivamente ameaçou a vida do ofendido, temos apenas as declarações forçadas deste para as comprovar XLIII - Foi criada na sentença uma narrativa falsa, que não aconteceu em sede de audiência de julgamento, na parte onde se refere que “não tendo o arguido antecedentes criminais e estando inserido socialmente, apesar da postura que quis manter emjulgamento (sublinhado nosso)”. XLIV - Desconhece o arguido por completo a razão pela qual o douto tribunal a quo censura a sua conduta em tribunal, uma vez que, em todo o julgamento, o arguido sempre foi de extrema educação e sempre respeitou todos os intervenientes processuais, não tendo o tribunal fundamentado o que quis dizer, no âmbito do apuramento da moldura concreta da pena, com a expressão “apesar da postura que quis manter em tribunal”. XLV - Tais considerações constantes da sentença desconectadas com a realidade dos factos apenas revelam o juízo parcial que incidiu sobre o arguido. XLVI - Ainda, em instâncias da inquirição da testemunha FF esta evidencia o seguinte: TestemunhaFF: Entretanto ele chegou, saiu fora do carro e dirigiu-se ao outro senhor (…) entretanto o AA virou-se para ele “você acha bem o que é que está a fazer?” O outro senhor estava com a porta do veículo aberta, com a porta a bater nesse carro, e ele virou-se para o AA com um ar meio agressivo, o que é que tu queres, e o AA agarrou e estacionou o veículo…” (00:03:00 a 00:05:00). XLVII - Quanto a esta testemunha o tribunal a quo evidenciou que depôs desprovida de segurança e de rigor. Sendo que a defesa não acompanha esse entendimento. XLVIII - Efetivamente, a forma de falar da testemunha FF pode carecer de alguma precisão, no entanto, entendemos que o depoimento foi verdadeiro. XLIX - Em nenhuma instância a testemunha FF afirmou que tenha ouvido alguma ameaça proferida pelo arguido, antes evidencia que ouviu o ofendido a injuriar o arguido. L - O arguido AA prestou declarações ao douto tribunal a quo, de uma forma espontânea, clara e credível, pelo que, no nosso entender, as mesmas merecem credibilidade, não devendo serem consideradas falsas como tribunal a quo as considerou na sua motivação. LI - O arguido evidenciou que viu o ofendido a danificar o guarda-lamas da viatura que aquele tinha preparado para ser recebida pelo cliente do seu stand, uma vez que a porta do veículo do ofendido estava a encostar no guarda-lamas. LII - O arguido afirmou o seguinte: ArguidoAA: Eu parei o carro abri a janela e disse efetivamente algumas coisas “olha tu estás a ver o que estás a fazer? Tens noção do que estás a fazer?” E gritei e disse alguns impropérios, claro que sim, ao que rapaz na carrinha disse, “Mas o que é que tu queres? Mas o que é que se passa?” E eu disse, “espera só um bocadinho que a gente já vai falar”. Tinha trânsito, tinha um estacionamento à frente, vou a sair para ir falar com ele ou para falar o que quer que seja, ou para chamar as autoridades, para apurar o que efetivamente ele tinha feito, ele arranca com a carinha e foge. Depois mete-se no meio da rua, fora do carro, a fazer-me gestos e vai se embora (00:03:25 a 00:04:08). LIII - As declarações do arguido e da testemunha FF, são coincidentes, na medida que ambas evidenciam que o ofendido tinha a porta da sua viatura encostada ao veículo do arguido. LIV - Evidencia o tribunal a quo na sua motivação que a testemunha FF alegou que a cor da carrinha seria cinzenta, sendo na verdade um veículo preto. LV - Acontece que, na verdade, o veículo tem um tom azul escuro (conforme Docs. 1 a 4 do Requerimento de Abertura de Instrução), LVI- Porém, é natural que, passados mais de dois anos, as testemunhas não se recordem de um pormenor tão específico como a cor do veículo automóvel pertencente a outra pessoa. LVII - Neste sentido, sim, poderá uma testemunha não se recordar, ao fim de dois anos, da cor de um carro que viu uma única vez, agora, não nos parece que o facto da testemunha EE, não se recordar da expressão que inicialmente constou do seu auto de denúncia “seu gordo, vou-te espetar uma faca, esse carro é meu” ser passível de não ser recordada. LVIII - Tal expressão que o ofendido EE fez constar do auto de denúncia, momentos após o alegado incidente, comprovará que o arguido não declarou uma ameaça de mal futuro, mas sim de mal iminente. LIX - Estranhamente, tal expressão impactante, que deveria ficar na memória, não foi alegada em sede de julgamento pelo ofendido, considerando o douto tribunal a quo um facto natural de uma pessoa ao fim de dois anos não se recordar. LX – Porém, o tribunal a quo afirma que a cor de um carro que apenas se viu uma única vez, já é determinante para apurar da credibilidade de uma testemunha. LXI - Assim, no nosso entendimento, as declarações do arguido e da testemunha FF merecem credibilidade. LXII - O que efetivamente sucedeu foi que o ofendido, encontrava-se distraído com a porta do seu veículo aberta, sendo que esta porta se encontrava a fazer fricção no guarda-lamas do veículo pertencente ao stand do arguido, o arguido verificando tal situação disse “olha tu estás a ver o que estás a fazer? Tens noção do que estás a fazer?”, sendo confrontado com tal situação o ofendido abandonou o local, tendo se dirigido à esquadra da PSP de modo a antecipar-se ao arguido numa eventual queixa que o mesmo poderia fazer contra ele. Esta é a verdade dos factos! LXIII - Pelo exposto, os factos constantes nos pontos 1 a 4 da douta sentença, no nosso entendimento, não poderiam ser dados como provados, uma vez que assentam única e exclusivamente nas declarações do ofendido, que, no nosso entender, não merecem a credibilidade que foi dada pelo douto tribunal a quo, em virtude de não terem sido minimamente espontâneas. LXIV - Tais alegadas expressões, alegadamente proferidas, foram-no o presente do indicativo, revelando o anúncio de um mal iminente e não de um mal futuro. LXV - Deve a douta sentença recorrida ser revogada e em consequência, o arguido ser absolvido do crime a que foi condenado. LXVI - Dispõe o artigo 153º n.º 1 do Código Penal que: “1 - Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.” LXVII - Estabelece o artigo 155.º do mesmo diploma que: “1 - Quando os factos previstos nos artigos 153.º a 154.º-C forem realizados: a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou (...) (...) o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, nos casos dos artigos 153.º (...)” LXVIII - O bem jurídico protegido por este ilícito penal é a liberdade de decisão e de ação. As ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afetam, naturalmente, a paz individual que é a condição de uma verdadeira liberdade. – vd. Taipa de Carvalho in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 342) LXIV – Estamos perante um crime de ação e de perigo concreto e não um crime de resultado, uma vez que o tipo legal não exige que a ameaça provoque medo ou inquietação, bastando que seja adequada a provocar medo, a afetar ou inibir, de modo relevante, a paz individual ou a liberdade de determinação da pessoa ameaçada. LXV - O tipo objetivo assenta na existência de quatro pressupostos: (I) A ocorrência de um mal; (II) Que o mal seja futuro; (III) Que o mal futuro dependa ou apareça como dependente da vontade do agente; e (IV) A adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação no ameaçado ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. LXVI - O mal anunciado tem de constituir crime, ou seja, tem que, em si mesmo, constituir a prática de um facto ilícito típico, o qual tanto pode ser praticado por ação como por omissão. LXVII - Tendo em consideração as declarações da testemunha DD, não podemos considerar que a expressão “vou acabar contigo” possa ser entendida com o pronúncio de um facto ilícito. LXVIII - No que respeita à temporalidade do mal, este tem de ser futuro, o mal não pode ser iminente. LXIX - Exige-se que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação no ameaçado ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. LXX - A ameaça será adequada se, de acordo com a experiência comum, for suscetível de ser levada a sério pelo ofendido, independentemente de o ameaçado ficar, ou não, inquieto ou atemorizado, independentemente do dano eventualmente produzido na sua esfera. LXXI – A respeito do elemento subjetivo, a norma em apreço prevê um tipo doloso, exigindo-se o dolo genérico, em qualquer uma das suas formas, sendo necessário que o dolo se reporte quer à adequação da ameaça, quer à circunstância de chegar ao conhecimento do seu destinatário, sendo, contudo, irrelevante que o agente tenha, ou não, a intenção de concretizar a ameaça - artigo 14º do Código Penal. LXXII - Eventualmente acolhendo a versão de que o arguido efetivamente tenta dito ao ofendido “vou-te matar”, tal expressão reporta-se a uma ameaça atual, dirigida naquele momento, no presente e não um anúncio de um mal a praticar no futuro, ou noutro momento posterior. LXXIII - Também conforme as declarações da testemunha DD, esta evidencia que ouviu o arguido a dizer “vou acabar contigo agora, na hora”, pelo que novamente se verifica uma ameaça atual, presente, e não um anúncio de um mal futuro. LXXIV - A conduta típica deverá provocar insegurança, intranquilidade ou medo no ameaçado, de modo a condicionar os seus movimentos dali em diante, e tal não acontecerá se a ameaça for de um mal a consumar no momento (ou seja, se a «ameaça» for iminente), uma vez que, nesse caso, ou a ameaça entra no campo da tentativa do crime integrado pelo mal objeto da ameaça - sendo nesse caso a conduta punível como tentativa desse crime, se a tentativa for punível - ou não entra e, então, a ameaça logo se esgota na não consumação do mal anunciado, do que resulta não ficar o ofendido condicionado nos seus movimentos dali para a frente. LXXV - Mesmo tendo em consideração os factos que foram dados como provados na sentença recorrida, os quais consideramos indevidamente provados, constata-se que não foram praticados pelo arguido quaisquer atos de execução do mal anunciado. LXXVI - I. Sendo a ameaça um crime contra a liberdade individual, para que ocorra é necessário que o agente provoque no sujeito passivo medo ou inquietação, ou prejudique a sua liberdade de determinação e é ainda necessário que o mal anunciado, objeto da ameaça, seja futuro. Sendo iminente, está-se perante uma tentativa de execução do respetivo ato violento. II. Não comete o crime de ameaça, a pessoa que profere a expressão, em tom de voz alto e sério, "parto-te a cara", por mais não ser do que o anúncio de um mal iminente. – vd. Acórdão da Relação do Porto, processo n.º 0510031, datado de 23.02.2005 disponível emwww.dgsi.pt- Outros acórdãos no mesmo sentido vd. Acórdãos da Relação do Porto datado de 20.12.2006, processo n.º 0645320 e datado de 28.11.2007, processo n.º 0712156 e datado de 08.10.2008, processo n.º 0813605, todos disponíveis emwww.dgsi.ptneste sentido também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 13/12/2023, processo n.º 255/20.4PBCLD.C1 LXXVII - As expressões “vou acabar contigo agora, na hora” resultam num anúncio de um mal iminente. LXXVIII - Assim como as expressões indevidamente dadas como provadas “vou-te matar, esse carro é meu”, “vou-te matar, queres resolver com ou sem polícia” revelam o anúncio do mal iminente, proferidas no presente do indicativo, e ainda para mais quando o ofendido refere que o arguido colocou a mão na bolsa que tinha à cintura, sem posteriormente, nada fazer. LXXIX - Não existindo quaisquer atos preparatórios revela-se que a conduta do arguido não tem qualquer relevância penal, quer por não ter existido qualquer tentativa, quer por não estarmos perante um mal futuro, mas sim iminente. LXXX - Este ilícito exige, portanto, a anunciação de um mal necessariamente futuro, a cometer, de execução protelada e diferida num tempo que há-de vir, não cabendo na previsão legal deste tipo as expressões e verbalizações ameaçadoras que anunciem a prática de um mal presente, de execução eminente, contemporânea ao gesto ou à sua anunciação. LXXXI - Para aferir se as expressões são ou não o anúncio de um mal futuro, é indispensável inseri-las e interpretá-las no contexto, no marco social, na situação em que foram proferidas. LXXXII - No contexto em que a alegada conduta deste arguido ocorreu, reportava-se ao anúncio de um mal iminente. LXXXIII - Assim sendo, não se encontra preenchido o tipo objetivo do ilícito, do crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 155º, n.º 1, alínea a) ex vi artigo 153º, n.º 1, ambos do Código Penal, pelo que o arguido deverá ser absolvido da prática deste crime. Nestestermosenosmaisdedireitosemprecommuidoutosuprimentodev.Exa. deveserconcedidoprovimentoaopresenterecursoe,consequentemente,deveráaDoutasentençarecorridaserrevogada,sendoorecorrenteabsolvidodocrimeemquefoicondenado. Porém,V.Exasmelhordecidirão,comosempre,acostumadaJUSTIÇA!
4.
O recurso foi admitido pelo seguinte despacho, proferido em .../.../2025 : Uma vez que a decisão é recorrível (arts. 399.º, do Cód. de Proc. Penal), o recorrente tem legitimidade e interesse em agir (art.º 401.º, n.º 1 al. b), do Cód. de Proc. Penal), e o requerimento de interposição é tempestivo e está motivado (art.º 411.º, n.ºs 1, al. b) e 3 do Cód. de Proc. Penal), nos termos do artigo 414º, nº 1 do c.p.p., admito o recurso interposto pelo arguido o qual subirá imediatamente nos próprios autos (arts. 406.º, n.º 1, do Cód. de Proc. Penal), e com efeito suspensivo (art. 408.º, n.º 1, al. a) do Cód. de Proc. Penal), Cumpra-se o disposto nos arts.º 411.º, n.º 6 e 413º, nºs 1 e 3, do Cód. de Proc. Penal. Notifique.
5.
O Ministério Público veio apresentar resposta ao recurso em .../.../2025, pedindo a improcedência do recurso, transcrevendo-se as partes relevantes: Da análise das conclusões do recurso interposto pelo arguido AA resulta que este pretende submeter a este Venerando Tribunal a apreciação das seguintes questões: i)Impugnação da matéria de facto, que o recorrente entende ter sido erradamente julgada; ii)Violação do princípio in dubio pro reo; iii)Do não preenchimento dos elementos típicos do crime de ameaça. Como se foi já adiantado, entendemos que não pode o recurso merecer provimento. Questão Prévia Do incumprimento do disposto no artigo 412.º, do Código de Processo Penal Dispõe o artigo 412.º, do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Motivação de Recurso e Conclusões”, que: “1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. 2 -Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada. 3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas. 4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.” Como é orientação pacífica da doutrina e da jurisprudência, as conclusões de recurso são extraordinariamente importantes, sendo que a razão de ser da exigência da sua formulação é, por um lado, apelar ao dever de colaboração das partes e dos seus representantes, a fim de tornar mais fácil, mais pronta e mais segura a tarefa de administrar a justiça, e, por outro, fixar a delimitação objectiva do recurso, indicando concreta e precisamente as questões a decidir pelo tribunal superior. A elaboração das conclusões de recurso exige, pois, especial cuidado, devendo as mesmas ser concisas, precisas e claras.(…) Daqui se conclui que as conclusões são, pois, a enunciação resumida dos fundamentos do recurso, as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação, sendo elas que delimitam o objecto do recurso, como acima se referiu. Isto posto, da leitura do recurso interposto pelo arguido AA, facilmente se constata que as conclusões apresentadas mais não são do que a reprodução (praticamente ipsis verbis) da motivação apresentada. Assim sendo, forçoso é concluir que as conclusões extraídas do recurso do arguido AA não obedecem aos requisitos formais e materiais exigidos pelo artigo 412.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal. Com efeito, tal circunstância – a falta de concisão – implica a falta de conclusões e a falta de conclusões equivale à falta de motivação (nos termos dos artigos 412.º, n.º 1, e 420.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal). Acresce que Também nem na motivação, nem nas conclusões do recurso a que ora se responde se surpreende, desde logo, uma única norma pretensamente violada, e, muito menos, a indicação do sentido com que o tribunal recorrido interpretou cada norma e com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada, sendo certo que, desde logo no introito do seu recurso fez o arguido constar que o mesmo versa sobre matéria de facto e de direito. Aliás, propondo o recorrente uma interpretação da matéria de facto diferente daquela que foi tomada pelo Tribunal (já que, da leitura do recurso se conclui que o mesmo entende que não poderá ter-se por preenchido o tipo de crime de ameaça agravada, pelo qual foi condenado nos autos), trata-se de questão de direito, pelo que deveria o recorrente ter observado o disposto na citada norma. (…)Assim, e pelo que fica dito, salvo o devido respeito por diferente entendimento, deve o arguido ser convidado a aperfeiçoar as conclusões do recurso, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 414.º, n.º2, in fine, e 417.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal, sob pena de o mesmo vir a ser rejeitado. Da Impugnação da Matéria de Facto Entende o recorrente que foram incorrectamente julgados os 1. a 4. dos factos provados, indicando as suas próprias declarações, as do ofendido e as das testemunhas DD se FF como sendo os meios de prova que imporiam ao Tribunal decisão diversa. Desde já diremos que não assiste razão ao arguido, pois que, considerar-se não provados tais factos, como pretende, seria desconsiderar, por completo, a prova produzida em audiência de julgamento e (…) Ora, a sentença é devidamente fundamentada quanto à convicção formada pela Meritíssima Juiz a quo e a fundamentação ora transcrita retrata, de forma fiel, o que se passou na audiência de julgamento e o que cada um dos intervenientes ali relatou, pelo que para ela se remete por ser absolutamente despiciendo estar a repetir o que ali se plasmou. Donde, deverá a matéria de facto considerada como demonstrada manter-se incólume, por ser a decisão consentânea com a prova produzida em audiência de julgamento e com a demais carreada para os autos. Acresce que Dada a clareza da fundamentação de facto que se acaba de transcrever, que bem descreve toda a prova produzida em audiência de julgamento, escusamo-nos de esgrimir qualquer outro argumento, em reforço da bondade e assertividade do Tribunal recorrido na análise e ponderação da prova carreada para os autos e produzida em audiência de julgamento e da justeza da decisão da matéria de facto, dada como provada e não provada na sentença recorrida. Não colhem, assim, as críticas que são feitas pelo arguido recorrente quanto a tal análise e ponderação da prova, sendo que não é despiciendo realçar que para que este Venerando Tribunal pudesse proceder à pretendida alteração da decisão fáctica tomada na sentença revidenda, era necessário que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento não apenas aconselhasse, ou permitisse, ou consentisse, uma tal alteração, mas, isso sim, impusesse essa alteração da decisão a que o tribunal recorrido chegou, fundamentadamente, sobre a matéria de facto (cfr. o disposto no artigo 412º, nº 3, al. b), do Código de Processo Penal). Como bem se escreve no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 15-03-2015“se, perante determinada situação de facto em concreto, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis, e o juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente (tenha ele, nos autos, a posição processual que tiver), ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efetuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que por ela opte, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova”. Acresce que Não é também despiciendo realçar que, de acordo com o disposto no artigo 127.º, do Código de Processo Penal, “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Na formação da convicção do julgador entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova (seja áudio, seja mesmo vídeo), por mais fiel que ela seja, das incidências da audiência, não intervindo apenas factores racionalmente demonstráveis, sendo por vezes fulcrais para a formação da convicção do julgador “elementos intraduzíveis e subtis”, tais como “aspectos comportamentai sou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores”. De facto, só a oralidade e a imediação permitem o indispensável contacto vivo com o arguido e demais intervenientes processuais, e a recolha da impressão deixada pela(s) sua(s) personalidade(s). Donde, só elas permitem, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabelece-se com o Tribunal de Primeira Instância, e daí que a alteração da matéria de facto fixada deverá ter como pressuposto a existência de elemento que pela sua irrefutabilidade não possa ser afectado pelo fundamento do princípio da imediação.(…). Em suma, lendo a sentença recorrida, na motivação da respetiva decisão fáctica, verificamos, sem dificuldade, que as provas produzidas não impõem uma decisão diversa daquela que foi proferida em primeira instância. Vale isto por dizer que o Tribunal a quo não decidiu ao arrepio da prova produzida, ou contra tal prova, nem deu como provado determinado facto com fundamento no depoimento de uma determinada testemunha, e, analisado tal depoimento, constata-se que a dita testemunha se não pronunciou sobre tal facto, ou que, pronunciando-se, disse coisa diferente da afirmada na decisão recorrida, nem, por último, o tribunal recorrido valorou a prova produzida contra as regras da experiência, ou de modo aleatório e discricionário. Pelo contrário, a Meritíssima Juiz a quo fez análise ponderada de toda a prova produzida e carreada para os autos, mormente as declarações do arguido, do ofendido e demais testemunhas e de todos os documentos juntos ao processo, tendo procedido ao exame crítico dos diversos meios de prova, de modo claro e apreensível, esclarecendo os motivos pelos quais deu credibilidade a tais meios de prova, tudo por forma a permitir (como permite), quer aos destinatários diretos da decisão, quer à comunidade em geral, perceber os seus raciocínios, que a levaram a concluir pela verificação dos factos constantes das acusações pública deduzida nos autos, tal como fez constar na sentença, nos moldes que supra se transcreveram. Por outras palavras, o Tribunal a quo valorou devidamente a prova que foi produzida na audiência de discussão e julgamento, seguindo critérios racionais, devidamente explicitados, e seguindo as regras da experiência comum (da lógica comumente aceite, ou seja, da lógica do “Homem médio” suposto pela ordem jurídica). Por último, cumpre salientar que, não só nenhum dos elementos de prova invocados pelo recorrente impõe decisão diversa da recorrida, como, ao invés, avaliados de modo global e complexivo, não poderiam deixar de conduzir a outra decisão que não fosse considerar como provada (e não provada) a factualidade vertida na sentença em crise nos exactos termos em que ali se fez constar. Deve, pois, manter-se intocada a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida, improcedendo o alegado pelo recorrente, pelos motivos expostos. Da Alegada Violação do Princípio do In Dubio Pro Reo Alega ainda o arguido AA que o douto Tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo. Porém, e salvo o devido respeito por diferente opinião, in casu, não havia que fazer qualquer apelo a tal princípio, pois que, e como é sabido, o mesmo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa. Vale isto por dizer que, não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo (uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da Constituição da República Portuguesa, contempla), impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso – e só no caso - da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir a favor do arguido. Assim, se uma vez produzida toda a prova, persistir uma dúvida razoável sobre determinados factos no espírito do julgador, esse non liquet na questão da prova tem de ser resolvido a favor do arguido, sendo que um determinado facto será dado como não provado se lhe for desfavorável, e provado se justificar o facto ou for excludente da sua culpa. Com efeito, sendo o direito penal um direito de culpa, a qual representa um limite intransponível para a decisão, “os princípios da presunção de inocência e de in dubio pro reo constituem a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta, como suporte axiológico-normativo da pena”. Aliás, e como ensina o Prof. Figueiredo Dias, “relativamente ao facto sujeito a julgamento, o princípio [in dubio pro reo] aplica-se sem qualquer limitação, e, portanto, não apenas quanto aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude, de exclusão da culpa e de exclusão da pena bem como às circunstâncias atenuantes, sejam elas «modificativas» ou simplesmente «gerais». Em todos estes casos a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de atuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido”. Contudo, para preenchimento e aplicação daquele princípio, não basta (como parece entender o recorrente) dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou que derivem da sua interpretação da factualidade revelada nos autos, bem como também não é suficiente a circunstância de terem sido apresentadas em audiência versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes. Por outra via, não é toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio, mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada. Em suma, o princípio in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Volvendo ao caso dos autos, do cotejo da fundamentação da sentença recorrida, com facilidade se alcança que a Meritíssima Juiz a quo não foi assolada por qualquer tipo de dúvida, pois que – e bem – considerou demonstrado que o arguido, nas circunstâncias de tempo e lugar em causa nos autos e descritas na sentença, praticou os factos que lhe vinham imputados na acusação pública, nos moldes como fez constar no elenco dos factos provados, já que tal foi a factualidade demonstrada pelos meios de prova constantes dos autos. Assim sendo, não havendo qualquer dúvida, não tinha a Meritíssima Juiz a quo que decidir a favor da recorrente, como esta pretende. Pelo que deve improceder, também quanto a tal fundamento, o recurso apresentado. Do Cometimento do Crime de Ameaça Agravada Argumenta ainda o recorrente AA que as expressões que o Tribunal deu por assente que o mesmo proferiu não poderiam, de todo o modo, integrar a prática do crime de ameaça agravada, por não conter em si a ameaça de um mal futuro, argumentando que tais expressões (“vou-te matar, esse carro é meu”, “vou-te matar, queres resolver com ou sem polícia”) anunciam um mal imediato e iminente. Salvo o devido respeito, uma vez mais, não assiste razão ao recorrente. Vejamos: Nos termos do disposto do artigo 153.º, do Código Penal, comete o crime de ameaça, “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”, sendo que, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 155.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma, tal crime é agravado “quando os factos previstos nos artigos 153.º e 154.º forem realizados: a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos”. Resulta, pois que são elementos daquele tipo legal de crime (a) a ameaça da prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, (b) que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação da vítima e (c) o dolo. A ameaça tem, pois, de representar o anúncio de um mal, que tanto pode ser de natureza patrimonial como pessoal, sendo que esse mal tem de ser futuro (mas sendo indiferente que o agente refira ou não o prazo dentro do qual concretizará o mal); e é indispensável que o mal futuro anunciado esteja na dependência da vontade do agente, indispensabilidade essa que deverá ser analisada tendo como ponto de partida a perspectiva do homem comum, atendendo igualmente aos especiais conhecimentos da pessoa ameaçada; por outro lado, é necessário que a ameaça seja “adequada a provocar [à vítima] medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”. Sendo certo que é, assim, pressuposto para o preenchimento do tipo objecivo do crime de ameaça a cominação de um mal (configurando um tipo legal de crime), futuro (porque se o mal se iniciar imediatamente após a concretização da ameaça, estaremos já no domínio do início da execução do crime ameaçado ou, pelo menos, da tentativa), a verdade é que, como se ensina no douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 29.01.2020, (…). Do exposto resulta, pois, que, para a verificação do crime de ameaça basta que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa, nos termos do disposto no artigo 22.º, n.º 2, alínea c), do Código Penal . Nesta senda dir-se-á que, na dicotomia entre “mal futuro” e “mal iminente”, o que está essencialmente em causa é o destrinçar se uma determinada conduta preenche o crime de ameaça, ou antes uma tentativa de crime do “mal ameaçado”. O crime de ameaça reside na ameaça em si, ganhando autonomia ao “mal ameaçado”, mal este que, como resulta do preceito legal, tem de consistir na “prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor”. Ora, constituindo ele próprio, o “mal ameaçado”, um crime, há que equacionar as situações em que a ameaça perde relevância, como que ficando subsumida pelo início de concretização do mal ameaçado. Será o caso em que alguém, em disputa com outrem, refere “eu mato-te” e concomitantemente, ou logo de seguida, dispara uma arma de fogo que, não obstante, não logrou atingir a pessoa. Neste caso (naturalmente, dependendo das demais circunstâncias), o que estaria em causa seria uma tentativa de homicídio e não um concurso entre crime de ameaça e crime de homicídio na forma tentada. Atento o imediatismo da conduta do agente, não se lograria o lapso de tempo suficiente para provocar na vítima o “medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”, que constitui outro dos pressupostos do crime de ameaça. Com efeito, um mal futuro contrapõe-se a um mal passado. Conforme se conclui da consulta a vários dicionários da língua portuguesa, o futuro é o tempo que há de vir, que se segue ao presente, que há de ou que está para ser, acontecer ou suceder, isto é, aquilo que vai ser ou acontecer num tempo depois do presente. E, o mal iminente é o mal que está próximo, que está prestes a acontecer. Por isso, o mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu, que há de ser, que há de vir, embora esteja próximo, prestes a acontecer. No sentido de integrarem o crime de ameaça expressões com algum imediatismo, podem-se confrontar, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17.06.2004, versando sobre uma situação em que o agente, no calor de uma discussão, de natureza familiar, disse para a vítima em tom sério “mato-te”, e da Relação de Coimbra de 10.07.2014, em que a conduta do agente consistiu em dizer à vítima, em tom de voz sério, alto e ameaçador, “anda cá filho da puta … anda cá para fora …mato-te … mordo-te as orelhas todas”. Nestes acórdãos, em que estava em causa a mesma expressão dos presentes autos, entendeu-se que a expressão “mato-te”, pese embora usada no presente do indicativo, não deixa também de ter uma projeção de futuro, em linguagem corrente, pois que comporta um anúncio de um mal futuro, na medida em que não indica o momento exacto da ação, podendo ser substituída ou ser sinónimo de “hei de matar-te”. Assim sendo, evidencia-se que a ameaça proferida pelo arguido, em voz alta e com foros de seriedade, para o ofendido “vou-te matar, esse carro é meu”, “vou-te matar, queres resolver com ou sem polícia”, reúne todos os requisitos do crime de ameaça agravada, nomeadamente aquele que o recorrente afirma não se verificar: a natureza futura do mal ameaçado. As palavras proferidas pelo arguido foram de molde a perturbar o ofendido nos seus sentimentos de segurança e liberdade, suscitando-lhe o receio de que o arguido concretizasse a ameaça feita, atingindo a sua integridade física ou mesmo causando-lhe a morte, sendo irrelevante o tempo verbal utilizado pelo arguido, reportado ao momento presente, posto que o mal ameaçado não se concretizou (de imediato). Pelo que, também quanto a tal questão se entende que deve improceder o recurso apresentado. Por tudo o que ficou dito, é manifesto que improcedem os fundamentos do recurso apresentado pelo arguido AA. Com efeito, não merece qualquer censura a decisão proferida, tendo a douta sentença recorrida feito uma correcta interpretação da prova produzida e, bem assim, a subsunção dos factos ao direito, mostrando-se ainda a pena aplicada ao arguido AA justa, face aos factos apurados, à culpa do agente e à sua conduta anterior e posterior ao crime, pelo que, não padecendo de qualquer vício, nem tendo violado qualquer disposição legal, pelos fundamentos expostos, e na improcedência do recurso interposto, deve ser mantida na íntegra. Com o que, só assim, farão Vossas Excelências inteira J U S T I Ç A!!
6.
Remetidos os autos a este Tribunal, nos termos e para os efeitos no art.º 416º do C.P.P., foram os autos com vista à Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, que formulou em .../.../2025 o seguinte Parecer (transcrição): - Artigo 416.º, n.º 1 do Código de Processo Penal (C.P.P.) - I - O recurso incide sobre a sentença que condenou o arguido pela prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º e 155.º, nº 1, al. a) do Código Penal, na pena de 110 dias multa, à taxa diária de € 8,50, no total de € 935,00. II - O arguido interpôs recurso por discordar da apreciação que foi feita da prova, defendendo que a valoração correta permite a sua absolvição, pelo que pretende impugnar os pontos 1 a 4 da matéria de facto dada como provada, porquanto entende que não foi produzida prova bastante quanto aos mesmos e que o tribunal fez um pré-juízo no sentido da sua condenação devida à sua “musculada compleição física”. Pugna pela alteração daqueles factos dados como provados, com consequente revogação da sentença e sua substituição por outra de absolvição. III - O Ministério Público respondeu ao recurso, apreciando os argumentos invocados pelo recorrente que contrariou com uma análise adequada da prova e do direito aplicável, concluindo pela sua improcedência e pela manutenção da condenação nos seus precisos termos. IV – Afigura-se-nos que o recorrente não cumpriu o disposto no artigo 412.º n.º 1, do Código de Processo Penal, na medida em que aquilo a que denominou de conclusões correspondem à repetição quase integral da motivação e não ao resumo das razões do seu pedido especificadas na motivação. Do modo como estão apresentadas, não se traduzem no resumo exigido pela citada norma, importando concluir pela inexistência de conclusões, pelo que, ao abrigo do disposto no art. 417.º, n.º 3 parte final, do CPP, o recorrente deve ser convidado a reformular, apresentando conclusões que não sejam a repetição da motivação, mas sim o resumo da pretensão nesta exposta, sob pena de o recurso ser rejeitado. No mais, concordamos com a posição expressa pelo Ministério Público em sede de resposta ao recurso, secundando-a, porquanto a sentença não padece de qualquer vício, está devidamente fundamentada, compreendendo-se o raciocínio lógico que levou à decisão sobre os factos em análise, fez-se correta interpretação e aplicação do direito. Na verdade, a impugnação da matéria de facto não merece provimento porquanto a motivação do recorrente assenta numa transcrição parcial e descontextualizada das declarações do ofendido, para fazer crer que as magistradas que efetuaram o julgamento induziram as suas respostas no sentido pretendido, concretamente da existência da ameaça verbal. Ora da audição das declarações do ofendido resulta que este de forma clara e espontânea, no início refere que foi ameaçado de morte (cf. designadamente minutos 01.15 e 1.49 em diante). V - Pelo exposto, emite-se parecer no sentido de que:
• Após convite a ser formulado ao abrigo dos disposto no artigo 417.º n.º 3 do C.P.P, com advertência para a limitação a que se refere o n.º 4 da mesma norma, caso o recorrente não apresente conclusões que resumam a sua pretensão, o recurso deve ser rejeitado, por decisão sumária, ao abrigo do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 412.º n.º 1, 414.º n.º 2, 417.º n.ºs 3 e 6 al. b) e 420.º n.º 1 alínea c), todos do Código de Processo Penal.
• Não sendo rejeitado o recurso, quanto ao mérito o recurso, o mesmo deve ser julgado improcedente.
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Cumprido o n.º2 do art.º 417.º, do CPP, veio o arguido responder, reafirmado, em suma, o que já tinha alegado em sede de motivação do recurso.
No exame preliminar considerou-se que o objecto do recurso interposto deveria ser conhecido em conferência.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o artigo 419º do Código de Processo Penal, cumpre decidir.
Questão prévia:
O Ministério Públio em sede de resposta, que foi incumprido pelo arguido o art.º 412.º, n.ºs 1 e 2 do CPP, da leitura do recurso interposto pelo arguido AA, decorre que as conclusões apresentadas mais não são do que a reprodução (praticamente ipsis verbis) da motivação apresentada.
Assim sendo, forçoso é concluir que as conclusões extraídas do recurso do arguido AA não obedecem aos requisitos formais e materiais exigidos pelo artigo 412.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, o que implica a falta de conclusões e a falta de conclusões equivale à falta de motivação (nos termos dos artigos 412.º, n.º 1, e 420.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal).
Porém, vistas as motivações e conclusões apresentadas, entendemos que o arguido cumpriu com suficiência o disposto no art.º 412.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, sendo possível deduzir das conclusões apresentadas, as indicações previstas no referido art.º 412.º, (nomeadamente as passagens da prova gravada que, no dizer do recorrente, impunham decisão diversa e as normas violadas) não se mostrando necessário efectuar convite ao aperfeiçoamento aludido no n.º3 do art.º 417.º, nem sendo caso de rejeitar o recurso (art.º 420.º, n.º1, al. c), do CPP), não se acolhendo, por isso, a pretensão do Ministério Público a esse propósito. II-Delimitação do Objecto do recurso Questões a decidirno recurso:
Constitui jurisprudência e doutrina assente que o objecto do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 417º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP1, os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP).2
Na Doutrina, por todos, Paulo Pinto de Albuquerque, “As conclusões do recorrente delimitam o âmbito do poder de cognição do tribunal de recurso. Nelas o recorrente condensa os motivos da sua discordância com a decisão recorrida e com elas o recorrente fixa o objecto da discussão no tribunal de recurso… A delimitação do âmbito do recurso pelo recorrente não prejudica o dever de o tribunal conhecer oficiosamente das nulidades insanáveis que afetem o recorrente… não prejudica o dever de o tribunal conhecer oficiosamente dos vícios do artigo 410.º, n.º2 que afetem o recorrente…”, Comentário do Código de Processo penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Volume II, 5.ª Edição atualizada, pág. 590
Estruturalmente o recurso pode ter como fundamentos concretos:
i. Questões processuais, traduzidas em nulidades ou irregularidades do processado ou nulidades ou irregularidades da sentença (art.os 379.º e 410.º, n.º3, do CPP).
ii. Questões formais que dizem respeito à patologia da sentença, traduzida em erros endógenos da sentença, resultantes sem mais da leitura da sentença, sem elementos exteriores a ela, os designados vícios da sentença-Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação, a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão ou erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, n.º2, do CPP) ou vício da falta de fundamentação e exame crítico da prova (art.º 374.º, n.º2, do CPP) e
iii. Questões materiais, traduzidas em erro de julgamento em matéria de facto ou erros de julgamento em matéria de direito (art.º 412.º, n.ºs 2 e 3 do CPP).
(neste sentido Fernando Gama Lobo, Código de Processo Penal Anotado, 4.ª Edição, Almedina pág. 947).
No caso concreto, atentas as conclusões do recurso, as questões colocadas à apreciação deste Tribunal são, em síntese, as seguintes questões por ordem de precedência logico-jurídica:
i. Impugnação da decisão sobre a matéria de factos (art.º 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP): Se ocorre erro de julgamento relativamente aos pontos 1 a 4 dos factos provados e se ocorre violação do princípio do in dubio pro reo.
ii. Do enquadramento jurídico-penal dos factos no crime de ameaça agravado.
III -FUNDAMENTAÇÃO III.1 foram dados como provados pelo Tribunal de primeira instância no Acórdão recorrido os seguintes factos:
“A) Factos Provados:
1º No dia ... de ... de 2022, pelas 13h52, na ..., o arguido dirigiu-se ao ofendido EE, que se encontrava no interior do seu veículo automóvel estacionado na mencionada rua e, sem nada que o fizesse prever, dirigiu-lhe as seguintes expressões: “vou-te matar, esse carro é meu”, “vou-te matar, queres resolver com ou sem polícia”. 2º Ao dirigir as expressões supra aludidas o arguido bem sabia e não podia ignorar que tais palavras eram idóneas e adequadas a provocar medo e inquietação no íntimo do ofendido, como efectivamente provocaram, prejudicando-lhe a sua liberdade de determinação e, ainda assim, não se coibiu de as proferir. 3º O arguido ao proferir as expressões referidas em 1., agiu com o propósito concretizado de provocar medo e inquietação no ofendido, fazendo-o recear que a qualquer altura poderia atentar contra a sua vida, bem sabendo que tal conduta era adequada e idónea a provocar naquele um estado de espírito redutor e constrangedor da sua liberdade de autodeterminação, o que, de facto, aconteceu. 4º Agiu o arguido livre e deliberadamente, com plena consciência da censurabilidade penal da sua conduta, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento. 5º O arguido não regista antecedentes criminais. 6º Reside com a companheira, agente da PSP, com a filha da mesma e com mais dois filhos, todos menores de idade, em habitação própria, cujo crédito se encontra a liquidar no valor mensal de 400€. 7º O arguido explora um negócio de stand de venda de automóveis, tendo dois colaboradores a seu cargo, auferindo rendimentos mensais de pelo menos € 1.500,00. B) Factos não Provados: Não se provou que o arguido tenha dito ao ofendido: “seu gordo, vou-te espetar uma faca, esse carro é meu”.
III.2 É a seguinte a Motivação da decisão de facto do Tribunal recorrido. C) Motivação: O arguido não negou a abordagem ao ofendido, mas apenas os termos em que a mesma decorreu, declinando ter proferido as expressões descritas pela acusação. Confirmando que não conhecia o ofendido, não encontra justificação nem motivação para a tese da acusação. Parecendo-nos evidente que alguma coisa relativa ao estacionamento do veículo conduzido pelo ofendido desagradou ao arguido, tenha o ofendido amolgado um dos veículos do stand de automóveis do arguido ou não, como retratado na fotografia junta pelo arguido a fls. 60, mais certo é o facto de que o ofendido apenas fotografou o arguido no momento captado (cfr. fls. 11) em que o mesmo se dirigia na sua direcção e de imediato se deslocou à esquadra da PSP (vide auto de denúncia de fls. 3) não porque tenha ocorrido um mero arrufo mas porque viu um indivíduo de musculada compleição física, no dizer do ofendido “muito nervoso, a espumar pela boca” dizendo-lhe que o ia matar por o mesmo estar a bater no carro dele, questionando-o como queria resolver a questão: com ou sem polícia, ao passo em que mexia numa bolsa que trazia à cintura, temendo que dali pudesse retirar qualquer objecto para o agredir. Neste contexto, sem que sequer se tivesse apercebido de ter encostado o seu carro a qualquer carro, aguardava aliás pela sua esposa para irem almoçar como era habitual, não tendo saído do seu veículo, dali arrancou de imediato, temendo que o arguido pudesse concretizar o que lhe anunciou. Enquanto este incidente ocorria, EE estava em ligação telefónica com a mulher DD, a qual se apercebeu do sucedido já que a dada altura da conversação o marido deixou de falar e ouve alguém que estaria a falar com este de forma muito agressiva que lhe dizia que “ia acabar com ele”, sem, no entanto, conseguir concretizar concretamente que expressões foram proferidas, acabando por ir ter com o marido à esquadra para onde este de imediato se deslocou. Ora, O arguido não se limitou a sair do seu veículo rumando ao encontro do ofendido, admitindo que lhe falou mal e que gritou com ele (sem concretizar o que lhe disse) e nem a testemunha que arrolou (um ilustre desconhecido que aguardava pela reabertura do stand do arguido para ali deixar uma encomenda para recolha e que é descoberto apenas após a prolacção da acusação) confirmou a sua versão dos factos. Mas afinal de que teria o ofendido fugido subitamente já que o arguido nenhum mal lhe teria causado, no seu dizer, apenas pretendia falar com o mesmo? Com efeito, FF, na forma atrapalhada, desprovida de segurança e de rigor objectivo com que depôs, referiu que o ofendido estaria com a porta do seu carro aberta encostada à porta de um veículo do arguido, alegando que a cor deste seria cinzenta. Ora, a suposta amolgadela ocorreu na zona junto ao guarda lamas que circunda o pneu traseiro, muito longe da região da porta da carrinha, sendo o veículo em questão preto. Acresce dizer que nem esta versão foi a que o arguido levou à instrução já que em tal sede alegou (cfr. RAI) que no dia em apreço à chegada do seu stand se fazia acompanhar do “seu cliente FF”. Qualquer das versões sustentadas pela defesa, como se mencionou, é falsa, sendo absolutamente credível o relato do ofendido e da sua mulher, pessoas que nenhum conflito mantinham com o cidadão arguido que nem conheciam e que ficaram absolutamente incrédulas com o sucedido. A matéria que se deu como não provada não retira credibilidade ao depoimento do ofendido mas apenas não foi por este recordada com espontaneidade o que se considera normal quando se tentam recordar factos decorridos há mais de dois anos. No mais o tribunal suportou-se nas declarações que o arguido quis prestar relativamente à sua condição social e familiar. Analisou-se o respectivo CRC.”
III-3 Em função dos factos provados o Tribunal recorrido fez o seguinte o enquadramento jurídico-penal: “III- O Direito: 1. Do crime de ameaça agravada: De acordo com o estipulado no art. 153º, nº1 do Código Penal, “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação, ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”. A forma agravada do dito crime (punida com prisão até 2 anos ou multa até 240 dias) ocorre, por força do disposto no art. 155º, nº1, al. a), do CP, quando os factos descritos naqueloutro preceito legal forem realizados “por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos” como é o caso do crime de homicídio do artigo 131º do CP. O bem jurídico protegido pela incriminação é a liberdade de decisão e ação de outra pessoa, visando obstar ao seu embotamento ou supressão. São elementos objetivos do tipo legal de crime em apreço que o agente dirija a outrem uma ameaça contra a sua vida ou integridade física, e que o faça em termos adequados a, em abstrato, causar-lhe medo ou inquietação quanto à possibilidade de concretização desse anúncio de um mal futuro. Destarte, é, desde logo, elemento objetivo do crime de ameaça, o anúncio, por qualquer meio, de que o agente pretende infringir a outrem um mal futuro, dependente da vontade do autor. O crime, objeto da ameaça, tem de consubstanciar uma conduta contra os bens especificamente previstos no tipo (“contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor”), sendo que no tipo agravado em apreço nos autos o mal anunciado há de traduzir-se na prática de ilícito criminal punível com pena superior a três anos. Para o preenchimento do tipo é obviamente necessário que a ameaça chegue ao conhecimento do visado/destinatário, pois que de outro modo nunca o bem jurídico protegido pela incriminação poderia ser afetado. O elemento subjetivo preenche-se por uma conduta dolosa do agente, em qualquer das modalidades do dolo previstas no art. 14º do C.P., relativamente a todos os elementos do tipo. Na situação dos autos provou-se que o arguido se dirigiu ao ofendido dizendo-lhe que o matava, o que causou inquietude e temor na pessoa de EE que aliás de imediato se ausentou do local e procurou ajuda policial. Por outro lado, como é pacificamente entendido pela doutrina e jurisprudência, a adequação legalmente exigida pressupõe que a expressão intimidatória dirigida pelo agente do crime ao destinatário seja, de acordo com a experiência comum, suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado, independentemente de este ficar ou não intimidado. Após a Revisão do Código Penal de 1995, o crime de ameaça é legalmente configurado como um crime de mera atividade e de perigo, já não, como sucedia no regime penal anterior [art. 155º do CP de 1982], um crime de resultado e de dano. Como nota Paulo Pinto de Albuquerque [“Comentário do Código Penal”, anotação 8 ao art. 153º, p. 413], não é necessário que o destinatário tenha efetivamente ficado com medo ou inquieto ou inibido na sua liberdade de determinação. Basta que as palavras tivessem essa potencialidade, aferida esta de acordo com as características do destinatário. Por outro lado, a potencialidade da ameaça não depende da intenção do agente de concretizar a ameaça. No mesmo sentido, na doutrina, Américo Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, anot. ao art. 153º, § 19, p. 348; Leal-Henriques/Simas Santos, in “Código Penal”, 2º Volume, 2ª Edição, p. 185; Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, in “Código Penal, Anotado e Comentado”, 2ª Edição, anot. 13 ao art. 153º; na jurisprudência, a título exemplificativo, vide os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12.09.2012, processo nº 1221/11.6JAPRT.S1; do Tribunal da Relação de Guimarães de 21.06.2010, processo nº 380/06.4GEGMR.G2, de 23.04.2012, processo nº 326/11.8PBVCT.G1, e de 11.07.2013, processo nº 1400/10.3GAFLG.G1; do Tribunal da Relação do Porto, de 09.07.2014, processo nº 150/10.5PBCBR.P2, e de 25.02.2015, processo nº 1193/12.0GAMAI.P1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.05.2015, processo nº 361/12.9GAMTA.L1-5; e do Tribunal da Relação de Coimbra de 07/03/2012, processo nº 110/09.9TATCS.C1. E porque a ameaça proferida pelo arguido consistiu no anúncio de um crime contra a vida a ameaça é qualificada e agravada nos termos do artigo 155º, nº 1, al. a) do CP. O arguido conhecia o carácter proibido da sua conduta e actuou de forma voluntária, pretendendo o resultado visado. Como assim não subsistem dúvidas de que praticou o crime pelo qual vem acusado. Dosimetria penal: A escolha e determinação da medida da pena far-se-á em obediência ao disposto nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, em função da culpa do agente e tendo em conta as exigências decorrentes dos fins preventivos especiais, ligadas à reinserção social do arguido, e as exigências decorrentes dos fins preventivos gerais, prevenindo a prática de futuros crimes e a protecção de bens jurídicos. Na determinação da medida concreta da pena, há ainda que ter em conta, dentro dos limites mínimo e máximo abstractamente definidos na lei, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor do arguido ou contra este, por forma a proporcionar uma dupla função à pena a aplicar: por um lado, a mesma tem de ser justa e adequada ao caso concreto; por outro lado, tem de ser suficiente para desmotivar a generalidade das pessoas de seguirem ou enveredarem por comportamentos criminosos semelhantes. A culpa do agente é o limite máximo inultrapassável, tendo o tribunal que encontrar o ponto de equilíbrio consentido pela culpa e o ponto mínimo que seja aceite pela necessidade comunitária de reafirmar a validade da norma e a prevalência dos bens jurídicos ofendidos pela prática do crime, o que se efectuará aplicando em concreto, o "quantum" indispensável para que não se ponha irremediavelmente em causa a crença dos cidadãos na validade da norma violada. Haverá ainda que ter em conta os princípios consagrados constitucionalmente no art. 18º, nº 2 da CRP, da necessidade e proporcionalidade da pena e da proibição do excesso. No caso concreto sendo o crime punido em alternativa com pena de prisão ou com pena de multa, nos termos do artigo 70º do CP, incumbe ao tribunal optar pela aplicação de uma pena não privativa da liberdade quando entenda que a mesma satisfaz as finalidades da punição. Não tendo o arguido antecedentes criminais e estando inserido socialmente, apesar da postura que quis manter em julgamento, nada obsta a que se opte por uma pena pecuniária a esta não se opondo razões de prevenção geral. Assim, Para a determinação da medida da pena a aplicar ao arguido, nos termos do artigo 71.º do Código Penal caberá ponderar: a)- a ilicitude do facto (elevada) - relevando o modo da sua execução e violência física imprimida bem como o temor causado ao ofendido; b)-a intensidade do dolo –definido como directo. c)-a condição pessoal do arguido– está social e familiarmente inserido. d) as necessidades de prevenção geral – as quais são elevadas, atendendo ao aumento crescente do número de crimes de idêntica natureza, ao alarme social e intranquilidade que gera; e) as necessidades de prevenção especial- não despiciendas ante a personalidade descontrolada e temperamental evidenciada pelo arguido decorrente dos factos a que acresce a falta de autocensura ante a sua conduta, desprovida de qualquer arrependimento. Por tudo, entende-se ser de aplicar a pena - 110 (cento e dez) dias de multa. Quanto ao quantitativo diário da multa: Determinado que está o número de dias de multa através dos critérios gerais de fixação das penas (cfr. artigos 40º e 71º, ambos do Código penal), cumpre fixar o quantitativo de cada dia de multa. De harmonia com o disposto no art. 47º nº 2 do Código Penal, cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 5 e € 500, e é fixada em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais. Quanto à taxa diária da multa, ainda como refere Figueiredo Dias (in ob. cit., pág. 127), todas as considerações atinentes quer à culpa, quer à prevenção geral, quer à especial, devem exercer influência sobre a determinação da pena e, portanto sobre os dias de multa, e não sobre o quantitativo diário. Em contrapartida, tudo quanto respeite à situação económico-financeira do condenado deve ser considerado nesta fase de fixação do quantitativo diário de multa. Como é entendimento corrente, a taxa diária da multa deve ser fixada de forma a que mesma represente um sacrifício real para o condenado, para que mantenha a sua característica de verdadeira pena, pois de outro modo não será possível, através da sua aplicação, realizar as finalidades da punição. Na ponderação do quantitativo ajustado ao caso concreto não entram unicamente em linha de conta os rendimentos mensais, apurados ou declarados, mas também todos os outros rendimentos, bens e encargos que definem uma situação económica e que permitem avaliar a repercussão que nela vai ter a pena encontrada, de forma a poder concluir-se se a mesma é, efetivamente, e como deve ser, adequada para sancionar a concreta gravidade do facto. Logo, “o juiz graduará o quantitativo diário da multa em atenção às determinações legais, atendendo a que a finalidade da lei é eliminar ou pelo menos esbater as diferenças de sacrifício que o seu pagamento implica entre os réus possuidores de diferentes meios de a solver” – cfr. Maia Gonçalves, in Código Penal Português, 10ª ed., pág. 226. Como se pode ler no Acórdão do STJ, proferido em 03.06.2004, no processo 04P1266, disponível em www.dgsi.pt “A pena de multa, se não quer ser um andrajoso simulacro de punição, tem de ter como efeito o causar ao arguido, pelo menos, algum desconforto se não, mesmo, um sacrifício económico palpável”. Ou conforme se salientou no douto Ac. do STJ de 02.10.1997 (Col. de Jur., Ano V, tomo 3, págs. 183-184) “como a multa é uma pena, o montante diário da mesma deve ser fixado em termos de tal sanção representar um sacrifício real para o condenado, sob pena de se estar a desacreditar esta pena, os tribunais e a própria justiça, gerando um sentimento de insegurança, de inutilidade de impunidade”. Também o Prof. Taipa de Carvalho entende que “a multa enquanto sanção penal, não pode deixar de ter um efeito preventivo e, portanto, não pode deixar de ter uma natureza de pena ou sofrimento, isto é e por outras palavras, não pode o condenado a multa deixar de a ‘sentir na pele’ (As Penas no Direito Português após a Revisão de 1995, in Jornadas de Direito Criminal-Revisão do Código Penal, ed. do Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1998, vol II, pág. 24) e já antes o Prof. Figueiredo Dias, salientara que “é indispensável (…), que a aplicação concreta da pena de multa não represente uma forma disfarçada de absolvição ou o Ersatz de uma dispensa ou isenção de pena que não se tem coragem de proferir” (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, pág. 119, §123). Revertendo para o caso em apreço, resulta da factualidade apurada que o arguido é um empresário explorando um negócio de venda de automóveis e tendo a seu cargo dois funcionários, subsistindo de forma confortável, contando o seu agregado ainda com o vencimento da sua mulher agente da PSP, sem encargos desproporcionais nem que extravasem o que é usual à subsistência comum. Como assim reputa o tribunal ajustado fixar tal quantitativo diário da multa em € 8,50 (oito euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz o valor da multa de 935,00€ (novecentos e trinta e cinco euros).” (fim de transcrição)
IV- FUNDAMENTOS DO RECURSO E SUA APRECIAÇÃO
Apreciando, agora, as questões objecto do recurso:
IV.1- Impugnação (ampla) da decisão sobre a matéria de factos (art.º 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP): Se ocorre erro de julgamento relativamente aos pontos 1 a 4 dos factos provados e se ocorre violação do in dúbio pro reo.
É por demais cógnito que o ordenamento jurídico-processual-penal consagra duas formas de impugnação da matéria de facto.
Uma designada por impugnação ampla (erro de julgamento), que consiste na reapreciação da prova gravada e que tem de ser invocada pelo recorrente, pois não é de conhecimento oficioso, recaindo sobre o recorrente o duplo ónus de especificação previsto no art.º412º, nº3 e 4 do CPP.
Outra, designada por impugnação restrita, (revista alargada) que consiste na invocação dos vícios previstos nas alíneas a), b) e c) do nº2 do art.410º, do CPP que, aliás, são de conhecimento oficioso.
São duas formas distintas de “atacar” a matéria de facto, estando por isso sujeitas a regimes processuais diferentes.
No que respeita à impugnação alargada, dispõe o art.º 412.º, do CPP: (Motivação do recurso e conclusões) 1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. 2 - Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada. 3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas. 4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. 5 - Havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantêm interesse. 6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
O erro de julgamento, ínsito no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4, do artigo 412º, do Código de Processo Penal. Tratando-se de impugnação ampla, porém, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E, é exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando (violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (violação de normas de direito processual), que o recorrente deverá expressamente indicar e se lhe impõe o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº 3, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.
Assim, impõe-se-lhe:
i. a especificação dos “concretos pontos de facto” que considera incorrectamente julgados, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado;
ii. a especificação das “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida, acrescendo que o recorrente deve explicitar por que razão essa prova impõe decisão diversa.
iii. a especificação das “provas que devem ser renovadas”, sendo caso disso, que só se satisfaz com a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento no tribunal de primeira instância, dos vícios referidos nas alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela renovação da prova permitirá evitar o reenvio do processo – cfr. artigo 430º, nº 1, do citado diploma.
iv. Quando as provas tenham sido gravadas as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão recorrida, justificando em relação a cada facto alternativo que propõe porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.
Como se afirma no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.03.2012, publicado no D.R. I Série, nº 77, de 18.04.2012, “Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório. A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas. O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto. Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.”
Alega o arguido recorrente quanto a esta questão, ademais, que: VI - As duas audiências de discussão e julgamento não decorreram com a devida imparcialidade, que se pretendia, e que existiu um pré-juízo sob o arguido devido à sua “musculada compleição física”. VII - O douto tribunal a quo, no nosso entendimento, assentou a sua convicção exclusivamente nos depoimentos do ofendido e da testemunha DD, cônjuge do ofendido que, supostamente, estava ao telefone com aquele aquando dos factos. VIII - Inexiste nos presentes autos, qualquer registo telefónico que confirme a versão do ofendido, mormente, que se encontrava em chamada com a sua mulher. IX - Apenas existem as parcas declarações do ofendido e da sua mulher. XXVIII – Constata-se que o depoimento da testemunha DD não é coincidente com o depoimento da testemunha EE, porquanto, aquela testemunha evidenciou que o arguido o queria matar, enquanto, a testemunha DD disse que ouviu o arguido a dizer que “iria acabar com ele agora, na hora”. Ora, XXIX – Pelo que se denota divergência entre o depoimento das duas testemunhas que, são marido e mulher, em que um supostamente diz que foi ameaçado de morte e outra que diz que o arguido disse que iria acabar com o marido dela no momento. XXXI - Não obstante, o depoimento do cônjuge do ofendido não merece a credibilidade que foi dada pelo douto tribunal, tendo em consideração a divergência de declarações prestadas e tendo em consideração a ligação familiar que a testemunha tem com o ofendido. XXXII - No nosso humilde entendimento, não se pode considerar “absolutamente credível o relato do ofendido e da sua mulher.” XL - As declarações de EE não colhem a credibilidade que o tribunal a quo quis dar. LXIII - os factos constantes nos pontos 1 a 4 da douta sentença, no nosso entendimento, não poderiam ser dados como provados, uma vez que assentam única e exclusivamente nas declarações do ofendido, que, no nosso entender, não merecem a credibilidade que foi dada pelo douto tribunal a quo, em virtude de não terem sido minimamente espontâneas.
Mais indica o recorrente, nas suas conclusões, as provas que, a seu ver, impõe decisão diversa: as declarações do arguido e da testemunha FF, alegando as razões pelas quais as declarações do ofendido e da testemunha DD, na sua perspectiva, não têm credibilidade. Indica ainda as passagens da gravação dos depoimentos em que funda a impugnação.
Assim, no caso dos autos, o arguido/recorrente respeita a especificação dos “concretos pontos de facto” que considera incorrectamente julgados, que correspondem aos pontos 1 a 4, mais indica “concretas provas que (a seu ver) impõem decisão diversa da recorrida”, insertas no nºs 3 e 4, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.
Revisitando o caso dos autos, recordemos, os factos provados em causa que são os seguintes:
1º No dia ... de ... de 2022, pelas 13h52, na ..., o arguido dirigiu-se ao ofendido EE, que se encontrava no interior do seu veículo automóvel estacionado na mencionada rua e, sem nada que o fizesse prever, dirigiu-lhe as seguintes expressões: “vou-te matar, esse carro é meu”, “vou-te matar, queres resolver com ou sem polícia”. 2º Ao dirigir as expressões supra aludidas o arguido bem sabia e não podia ignorar que tais palavras eram idóneas e adequadas a provocar medo e inquietação no íntimo do ofendido, como efectivamente provocaram, prejudicando-lhe a sua liberdade de determinação e, ainda assim, não se coibiu de as proferir. 3º O arguido ao proferir as expressões referidas em 1., agiu com o propósito concretizado de provocar medo e inquietação no ofendido, fazendo-o recear que a qualquer altura poderia atentar contra a sua vida, bem sabendo que tal conduta era adequada e idónea a provocar naquele um estado de espírito redutor e constrangedor da sua liberdade de autodeterminação, o que, de facto, aconteceu. 4º Agiu o arguido livre e deliberadamente, com plena consciência da censurabilidade penal da sua conduta, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
Procedendo este Tribunal à audição integral da prova gravada relevante para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, nos termos dos n.ºs 4 e 6 do art.º 412.º, do C. Processo Penal, em particular, as passagens indicadas pelo arguido nas suas motivação e conclusões de recurso e fazendo uma súmula dos depoimentos:
O arguido em sede de declarações, na sessão de .../.../2024, disse que é proprietário de um stand e tinha uma viatura que estava pronta para entrega à porta do stand no dia dos factos, no período da tarde. Não conhece o arguido. O que se passou foi que chega após o almoço, ia abrir o stand e vê que está uma viatura de carga com a porta da carrinha aberta encostada a um guarda lamas da sua viatura, a danificar o guarda lamas, e via-se a perna dele a fazer pressão sobre o guarda lamas, da viatura. Ele, arguido, parou o carro e gritou de dentro do carro gritou disse uns impropérios. Disse, espere um bocadinho que já vamos falar. Estava trânsito e, conforme vai a sair para falar com ele ofendido, ele arranca com a carrinha e foge. Mete-se no meio da rua a fazer uns gestos e arranca. Nega que tenha dito as expressões, nem teve oportunidade para isso. Essa pessoa diz que o conhece e tem medo que o aborde, mas ele arguido não o conhece. Diz que desvalorizou a situação, nem chegou a tirar a matrícula da viatura do ofendido.
O ofendido EE, gerente de empresa, na sessão de .../.../2024, em suma, explicou que foi ameaçado de morte, a razão de ter feito queixa, deslocou-se ao restaurante de nome “franguinho” em ..., estacionou a viatura e ligou para a mulher porque almoçam juntos habitualmente, quase todos os dias, estava a falar com a esposa e o individuo aborda-o, disse que o ia matar que estava a bater no carro, que o carro era dele. Fazia um movimentos estranhos, Tinha uma bolsa à cintura e com os movimentos. Disse “Vou-te matar, queres resolver como?” “este carro é meu!” (minuto1:18 ao minuto 02:10) . O indivíduo parou num BMW, sai da viatura e desloca-se na sua direcção a espumar pela boca, veias no pescoço, o ofendido não percebia o que estava a acontecer. Não o conhecia, nunca tinha visto o indivíduo. Já não almoçou, arrancou e foi directo à esquadra de ... fazer queixa, tirou uma fotografia do arguido no dia dos factos. Diz que não estava a estragar nenhum carro, não bateu em nenhuma viatura, nem estava mal estacionado. Saiu dali porque ficou com receio. Reafirmando ter sido dito “eu vou-te matar” “eu desfaço-te” como queres resolver com ou sem polícia? .Ficou a saber na esquadra que o arguido era o proprietário do stand.
Teve receio. Sentiu-se super ameaçado. Ele, arguido, deslocou-se na sua direcção com as ameaças que referiu.
DD, casada com EE, anterior testemunha. Não viu os factos mas ouviu. Naquele dia o seu marido naquele momento estava a telefonar para ela, ouviu a voz agressiva do senhor a ameaçar o marido que ia acabar com ele, que não tinha medo de ninguém. Ouviu a voz do senhor a ameaçar. Ela foi ter com o EE e ele foi á esquadra. Ele diz que “eu acabo contigo” “não tenho medo de ti”. O seu marido ficou sem reacção e assustado e foi à esquadra.
FF, motorista de Uber, referiu que no dia em causa estava à porta do stand para entregar uma encomenda à espera do arguido (Sr. AA). Entretanto ele chegou, saiu fora do carro e dirigiu-se ao outro senhor e perguntou “acha bem o que está a fazer” ele estava a bater com a porta num carro do AA (porta com porta) e com o pé em cima de uma parte do carro do próprio ofendido. O ofendido perguntou “o que é que tu queres” entretanto o arguido agarrou estacionou o veículo o outro senhor tirou o carro andou mais para a frente, parou mais à frente e começou a injuriar o arguido e depois foi embora.
É certo que a versão apresentada pelo arguido e pela testemunha FF, não são coincidentes com a apresentada pelo ofendido/testemunha.
É também certo que no decurso das declarações da testemunha/ofendido ocorreu o seguinte, tal como alegado pelo recorrente: X - Em sede de declarações do ofendido EE, a digna procuradora questionou ao ofendido de quais as expressões concretas proferidas pelo arguido, ao que responde o seguinte (00:06:00 a 00:06:50 do áudio correspondente às declarações de EE): TestemunhaEE: - Como queres resolver? Esse carro é meu! DignaProcuradora: Mais nada? Palavras que ele tenha dito? TestemunhaEE: Como é que queres resolver? Com ou sem polícia? Como é que queres resolver? DignaProcuradora: Mais nada? TestemunhaEE: Mais nada! MmªJuiz: Disse que o ia matar, foi o que Sr. acabou de dizer! TestemunhaEE: Sim… MmªJuiz: Que o ia matar? TestemunhaEE: Eu mato-te e desfaço-te como queres resolver? Sinceramente, não sei o que ele queria resolver, porque eu não percebi. DignaProcuradora: Eu vou-te matar, eu desfaço-te, mais alguma coisa? TestemunhaEE: Como queres resolver com ou sem polícia? DignaProcuradora: Foi isso, só? Mais nada? TestemunhaEE: Sim…
Vem o recorrente afirmar que: XI – Verifica-se que a testemunha espontaneamente respondeu à digna procuradora que o arguido tinha apenas questionado o ofendido de como ele queria resolver a situação se com ou sem polícia. XII - Só após insistência do douto tribunal a quo ao evidenciar que o arguido teria dito que o ia matar é que a testemunha, pouco convicta disse sim. XIV - Só após insistência do douto tribunal, mesmo depois da digna procuradora ter questionado por duas vezes o que o arguido teria dito à testemunha, é que o ofendido anuí em dizer que o arguido lhe teria ameaçado de morte. XV - Nunca tendo o ofendido evidenciando em concreto o que o arguido lhe disse. XVI - As questões deduzidas pelo douto tribunal certamente quinaram as respostas do ofendido em claro prejuízo do arguido. XVII – Não julgamos que as mesmas tenham a absoluta espontaneidade como afirmado pelo douto tribunal. XVIII - Foi após a digna procuradora ter questionado por duas vezes o ofendido se o arguido não teria dito mais nada e do ofendido EE ter respondido duas vezes “mais nada” que, a meritíssima juiz do tribunal a quo interrompe e afirma “Disse que o ia matar”. XIX - Posteriormente, a defesa questionou ao ofendido, novamente e uma vez que, como se percebe, a testemunha EE não teria conseguido concretizar as afirmações, quais as concretas expressões utilizadas pelo arguido, tendo o douto tribunal a quo interrompido o depoimento e respondendo no lugar do ofendido prejudicando a defesa do arguido em clara violação do princípio da imediação (00:07:40 a 00:08:44 do áudio correspondente às declarações de EE): Mandatáriodoarguido: Já em instâncias da inquirição pela digníssima procuradora disse quais seriam as concretas palavras e eu questiono novamente, se efetivamente o Sr. AA, o aqui arguido disse que o ia matar ou não? MeritíssimaJuiz: Ó Sr. Dr. já disse que sim, não vamos estar aqui a questionar a testemunha o que já disse cinquenta vezes! Já disse não tem dúvidas, ficou estupefacto com a situação inusitada, diz que nem sequer estava mal-estacionado, nem estava a prejudicar o património de ninguém, apesar de ter falado daquela história de esse carro é meu, não foi o que ele disse? TestemunhaEE: Sim. MeritíssimaJuiz: Esse carro é meu, vou-te matar, como é que queres resolver isto, com ou sem polícia, foi isto que foi suficiente para o senhor se pôr dali a andar. Mandatáriodoarguido: E disse também que o Sr. AA vem em direção a si, aproximou-se muito? Ficou a quantos metros de sim? MeritíssimaJuiz: Pelo menos o da fotografia.
Indo ainda mais longe, argui, o recorrente, que: XX - Nas duas primeiras perguntas feitas pela defesa, diretamente ao ofendido, o douto tribunal a quo, responde no lugar da testemunha, não dando qualquer hipótese à defesa de, enfim, se defender. XXI - O douto tribunal inquinou as declarações do ofendido em prejuízo do arguido em instância da resposta às perguntas feitas pelo MP e pela defesa.
Ora, reapreciado o depoimento do ofendido vemos que, logo no início das declarações, (minuto 00.01:18 ao minuto 00.02:10) o mesmo disse espontaneamente, que o arguido proferiu a expressão “Vou-te matar, queres resolver como” “este carro é meu”. Esta parte do seu depoimento foi habilmente omitida e desconsiderada pelo arguido recorrente, ao mencionar as passagens da gravação do depoimento do ofendido apenas a partir do minuto 00:06:00, o que não se deixa de censurar.
Mais grave é o arguido referir que “só após insistência do douto tribunal a quo ao evidenciar que o arguido teria dito que o ia matar é que a testemunha, pouco convicta disse sim… e que só após insistência do douto tribunal, mesmo depois da digna procuradora ter questionado por duas vezes o que o arguido teria dito à testemunha, é que o ofendido anuí em dizer que o arguido lhe teria ameaçado de morte e que as questões deduzidas pelo douto tribunal certamente quinaram as respostas do ofendido em claro prejuízo do arguido. Ora, tal não corresponde, de todo, ao que se passou na audiência, porquanto a referida expressão “Vou-te matar”, foi dita pelo ofendido logo ao início do seu depoimento e de forma espontânea, nas partes omitidas do seu depoimento, tendo o Tribunal interrompido, pertinentemente …disse que o ia matar, foi o que Sr. acabou de dizer! após ter sido, o ofendido questionado “mais nada?” E tinha efectivamente dito, para que não ficasse a dúvida nos presentes, que logo ao início do depoimento, tinha dito ter sido proferida a referida expressão pelo arguido.
Mais argumenta o recorrente que: XXII - Para além do depoimento da testemunha EE, não se verifica mais nenhuma prova que evidencie de forma clara e sem dúvidas de que o arguido efetivamente ameaçou o ofendido e, muito menos, que o ameaçou de morte. XXIII - No que concerne às declarações da testemunha DD, cônjuge do ofendido, verifica-se que a mesma não concretizou o que o arguido alegadamente disse a EE. XXIV - Apenas referindo que ouviu do outro lado (da chamada) “a voz agressiva do senhor a ameaçar o seu marido” (00:01:45 a 00:01:50 do áudio das gravações da testemunha DD). XXV - Em sequência a digna procuradora questionou à testemunha DD o que teria ouvido, respondendo a testemunha o seguinte: TestemunhaDD: Ameaçava que ia acabar com ele, que não tinha medo de ninguém, que o meu marido poderia chamar a polícia se quisesse, que não tinha medo de ninguém (00:01:50 a 00:02:05) DignaProcuradora: Então e depois? (00:02:05) TestemunhaDD: Depois o meu marido não falava nada, o que eu ouvia era o meu marido a perguntar “o que é que se passa? O que eu fiz?” Parecia que ele não estava a perceber o que se passava ali (…) O que eu ouvia era só a voz do senhor a ameaçar, mas muito agressiva, mesmo (00:02:06 a 00:02:27) DignaProcuradora: É isso que a senhora sabe? (00:02:40) DD: Exatamente (00:02:42). XXVII - O douto tribunal evidenciou à testemunha DD que esta tinha vindo com umas conclusões que retirou do que tinha ouvido, tendo pedido à testemunha para concretizar o que realmente ouviu, porque uma coisa é dizer foram expressões de ameaça… tendo esta respondido o seguinte: TestemunhaDD: Eu não disse que eram ameaças, ele falava com um tom agressivo (00:03:25 a 00:03:28) MeritíssimaJuiz: Um tom agressivo? Mas um tom agressivo como assim? (00:03:29 a 00:03:32) TestemunhaDD: Dizia que ia acabar com o EE, com ele, eu acabo contigo, eu não tenho medo de ti. Podes chamar quem tu quiseres, podes chamar a polícia que quiseres que eu não tenho medo de ti, eu acabo contigo agora, na hora (00:03:34 a 00:03:45) MeritíssimaJuiz: Mas disse isso por algum motivo? (00:03:46 a 00:03:47) TestemunhaDD: Isso já não sei (00:03:48) MeritíssimaJuiz: A conversa começou aí? (00:03:49) TestemunhaDD: Foi o que eu ouvi do outro lado do telefone. (00:03:50 a 00:03:53). …foi ter com ele à esquadra e ele estava muito assustado. XXVIII – Constata-se que o depoimento da testemunha DD não é coincidente com o depoimento da testemunha EE, porquanto, aquela testemunha evidenciou que o arguido o queria matar, enquanto, a testemunha DD disse que ouviu o arguido a dizer que “iria acabar com ele agora, na hora”. Ora, XXIX – Pelo que se denota divergência entre o depoimento das duas testemunhas que, são marido e mulher, em que um supostamente diz que foi ameaçado de morte e outra que diz que o arguido disse que iria acabar com o marido dela no momento. XXXI - Não obstante, o depoimento do cônjuge do ofendido não merece a credibilidade que foi dada pelo douto tribunal, tendo em consideração a divergência de declarações prestadas e tendo em consideração a ligação familiar que a testemunha tem com o ofendido. XXXII - No nosso humilde entendimento, não se pode considerar “absolutamente credível o relato do ofendido e da sua mulher.”
Como decorre da súmula supra dos depoimentos, o ofendido confirmou as expressões dadas como provadas, a testemunha DD, ainda que por outras palavras, o que se compreende dado o tempo decorrido, referiu expressão, de certa forma equivalente, embora não coincidente “eu acabo contigo”. Porém, o arguido negou que tivesse proferido a expressão, embora admita ter dito uns “impropérios”, não tendo a testemunha FF igualmente confirmado essa expressão.
Ora, o Tribunal em sede de motivação explicou porque acolheu a versão apresentada pela testemunha/ofendido EE e lhe deu credibilidade, em detrimento da versão apresentada pelo arguido e pela testemunha FF, o que tem suporte na prova gravada, apreciada à luz do princípio da livre convicção inserto no art.º 127.º, do CP.
Na verdade, em caso de impugnação alargada e reapreciação da matéria de facto, o tribunal ad quem deverá avaliar “se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte adequado naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si e, consequentemente, a Relação só pode alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais, de manifesto erro na apreciação da prova. O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e da oralidade. (...) Por outro lado, reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão (Acórdão da Relação de Coimbra de 12-09-2012, proferido no processo n.º 245/09.8 GBACB.C1) destaque nosso.
E, no caso dos autos, a convicção do Tribunal tem suporte adequado e verosímil na gravação da prova produzida em audiência e reapreciada, ainda que pudesse permitir outra decisão, porém, não a impõe, tal como exigido pelo art.º 412.º, n.º3, alínea b).
Como se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2010, proferido no processo nº 11/04.7 GCABT.C1.S1, disponível inwww.dgsi.pt/jstj, “Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.”.
É certo que a livre convicção não se confunde com convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é o livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passíveis de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever”, no ensinamento do Professor Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, vol. I, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pág. 201 a 206, que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana.
De acordo com o aludido princípio da livre apreciação da prova, o julgador é livre ao apreciar as provas, estando tal apreciação apenas vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório sendo que “A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspetivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento. Isto é, na outorga, não de um poder arbitrário, mas antes de um dever de perseguir a chamada verdade material, verdade prático-jurídica, segundo critérios objectivos e susceptíveis de motivação racional.” – cfr. Professor Figueiredo Dias, ob. e loc. citados e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08.02.2012, proferido no processo nº 38/10.0 TAFIG.C1, disponível inwww.dgsi.pt/jtrc.
A actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sociocultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente. Isto é, a perceção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a imediação das provas, sendo certo que, não raras vezes, o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal.
Ao Tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar.
Defende ainda o arguido que: XXXV - Diante da incerteza e da falta de convicção demonstradas por ambas as testemunhas, DD e EE, ao relatarem de forma concreta o que teria sido dito pelo arguido, é necessário considerar que subsiste uma dúvida razoável quanto a ter ocorrido, de facto, uma ameaça à vida do ofendido EE. XXXVI - O único elemento probatório que concretizou a alegada ameaça de morte foram as declarações do ofendido e após muita insistência na sua inquirição o que não revela espontaneidade. XXXVII - Nas declarações do arguido, da testemunha DD e da testemunha FF, esta que presenciou os factos in loco, não se retiram qualquer ameaça à vida do ofendido EE.
Alega, assim, o arguido/recorrente a violação do in dubio pro reo, ao dar, o Tribunal recorrido, como provados esses factos, sustentando a existência de dúvida razoável.
É certo que o princípio in dubio pro reo, emanado do princípio político-jurídico da presunção de inocência, até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (art. 32.°, n.° 2, da CRP), vem sendo assumido, genericamente, que se encontra, intimamente ligado ao da livre apreciação da prova (art. 127.º do CPP), do qual constitui faceta, e este último apenas comporta as excepções integradas no princípio da prova legal, ou tarifada, ou as que derivem de uma apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova produzida e ofensiva das regras da experiência comum.
O princípio in dubio não é uma regra para a apreciação da prova, pois que apenas se aplica depois de finalizada a valoração e apreciação crítica da prova. O princípio in dubio pro reo é, assim, apenas uma regra de decisão da prova.
O uso do princípio in dubio pro reo só deve ocorrer quando, após a produção e a apreciação dos meios de prova relevantes, o julgador se defronte com a existência de uma dúvida razoável sobre a verificação dos factos e, perante ela, se lhe imponha decidir a favor do arguido. Não se trata, pois, de uma dúvida hipotética, abstrata ou de uma mera hipótese.
Como princípio que se projecta em sede de apreciação da prova, a sua violação é tradicionalmente tratada como erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal) e, por isso, tal como sucede com os demais vícios da sentença, tem que resultar ou decorrer do próprio texto da decisão recorrida.
O princípio in dubio pro reo resulta, igualmente, do princípio da culpa, que se retira dos artigos 18ºn.º2 e 27º da CRP. Com efeito, o princípio da culpa, é um princípio material de direito penal substantivo e sem determinação da culpa, não pode recair sobre quem quer que seja um juízo de censurabilidade.
Neste sentido, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de novembro de 2002, Proc. nº 3316/02-5ª in www.dgsi.pt: “I – O princípio in dubio pro reo constitui um princípio probatório segundo o qual a dúvida em relação à prova da matéria de facto tem sempre de ser valorada favoravelmente ao arguido, e traduz o correspetivo do princípio da culpa em direito penal, sendo a dimensão jurídico processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena”.
Se o juiz não lograr tal convicção, isso equivale a duvidar. Na dúvida in dubio pro reo. A dúvida que fundamenta o apelo ao princípio in dubio pro reo deve ser insanável, razoável e objetivável. (neste sentido Ac. STJ de 12/01/2023 processo n.º 569/20.3JAAVR.P1.S1 relatora LEONOR FURTADO in www.dgsi.pt).
A doutrina e a jurisprudência têm, assim, adotado o critério anglo-saxónico da dúvida razoável (a doubt for which reasons can be given).
Como escreve FERNANDO GAMA LOBO “O princípio in dubio pro reo não é mais do que um corolário da presunção de inocência, consagrado constitucionalmente no art.º 32.º, n.º2 da CRP. Produto da Revolução Francesa, repousa na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art.º 11.º) e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art.º 6.º). Tem na apreciação da prova o seu campo jurídico de aplicação natural e lógico, a qual é da competência do Juiz. Com efeito enquanto não for demonstrada a culpabilidade do arguido, não é admissível a sua condenação. Tal princípio, serve para resolver a dúvida que surjam numa situação probatória incerta. Mas a dúvida tem que ser do juiz e não dos restantes intervenientes processuais(…).” in Código de Processo Penal Anotado, 4.ª edição.
Como em parte sumariado no Acórdão da Relação de Coimbra de 12-09-2018 proc. 28/16.9PTCTB.C1Relator ORLANDO GONÇALVES:
“(…)IV - O princípio do “in dubio pro reo” é exclusivamente probatório e aplica-se quando o tribunal tem dúvidas razoáveis sobre a verdade de determinados factos, ao passo que o princípio da presunção de inocência se impõe aos juízes ao longo de todo o processo e diz respeito ao próprio tratamento processual do arguido. V- O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet. VI -A violação do princípio in dubio pro reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados.”
Porém, o Tribunal de recurso pode também censurar a violação desse princípio em sede de impugnação alargada, se, reapreciada a prova, chegou a um estado de dúvida insanável, que se impunha, isto é chegou à conclusão que, com a prova produzida que reapreciou, existem dúvidas que impõem o in dubio, ainda que o Tribunal recorrido não tenha manifestado ou sentido dúvida.
Neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/09/2020 processo 3773/12.4TDLSB.L1-5, relator Jorge Gonçalves in www.dgsi.pt: “(…)Na reapreciação da prova importa articular os poderes de conhecimento do tribunal de recurso com os princípios relativos à produção e à valoração da prova no tribunal de 1.ª instância, especialmente com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do C.P.P., princípio que vale também para o tribunal de recurso. Essa articulação há-de necessariamente ter em conta que as condições de que beneficia a 1.ª instância – em particular, a oralidade e a imediação – para avaliar os depoimentos prestados, no contexto de toda a prova produzida, se não verificam (pelo menos em toda a extensão) quando o tribunal de recurso vai julgar. Traduzindo-se a livre apreciação das provas numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, a falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, a não vivência do julgamento, sede do contraditório, com privação da possibilidade de intervir na produção da prova pessoal, serão, por assim dizer, limites epistemológicos a que a Relação deverá atender na sua apreciação, ainda que não barreiras intransponíveis a que faça a ponderação, em concreto e autónoma, das provas identificadas pelo recorrente, que pode conduzir à conclusão de que tais elementos de prova impõem um juízo diverso do contido na decisão recorrida. Os diversos elementos de prova não devem ser analisados separadamente, antes devem ser apreciados em correlação uns com os outros, de forma a discernir aqueles que se corroboram e aqueles que se contradizem, possibilitando ou a remoção das dúvidas ou a constatação de que o peso destas é tal que não permite uma convicção segura acerca do modo como os factos se passaram. Assim, procedeu-se à audição da gravação da prova pessoal indicada, importando cotejá-la com a motivação da decisão de facto e verificar se as provas indicadas pelo recorrente (e agora reapreciadas), impõem decisão diversa da proferida pela 1.ª instância.(…) Sendo o Supremo Tribunal de Justiça um tribunal de revista, compreende-se o entendimento, repetidamente afirmado na jurisprudência do Supremo, de que não resultando da decisão que o tribunal ficou num estado de dúvida sobre os factos e que «ultrapassou» essa dúvida, dando-os por provados, contra o arguido, ao S.T.J. fica vedada a possibilidade de decidir sobre a violação do princípio «in dubio pro reo» dado o quadro dos respectivos poderes de cognição, restritos a matéria de direito. Por isso se diz que no S.T.J. só pode conhecer-se da violação desse princípio quando da decisão recorrida resultar que, tendo o tribunal a quo chegado a um estado de dúvida sobre a realidade dos factos, decidiu em desfavor do arguido; ou então quando, não tendo o tribunal a quo reconhecido esse estado de dúvida, ele resultar evidente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, nos termos do vício do erro notório na apreciação da prova. Não se compreende que se siga o mesmo raciocínio na Relação. Realmente, a recondução da violação do princípio “in dubio” ao erro notório na apreciação da prova enunciado na alínea c) do n.º2 do artigo 410.º do C.P.P., leva a que se diga, por vezes, que não se trata de “dúvidas” que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e devia ter tido, pois o “in dubio…” não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas” e que a apreciação pelo Tribunal da Relação da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto do artigo 410.º, n.º 2 (cfr. acórdãos da Relação de Coimbra, de 9/09/2009, processo 363/08.00GAACB.1, de 4/02/2015, processo 421/13.6GCMBR.C1 e de 25/02/2015, processo 28/13.0GAAGD.C1). Para quem entenda que apenas o estado de dúvida subjectivamente sentida pelo julgador constitui o pressuposto específico do princípio in dubio pro reo, aquele princípio não se mostrará violado quando o tribunal de julgamento não se confrontou com dúvida séria sobre a prova do facto desfavorável ao arguido. Uma outra abordagem da questão é a de que o princípio in dubio pro reo deve ser entendido objectivamente, não se exigindo a dúvida subjectiva ou histórica, para que possa ocorrer a sua violação. Nesta perspectiva – que é a nossa -, no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida. A Relação, diversamente do S.T.J., conhece de facto. Mesmo que a violação do princípio in dubio não resulte do texto da decisão recorrida, só por si ou conjugada com as regras da experiência comum, enquanto erro notório na apreciação da prova [cfr al. c) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P.), pode a mesma ser detectada no âmbito de impugnação ampla da decisão proferida sobre a matéria de facto. Ou seja: fora dos limites do erro notório na apreciação da prova, o recurso da decisão de facto, no âmbito da impugnação ampla, habilita a Relação, que conhece de facto, a reapreciar as provas, a formular a sua livre convicção quanto às mesmas e a determinar se o tribunal de 1.ª instância, independentemente de se ter visto subjectivamente confrontado com a situação de dúvida, julgou provado facto desfavorável ao arguido apesar de a prova disponível não permitir, de forma racional e objectiva, à luz das regras da experiência e/ou de regras legais ou princípios válidos em matéria de direito probatório, ultrapassar o estado de dúvida sobre a realidade do facto (neste sentido, o acórdão da Relação de Évora, de 13/09/2016, processo 89/15.8GTABF.E2, relator António João Latas).(…)”
O in dubio pro reo é convocável em matéria de prova quando o tribunal, mesmo o de recurso, se encontre numa situação de dúvida razoável quanto a algum ponto da matéria de facto, circunstância em que a deve resolver em benefício do arguido; e, inversamente, já não colhe pertinência o in dubio pro reo quando o tribunal, com apoio nos meios de prova disponíveis e lendo-os criticamente à luz das regras da experiência comum, não tem qualquer dúvida razoável quanto aos factos a deles extrair ou, tendo-a tido em algum momento, a esclareceu, convencendo-se positivamente do facto em causa (entre tantos outros, vide o Acs. do STJ de 7.11.2002, da RC de 12.09.2018 e da RP de 28.10.2015, relatados por Oliveira Guimarães, Orlando Gonçalves e Ernesto Nascimento, respetivamente, inwww.dgsi.pt; vide ainda Paulo Pinto de Albuquerque, ob cit., pg. 1121).
Regressando ao caso concreto, este Tribunal de recurso, procedeu à audição da gravação da prova pessoal indicada pelo recorrente, e reapreciada esta, não ficou com dúvida razoável sobre os factos provados 1 a 4, não impondo, a sua análise decisão diversa da proferida pela 1.ª instância, não se impondo o princípio in dubio, concordando com o Tribunal aquo que igualmente não manifestou qualquer dúvida a respeito de qualquer desses factos dados como provados, com apoio nos meios de prova disponíveis e lendo-os criticamente à luz das regras da experiência comum, justificando devidamente a versão que acolheu, como se denota da motivação.
Como vimos, o percurso seguido pelo Tribunal a quo na convicção formada e nos motivos dela determinantes, mostra-se, perfeitamente explicado, de forma lógica e objectivável e, tem suporte plausível e seguro na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso, e nessa medida, porque beneficiou da imediação e da oralidade, deve prevalecer a convicção expressa pelo tribunal a quo.
Como refere o Acórdão deste TRL de 11.03.2021, Proc. nº 179/19.8JDLSB.L1-9 relator ABRUNHOSA DE CARVALHO: “(…) II – Os Tribunais da Relação têm poderes de intromissão em aspectos fácticos (art.ºs 428º e 431º/b) do CPP), mas não podem sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto; III – Normalmente, esses erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar; IV - Quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes; (…).”
Efectivamente, a valoração probatória efectuada pelo tribunal, alicerçada nas regras da experiência comum e descredibilizando, em parte, justificando-a, as declarações prestadas pelo arguido e pela testemunha FF em audiência, na sua presença, beneficiando da imediação e da oralidade, não nos merece qualquer censura.
Para além de não bastar contrapor-se à convicção do julgador uma outra convicção diferente para provocar uma modificação na decisão de facto, é necessário demonstrar-se que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados é, pelo menos, desprovida de razoabilidade, e no caso dos autos, manifestamente, não é o caso, porquanto apoiada no depoimento da testemunha/ofendido que mereceu credibilidade.
Pelo exposto, e, em suma, as premissas da sentença recorrida, secundadas pelas considerações supra, no que toca à matéria de facto, encontram-se fundadas na prova produzida conjugada com as regras de experiência comum e são suficientes para dar os mesmos como provados, concluindo-se pela inexistência de erro de julgamento, merecendo esta questão o não provimento por este Tribunal de recurso.
Tem-se, assim, por definitiva a decisão sobre a matéria de facto proferida na 1ª Instância.
IV.2-Do enquadramento jurídico-penal dos factos no crime de ameaça agravada.
Argui finalmente o arguido recorrente que não se encontra preenchido o tipo objetivo do ilícito, do crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 155º, n.º 1, alínea a) ex vi artigo 153º, n.º 1, ambos do Código Penal, pelo que o arguido deverá ser absolvido da prática deste crime, argumentando que “ Em ambos os casos não estamos perante um anúncio de um mal futuro, mas sim, a admitir-se como verdade que tais expressões foram efetivamente proferidas pelo arguido, o que por mera hipótese académica aqui se coloca, estaríamos perante um anúncio de um mal iminente, mal esse que não aconteceu… Estaríamos, no máximo, perante um alegado anúncio de um mal iminente e não futuro, até porque, nem naquele dia, nem até à presente data, nada mais aconteceu com relevância para os presentes autos, entre o arguido e o ofendido, conforme evidenciado pelo cônjuge do ofendido (00:04:14 a 00:04:32)(…) Tais alegadas expressões, alegadamente proferidas, foram-no o presente do indicativo, revelando o anúncio de um mal iminente e não de um mal futuro.(…) Eventualmente acolhendo a versão de que o arguido efetivamente tenta dito ao ofendido “vou-te matar”, tal expressão reporta-se a uma ameaça atual, dirigida naquele momento, no presente e não um anúncio de um mal a praticar no futuro, ou noutro momento posterior(…)Assim como as expressões indevidamente dadas como provadas “vou-te matar, esse carro é meu”, “vou-te matar, queres resolver com ou sem polícia” revelam o anúncio do mal iminente, proferidas no presente do indicativo, e ainda para mais quando o ofendido refere que o arguido colocou a mão na bolsa que tinha à cintura, sem posteriormente, nada fazer.
Atentemos, então:
Estatui o art. 153º, nº1 do Código Penal, “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação, ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.
A forma agravada do dito crime (punida com prisão até 2 anos ou multa até 240 dias) ocorre, por força do disposto no art.º 155º, nº1, al. a), do CP, quando os factos descritos naqueloutro preceito legal forem realizados “por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos” como é o caso do crime de homicídio do artigo 131º do CP.
O bem jurídico protegido pela incriminação é a liberdade de decisão e acção de outra pessoa, visando obstar ao seu embotamento ou supressão, liberdade de decisão (formação) e de realização da vontade. No crime de ameaça a proteção materializa-se também no sentimento de segurança: a ameaça é um crime de perigo contra a paz interior.
O crime de ameaça é um crime de perigo abstracto-concreto quanto ao bem jurídico e de mera actividade, quanto ao objecto da acção.
O tipo objectivo consiste na comunicação de uma mensagem, dita ou escrita, ou por sinais, directamente ou por interposta pessoa, a um destinatário com um significado da prática futura de um mal ao destinatário, maior, capaz ou menor incapaz, ou a um terceiro que se encontre na mesma situação de perigo do destinatário ou numa situação de proximidade existencial da pessoa do destinatário e que tenha de facto capacidade de valoração e determinação, ou até mesmo uma pessoa colectiva.
Para o preenchimento do tipo é obviamente necessário que a ameaça chegue ao conhecimento do visado/destinatário, pois que, de outro modo, nunca o bem jurídico protegido pela incriminação poderia ser afetado.
Atenta a natureza do crime, não é aplicável a teoria da adequação do resultado à acção, mas a mensagem comunicada tem que ser “adequada” a provocar medo ou inquietação ou prejudicar a liberdade de determinação do destinatário. Não é, porém, necessário que o destinatário tenha efectivamente ficado com medo ou inquieto ou inibido na sua liberdade de determinação, bastando que as palavras ou sinais feitos tivessem essa potencialidade.
O crime, objecto da ameaça, tem de consubstanciar uma conduta contra os bens especificamente previstos no tipo (“contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor”), sendo que no tipo agravado em apreço nos autos o mal anunciado há de traduzir-se na prática de ilícito criminal punível com pena de prisão superior a três anos. (Conforme jurisprudência do STJ, acórdão de 20/02/2023 processo 723/08.6PBMAI.P1-A.S1, relator Oliveira Mendes).
O elemento subjetivo preenche-se por uma conduta dolosa do agente, em qualquer das modalidades do dolo previstas no art. 14º do C.P., relativamente a todos os elementos do tipo, sendo irrelevante que o agente tenha a intenção de concretizar a ameaça. (veja-se por todos Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código penal, UCP Editora, 6.ª Edição págs.699 a 703).
Na situação dos autos provou-se que o arguido se dirigiu ao ofendido “sem nada que o fizesse prever, dirigiu-lhe as seguintes expressões: “vou-te matar, esse carro é meu”, “vou-te matar, queres resolver com ou sem polícia”, o que causou inquietude e temor na pessoa de EE, que aliás de imediato saiu do local e procurou ajuda policial (factos provados 1 a 4).
Por outro lado, como é pacificamente entendido pela doutrina e jurisprudência, a adequação legalmente exigida pressupõe que a expressão intimidatória dirigida pelo agente do crime ao destinatário seja, de acordo com a experiência comum, suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado, independentemente de este ficar ou não intimidado, indo no caso, mais além do que o exigido no tipo incriminador, porquanto causou efectivamente, medo e inquietação no ofendido.
Argumenta o arguido, por uma lado, que não se trataria de um mal futuro, mas iminente, por outro que esse mal não aconteceu, nem existiram quaisquer actos preparatórios, pelo que não constitui a prática do crime de ameaça, devendo o arguido ser absolvido.
Vejamos:
O critério de aferição do conceito de futuro no âmbito do crime de ameaça tem sido comumente discutido na doutrina, como na jurisprudência, sendo hoje pacificamente assumido que o mal futuro cominado na ameaça integradora do tipo de crime a que nos reportamos não se situa necessariamente num futuro longínquo ou mais ou menos distante. É futuro todo o mal que não se inicia com a ameaça ou imediatamente a seguir a ela, independentemente do tempo verbal utilizado.
Fazendo uma incursão pela Jurisprudência a propósito de tal vexata questio (toda ela no sítio www.dgsi.pt):
Conforme acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Acórdão de 7 Junho de 2016, Relatora: MARIA LEONOR ESTEVES.(in www.dgsi.pt): "São três as características essenciais do conceito de ameaça: mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente: O mal tanto pode ser de natureza pessoal (...) como patrimonial (...). O mal ameaçado tem de ser futuro. Isto significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal. (...) Necessário é só (...) que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos da tentativa (cf. Art. 22º-2 c)). Indispensável é, em terceiro lugar, que a ocorrência do "mal futuro" dependa (ou apareça como dependente (...) da vontade do agente). Esta característica estabelece a distinção entre a ameaça e o simples aviso da advertência. (...)" (9) O pomo da discórdia reside, precisamente, na interpretação que se faz da destrinça entre o que se considera como mal futuro e como mal iminente. Enquanto que uns consideram que, quando o anúncio é de um mal iminente, não há crime de ameaça (10) , outros entendem que o mal iminente, embora esteja próximo, é ainda um mal futuro e a pedra-de-toque para distinguir o que é ameaça e o que são actos de execução de outro ilícito criminal que o agente tenha decidido cometer (11) (art. 22º no 1 do C. Penal) estará na intenção que presidiu à conduta em questão (12) .(…). Independentemente de questões de pormenor, parece-nos que o ponto essencial para a compreensão do tipo de ameaça reside na consideração de que a exigência do caráter futuro do mal prometido tem subjacente a ideia, pressuposta pelo legislador, de que o desvalor da ameaça já estará contido na efetiva incriminação pelo crime prometido(…) Para efeitos do preenchimento do tipo legal previsto no art. 153º do C. Penal a ameaça com a prática de um dos crimes de referência do artigo 153º não é típica se ocorrer em simultâneo com a sua execução, sob a forma tentada ou consumada, ou se a execução do crime prometido ainda não se iniciou mas está iminente, pois em ambas as situações, ou seja, quando se verifique identidade do crime prometido com o crime concretamente executado, o desvalor inerente à ameaça é desconsiderado pelo legislador por estar abrangido pela incriminação do crime prometido. Isto é, a execução iminente do crime prometido não se distingue da efetiva execução do mesmo, a título tentado ou consumado, para efeitos da exclusão da tipicidade da ameaça a que se reporta o art. 153º do C.Penal, merecendo o mesmo tratamento jurídico-penal.(…)” (sublinhados nossos)
-No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29/01/2020, processo 81/18.0PBFIG-C1, Relator Jorge Jacob (também citado pelo Ministério Público na sua resposta): I – O mal futuro indispensável à verificação do crime de ameaça não se situa necessariamente num futuro longínquo ou mais ou menos distante. É futuro todo o mal que não se inicia com a ameaça ou imediatamente a seguir a ela. II – Contudo, nem toda a ameaça com um mal futuro é susceptível de constituir o crime tipificado no artigo 153.º, n.º 1, do CP, inexistindo o ilícito referido quando o mal ameaçado é de tal modo longínquo e improvável que não tem aptidão para causar aquele mínimo de inquietação justificativo da tutela penal da tranquilidade e paz interior do ameaçado. III – A expressão “vou ao carro buscar uma navalha e corto-te o pescoço”, dirigida, em voz alta e com foros de seriedade, pelo arguido a outrem, reúne todos os requisitos do crime p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), do CP, por ser de molde a perturbar o ofendido nos seus sentimentos de segurança e liberdade, suscitando-lhe o receio de que o arguido concretizasse a ameaça feita, atingindo a sua integridade física ou mesmo causando-lhe a morte, sendo irrelevante o tempo verbal utilizado, reportado ao momento presente, posto que o mal ameaçado não se concretizou (de imediato).
Na Fundamentação do referido acórdão é explicado o entendimento sumariado: “ O critério de aferição do conceito de futuro no âmbito do crime de ameaça tem sido frequentemente discutido na doutrina, como na jurisprudência, sendo hoje pacificamente assumido que o mal futuro cominado na ameaça integradora do tipo de crime a que nos reportamos não se situa necessariamente num futuro longínquo ou mais ou menos distante. É futuro todo o mal que não se inicia com a ameaça ou imediatamente a seguir a ela, independentemente do tempo verbal utilizado. Assim, se A… dirigindo-se a B… afirma com foros de seriedade quando te apanhar sozinho dou-te um murro, reporta-se a um futuro que poderá ser mais ou menos próximo, dependente da verificação de uma circunstância possível e plausível, cometendo por essa forma um crime de ameaça. Diversamente, se A… dirigindo-se a B… afirma ainda levas um murro e de imediato desfere um murro que atinge B, não pratica qualquer crime de ameaça, mas sim um crime de ofensa à integridade física, uma vez que por força da quase simultaneidade entre o mal ameaçado e o mal causado, aquele é exaurido por este, não intercorrendo um período que permita a assimilação da ameaça e sofrimento interno com a possibilidade da sua execução. A vítima não chega a ter tempo para assimilar o sentimento de insegurança ou medo e sofrer de modo relevante com esse sentimento, por força da imediata consumação do mal ameaçado. Contudo, nem toda a ameaça com um mal futuro é susceptível de constituir crime de ameaça. Assim, se A…, emigrante na Holanda e transitoriamente em Portugal, dirigindo-se a B…, que nem sequer costuma viajar para fora do país, no auge de uma discussão, lhe diz se te apanho na Holanda dou-te uma sova, não há crime de ameaça porque o mal ameaçado é de tal modo longínquo e improvável que não tem aptidão para causar aquele mínimo de inquietação que justificaria a tutela penal da tranquilidade e paz interior do ameaçado.”
No Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08/02/2023 (Processo nº 102/19.0GHCVL-C.C1), de 8 de fevereiro Relator: LUÍS TEIXEIRA: “(…)Para além desta idoneidade ou adequação da ação a lesar o bem jurídico em causa, é indiscutível que as condutas ou ações dos arguidos devem anunciar um mal futuro sendo esta a vexata questio deste recurso. Ou seja, o que importa apurar é se as expressões ou ameaças dos arguidos configuram um mal futuro, a perpetrar a qualquer momento, mais ou menos longínquo ou se, pelo contrário, como se decidiu, as expressões proferidas pelos arguidos «hei-de te matar» e «vou já buscar a espingarda que vos avio a todos», não configuram um anúncio de um mal a praticar no futuro, noutro momento posterior, por se tratar de uma desavença atual. O conceito e/ou natureza de mal futuro é questão controversa e controvertida, se vista e analisada em contraponto com a de mal iminente ou atual. Nesta destrinça se concluirá pela verificação ou não do respetivo crime de ameaças. É assim que a questão também é perspetivada pelo ac. do TRG de 21.05.2018, processo nº 375/16.0GAVLP.G1, ao decidir que “…haverá ameaça de mal futuro sempre que se não esteja perante uma execução iminente, pelo que o mal anunciado terá a característica de mal futuro desde que não se trate já duma tentativa criminosa”. Esta perspetiva assenta na posição do Prof. Taipa de Carvalho … (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, cit., pág. 343)”.
No Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/12/2023 processo 255/20.4PBCLD.C1 Relator João Novais: I – Para o preenchimento do conceito de ameaça, previsto no artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal, torna-se necessário que se anuncie um mal futuro, cuja execução não seja iminente. II – A expressão “levas um tiro” não permite, por si só, retirar, sem qualquer margem para dúvidas, a conclusão que o arguido estava a anunciar que num qualquer momento futuro iria desferir um tiro ao ofendido, como sucederia se dissesse “um dia destes levas um tiro” ou “da próxima vez que te encontrar levas um tiro”. III – Sendo o tempo verbal usado o presente do indicativo, não se pode recusar a possibilidade de o arguido pretender significar que iria, de imediato, desferir um tiro ao ofendido, ainda que esta hipótese também não surja como completamente nítida, como seria num caso que que se proferisse uma frase como “levas já um tiro”. IV – Havendo dúvidas relativamente à intenção do arguido ao proferir as mesmas palavras, há que recorrer ao contexto factual que acompanhou a mesma expressão para se apurar aquela intenção.
No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/05/2021 processo 775/18.0GBVFR.P1 Relatora Elsa Paixão: I–O mal objeto da ameaça tem de ser um mal futuro. II - O mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu, que há de ser, que há de vir, embora esteja próximo, prestes a acontecer. III – Sendo o mal iminente, poderemos estar perante uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é do respetivo mal (já que segundo a alínea c) do artigo 22º do Código Penal, o anúncio daquele mal pode, segundo a experiência comum, ser de natureza a fazer esperar que se lhe sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores, isto é, atos que preencham um elemento constitutivo de um tipo de crime, ou que sejam idóneos a produzir o resultado típico); mas daí se não segue, necessariamente, que deixe de existir uma ameaça.
Lendo-se na fundamentação de direito: “Entende o recorrente que no caso em apreço “ocorreoanúnciodeummalactual,iminente”. A discórdia reside, precisamente, na interpretação que se faz da destrinça entre o que se considera como mal futuro e como mal iminente. Enquanto uns consideram que, quando o anúncio é de um mal iminente, não há crime de ameaça [cfr. Acs. TRP de 25/9/02, proc.º 0240259, de 22/1/03, proc.º 0210754, de 17/11/04, proc.º n.º 0414654, de 23/2/05, proc.º 0510031, de 30/3/05, proc.º 0510587, de 25/1/06, proc.º n.º 0544124, de 17/5/06, proc.º n.º 0411428, de 22/11/06, proc.º n.º 0614091, de 20/12/06, proc.º n.º 0645320, de 28/11/07, proc.º n.º 0712156, de 28/5/08, proc.º n.º 0841544, de 22/6/11, proc nº 41/10.0GAVMS.P1 e de 7/3/12, proc nº 625/10.6GBVNG.P1; TRG de 1/2/10, proc. nº 495/05.6GBMR.G2; TRC de 7/3/12, proc.nº110/09.9TATCS.C1 e de 30/5/12,proc.nº366/10.4GCTND.C1], outros entendem que o mal iminente, embora esteja próximo, é ainda um mal futuro e a pedra de toque para distinguir o que é ameaça e o que são atos de execução de outro ilícito criminal que o agente tenha decidido cometer [Casos claros em que não há ameaça, mas sim tentativa da prática de outro crime são os que foram analisados nos Acs. TRP de 28/5/03, proc.º 0340713, TRL de 11/12/03, proc. nº 7569/2003-9 e de 3/11/09, proc. nº 1092/02.3PBOER.L1-5, e TRE de 4/11/10, proc. nº 13/07.1GLBJA.E1] (art. 22º nº 1 do C. Penal) estará na intenção que presidiu à conduta em questão [No âmbito deste entendimento, cfr. Acs. TRP de 16/2/00, proc.º n.º 9910861, de 7/1/08, proc. nº 1798/07-2 e de 13/7/11, TRG de 18/5/09, proc. nº 349/07.1PBVCT, TRC de 9/9/09, proc. nº 363/08.0OGAACB.1 e de 23/9/09, proc. nº 541/04.0GBPBL.C1, TRL de 11/2/10, proc. nº 105/08.0PCPDL.L1-9 e d9/3/10, proc nº 1713/06.9TALRS.L1.5, e TRE de 6/9/11, proc nº 428/09.0PBELV.E1]. A posição do recorrente é claramente tributária da lição de Taipa de Carvalho, seguida por alguma jurisprudência já citada. A propósito refiram-se também os acórdãos (da mesma Relação do Porto) de 14.7.2004, relatora Conceição Gomes, em que se considerou que ”o arguido diz ao queixoso: “Anda cá para fora, que eu mato-te”, está a anunciar um mal futuro; de 30.3.2005, relator Fernando Monterroso, onde foi considerado como mal anunciado futuro, a expressão “eu vou dar cabo de ti, eu vou-te cortar aos bocadinhos”; de 21.6.2006, relator Jorge França, considerou-se como mal futuro, a situação de o arguido, dirigindo-se à ex-mulher, em frente do edifício onde esta residia, a aborda inesperadamente, segurando por alguns momentos a porta do veículo, impedindo-a assim de a fechar, enquanto lhe diz, em tom sério, que queria resposta sobre a casa e “não sabes do que eu sou capaz, eu estoiro-te”; de 30.9.2009, do mesmo relator, onde se entendeu que a expressão “Quando te agarrar para os lados da … faço-te as contas” utilizada de forma séria, no contexto de uma discussão, é suscetível de preencher o tipo legal do crime de ameaça; de 22.9.2010, relatora Lígia Figueiredo, onde se entendeu que preenche o tipo objetivo do crime de ameaça a conduta daquele que, dirigindo-se a outrem, lhe diz: “hei de te pôr numa cadeira de rodas”; de 6.10.2010, relator Moisés Silva, onde se considerou preencher o tipo objetivo do crime de ameaça a conduta daquele que, dirigindo-se a outrem, lhe diz: «hei de tratar-te da saúde, e só não é hoje porque tenho uma distensão muscular”. O mal iminente é o mal que está próximo, que está prestes a acontecer. Por isso, o mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu, que há de ser, que há de vir, embora esteja próximo, prestes a acontecer. É claro que, sendo o mal iminente, poderemos estar perante uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é do respetivo mal, já que segundo a alínea c) do artigo 22º do Código Penal, o anúncio daquele mal pode, segundo a experiência comum, ser de natureza a fazer esperar que se lhe sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores, isto é, atos que preencham um elemento constitutivo de um tipo de crime, ou que sejam idóneos a produzir o resultado típico. Mas daí se não segue, necessariamente, que deixe de existir uma ameaça. É que, para haver tentativa não basta a prática de atos de execução é necessário que esses atos sejam de execução de um crime que o agente “decidiu cometer” (art. 22º, n.º1).(…) Se, por exemplo, o agente não tem intenção de matar, aquela expressão, não integra um ato de execução de um crime de homicídio, mas integra claramente um crime de ameaças, verificados os demais pressupostos deste tipo de crime, nomeadamente a consciência do agente da suscetibilidade de provocação de medo ou intranquilidade [cfr. neste sentido, v.g., o Ac. do TRL de 17-6-2004,proc.º n.º 3525/04, rel. Almeida Cabral “(…) o agente que no calor de uma discussão, de natureza familiar, diz para a vítima em tom sério “mato-te”, comete o crime de ameaças previsto no art.º153º do Cód. Penal)”, disponível em www.pgdlisboa.pt)(...)”
Finalmente, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09-03-2022 processo 982/19.9PULSB.L1-3, relator ALFREDO COSTA e exarado o seguinte entendimento: “Como já referido o preenchimento do tipo de ilícito de ameaça basta-se com a criação de um sentimento de inquietação na pessoa do ofendido, supondo-se, evidentemente, estarem verificados, ainda: a)-a ameaça; b)-a cominação de um mal (configurando um tipo legal de crime, neste caso de um homicídio); c)-futuro (porque se o mal se iniciar imediatamente após a concretização da ameaça, estaremos já no domínio do início da execução do crime ameaçado ou, pelo menos, da tentativa); d)-de concretização dependente da vontade do agente ou que pelo menos se apresente como tal, aos olhos do homem médio (sob pena de a ameaça não se apresentar como credível e portanto, não poder ser punível como tal)(…)”.
Revisitando, novamente, o caso dos autos e à luz das considerações e jurisprudência supra, evidencia-se que a ameaça proferida pelo arguido, em voz alta e com foros de seriedade, para o ofendido “vou-te matar, esse carro é meu”, “vou-te matar, queres resolver com ou sem polícia” reúne todos os requisitos do crime de ameaça agravada, nomeadamente aqueloutro requisito que o recorrente diz não se verificar, relativo à natureza futura do mal ameaçado.
As palavras proferidas pelo arguido foram de molde a perturbar o ofendido nos seus sentimentos de segurança e liberdade, além da sua adequação, causaram-lhe medo e inquietação, sendo irrelevante o tempo verbal utilizado pelo arguido, reportado ao momento presente, posto que o mal ameaçado não se concretizou (de imediato), com a execução de actos de tentativa do crime ameaçado ou de actos de consumação.
Ademais, encontram-se preenchidos os elementos subjectivos do tipo de ilícito penal, como decorre dos factos provados 2, 3 e 4.(2.Ao dirigir as expressões supra aludidas o arguido bem sabia e não podia ignorar que tais palavras eram idóneas e adequadas a provocar medo e inquietação no íntimo do ofendido, como efectivamente provocaram, prejudicando-lhe a sua liberdade de determinação e, ainda assim, não se coibiu de as proferir; 3.O arguido ao proferir as expressões referidas em 1., agiu com o propósito concretizado de provocar medo e inquietação no ofendido, fazendo-o recear que a qualquer altura poderia atentar contra a sua vida, bem sabendo que tal conduta era adequada e idónea a provocar naquele um estado de espírito redutor e constrangedor da sua liberdade de autodeterminação, o que, de facto, aconteceu.4.Agiu o arguido livre e deliberadamente, com plena consciência da censurabilidade penal da sua conduta, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
É certo que como diz o arguido, nada aconteceu, após o termo do episódio em que ocorreu a verbalização da intenção da prática de um mal atingindo a sua vida, porém, houve tempo para que o ofendido sentisse medo e intranquilidade susceptível de afectar a sua liberdade de decisão e de acção, bem jurídico essencialmente tutelado pela norma penal, e se algo tivesse acontecido em termos de execução do “mal ameaçado” estaria, certamente, o arguido a ser julgado por outro crime, tentado ou consumado.
Na verdade, é futuro todo o mal que não se inicia com a ameaça ou imediatamente a seguir a ela, independentemente do tempo verbal utilizado.
Se estiver iminente a execução do mal poderá estar-se diante de uma tentativa de execução do respectivo acto, isto é, do respectivo mal quando se verifique identidade do crime prometido com o crime concretamente tentado ou executado, o desvalor inerente à ameaça é desconsiderado pelo legislador por estar abrangido pela incriminação do crime prometido, a mera iminência, sem actos que possam ser configurados como de tentativa de execução do crime anunciado, é ainda ela futura e configura o crime de ameaça, estando verificados os demais pressupostos.
Para a verificação do crime de ameaça numa tal situação, basta que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa (cfr. art.º 22º, n.º 2, al.c) do CP), o que não ocorreu no caso concreto, como decorre dos factos provados, pois que, se assim fosse, como já referido, o arguido estaria a ser julgado pelo crime por ele tentado ou consumado.
Ora, atenta a factualidade provada e, ante o exposto, não restam dúvidas de que as expressões em causa traduzem o anúncio de mal futuro e, consequentemente, por se encontrarem preenchidos os elementos objetivos e subjetivo do tipo, a conduta do arguido integra a prática de um crime de ameaça agravado, previsto e punível pelos art. 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 alínea a), do Código Penal.
Concorda-se inteiramente com o afirmado pelo Ministério Público em sede de resposta: “Com efeito, um mal futuro contrapõe-se a um mal passado. Conforme se conclui da consulta a vários dicionários da língua portuguesa, o futuro é o tempo que há de vir, que se segue ao presente, que há de ou que está para ser, acontecer ou suceder, isto é, aquilo que vai ser ou acontecer num tempo depois do presente. E, o mal iminente é o mal que está próximo, que está prestes a acontecer. Por isso, o mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu, que há de ser, que há de vir, embora esteja próximo, prestes a acontecer. As palavras proferidas pelo arguido foram de molde a perturbar o ofendido nos seus sentimentos de segurança e liberdade, suscitando-lhe o receio de que o arguido concretizasse a ameaça feita, atingindo a sua integridade física ou mesmo causando-lhe a morte, sendo irrelevante o tempo verbal utilizado pelo arguido, reportado ao momento presente, posto que o mal ameaçado não se concretizou (de imediato).
Como assim é, não subsistem dúvidas de que o arguido praticou o crime pelo qual foi condenado em primeira instância, porquanto a sua conduta o integra.
Não merece, pois, censura a sentença recorrida quanto ao enquadramento jurídico-penal efetuado.
Improcede assim o recurso interposto pelo arguido.
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V – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam as Juízas Desembargadoras que integram a 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em:
Em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido/recorrente AA e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
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Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC nos termos dos art.ºs 513º n. º1 e 514.º, do Código de Processo Penal, 8º/9.º do Regulamento das Custas Processuais (DL n.º 34/2008, de 26 de fevereiro) e Tabela III anexa a este último diploma.
Notifique.
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Lisboa, 26/06/2025
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelas suas signatárias)
Maria de Fátima R. Marques Bessa
Ana Paula Guedes
Ana Marisa Arnedo
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1. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995
2. Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção.