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REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUISITOS
CONTESTAÇÃO
Sumário
(Sumário da responsabilidade do Relator) I. A faculdade que ao arguido assiste de requerer a instrução, integrando o direito de defesa constitucionalmente acolhido no art. 32º da Constituição da República, não poderá ser obstaculizada, nem por via directa, nem por via indirecta, exigindo a observância de condições, requisitos ou formalidades que na prática signifiquem a ablação desse direito. II. Tão pouco poderá considerar-se como inadmissível a instrução argumentando que a pretensão deduzida no requerimento apresentado pelo arguido ou os seus fundamentos, se reconduzam a uma antecipação da contestação que poderá vir a ser apresentada em fase processual posterior, ou seja, na fase de julgamento. III. Não é a circunstância de as razões de facto alegadas no RAI poderem vir a ser aduzidas em sede de contestação, já na fase de julgamento, que permite cogitar um fundamento de rejeição da instrução por inadmissibilidade legal. IV. Contrariamente ao decidido no despacho recorrido, o arguido cumpriu as exigências de forma contidas no art. 287º/2 do Código de Processo Penal, na medida em que o RAI que apresentou contém em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação. V. Ainda que assim se não entendesse, a omissão do cumprimento da súmula a que alude aquele normativo legal não se mostra cominada com qualquer sanção, nem é, por isso, caso de inadmissibilidade legal da instrução susceptível de fundamentar a sua rejeição.
Texto Integral
Acordam em conferência os Juízes da 9ª secção criminal deste Tribunal da Relação
I. RELATÓRIO
Inconformado com o despacho de 24-03-2025 (ref.ª citius ...), proferido nos autos de instrução com o n.º 727/24.1GAALQ, vindos do Juízo de Instrução Criminal de Loures - Juiz 1, no qual se decidiu a rejeição do requerimento de abertura de instrução, veio o arguido AA, interpor recurso de tal decisão.
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As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões extraídas da motivação do recurso que em seguida se transcrevem: I - Por decisão proferida nos presentes autos, que se recorre, foi rejeitado o requerimento de abertura de instrução por parte do Arguido, com fundamento na sua inadmissibilidade legal, de acordo com as disposições conjugadas nos artºs. 286º., nº. 1, 287º., nºs. 2, a contrario sensu, e 3 do C. P. Penal. II - Pois que, entende que não foi dado cumprimento aos legais requisitos impostos pelo artº. 287, nº. 2, porquanto no requerimento de abertura de instrução não há qualquer alusão às razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação, apresentando, ao invés uma versão dos factos alternativa à descrita na acusação. III - Inconformado com o referido despacho, interpõe o Arguido o presente recurso, por considerar que o mesmo é objeto de reparo e censura no que respeita à respetiva interpretação legal. IV - O Arguido, ora Recorrente, não concorda com a interpretação jurídica ao artº. 287º., nº. 2 do C. P. Penal realizada pelo Exmo. Juiz no despacho, por se considerar contrária ao normativo legal em causa e à real intenção do legislador. V - Nos termos do disposto no artº. 287, nº. 3 do C. Processo Penal, o requerimento para a abertura de instrução de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do Juiz ou por inadmissibilidade legal. VI - As situações de não admissibilidade legal da instrução decorrem, inequivocamente, da própria lei, sendo: - quando requerida no âmbito de processo especial - sumário ou abreviado; - quando requerida por quem não tem legitimidade para o efeito - pessoas diversas do arguido ou assistente; - quando requerida pelo arguido ou pelo assistente, mas fora dos casos previstos nas alíneas a) e c) do nº. 1 do artº. 287º. do C. P. Penal, - quando o requerimento do assistente não configure uma verdadeira acusação; - quando, requerida pelo arguido, se reporte a factos que não alterem substancialmente a acusação do Ministério Público, isto é, nos casos em que o assistente deduz acusação pública; - quando, requerida pelo assistente, em caso de acusação pelo Ministério Público, se reporte a factos circunstâncias que não impliquem alteração substancial da acusação pública. VII - O fundamento apresentado para a rejeição do requerimento para a abertura de instrução apresentado pelo Arguido no despacho que se recorre, não é nenhuma destas causas de inadmissibilidade. VIII - Logo o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo Arguido é legalmente admissível. IX - O Mmo. Juiz de Instrução ao rejeitar o requerimento para a abertura de instrução apresentado pelo Arguido com fundamento na inadmissibilidade legal, violou o estipulado no nº. 3 do arto. 287º. do C. P. Penal. X - Não pode o intérprete ou julgador, distanciado de uma interpretação sistemática, criar novas causas de inadmissibilidade para além daquelas que resultam da própria lei, tal como foi feito no despacho que ora se recorre. XI - O Arguido no seu requerimento para a abertura de instrução, contrariamente ao referido no despacho, apresentou e invocou as razões de facto e de direito pelas quais discorda da acusação, requerendo diligências ou provas que pretende que o Mmo. Juiz de Instrução leve a cabo para a descoberta da verdade por si invocada, nos termos e para os efeitos do disposto no nº. 2 do artº. 287º. do C. P. Penal. XII - Não se limitando, conforme é referido no despacho, razão para a inadmissibilidade legal do requerimento para a abertura de instrução, a apresentar uma versão alternativa dos factos à descrita na acusação. XIII - Não ocorrendo a situação de inadmissibilidade legal da instrução, não pode ser indeferido o requerimento apresentado pelo Arguido destinado à abertura dessa fase processual, a instrução. Termos em que e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., Venerandos Desembargadores, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando o despacho recorrido, substituindo-se por outro que admita a instrução, com o que se fará inteira JUSTIÇA!
(fim de transcrição)
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O recurso foi admitido por despacho de ...-...-2025 (ref.ª citius ...), o qual sobe em separado, imediatamente, suspendendo os efeitos da decisão recorrida.
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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, concluindo que (transcrição): 1º. A Recorrente interpôs recurso do despacho judicial de 24-03-2025 (ref.ª citius ...),, nos autos identificados em epígrafe, que rejeitou o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal do mesmo, alegando, em suma, que tal requerimento cumpre os requisitos legais, nomeadamente com o ónus previsto no n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, nos termos constantes das alegações de recurso, mormente das conclusões deste, (acima transcritas), pelo que deve ser a decisão revogada, e substituída por outra que determine a abertura de instrução. 2.º Desde já, e adiantando a nossa posição, entendemos que, não assiste razão ao recorrente, porquanto o despacho da Mm.ª Juíza de Instrução Criminal é, em nosso entender claro e completo, quer de facto, quer de direito e, efectivamente, o que resulta do recurso do recorrente no requerimento de abertura de instrução, foi tão-só descrever a sua versão quanto aos factos e acontecimentos descritos na acusação. 3.º E, esta fase processual (instrução) não pode nem se deve traduzir numa antecipação da fase de julgamento, conforme doutamente explicado e sublinhado no despacho (ora posto em crise), a cuja fundamentação aderimos “in totum” e aqui damos por reproduzida, por razões de economia processual. 4.º Começa o recorrente por dizer que logo no art.º 1.º do requerimento de abertura de instrução que «não pode concordar com a versão dos factos vertida na Acusação, uma vez que a mesma não corresponde à verdade material dos factos ocorridos durante a relação amorosa que tem com a sua companheira BB, com quem vive como marido e mulher, desde .../.../2020, até a presente data», sendo que, após, desde o artigo 2.º até ao 11.º (último do seu requerimento), o que há é apenas, um discorrer de negações e alegações de uma versão diferente dos factos constantes da acusação nestes autos; e 5.º Após tal articulado, indica o arguido como testemunha a vítima, elencando uma série de questões a efectuar à mesma em sede de instrução. Sucede que a vitima nestes autos, indicada no requerimento, foi ouvida em sede de inquérito, tendo optado por prestar declarações, as quais constam a fls. 55-56 dos autos. 6.º Assim, atendendo ao disposto, mormente nos artigo 286.º, n.º 1 e 287.º, n.º2, ambos do C.P.P., o que se verifica, no caso concreto, é que o recorrente contraria apenas a versão da acusação, sem aditar quaisquer razões de facto e de direito a atender nos termos destes artigos, consubstanciadas as alegações num arrazoar de motivos que deverão ser considerados para efeitos de julgamento, mas não de instrução, conforme bem explanado no despacho posto em crise, bem como, a este propósito e apenas a título de exemplo, no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no processo n.º 471/19.1T9LNH-A.L1-5, de 04-05-2021 – “in” https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/1813fd5b839efd4d802586e0004d934e?OpenDocument. 7.º Pelo exposto e sem mais delongas, entendemos não assistir razão à Recorrente, não tendo o despacho recorrido violado qualquer norma, mormente o disposto no n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal. Pelas razões que se aduziram, entendemos que não deve ser dado provimento ao recurso. Mas Vossas Exas. farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA!
(fim de transcrição)
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Neste Tribunal da Relação, pela Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta foi emitido parecer nos termos seguintes (transcrição parcial): (…) II. Nesta Instância, o Ministério Público acompanha nos seus precisos termos em que vem formulada, a resposta da Ex.ª Senhora Magistrada do Ministério Público junto da 1ª Instância à motivação do recurso interposto pelo arguido AA, do despacho que rejeitou o requerimento de abertura de instrução, com fundamento na sua inadmissibilidade legal, de acordo com as disposições conjugadas dos arts. 286.º, n.º1, 287.º, n.ºs 2, a contrario sensu, e 3 do Código de Processo Penal. III. Atentas as considerações expostas na citada resposta, emite-se parecer no sentido de que seja julgado improcedente o presente recurso e, como consequência, confirmado o despacho proferido pelo Tribunal a quo que rejeitou o requerimento de abertura de instrução. Mas a final, não obstante, melhor se dirá.
(fim de transcrição)
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Cumprido o disposto no artigo 417.º, nº 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que “a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
Daí o entendimento pacífico de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo que apenas as questões aí resumidas deverão ser apreciadas pelo tribunal de recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente os vícios previstos no n.º 2 do art. 410º do mesmo Código.
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Atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, a única questão a decidir no presente recurso é aa seguinte:
- se se verificam os pressupostos da admissibilidade da instrução requerida pelo arguido.
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2. DO DESPACHO RECORRIDO
2.1. É o seguinte o teor do despacho recorrido (transcrição):
I.
O Ministério Publico acusou AA da prática de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) e n.ºs 4 e 5, do Código Penal (despacho ref.ª ...)
Inconformado, o arguido requereu a abertura de instrução (cf. ref.ª 16300795), pretendendo a prolação de despacho de não pronuncia.
Como fundamentos do requerimento de abertura de instrução o arguido apresenta a sua versão dos acontecimentos, alegando que os factos por que vem acusados são falsos, que nunca agrediu a companheira, nem destruiu objetos ou consumiu álcool em excesso. As discussões ocorridas foram normais e sem violência.
Saiu da casa dos pais da companheira por imposição do sogro, não desta.
Posteriormente, a companheira voltou a residir com ele por vontade própria.
A acusação baseia-se em factos falsos, resultantes da oposição da família à relação e a própria ofendida confirmou nos autos que nunca foi agredida.
Requereu a reinquirição da companheira.
II.
Apreciando:
A instrução, nos termos do artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, tem como finalidade a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito, determinando se a causa deve ou não ser submetida a julgamento.
O requerimento de abertura de instrução, embora não sujeito a formalidades, deve conter, de forma sucinta, os fundamentos de facto e de direito que sustentam a discordância face ao juízo de suficiência indiciária que culmina na decisão de acusar, ou de insuficiência indiciaria que conduz ao arquivamento.
Deve ainda indicar, quando aplicável, os actos de instrução a realizar pelo juiz, os meios de prova não considerados no inquérito e os factos que se pretende demonstrar com esses elementos.
O legislador consagra, assim, um mecanismo de controlo judicial da atividade do Ministério Público na fase de inquérito, refletindo o princípio da estrutura acusatória do processo penal, constitucionalmente previsto no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa. Esse controlo visa garantir que a acusação se fundamenta nos factos apurados e que estes se sustentam nos meios de prova recolhidos no inquérito.
Tal sindicância judicial deve circunscrever-se às razões de facto e de direito que sustentam a discordância face à decisão do Ministério Público, tal como delineadas no requerimento de abertura de instrução.
A sua finalidade consiste em aferir se estão preenchidos os pressupostos legais para submeter, ou não, a causa a julgamento – nesse sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29 de janeiro de 2014, o qual acolhe o entendimento de Pedro Anjos Frias, apud Revista Julgar n.º 19 (janeiro – abril de 2013), no artigo “Um olhar destapado sobre o conceito de inadmissibilidade legal da instrução”.
Deste modo, o requerente deve expor fundamentos que evidenciem o desacerto do juízo indiciário subjacente à decisão de deduzir acusação, designadamente mediante a indicação de omissões, insuficiências, errada valoração da prova ou erro de subsunção jurídica.
Tal abordagem coaduna-se com o disposto no artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não podendo a discordância limitar-se à impugnação genérica dos factos constantes da acusação ou à mera apresentação da versão do arguido.
Conforme o entendimento doutrinal citado (Pedro Anjos Frias, op. cit.), e sob pena de desvirtuar a finalidade da fase instrutória, a discordância não pode traduzir-se numa duplicação do julgamento, transformando a instrução numa nova instância de recurso.
Assim, a argumentação do arguido não deve assentar exclusivamente na contraposição da sua versão dos factos, sob pena de criar uma sobreposição indevida entre o requerimento de abertura de instrução e a contestação prevista no artigo 311.º-B do Código de Processo Penal, antecipando indevidamente a fase de julgamento.
Nos termos do artigo 288.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, que remete para o artigo 287.º, n.º 2 do mesmo diploma, a instrução deve centrar-se na verificação da decisão de acusar, e não na mera reinterpretação dos factos pelo arguido, pois tal prejudicaria a atividade de comprovação judicial subjacente a esta fase processual.
III.
Da análise do requerimento de abertura de instrução apresentado nos autos, constata-se que não foi dado cumprimento ao imperativo legal supra enunciado, porquanto, neste não há qualquer alusão às razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação, mormente, o que foi desatendido/ficou por fazer, na fase processual de inquérito e que, por esse motivo, culminou no despacho final de acusação, que meios de prova não foram correctamente valorados, que diligências de prova deveriam ter sido realizadas.
Perpassado o R.A.I., constata-se que, efectivamente, inexistem quaisquer fundamentos que sejam reflexo da análise da prova produzida na fase processual de inquérito e que demonstrem o respectivo erro de apreciação ou que consistam na invocação da omissão de qualquer diligência probatória cuja realização fosse essencial para o apuramento dos factos.
Em suma, nada foi invocado que indique que a decisão de acusar foi tomada sem determinados elementos no processo que teriam de ter sido recolhidos na fase processual de inquérito e cuja omissão seja incompreensível, perante a evidente e notória necessidade dele constarem, ou então que foi tomada fazendo uma análise errada dos elementos probatórios nos quais se apoiou.
No requerimento de abertura de instrução que apresenta, negando os factos e relatando a sua versão dos acontecimentos, o arguido limitou-se a antecipar a fase de julgamento, contestando a acusação.
Assim, a sede própria para a apreciação do ora invocado no R.A.I. será a subsequente fase processual de julgamento, sendo a contestação a que alude o disposto no art.º 311º-B do Código de Processo Penal o meio processual idóneo para o fazer, ainda que sem prejuízo da possibilidade de requerer a produção de quaisquer outros meios de prova necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (cf. art.º 340.º do Código de Processo Penal).
Em suma, impõe-se, concluir pelo incumprimento dos requisitos legais impostos pelo art.º 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, cuja consequência será a rejeição do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido.
IV
Em conformidade, rejeito o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido, com fundamento na sua inadmissibilidade legal, de acordo com as disposições conjugadas dos arts. 286.º, n.º1, 287.º, n.ºs 2, a contrario sensu, e 3 do Código de Processo Penal.
Notifique.
Após transito, remeta os autos à distribuição, para julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular.
(fim de transcrição)
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2.2. Da consulta dos autos resulta ainda o seguinte:
- Em ...-...-2025, foi proferido despacho de acusação contra o aqui recorrente (ref.ª citius ...), imputando-lhe a prática de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) e n.ºs 4 e 5, do Código Penal;
- Em ...-...-2025, o arguido veio apresentar requerimento de abertura da instrução (ref.ª citius 16300795), nos termos e com os fundamentos que em seguida se transcrevem parcialmente:
1.º
O Arguido não pode concordar com a versão dos factos vertida na Acusação, uma vez que a mesma não corresponde à verdade material dos factos ocorridos durante a relação amorosa que tem com a sua companheira BB, com quem vive como marido e mulher, desde .../.../2020, até a presente data.
2.º
Porquanto, nunca o aqui Arguido agrediu, quer verbal, quer fisicamente, a sua companheira, nem partiu objetos em casa, como taças e copos, tal como vem acusado.
3.º
Muito menos é verdade que o Arguido consuma bebidas alcoólicas, frequentemente, até atingir o estado de embriaguez, tal como consta da acusação.
4.º
Até porque o aqui Arguido trabalha na área da restauração, sendo empregado de mesa, onde nunca lhe seria permitido, obviamente, trabalhar alcoolizado, tal como parece fazer crer a acusação, limitando-se o mesmo a beber, de forma moderada, à refeição.
5.º
Ora, efetivamente, desde .../.../2020 até aos dias de hoje, existiram discussões entre o casal, como é normal acontecer entre os casais, mas, nunca existiram agressões verbais, ou, muito menos, físicas.
6.º
Mais, interessa esclarecer, para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, que o Arguido e a sua companheira, BB, no ano de ..., foram viver para ..., para uma casa propriedade dos pais daquela, sita na ..., vivendo naquela sozinhos, visto que o filho da sua companheira, o jovem CC, nunca viveu com os mesmos, mas viveu sempre com os seus avós maternos.
7.º
Sendo que, o Arguido saiu da casa onde morava com a sua companheira, BB, em ..., em .../.../2024, não porque aquela o mandasse sair de casa, tal como erradamente consta da acusação, mas porque o pai da sua companheira, o Sr. DD, o mandou sair, sendo a casa propriedade daquele, a que o Arguido anuiu voluntariamente, sem dar conhecimento, inclusive, de tal facto à sua companheira.
8.º
Contudo, a verdade é que, apesar de, a sua companheira BB, desde .../.../2024, ter ficado a viver, temporariamente, com os seus pais e filho, em ..., desde .../.../2024, voltou a viver com o aqui Arguido, por sua única e inteira vontade, em ..., na sua casa sita na ..., onde continuam os dois a residir sozinhos até a presente data.
9.º
Ora, a verdade é que os pais da companheira do Arguido e o filho da mesma, agora já maior, nunca gostaram do aqui Arguido, nem nunca aceitaram bem o relacionamento amoroso existente entre os dois, tudo tentando fazer para os separar, o que não conseguiram, como era intuito daqueles, com a apresentação de uma queixa contra o aqui Arguido por violência doméstica, com fundamento em factos falsos!
10.º
Mais, desde .../.../2024, até então, não esteve o Arguido mais alguma vez na presença do pai e filho da sua companheira, do Sr. DD e do jovem CC, nem mais foi abordado por nenhum daqueles.
11.º
Por último, mas não de menor importância, foi a própria ofendida, a sua companheira, BB, que, após tomar conhecimento da acusação proferida contra o Arguido, que veio aos presentes autos, para reposição da verdade, esclarecer que nunca foi maltratada ou agredida pelo aqui Arguido, que todos os factos que constam da acusação foram inventados pelo seu pai e filho, este último de apenas 19 nos, o qual continua a viver com os avós maternos, e que julga que tudo o que foi feito por aqueles contra o Arguido foi somente para a afastarem daquele por não aceitarem a relação amorosa que os mesmos têm e que perdura até a presente data!
Nestes termos, e nos melhores de direito que V/Exa. doutamente suprirá, após a realização do debate instrutório e devidamente ponderada a prova recolhida em fase de inquérito e a produzida em fase de Instrução, deverá ser proferido despacho de Não Pronúncia, arquivando-se, assim, os presentes autos.
(…)
(fim de transcrição)
- Mais indica o arguido em tal requerimento os Factos a que a testemunha deve responder, arrola uma testemunha e requer que lhe sejam tomadas declarações a toda a matéria constante da acusação e do presente requerimento de instrução.
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III. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO Se se verificam os pressupostos da admissibilidade da instrução requerida pelo arguido.
Argumenta o recorrente em síntese o seguinte: - o Mmo. Juiz de Instrução ao rejeitar o requerimento para a abertura de instrução apresentado pelo Arguido com fundamento na inadmissibilidade legal, violou o estipulado no n°. 3 do arto. 287°. do C. P. Penal; - porquanto, não pode o intérprete ou julgador, distanciado de uma interpretação sistemática, criar novas causas de inadmissibilidade para além daquelas que resultam da própria lei; - contrariamente ao referido no despacho em apreço, o Arguido no seu requerimento para a abertura de instrução apresentou e invocou as razões de facto e de direito pelas quais discorda da acusação, requerendo diligências ou provas que pretende que o Mmo. Juiz de Instrução leve a cabo para a descoberta da verdade por si invocada; - não ocorrendo a situação de inadmissibilidade legal da instrução, não pode ser indeferido o requerimento apresentado pelo Arguido destinado à abertura dessa fase processual, a instrução.
Como resulta do disposto no art. 286º/1 do Código de Processo Penal, a fase facultativa da instrução tem por finalidade a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Dispõe, por sua vez, o art. 287º do Código de Processo Penal para o que aqui releva que: (…) 2 - O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º, não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas. 3 - O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
Por outro lado, preceitua ainda o art. o art. 308º do Código de Processo Penal, para o que aqui releva, que: 1 - Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia. 2 - É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto nos n.ºs 2,3 e 4 do artigo 283.º, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo anterior.
Da análise conjugada de tais normativos, decorre linearmente que a fase da instrução requerida pelo arguido visa a comprovação judicial da existência de pressupostos indiciários de facto bastantes que justifiquem a sua submissão a julgamento.
No que concerne aos requisitos a que deverá obedecer o requerimento de abertura da instrução (RAI), como explicita Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição, pág. 754):
«O requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido é constituído pelas seguintes partes: a. a narração dos factos que fundamentam a não aplicação de uma pena ou uma medida de segurança; b. as razões de direito de discordância relativamente à acusação; c. a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo (…) d. e os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito.»
Por outro lado, como de forma clara enuncia o citado n.º 3 do art. 287º, a instrução só poderá ser rejeitada por extemporaneidade, incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
No caso concreto, no despacho recorrido o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido foi rejeitado com fundamento na sua inadmissibilidade legal.
Vejamos então.
Como se refere no Acórdão do STJ n.º 7/2005 para fixação de jurisprudência, de 4 de Novembro (com publicação no DR n.º 212/2005, Série I-A de 2005-11-04):
Os casos que ficariam a coberto da inadmissibilidade legal de instrução, e seguindo de perto o Professor Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, ed. Verbo, 2000, pp. 134 e 135, escreve Ravi Pereira, preencheriam um elenco de que fariam parte:
a) A inadmissibilidade de instrução nas formas de processo sumário e sumaríssimo (artigo 286.º, n.º 3, do CPP);
b) A inadmissibilidade de, em caso de arquivamento pelo Ministério Público, o arguido vir requerer a abertura de instrução [artigo 287.º, n.º 1, alínea a), do CPP];
c) A inadmissibilidade de o arguido requerer a abertura de instrução relativamente a factos que não alterem substancialmente a acusação do Ministério Público, isto é, nos casos em que o assistente deduz acusação (artigo 284.º do CPP);
d) A inadmissibilidade de o assistente vir requerer a abertura de instrução relativamente a crimes particulares (artigo 285.º do CPP);
e) A inadmissibilidade de o assistente vir requerer abertura de instrução quando, em caso de acusação pelo Ministério Público, respeite a factos circunstanciais que não impliquem alteração substancial da acusação pública (artigo 284.º do CPP).
A estes poderemos acrescentar aqueles em que o RAI apresentado pelo assistente na sequência de despacho de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público, não se apresenta como uma verdadeira acusação alternativa, situação de vem sendo reconduzida a uma daquelas em que a instrução se mostra inútil e desprovida de objecto e, por isso, legalmente inadmissível, como vem decidindo de forma reiterada a jurisprudência (assim, entre muitos outros, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-04-2017, proferido no Processo n.º 16/16.5TRLSB.S1; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-02-2016, proferido no Processo n.º 15/14.1UGLSB.S2; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-10-2023, proferido no Processo n.º 15/22.8TRLSB.S1, todos em www.dgsi.pt, assim como os demais infra citados).
Porém, quando se trate de instrução requerida pelo arguido, afigura-se-nos inequívoco que a inadmissibilidade legal apenas ocorre quando seja requerida no âmbito de um processo especial (art. 286º/3 do Código de Processo Penal), ou quando seja requerida na sequência de despacho de arquivamento do inquérito (art. 287º/1-a) do mesmo Código).
Reproduzindo o plasmado no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12-07-2023, no Processo n.º 415/22.3TNR-C.E1:
Como ponderada e correctamente assinalava Souto de Moura, in Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 119 a 123:
“As condições de admissibilidade do requerimento e, portanto, a sua não rejeição, dependerão da tempestividade, da competência do juiz e da admissibilidade legal da própria instrução.
No que a esta última condição diz respeito, a pergunta a que haverá que responder será: quando é que a lei não quer que haja instrução?
Desde logo nos processos especiais. No processo comum, a lei não quis que se procedesse a instrução a requerimento do MP, em primeiro lugar. Depois, pretendeu que não houvesse instrução se requerida pelo arguido, quando exorbitasse dos factos da acusação.
E quando requerida pelo assistente, se versasse factos já contemplados com a acusação do MP (cfr. arts. 286º, n°2 e 287º, n°s 1 e 2 do CPP).
O n°2 do art. 287° parece revelar a intenção do legislador restringir o mais possível os casos de rejeição do requerimento da instrução. O que aliás resulta directamente da finalidade assinalada à instrução pelo n°1 do art. 286°: obter o controle judicial da opção do MP. Ora, se a instrução surge na economia do código com o carácter de direito, e disponível, nem por isso deixa de representar a garantia constitucional, da judicialização da fase preparatória. A garantia constitucional esvaziar-se-ia, se o exercício do direito à instrução se revestisse de condições difíceis de preencher, ou valesse só para casos contados.
A instrução serve o arguido, na medida em que este pretenda subtrair-se a uma imputação que o molesta…
Os factos que o arguido quer tratar na instrução serão, ou os concretamente presentes na acusação, ou os que, daí ausentes, de todo modo neutralizam, o efeito jurídico-penal dos factos da acusação. O arguido contrariará então directamente a acusação, ou carreará factos que retiram aos da acusação a repercussão penal pretendida pelo MP.
E se o arguido requerer a instrução sem mencionar quaisquer factos sobre os quais pretende que essa instrução recaia? Ao contrário daquilo que a nosso ver se imporá relativamente ao assistente, parece-nos que neste caso nem por isso a instrução será inadmissível. Sempre que for possível extrair do requerimento, uma discordância que se reporte à acusação, mesmo que considerada no seu conjunto, então estaria preenchido o pressuposto da legitimidade do arguido. O JIC disporia neste caso, apesar de tudo, dum campo delimitado de factos de que partir, e que seriam os factos da acusação…
No tocante ao requerimento subscrito pelo arguido, se se aceitar a posição referida, da não menção de factos nem por isso implicar sem mais, a rejeição do requerimento, então, os casos de rejeição serão mais, estando em causa o requerimento do assistente. Como que se atenderá ao interesse do arguido na instrução, com maior amplitude. E esta visão das coisas não nos repugnará se aceitarmos que a garantia constitucional da instrução se justifica antes de mais para o arguido…
O requerimento da instrução é um pedido de reapreciação da decisão que encerrou o inquérito a partir evidentemente do conteúdo desse inquérito.
É uma faculdade outorgada a quem a decisão de encerramento afectar, e na medida em que por ela for afectado…
A rejeição do requerimento só poderá ter lugar no condicionalismo do nº2 do art. 287º do CPP”.
Com impressivamente se explicita no acórdão n.º 46/2019 do Tribunal Constitucional (Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro), disponível no respectivo site: Nos casos em que é requerida pelo arguido, a fase da instrução corresponde a uma garantia processual que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação; entre as garantias constitucionais de defesa em processo criminal conta-se, assim, «a de não sujeitar o arguido a julgamento quando não se verifiquem indícios suficientes para consistirem numa razoável convicção de que tenha praticado o crime» (Acórdão n.º 691/1998). É certo que este Tribunal tem entendido, em jurisprudência sedimentada, que «a Constituição não estabelece qualquer direito dos cidadãos a não serem submetidos a julgamento sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação da existência de razões que indiciem a sua presumível condenação» (Acórdãos 31/1987, 332/1991, 474/1994, 54/2000, 459/2000, entre outros), dado que «[o] que a Constituição determina no nº 2 do artigo 32º é que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, pelo que o simples facto de se ser submetido a julgamento não pode constituir, só por si, no nosso ordenamento jurídico, um atentado ao bom nome e reputação» (Acórdão n.º 452/2000). Porém, daí não decorre que ao legislador processual penal seja permitido, como regra, e independentemente do caso particular dos processos especiais (v. Acórdão n.º 54/2000), negar ao arguido o direito a provocar a abertura de instrução, seja diretamente – suprimindo o poder jurídico correspondente −, seja indiretamente – onerando excessivamente o seu exercício. Como se escreveu no Acórdão n.º 226/1997, é «exigível, na perspetiva das garantias de defesa do arguido, que este possa optar pela realização de instrução». (...) é certo que se não podem eliminar as garantias previstas para uma dada fase processual com o argumento de que os meios de defesa podem ser usados na fase processual subsequente (Acórdão n.º 54/2000) (destacados nossos)
E no Acórdão n.º 54/2000 (Relator: Paulo Mota Pinto), o mesmo Tribunal Constitucional decidiu que: As normas do artigo 32º, n.ºs 1 ("a expressão condensada de todas as normas restantes" do artigo 32º da Constituição, no dizer de Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 202) e 4 da Constituição da República, assegurando ao arguido todas as garantias de defesa e referindo a existência de uma instrução da competência de um juiz, impõem, não só que o processo criminal preveja, em princípio, a faculdade de o arguido provocar a comprovação judicial da acusação, como que os termos em que tal faculdade pode ser exercida não lhe retirem na prática consistência. (...) A atribuição ao arguido, em regra, do direito de requerer a abertura de uma fase processual que "visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação (...) em ordem a submeter ou não a causa a julgamento" (n.º 1 do artigo 286º do Código de Processo Penal) deve, pois, incluir-se nas garantias de defesa em processo penal constitucionalmente impostas. A esta luz, afigura-se irrelevante, não só que a instrução tanto possa ser requerida pelo arguido como pelo assistente (relativamente a factos pelos quais não tenha sido deduzida acusação), como que seja, em regra, na actual lei processual penal, uma fase de realização facultativa. Como bem se nota no Acórdão n.º 388/99, sendo facultativa a realização de instrução, facultativa não poderá ser, porém, a atribuição ao arguido do direito de decidir se pretende ou não requerê-la. (...) não se podem postergar completamente garantias previstas para uma dada fase processual – designadamente, para a não sujeição a julgamento – com base na invocação de garantias previstas para a fase processual subsequente – que é já a de julgamento. (destacados nossos)
Vale por dizer que a faculdade que ao arguido assiste de requerer a instrução, integrando o direito de defesa constitucionalmente acolhido no art. 32º da Constituição da República, não poderá ser obstaculizada, nem por via directa, nem por via indirecta, exigindo a observância de condições, requisitos ou formalidades que na prática signifiquem a ablação desse direito.
Tão pouco poderá considerar-se como inadmissível a instrução argumentando que a pretensão deduzida no requerimento apresentado pelo arguido ou os seus fundamentos, se reconduzam a uma antecipação da contestação que poderá vir a ser apresentada em fase processual posterior, ou seja, na fase de julgamento.
Ora, foram precisamente esses os argumentos adiantados no despacho sob escrutínio.
Assim, recorde-se o seguinte excerto da decisão recorrida:
Conforme o entendimento doutrinal citado (Pedro Anjos Frias, op. cit.), e sob pena de desvirtuar a finalidade da fase instrutória, a discordância não pode traduzir-se numa duplicação do julgamento, transformando a instrução numa nova instância de recurso.
Assim, a argumentação do arguido não deve assentar exclusivamente na contraposição da sua versão dos factos, sob pena de criar uma sobreposição indevida entre o requerimento de abertura de instrução e a contestação prevista no artigo 311.º-B do Código de Processo Penal, antecipando indevidamente a fase de julgamento.
(…)
Com todo o respeito pelo entendimento vertido na decisão recorrida e no aresto jurisprudencial e posição doutrinária aí citados, a mesma não encontra sustentação na letra da lei e reconduz-se a uma interpretação violadora do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, no qual se inclui o direito a requerer a abertura da fase de instrução, conforme explanado nos acórdãos do tribunal constitucional acima transcritos.
Aliás, entendimento contrário vem sendo perfilhado em vários arestos jurisprudenciais dos Tribunais da Relação.
Assim, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-04-2024, no Processo n.º 9/21.0GHCBR.C1 decidiu-se que: Esta faculdade atribuída ao arguido no sentido de tentar obstar a que seja submetido a julgamento, insere-se no direito de defesa estatuído no art 32º da CRP. E desde que a fase de instrução permita, em abstracto, obter aquela finalidade, não parece ser possível restringir esse direito. Face ao teor das disposições legais citadas, será, assim, admissível o requerimento de abertura de instrução quando, por uma distinta leitura dos factos, o arguido pretenda a comprovação de que os factos muito embora verdadeiros ocorreram noutras circunstâncias, que proceda à simples negação de que eles tivessem sequer sucedido ou que os reconhece, mas acrescenta outros que, a indiciarem-se, convocariam uma causa de justificação ou de exculpação ( Pedro Soares de Albergaria, in “ Comentário Judiciário do Código de Processo Penal “, Tomo III, Almedina, pág. 1200). (destacado nosso)
Veja-se ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-05-2023, no Processo n.º 6/22.9GDCTX-C.L1-9, desta mesma 9ª secção: (…) a finalidade da instrução corresponde a um direito das pessoas afetadas pela decisão do detentor da ação penal de pedir a um juiz que verifique, que demonstre, que confirme, que (ou se) a dita decisão está certa, pois a lei, à semelhança do que se passa em muitos outros países em que vigora o Estado de Direito, reconhece a essas pessoas o direito de verem tal decisão comprovada judicialmente antes de serem submetidas a julgamento ou de verem a sua pretensão punitiva definitivamente arquivada. E é esta atividade que é considerada, tal como acima se referiu, um “(…) direito das pessoas (…)” e uma “(…) garantia do processo penal (…)”, constitucionalmente assegurados, e, portanto, insuscetível de qualquer estreitamento, seja por razões de celeridade processual, seja por razões de interpretação lata de conceitos processuais, seja por quaisquer outras visões do tema. E é precisamente por isso, por se tratar de uma garantia, que a lei apenas permite a rejeição do requerimento de abertura da instrução por ser extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução. Assim, não configura a previsão de inadmissibilidade legal da instrução o requerimento de abertura desta fase processual apresentado pelo arguido que não contenha a súmula das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação, prevista no art.º 287.º, n.º 2, do CPP. (v. ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-02-2018, no Processo n.º 4856/15.4TDLSB.C1, o Acórdão de Tribunal da Relação do Porto de 04-02-2015 no Processo nº 681/13.5PBMAI.P1; o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 20-02-2017, no Processo n.º 7/06.4GABTC.G1; o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25-03-2019, no Processo nº 495/17.3GAMTR.G1 este em www.jurisprudência.pt).
E ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no processo n.º 471/19.1T9LNH-A.L1-5, de 04-05-2021, citado na resposta do Ministério Público, precisamente no mesmo sentido, no qual se decidiu: Na Jurisprudência, o não afastamento da instrução, por “negação”, pontua expressamente pelo menos nos acórdãos da Relação do Porto de 25/06/2014, no processo n.º 30/12.3PCPRT-A.P1, e de 04/02/2015, no processo n.º 681/13.5PMMAI.P1, qualquer deles consultável no endereço electrónico www.dgsi.pt/jtrp. Como, com pertinência se afirma a determinado passo deste segundo aresto, de forma relevante para a presente situação: “(…) nem assim se poderia dizer que estaria comprometida a finalidade da instrução de comprovação judicial da decisão de acusar. Essa comprovação traduzir-se-ia, nesse caso, tão só, na análise da questão de saber se da prova produzida em inquérito resultam, ou não, indícios suficientes da prática pelo arguido do crime por que vem acusado. O requerimento de abertura de instrução não se confundiria com a contestação, nem a instrução se transformaria num simulacro do julgamento. A diferença entre estas duas fases processuais reside em que a instrução culmina num juízo indiciário e o julgamento culmina num juízo probatório, de certeza. E essa diferença mantém-se mesmo quando o requerimento de abertura de instrução se limita a apresentar uma versão dos factos diferente da que consta da acusação, sem especificar as eventuais deficiências do inquérito”. “Mesmo que a indicação dessas razões não seja explícita ou completa, com eventual incumprimento da exigência do n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, não estaremos perante uma inadmissibilidade legal da instrução, ou um motivo de rejeição do requerimento, nos termos do n.º 3 desse artigo. São questões diferentes o incumprimento de alguma exigência do requerimento de abertura de instrução decorrente do n.º 2 do artigo 287.º e a verificação de um motivo de rejeição desse requerimento nos termos do n.º 3 desse artigo. Do teor deste n.º 3 («O requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado…») decorre o carácter particularmente restritivo dos motivos de rejeição do requerimento de abertura de instrução e a tendencial amplitude da faculdade de requerer a abertura de instrução. No plano da política legislativa, é legítimo contestar estas opções do legislador (sem esquecer que elas têm suporte no artigo 32.º, n.º 4, da Constituição), mas elas não podem deixar de ser respeitadas nesta sede. Quer-nos parecer que a interpretação sustentada no douto despacho recorrido, vai num sentido que não se harmoniza com tais opções, alargando os motivos de rejeição do requerimento de abertura de instrução, forçando a letra e contrariando o espírito desse n.º 3 do artigo 287.º do Código de Processo Penal” (ibidem). (destacados nossos)
Assim, pelos fundamentos expostos, não sufragamos o entendimento vertido no despacho recorrido, pois não é a circunstância de as razões de facto alegadas no RAI poderem vir a ser aduzidas em sede de contestação, já na fase de julgamento, que permite cogitar um fundamento de rejeição da instrução por inadmissibilidade legal não previsto nos citados normativos do Código de Processo Penal.
A sufragar-se tal entendimento, dificilmente restaria ao arguido alguma possibilidade efectiva de requerer a abertura da instrução e evitar a sua submissão a julgamento, porquanto, quer a mera negação dos factos vertidos na acusação, quer a apresentação de uma versão alternativa, quer a alegação de factos susceptíveis de determinar a exclusão da culpa ou da ilicitude, serão sempre passíveis de serem alegados na contestação já na fase de julgamento.
Afirma-se ainda na decisão recorrida:
Da análise do requerimento de abertura de instrução apresentado nos autos, constata-se que não foi dado cumprimento ao imperativo legal supra enunciado, porquanto, neste não há qualquer alusão às razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação, mormente, o que foi desatendido/ficou por fazer, na fase processual de inquérito e que, por esse motivo, culminou no despacho final de acusação, que meios de prova não foram correctamente valorados, que diligências de prova deveriam ter sido realizadas.
Contudo, da análise do requerimento de abertura da instrução atrás transcrito, constata-se que o aqui recorrente aduziu de forma sintetizada os fundamentos de facto da sua discordância relativamente à acusação deduzida.
Com efeito, recordem-se os seguintes excertos de tal requerimento:
- nunca o aqui Arguido agrediu, quer verbal, quer fisicamente, a sua companheira, nem partiu objetos em casa, como taças e copos, tal como vem acusado.
- Muito menos é verdade que o Arguido consuma bebidas alcoólicas, frequentemente, até atingir o estado de embriaguez, tal como consta da acusação.
- Até porque o aqui Arguido trabalha na área da restauração, sendo empregado de mesa, onde nunca lhe seria permitido, obviamente, trabalhar alcoolizado, tal como parece fazer crer a acusação, limitando-se o mesmo a beber, de forma moderada, à refeição.
- a verdade é que, apesar de, a sua companheira BB, desde .../.../2024, ter ficado a viver, temporariamente, com os seus pais e filho, em ..., desde .../.../2024, voltou a viver com o aqui Arguido, por sua única e inteira vontade, em ..., na sua casa sita na ..., onde continuam os dois a residir sozinhos até a presente data.
- Ora, a verdade é que os pais da companheira do Arguido e o filho da mesma, agora já maior, nunca gostaram do aqui Arguido, nem nunca aceitaram bem o relacionamento amoroso existente entre os dois, tudo tentando fazer para os separar, o que não conseguiram, como era intuito daqueles, com a apresentação de uma queixa contra o aqui Arguido por violência doméstica, com fundamento em factos falsos!
- foi a própria ofendida, a sua companheira, BB, que, após tomar conhecimento da acusação proferida contra o Arguido, que veio aos presentes autos, para reposição da verdade, esclarecer que nunca foi maltratada ou agredida pelo aqui Arguido, que todos os factos que constam da acusação foram inventados pelo seu pai e filho, este último de apenas 19 nos, o qual continua a viver com os avós maternos, e que julga que tudo o que foi feito por aqueles contra o Arguido foi somente para a afastarem daquele por não aceitarem a relação amorosa que os mesmos têm e que perdura até a presente data.
O arguido não só nega a veracidade dos factos vertidos na acusação, como indica as razões pelas quais tais factos teriam sido falsamente alegados.
Além disso, refere o arguido que é a própria ofendida, a sua companheira, BB, que, após tomar conhecimento da acusação proferida contra o Arguido, que veio aos presentes autos, para reposição da verdade, esclarecer que nunca foi maltratada ou agredida pelo aqui Arguido.
O que efectivamente sucedeu, como decorre do requerimento apresentado pela ofendida em ...-...-2025 (ref.ª citius 16266567), no qual a mesma refere ainda que “tudo o que está escrito foi inventado pelo meu pai (…) e pelo meu filho”.
Ao que acresce que o arguido requereu ainda a realização de diligências de prova na fase de instrução.
Nestes termos, contrariamente ao decidido no despacho recorrido, o arguido cumpriu as exigências de forma contidas no art. 287º/2 do Código de Processo Penal, na medida em que o RAI que apresentou contém em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação.
Porém, ainda que assim se não entendesse, a omissão do cumprimento da súmula a que alude aquele normativo legal não se mostra cominada com qualquer sanção, nem é, por isso, caso de inadmissibilidade legal da instrução susceptível de fundamentar a sua rejeição nos termos decididos na decisão recorrida (cfr. Maia Gonçalves CPP Anotado 17ª ed., pág. 692).
Em conformidade, o despacho recorrido não poderá subsistir, devendo ser substituído por outro que admita a instrução requerida, prosseguindo os ulteriores termos.
Pelos fundamentos expostos, o presente recurso merece provimento.
*
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, revogando a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que admita a instrução requerida pelo arguido, declarando aberta a fase de instrução, prosseguindo os ulteriores termos processuais.
Sem custas (art. 513º do Código de Processo Penal, a contrario)
Notifique.
Lisboa, 26 de Junho de 2025
(anterior ortografia, salvo as transcrições ou citações, em que é respeitado o original)
Elaborado e integralmente revisto pela Relatora (art.º 94.º n.º2 do C. P. Penal)
Paula Cristina Bizarro
Ivo Nelson Caires B. Rosa
André Alves