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INFRACÇÃO DE REGRAS DE CONSTRUÇÃO
CRIME
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
MEDIDA DA PENA
REGIME DE PROVA
Sumário
(Sumário da responsabilidade da Relatora) I. A impugnação ampla da matéria de facto e a reapreciação a efectuar pelo tribunal de recurso não poderá ter por objecto, nem por finalidade, a introdução na factualidade provada de factos não incluídos na decisão recorrida. II. O arguido/recorrente cinge o dissenso quanto ao enquadramento jurídico-penal na invocação de que o acidente sempre teria ocorrido por violação das regras de segurança que incumbiam legalmente ao dono da obra. III. O denominado concurso de culpas não belisca a responsabilidade criminal apenas condescenderá a oportuna valoração na determinação da medida da pena. IV. Por referência ao conjunto dos factos, incluindo, necessariamente, o hiato temporal já decorrido e as condições pessoais do recorrente, a pena aplicada desrespeita os critérios legais, jurisprudenciais e, maxime, os de adequação e proporcionalidade constitucionalmente impostos. V. Outrossim, não se vislumbra que, tendo em conta o tipo legal perpetrado, o lapso de tempo entretanto decorrido (mais de 18 anos) e a circunstância de o arguido/recorrente não desempenhar já qualquer actividade profissional, se mostrem ainda actuais/prementes quaisquer carências de socialização conexas com a conduta delituosa, a justificar a imposição de um regime de prova.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
1. Por acórdão proferido por este Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Abril de 2024, foi decidido: «1) Eliminar da Fundamentação de Facto da sentença recorrida o que aí consta no artigo 11º dos factos provados, porquanto tal não se trata de matéria de facto. 2) Declarar verificado o vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. a) – insuficiência para a decisão da matéria de facto – não suprível por este tribunal de recurso e, por tal 3) determinar a baixa dos autos à 1ª instância a fim do tribunal recorrido reabrir a audiência de julgamento com vista ao apuramento da seguinte factualidade: - A empresa AA, dono da obra e entidade executante, elaborou planos de segurança para a obra, no caso para prevenir quedas em altura. - A empresa AA, dono da obra e entidade executante acautelou a presença ou acompanhamento da obra por um coordenador de segurança para assegurar o cumprimento das regras de segurança. - Após o sinistro e na sequência da notificação feita pela IGT à sociedade “SC”, quem, efectivamente, procedeu à colocação em obra dos equipamentos de protecção colectiva nomeadamente os guarda-corpos visíveis nas fotografias de fls. 31/a mando de quem foram tais equipamentos ali colocados. Proferindo-se depois nova decisão em conformidade com o que vier a ser apurado».
2. Reaberta a audiência de julgamento, o Senhor Juiz do Tribunal a quo, por sentença de 6 de Novembro de 2024, decidiu: «a) Absolver o arguido CC da prática, na forma consumada, de 1 (um) crime de infracção das regras de construção agravado pelo resultado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 277.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, e 285.º do Código Penal, de que vinha acusado; Após convolação: b) Condenar o arguido CC da prática, na forma consumada, de 1 (um) crime de infracção das regras de construção agravado pelo resultado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 277.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, e 285.º do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão; c) Suspender a execução da pena de prisão pelo período de 4 (quatro) anos – nos termos dos artigos 50.º, do Código Penal, sujeita a regime de prova – em conformidade com os artigos 53.º e 54.º do Código Penal – sob a condição de o Arguido: i) Responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social; ii) Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência; iii) Informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso».
3. O arguido CC interpôs novo recurso da sentença condenatória. Aparta da motivação as seguintes conclusões: «1.ª Da leitura de toda a prova documental apensada nos autos e a audição do depoimento da testemunha DD, inspetora da inspeção geral do trabalho, registado em .../.../2022 no Ficheiro de gravação com início às 10h 28 min. e termo às 10h 58 min, especificamente aos 10 min. 40 ss. a 14 min. 30 ss. e aos 26 min. 50 ss. a 28 min. 20 ss., deve a douta sentença em apelo ser reformulada, acrescentando-se os seguintes factos provados: […] 21. A sociedade AA, era o dono da obra, a entidade executante, o empreiteiro geral. 22. A identificada sociedade não providenciou pela colocação em obra de guarda-corpos. 23. Nem assegurou planeamentos e/ou planos de segurança, no caso para prevenir quedas em altura. 24. Nem acautelou o acompanhamento da obra por um coordenador de segurança. 25. Após o sinistro, o dono da obra e no caso a entidade executante, colocou ou mandou colocar mecanismos de segurança coletiva, guarda-corpos, que tornavam desnecessária a utilização de proteção individual, os arneses. […] 2.ª Do que igualmente resulta a correção da resposta negativa das alíneas f) e g) dos factos não provados. 3.ª A motivação do recurso põe em crise a matéria de facto julgada provada, inscrita nos parágrafos 5 a 14 e, os factos julgados não provados nas alíneas a); b) e c). 4.ª No tocante aos parágrafos 5, 10, 13 e 14 e alíneas a); b) e c), na essência busca-se a verdade quanto à existência ou não de equipamento de proteção individual, os arneses de segurança e, se o sinistrado contrariou as ordens recebidas pela sociedade representada pelo arguido. 5.ª Importa auditar o depoimento da testemunha EE, encarregado da obra, registado em .../.../2023 - Ficheiro de gravação com início às 10h 23 min. e termo às 10h 47min), especificamente, aos 03 min. 15 ss. a 04 min. 50 ss.; aos 05 min. 50 ss. a 06 min. 37 ss. 6.ª E ficheiro de gravação do mesmo dia .../.../2023 com início às 10h 51 min. e termo às 11h 07min.), especificamente, aos 01 min. 48 ss. a 02 min. 44 ss.; Aos 03 min. 30 ss. a 04 min. 26 ss. e aos 06 min. 06 ss. a 14 min. 30 ss. 7.ª Todo o depoimento mostra-se prestado sem hesitações, contradições, sem pausas de reflexão ou outros elementos que nos deixem suspeitar de vieses ou desrespeito pela verdade e portanto pelo tribunal. 8.ª Deixando concluir-se pela existência de arneses em obra, e que apesar de não terem formação, tinham explicação sobre a sua utilização e sabiam que quando em trabalhos perigosos “ … tinham de usar aquilo”. 9.ª A avaliação prejudicial do crédito da testemunha seguida pelo tribunal a quo, não tem, salvo o devido respeito, qualquer sentido e fundamento. Quer como resultará da reapreciação da prova pela forma espontânea, absolutamente descomprometida e genuína do depoimento, quer pelas argumentos marginais e irrazoáveis que o tribunal encontrou para o descredibilizar inexplicavelmente. 10.ª Em resultado do expendido, a matéria de facto constante dos parágrafos 5, 10, 13 e 14 dos factos provados e, as alíneas a); b) e c) dos não provados, tem de ser revista e reelaborada, considerando que na verdade, na pura verdade, existiam e estavam disponíveis os arneses na obra. 11.ª Assim como o mencionado na al. f) dos factos julgados não provados, uma vez que o sinistrado no dia do acidente, por motivo de um estado de indisposição que manifestara ao encarregado, recebera ordens para executar outros trabalhos, mais simples, que não o expunham a trabalhos em altura e, nessas circunstâncias, nem tinha necessidade de usar arnês. 12.ª No que concerne aos factos provados indicados nos parágrafos 6 a 9, 11 e 12, não podem manter-se uma vez que sobre os mesmos nenhuma prova foi produzida, na verdade sequer requerida, ou melhor investigada. 13.ª Porquanto, dos autos de investigação da IGT ou da GNR extrai-se que ninguém assistiu ao acidente, o trabalhador estaria sozinho na obra, o que não sendo crível, é a verdade processual a que aportamos e que salvo melhor opinião, deverá presidir à decisão. 14.ª Desconhece-se por completo a origem e as causas do sinistro. 15.ª Quanto ao parágrafo 12 “Dispunha o Arguido dos conhecimentos técnicos e legais que lhes permitiam evitar o acidente.”, quando conjugado com o facto provado em 19, o arguido “Completou o 4.º ano de escolaridade.”, fica por esclarecer. 16.ª De novo nenhuma prova foi produzida, sequer requerida, por exemplo documental, nem sequer a questão foi colocada ao encarregado de obra que trabalhava para o arguido, pelo que, na incógnita, deve ser recortado dos factos provados. 17.ª A realidade é que no ano de 2007, a sociedade SC, representada pelo arguido, aceitou realizar uma subempreitada para com um empreiteiro denominado AA, e para o efeito utilizou o estaleiro deste. 18.ª No local, o trabalhador terá de algum modo caído e acabou por dar-se o infeliz acontecimento, uma morte, cujas circunstâncias e causas se desconhecem, exceto que o trabalhador terá decidido desrespeitar as ordens que o encarregado lhe transmitira em consequência das suas queixas por má disposição no malfadado dia, no sentido de aquele se dedicar a trabalhos mais simples, que não eram realizados em altura. 19.ª Mas o sinistrado tinha em obra, sabia ter e não usou, os equipamentos de proteção individual, os arneses. 20.ª É pacífico que a sociedade AA, era o dono da obra, o empreiteiro geral, a entidade executante e, responsável máximo pela segurança dos trabalhos. 21.ª E que sobre a conduta e as responsabilidades desta empresa na obra, a Inspeção Geral do Trabalho, o Ministério Público ou alguma autoridade nada investigaram, limitando-se a encaminhar as responsabilidades para o arguido, o que agora mereceu ainda acolhimento do tribunal a quo, que varreu por completo a relevância dos efeitos da conduta daquela sociedade dona da obra, entidade executante e empreiteiro geral. 22.ª Esta sociedade AA na obra, violou em cascata os ditames do Dec. Lei 273/2003 de 29/10, designadamente, a elaboração de planeamento e planos de segurança na obra; (art.º’s 5.º e 6.º e 17.º); a nomeação de um coordenador de segurança (art.º 9.º, 17.º e 19.º). 23.ª Este, como determina a lei, deveria promover e verificar o cumprimento do plano de segurança e saúde, bem como das outras obrigações da entidade executante, dos subempreiteiros e dos trabalhadores independentes e coordenar o controlo da correta aplicação dos métodos de trabalho, na medida em que tenham influência na segurança e saúde no trabalho; 24.ª E de tudo isto, o tribunal a quo sufraga que não tem ou não teve qualquer influencia no infortúnio do sinistrado. 25.ª O recorrente salienta, a traço grosso, que não pretende aventar que se o dono da obra tivesse procedido do modo correto e legal, a infração não se verificaria. 26.ª O que se defende e tem-se como razoável sobrelevar, é avaliar se uma conduta daquele dono da obra, que respeitasse as mencionadas regras de segurança, teria evitado ou poderia ter evitado a morte. 27.ª E das duas uma, ou entendemos que todos aqueles legais procedimentos, com o subsequente acompanhamento da obra por um coordenador de segurança, são meras disposições para efeitos de contraordenação, mas em substância em nada contribuem para a segurança dos trabalhadores, o que parece ser uma conclusão inusitada. 28.ª Ou efetivamente, aquelas regras têm alguma substrato e razão de ser no sentido de assegurar a providência de acidentes. 29.ª E nesse caso, há que aceitar que, nesse caso, se o dono da obra tivesse acautelado os planeamentos e planos de segurança e um coordenador de segurança da obra (a quem incumbe a suspensão dos trabalhos em caso de inobservância das regras de segurança), a probabilidade do sinistro ocorrer era nula, o sinistro ter-se-ia evitado. 30.ª O recorrente discorda em absoluto dos exemplos que o tribunal convoca qualificando de modo próprio como absurdos, pois a situação em apreço tem diametral diferença de figurino. 31.ª A avaliação da conduta omissiva do dono da obra, da entidade executante, do empreiteiro geral, da direção e fiscalização da obra, encontra um nexo causal direto e imediato com a ocorrência e subtrai ao arguido qualquer responsabilidade criminal pela morte do sinistrado. 32.ª Podendo caber-lhe responsabilidade contraordenacional, o certo é que a alçada criminal é nas circunstâncias em apreço, manifestamente desproporcionada. 33.ª Pelo que, a sentença recorrida fez errada interpretação e aplicação dos art.º’s 277.º n.º 1 al. b) e 285.º do Cód. Penal. 34.ª Quanto à medida da pena, o tribunal a quo parece escrever sem sopesar que o arguido conta 61 anos de idade, que os factos remontam a 2007, há 15 anos, que desde então não tem incidências criminais, porquanto a condenação por crime tributário resulta de factos ocorridos naquele mesmo período. 35.ª Naquelas circunstâncias, a finalidade preventiva geral ou especial em que assenta a pena de quatro anos de prisão (embora suspensa), carece de sentido e extrapola a finalidade das penas: 36.ª Mostrando-se igualmente e acentuadamente extemporâneo e desadequado, 15 anos depois, submeter-se o recorrente com 61 anos, a um plano de reinserção social. 37.ª A douta sentença recorrida viola assim, a melhor interpretação e aplicação dos art.º’s 40.º. 54.º e 71 n.º 2 do Cód. Penal».
4. O recurso foi admitido, por despacho de ... de ... de 2025, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.
5. A Ex.ma Magistrada do Ministério Público, em primeira instância, respondeu ao recurso interposto. Propugna pela confirmação do julgado e formula as seguintes conclusões: «1. De uma leitura atenta da decisão recorrida, resulta que o Tribunal a quo, cumpriu a exigência legal de fundamentação ínsita no artigo 374.º, do Código de Processo Penal, descrevendo os factos que considerou provados e, seguidamente, descrevendo o raciocínio que a levou a considerar tais factos provados e não provados. 2. O raciocínio do Tribunal ao apreciar a prova produzida foi devidamente explicado na sentença e seguiu as regras da experiência e do senso comum, não existindo qualquer anomalia no processo lógico seguido. 3. Nesta sede, há que recordar que, nos termos do artigo 127.º, do Código de Processo Penal, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. 4. Afigura-se-nos que a sentença encontra-se devidamente fundamentada, sendo inatacável o processo lógico formado pelo Tribunal a quo para chegar à decisão, inexistindo qualquer vício ou nulidade da decisão. 5. A determinação da medida da pena, nos termos dos artigos 40.º, e 71.º, n.º1, do Código Penal, é feita atendendo, em primeira linha, à culpa do agente, nunca a ultrapassando e tendo em vista as finalidades de prevenção. A prevenção geral na sua vertente positiva implica a tutela dos bens jurídicos, no sentido de integração e reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma jurídica, ao mesmo tempo que se assegura a credibilidade do sistema penal perante a comunidade. A prevenção especial está centrada no arguido. Com efeito, pretende-se a ressocialização do arguido para que esteja inserido na sociedade, respeitando as regras de funcionamento da mesma, num esforço que se centra em evitar o futuro cometimento de crimes por aquele indivíduo. 6. De acordo com o artigo 71º, nº2 do Código Penal, como forma de atingir estas finalidades, há que atender a todos os critérios que deponham a favor ou contra o agente, como sejam o grau de ilicitude, o modo de execução do facto e a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente e situação económica e a conduta anterior e posterior ao facto. 7. Da análise da sentença aqui em causa, resulta que, na determinação da pena aplicável, o Tribunal a quo considerou todos os factores exigidos por lei, ponderando aqueles que depunham em benefício e em desfavor do arguido, nomeadamente, o grau de ilicitude, ao modo de execução dos factos e a gravidade das consequências, bem como o seu percurso de vida e os seus antecedentes criminais. 8. Afigura-se-nos que o Tribunal a quo ponderou correctamente todos os factores necessários à determinação da medida da pena, não merecendo tal decisão qualquer reparo tendo ainda ponderado todos os institutos de substituição da mesma».
6. Nesta instância, a Ex.ma Sra. Procuradora-Geral Adjunta, louvada na resposta, é de parecer que o recurso deve ser julgado improcedente.
7. Cumprido o artigo 417.º, n.º 2 do C.P.P. não houve reacção.
8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Delimitação do objeto do recurso
Atento o teor das conclusões da motivação do recurso, importa fazer exame dos invocados erros de julgamento da matéria de facto e da matéria de direito, este último no que concerne à subsunção jurídico-penal e à escolha e medida da pena.
2. A decisão trazida da instância sobre a matéria de facto e respectiva motivação é do seguinte teor: «Factos provados Efectuado o julgamento, provaram-se os seguintes factos: 1. O arguido é sócio-gerente da sociedade SC Pessoa Colectiva N° ..., desde ........2000, praticando todos os actos inerentes a sua actividade, em nome e no interesse desta, na qualidade de seu representante legal. 2. No dia ... de ... de 2007, a sociedade SC ajustou com a sociedade AA, um acordo pelo qual aquela deveria "executar todos os trabalhos de carpintaria de tosco e armação de ferro. conforme projecto aprovado" de um edifício multifamiliar, sito na ..., que estava a ser construído por esta empresa. 3. No dia ... de ... de 2007, pelas 10h50, no estaleiro temporário de construção civil, sito junto à ..., procedia-se à construção do citado edifício multifamiliar com 5 pisos (4 acima da cota da soleira e um abaixo desta). 4. Na execução da actividade supra referida encontravam-se os trabalhadores da sociedade SC, de entre os quais se encontrava FF, empregado da sociedade desde o dia ........2003, que exercia as funções de .... 5. Na execução dos trabalhos de carpintaria de tosco e armação de ferro não dispunham os trabalhadores da sociedade SC, de qualquer protecção colectiva ou individual de segurança que permitisse prevenir e diminuir os riscos de acidentes de trabalho, designadamente o risco de queda, nem lhes havia sido ministrada qualquer tipo de formação em matéria de segurança no trabalho. 6. Em obediência às ordens e instruções que lhe foram dadas pelo arguido CC, FF encontrava-se junto à bordadura da laje da cobertura do edifício a içar materiais através do guincho aí instalado. 7. A dado momento, FF, executando os trabalhos acima mencionados, sem estar preso por um cinto ou arnês de segurança a nenhum ponto fixo e dado não terem sido colocados na obra guarda-corpos junto a todas as aberturas para o exterior, desequilibrou-se e caiu a cerca de 12 metros de altura. 8. Em consequência da queda descrita, o ofendido sofreu graves lesões traumáticas torácicas e abdominais, nomeadamente – Infiltração sanguínea no couro-cabeludo subjacente à escoriação atrás descrita a nível supraciliar à esquerda, com 2 cm × 1 cm; – Infiltração sanguínea músculo temporal esquerdo, com 1 cm x 0,6 cm; – Traço de fractura linear interessando o tecto da órbita esquerda, desde a lâmina crivosa, oblíquo para a frente e para a esquerda com 4 cm; – Fracturas, com infiltrações sanguíneas, de arcos costais anteriores; dos l° ao g° arcos à esquerda e dos 1° e 2° arcos costais à direita; – Lacerações e múltiplos focos de contusão em ambos os lobos do pulmão esquerdo; edema e enfisema pulmonares; – Rotura do saco pericárdico; hemopericárdio - cerca de 100 cm3 de sangue; – Três lacerações do miocárdio: uma transfixiva, na parede anterior e duas na posterior (uma das quais igualmente transfixiva); – Hemotórax à direita - cerca de 1250 cm3 de sangue; – Rotura da hemicúpula diafragmática à direita; – Contusão da face diafragmática do lobo direito dofigado; infiltração sanguínea do hilo hepático; – Rotura do baço; – Infiltração sanguínea do hilo do rim esquerdo; – Hemoperitoneu - cerca de 500 cm3 de sangue; – Fracturas expostas, epifisárias proximais do rádio e do cúbito esquerdo; – Fracturas dos ramos íleo-ísquio-púbicos (bilateralmente), com diastase da sínfose púbica (cerca de 1,5 cm); 9. Que foram causa directa e necessária da sua morte, que veio a ocorrer nesse mesmo dia pelas 11h43m. 10. O processo utilizado para içar materiais através do guincho instalado na obra não foi realizado com respeito pelas regras de protecção colectiva de segurança vigente, não foi utilizada a protecção individual contra o risco de queda em altura, nomeadamente, um arnês de segurança, nem esse equipamento foi colocado à disposição do ofendido FF, bem como, não foi dada qualquer formação na área de segurança a FF. 11. Se tivesse sido colocada a protecção colectiva e individual exigível à obra em causa, o ofendido FF não teria caído ao solo e não teria sofrido as lesões supra descritas, que foram causa directa e necessária da sua morte. 12. Dispunha o Arguido dos conhecimentos técnicos e legais que lhe permitiam evitar o acidente. 13. O Arguido, na qualidade de representante legal da sociedade empregadora de FF, não manifestou o cuidado que o dever geral de providência aconselha e que podia e devia ter, pondo em perigo a segurança dos seus trabalhadores, devendo ter evitado a morte de FF que podia e devia ter previsto, caso tivesse agido com diligência e cumprido as obrigações que a lei impunha na execução da construção e para prevenir os acidentes nessa actividade. 14. O Arguido actuou de forma livre, consciente e voluntária, na qualidade de representante legal da sociedade SC, bem sabendo o seu comportamento proibido e punido por Lei. * 15. O Arguido nasceu a ... de ... de 1962. 16. Encontra-se desempregado, referindo não ter condições de saúde para trabalhar, vivendo da ajuda de terceiras pessoas, tendo anteriormente vivido como sem-abrigo. 17. Actualmente, encontra-se a viver em casa emprestada, por uma amiga, não despendendo qualquer quantia com a mesma, beneficiando de ajuda da mesma no que respeita à alimentação. 18. Tem três filhos adultos, com vidas autónomas e independentes, com os quais não mantém relação. 19. Completou o 4.º ano de escolaridade. 20. O Arguido foi condenado, por sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Central Criminal de Loures, Juiz 2, no âmbito do proc. n.º 223/08.4..., proferida a .../.../2013, transitada em julgado a .../.../2022, pela prática em 2003 de um crime de abuso de confiança fiscal agravado, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.ºs 1 e 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, sob a condição de proceder ao pagamento ao Estado no prazo referido por último de 11.693,12 € (onze mil, seiscentos e noventa e três euros e doze cêntimos). * Factos não provados Não se provaram quaisquer outros factos relevantes para a decisão da causa, nomeadamente que: a) Existiam cintos/arneses de segurança à disposição dos trabalhadores; b) O Ofendido não usou cinto de segurança que estava à sua disposição porquanto assim não quis; c) O Ofendido contrariou ordens expressas da entidade empregadora, laborando contra estas no momento do acidente; d) A empresa AA elaborou planos de segurança para a obra, no caso para prevenir quedas em altura; e) A empresa AA acautelou a presença ou acompanhamento da obra por um coordenador de segurança para assegurar o cumprimento das regras de segurança; f) Após o sinistro e na sequência da notificação feita pela IGT à sociedade “SC, foi a sociedade AA quem procedeu à colocação em obra dos equipamentos de protecção colectiva nomeadamente os guarda-corpos; g) Após o sinistro e na sequência da notificação feita pela IGT à sociedade “SC, foi a mando da sociedade AA que foram colocados em obra dos equipamentos de protecção colectiva nomeadamente os guarda-corpos; h) O Arguido nunca se deslocou à obra referida em 2., 3. e ss.. * Motivação O Tribunal formou a sua convicção do conjunto da prova produzida, nomeadamente: a) O Arguido, no exercício de um direito legítimo, não prestou declarações (limitou-se aliás a referir, no fim do julgamento, após a reabertura da audiência, no seguimento do Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, que nunca se deslocou à obra). O processo inicia-se com o auto de notícia de fls. 3 e ss., com descrição das circunstâncias espácio-temporais, identificação do acidentado e da entidade patronal. O contrato de empreitada da sociedade SC com a sociedade AA encontra-se documentado a fls. 33, constando a ficha de aptidão de FF a fls. 41. A certidão de registo comercial da sociedade encontra-se a fls. 69 e ss., resultando que o Arguido é sócio gerente da sociedade. O exercício de facto desses poderes foi desde logo confirmado por GG (encarregado da sociedade). O mesmo confirmou que a sociedade executava contrato de empreitada, nos termos constantes do documento de fls. 33, sendo, aliás, uma subempreitada, relativa a trabalhos e carpintaria de tosco, armação de ferro. O decesso de FF, resulta do relatório de autópsia de fls. 23 e ss., encontrando-se o exame toxicológico a fls. 29, sendo que o assento de óbito consta de fls. 7 do apenso. Assim, os factos 1. a 4. e 8. e 9. resultam análise conjugada de todos os referidos elementos de prova, levando-se ainda em conta as fotografias de fls. 8 a 12 e 28 a 31, que permitem ter uma real noção da construção onde os factos ocorreram. No que respeita ao local onde o trabalhador laborava, no momento imediatamente anterior à queda, não foram ouvidas testemunhas presenciais, aliás, nos termos do relatório preliminar de fls. 3 do apenso não existirão mesmo testemunhas presenciais. Todavia, tendo em conta a posição do corpo retratada nas fotografias já referidas, o facto de o cabo do guincho ter ficado preso num extensor (cfr. fls. 11), bem como de o ofendido ter caído junto ao mesmo, considerando as lesões e consequências da queda, e que na cobertura, junto ao guincho, inexistia qualquer protecção colectiva ou individual, deve concluir-se, com a necessária segurança, que o ofendido caiu da cobertura, onde se encontrava a operar o guincho. Aliás, essa é a interpretação que fazem todos os intervenientes (cfr. o auto de notícia, o relatório da Inspecção Geral e o depoimento de GG). No que respeita à inexistência de meios de protecção colectiva e individual na cobertura do edifício e junto ao guincho, tal facto resulta das fotografias já referidas, no que respeita a guarda-corpos ou dispositivos similares, bem como do facto de o ofendido não ter qualquer dispositivo individual de segurança no momento da queda, nem ter sido encontrado no local (cfr. o referido auto e fotografias). GG confirma igualmente que inexistia qualquer meio de protecção colectiva na cobertura, e que o trabalhador não usava qualquer meio de protecção individual, nem lhes tinha sido ministrada formação na área de segurança. Tal análise justifica a resposta ao facto 7. e parcialmente aos factos 5. e 10.. Dizemos parcialmente, porquanto, em relação aos meios de protecção individual GG, de modo atabalhoado, acaba por referir que os mesmos existiam e estavam à disposição dos trabalhadores noutro local, nomeadamente no local onde os trabalhadores se vestiam para o serviço. Todavia, a testemunha apresentou um relato comprometido, quiçá por ser encarregado de obra e recear responsabilidade pela morte da vítima, assumindo uma postura defensiva, pouco espontânea, culpando sistematicamente a vítima. A forma como prestou depoimento, foi sempre pouco credível, contrariando os demais elementos de prova, começando a afirmar que havia guarda-corpos e cintos/arnês de segurança, o que manifestamente não corresponde à verdade, tendo por vezes de lhe ser feita a mesma pergunta, duas e três vezes, para que o mesmo, a final, acabasse a reconhecer que na cobertura não existiam guarda-corpos. No que respeita aos cintos o seu depoimento é atabalhoado, apresentando justificações inverosímeis de supetão, designadamente quando afirma que os mesmos não foram apresentados porquanto “ninguém pediu nada, eles estavam lá”, isto é, porquanto não foram solicitados pelas autoridades. Ora, num acidente de trabalho com os contornos do presente, em que esteve presente a GNR e a Inspecção Geral de Trabalho tal versão não é minimamente credível, afigurando-se ao invés, que a pergunta que foi repetidamente feita foi precisamente pela existência de instrumentos de segurança colectiva e individual no trabalho. Essa matéria foi abordada no relatório da Inspecção Geral de Trabalho e os mesmos nunca foram apresentados nos autos, nem localizados na obra ou em qualquer outro local. Ora, não é crível que num processo que teve várias vertentes (laboral/criminal/contra-ordenacional), nunca tenha sido solicitada a apresentação dos arnês de segurança, e que por mais de 15 anos tais elementos nunca tenham sido apresentados ou referidos nos autos. Devemos concluir, inegavelmente, que a testemunha está a faltar à verdade, sendo que, por essa razão será, a final, extraída certidão para instauração de procedimento criminal contra a mesma, por falsidade de testemunho. Deste modo, a versão desta testemunha, quando tenta imputar repetidamente ao trabalhador a culpa pelo acidente é inverosímil, não se lhe atribuindo consequentemente qualquer credibilidade, especialmente depois de se ter considerado que a testemunha falta conscientemente à verdade no relato dos factos. Devemos assim concluir, que a vítima se encontrava no seu trabalho normal, a içar materiais de que necessitava para a obra, em cumprimento das ordens e instruções que lhe foram atribuídas pela entidade patronal, designadamente, por CC, responsável máximo da empresa e que não lhe foram facultados meios de protecção individual que permitisse diminuir os riscos de acidentes de trabalho, nomeadamente de queda, mais concretamente, cinto ou arnês de segurança susceptível de ser preso a ponto fixo, o que justifica a resposta aos factos. 5., 6., 7. e 10.. A existência de tais meios de protecção evitaria, sem qualquer dúvida, pelo menos no que respeita aos meios individuais, normalmente exigidos para operar o guincho, a morte do trabalhador (facto 11). O Arguido era o responsável da obra (subempreitada nos termos do contrato referido em 2.), sendo a entidade empregadora do trabalhador falecido, pelo que estava obrigado ao cumprimento das obrigações inerentes. A demais prova testemunhal não infirma a exposição exposta, sendo que HH (inspectora de trabalho à data dos factos), II (Inspector de trabalho à data dos factos) e JJ (militar da GNR), não tinham conhecimento directo dos factos, remetendo no essencial para os elementos documentais que elaboraram. No que respeita aos factos do foro interno, como refere MICHELE TARUFFO, embora a propósito de outro ramo do direito, mas perfeitamente transponível para o caso vertente, salvo no caso das declarações provenientes do próprio “autor” do facto psíquico a única forma de determinar factos deste tipo consiste em utilizar técnicas de reconstrução directa. Esses factos, prossegue o mesmo autor, não podem ser conhecidos com os habituais meios de prova; o que se pode conhecer com esses meios de prova são os factos materiais a partir de cuja existência e modalidades pode arguir-se que um determinado sujeito tem uma determinada vontade, o conhecimento de algum facto, uma determinada atitude valorativa – Um olhar sobre a demanda da verdade no processo civil, in Revista do CEJ, 2005, n.º 3, p. 139, em sentido semelhante, e no específico âmbito criminal cfr. o Acórdão da Relação de Évora de 08 de Maio de 2012, relatado por ANTÓNIO JOÃO LATAS, proc. 139/09.7GAABF.E1, disponível in dgsi.pt. Face à factualidade objectiva julgada provada, ao perigo objectivo da actividade de construção civil, nomeadamente nos trabalhos na zona da cobertura a 12 metros de altura sem qualquer protecção, o Arguido, não padecendo de qualquer diminuição intelectual, tinha de ter os conhecimentos técnicos e legais que lhe permitiam evitar o acidente. Ao actuar na qualidade de representante legal da sociedade empregadora de FF, deve concluir-se, talvez com alguma bonomia, que, pelo menos, não manifestou o cuidado que o dever geral de providência aconselha e que podia e devia ter, pondo em perigo a segurança dos seus trabalhadores. Todavia, devia ter evitado a morte de FF que podia e devia ter previsto, caso tivesse agido com diligência e cumprido as obrigações que a lei impunha na execução da construção e para prevenir os acidentes nessa actividade. Não obstante, no que respeita à acção, ao permitir e exigir que os seus trabalhadores laborassem em tais condições de insegurança, sabendo dos riscos associados, actuou de forma livre, consciente e voluntária, na qualidade de representante legal da sociedade SC, bem sabendo o seu comportamento proibido e punido por Lei. b) As condições pessoais e de vida do Arguido consideraram-se provadas com base nas suas declarações, as quais, nesta matéria, inexiste razão para censurar. c) Em relação aos antecedentes criminais teve-se em consideração o certificado de registo criminal constante dos autos, que mantém actualidade. d) A matéria de facto não provada resulta da falta de qualquer elemento de prova que se lhe referisse de forma suficientemente segura ou de não se ter considerado credível o depoimento de KK, nos termos expostos. Relativamente aos factos que determinaram a reabertura da audiência – factos e), f) e g) –, tão pouco foi produzida qualquer prova relevante. Os restantes sujeitos processuais nunca se predispuseram a produzir qualquer prova sobre tais factos, nem nas anteriores sessões de julgamento, nem na última, não tendo sido arrolado qualquer testemunha ou outro elemento de prova, em especial pelo Arguido, nem na contestação, nem ao abrigo do artigo 340.º do Código de Processo Penal, que pudesse esclarecer os mesmos. O Tribunal, oficiosamente, solicitou à ACT que informasse se, no âmbito dos autos originados pelo acidente de trabalho ou por força de quaisquer outros autos, informações, comunicações ou registos, dispunha de informações que pudessem responder aos factos carentes de resposta no seguimento da anulação, sendo que aquela entidade respondeu que “não dispõe de mais informação para além da constante do Inquérito de Acidente de Trabalho anexado” (cfr. ref. 26186673). No seguimento, o Tribunal, uma vez mais oficiosamente, considerando que nenhuma outra prova foi requerida no seguimento da prolação do Acórdão do Venerando Tribunal da Relação, determinou a audição dos Inspectores de Trabalho que se deslocaram ao local e realizaram as diligências de inquérito, mas nenhum revelou qualquer conhecimento directo sobre tais factos. O máximo que HH conseguiu dizer – II nada sabia sobre tais factos – foi que foi a sociedade AA quem solicitou o levantamento da suspensão, todavia, isso não significa que foi esta sociedade que procedeu à colocação em obra de tais equipamentos segurança ou que os mesmos foram colocados a seu mando. Apenas significa que tal empresa, tal como a sociedade SC, tinha interesse no levantamento da suspensão, e que diligenciou pela mesma. Aliás, a sociedade mais interessada seria inclusivamente a SC, uma vez que apenas os trabalhos desta sociedade tinham sido suspensos (cfr. depoimento de HH), podendo a sociedade AA e os restantes subempreiteiros continuar a laborar livremente. Todavia, naturalmente, enquanto dona da obra e entidade executante, era do interesse da sociedade AA que a sociedade SCconcluísse a sua empreitada, mas não se afigura que se possa dizer que tivesse um interesse superior ao da própria empresa suspensa, uma vez que esta, “Silaupsilva – Construções, Obras Públicas e Empreitadas, Lda”, também teria interesse em concluir a sua parte da obra, com vista a receber o pagamento da totalidade do valor acordado pela sua execução (35.000,00 €). Assim, não entendemos que a prova produzida tenha sido esclarecedora relativamente aos factos que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa mandou apurar. Questão que resta responder é se face à ausência de prova, devem tais factos ser dados como provados ou não provados, em face do princípio in dubio pro reo. É sabido que o princípio in dubio pro reo, emanação do princípio da presunção de inocência – garantia constitucional do direito de defesa consagrado no artigo 32.º, n.º 2 Constituição da República Portuguesa – surge como resposta ao problema da incerteza em processo penal, impondo a absolvição do acusado quando a produção de prova não permita resolver a dúvida inicial que está na base do processo. Com mais propriedade podemos dizer que o princípio in dubio pro reo não é mais que uma regra de decisão: produzida a prova e efectuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos, ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida positiva e invencível sobre a verificação, ou não, de determinado facto, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como provado o facto que lhe é favorável ou não provado o facto que lhe é desfavorável. Em suma, se a final persiste uma dúvida razoável e insanável acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da actuação do acusado, esse non liquet na questão da prova tem de ser resolvido a seu favor. Lida e relida a deliberação do Venerando Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, não nos parece que aquele Tribunal tenha considerado que tais factos são necessariamente benéficos para o Arguido. Do que retiramos da decisão, afigura-se que tais factos devem ser alvo de resposta, por poderem ser relevantes de acordo com “um entendimento jurídico plausível”, mas a deliberação acaba por não se comprometer com uma resposta definitiva ao referir que o apuramento de tal factualidade pode “(ou não) fazer vingar as pretensões do arguido recorrente: a sua absolvição ou, caso assim se não entenda, a mitigação (ou não) da sua responsabilidade na verificação do acidente mortal objecto dos autos, com reflexos na medida concreta da pena”. Assim, e uma vez mais, se bem compreendemos a deliberação, o Venerando Tribunal da Relação acaba por devolver a este Tribunal o juízo sobre a relevância de tais factos para a posição do Arguido – embora imponha uma resposta expressa – não adiantando desde já a sua posição, sem prejuízo de, naturalmente, em sede de novo recurso, poder pronunciar-se sobre tal juízo e discordar da decisão da primeira instância. Sobre a relevância de tais factos o Tribunal mantém a posição anterior, ou seja, mais do que não ter sido produzida qualquer prova de relevo (ou outra) que permita dá-los como provados – sendo de notar que nem sequer o próprio Arguido, que seria quem estaria em melhores condições de responder a tal questão, e quem teria o (putativo) interesse na sua prova, se dignou a prestar qualquer esclarecimento –, tais factos são irrelevantes para a decisão da causa, para o apuramento da responsabilidade do Arguido ou para a determinação da sanção, razão pela qual não foram alvo de resposta na decisão anterior. Aquando do julgamento anterior tinham decorrido 16 anos da prática dos factos, encontrando-se actualmente decorridos 17 anos, não sendo possível responsabilizar qualquer outra pessoa ou entidade pela prática dos mesmos por força do decurso dos prazos prescricionais (para além disso, o apuramento de qualquer outro facto lateral, decorrido mais de uma década e meia, por meio de prova testemunhal ou documental tão pouco se afigura possível, nesta data, como ficou explícito pelo resultado das diligências efectuadas junto da ACT e dos Inspectores que trabalharam no processo). Assim, o apuramento de tais factos para permitir a responsabilização de outras pessoas, o que não era o fim do julgamento, não teria qualquer utilidade prática. Todavia, mesmo para efeitos de apuramento da responsabilidade do Arguido, que é o que está em causa enquanto objecto deste processo, tais factos continuam a ser irrelevantes. Com efeito, sendo inevitável convocar matéria de direito para apurar se tais factos são favoráveis ou desfavoráveis ao Arguido e se deve, quanto a eles, ter aplicação o princípio in dubio pro reo, devemos ter presente, seguindo de perto, neste excurso, JOSÉ P. RIBEIRO DE ALBUQUERQUE, que é preocupação desta legislação sectorial de SHST não excluir de obrigações e responsabilidades quem quer que seja, desde empregadores, técnicos e até trabalhadores – A Infracção às Regras de Segurança no Trabalho, Omissão da instalação de meios ou de aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil. O tipo omissivo do art. 277º nº 1 al. b) 2ª parte do Código Penal, p. 18, disponível para consulta in https://www.pgdlisboa.pt/textos/files/acidente_de_trabalho.pdf. Podemos identificar os sujeitos activos do crime em causa como aqueles que têm a obrigação, no âmbito da sua actividade profissional definida por exemplo nas fontes legais ou convencionais, de implementar os mecanismos e facultar os meios destinados a garantir a segurança no trabalho e, portanto, destinados a evitar o perigo para os bens jurídicos objecto de tutela jurídico-penal. Quer no Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de Outubro, quer no Código do Trabalho e respectiva Lei Regulamentar, quase todos os intervenientes verticais numa obra de construção civil têm responsabilidades ao nível da observância ou respeito por regras legais, regulamentares ou técnicas que visem prevenir acidentes de trabalho. Tais responsabilidades vão desde o dono da obra, ao empreiteiro ou entidade executante, passam pelos coordenadores de segurança em projecto e em obra e por outros profissionais, e acabam no próprio trabalhador, dependente ou independente, também ele destinatário dessas normas. A responsabilidade prefigura-se pois, já alguém o disse, como uma responsabilidade em cascata, que se pretende “esgotante”, e que não raramente repete responsabilidades em diferentes protagonistas. Daí que na valoração dos dados do caso concreto ou, se quisermos, no preenchimento empírico do tipo, encontramos situações (comuns) em que é possível identificar uma pluralidade de possíveis responsáveis na omissão de instalar os meios necessários e destinados à segurança dos trabalhos, o que nos pode transportar para a responsabilização de mais do que um agente. Todavia, a responsabilidade de vários agentes não anula ou sequer dilui a responsabilidade de cada agente individual. Cada agente responsabilizável formalmente pela omissão típica tem, normalmente, a competência individual e paralela para actuar, anulando as condições de insegurança verificáveis no estaleiro ou obra, instalando ou mandando instalar os mecanismos ou meios que evitam o risco de acidentes ou determinando a suspensão dos trabalhos até que tais meios ou mecanismos sejam instalados. Os agentes têm, paralelamente, o domínio material de garante e podem agir, cumprindo os deveres legais, regulamentares ou técnicos, na medida em que tenham a possibilidade e o dever de agir num âmbito espacial e funcional de influência do facto, incluindo as respectivas competências funcionais, por estarem ou deverem estar próximos da fonte de perigo, sendo eles em primeira linha quem, cada um por si, pode desenvolver a actividade material de anulação do perigo, segundo a responsabilidade e domínio que cada um tem no processo causal. A intervenção de um ou a falta de intervenção de outro não exonera de responsabilidade os demais intervenientes. Existindo responsabilidade concorrente cada agente responderá pela sua culpa, não se diluindo a mesma numa omissão colectiva. O Arguido era o responsável da obra (subempreitada nos termos do contrato referido em 2.), sendo a entidade empregadora do trabalhador falecido, pelo que estava obrigado ao cumprimento das obrigações inerentes (nos termos melhor infra expostos), não podendo eximir-se da sua falta de diligência apontando simplesmente à falta de diligência de terceiro. A eventual contribuição paralela de responsabilidades por parte dos dois, cinco ou dez agentes não exclui nenhum deles do escrutínio da responsabilidade penal, sendo cada um responsável pela sua acção/omissão e na medida da sua culpa. O Arguido alega que não fossem as sucessivas omissões da sociedade executante e a probabilidade de não ocorrer o acidente e a morte, seria elevada, o que deixa considerar que foram outras as causas do sinistro. É um argumento (a terem existido as aludidas omissões imputáveis à referida entidade) irrebatível. É, porém, de uma verdade de La Palisse, irrelevante para o afastamento ou diminuição da responsabilidade do Arguido. O que o Arguido afirma é que se outrem tivesse suprido as suas falhas e omissões e tivesse colocado as barreiras ou instalado os equipamentos de segurança que lhe eram exigíveis a si colocar no âmbito de responsabilidade própria, o acidente não teria acontecido. O Arguido não seria responsável, não por ter feito algo que evitasse a produção do acidente, como era sua obrigação, mas porque outrem supriu as suas omissões. Levado mais longe tal argumento, o Arguido poderia culpar a própria Inspecção Geral de Trabalho: tivessem as autoridades actuado mais cedo e obrigado o Arguido a colocar os instrumentos de segurança e o trabalhador não teria caído e consequentemente falecido. O Arguido não está a ser julgado por acções/omissões ou culpa de terceiros, o Arguido encontra-se a ser julgado por acções/omissões e culpa próprias, que, como se vê, passados todos estes anos, é incapaz de reconhecer ou sequer vislumbrar. O que o Arguido nos diz, socorrendo-nos de exemplos absurdos, mas que nos permitem compreender o seu raciocínio, é que, quem pretende matar outrem, com o disparo de uma arma, pode eximir-se a sua responsabilidade, culpando a pessoa que está ao seu lado por não ter impedido que o mesmo disparasse ou os serviços de assistência médica por se terem atrasado e não terem evitado o resultado morte. Tal como se fosse a conduzir uma viatura automóvel e tivesse provocado negligentemente um acidente em que ocorresse a morte de um passageiro que circulava na sua viatura (do Arguido), pudesse eximir-se à sua responsabilidade culpando o condutor da outra viatura em que embateu, após ter invadido a faixa de rodagem contrária numa curva, por este não ter logrado efectuar uma manobra evasiva. Parece-nos que fica clara a falta de razoabilidade da sua argumentação. Depois da tentativa de culpar o trabalhador, culpam-se terceiros por não terem evitado o resultado que a lei impõe que o Arguido evitasse. Em suma, possível a responsabilidade do dono da obra e entidade executante não anula, nem afasta ou diminui a dos empreiteiros e subempreiteiros e em geral de todas as entidades que sejam empregadoras e tenham trabalhadores no local de trabalho e que individualmente têm a responsabilidade de garantir a segurança dos seus trabalhadores. No que respeita à declaração do Arguido de que nunca se deslocou à obra, afigura-se que tal afirmação não é minimamente credível. Se o Arguido beneficia do princípio in dubio pro reo, as suas declarações não beneficiam de uma presunção de verdade. Não é pelo facto de o Arguido apresentar uma determinada versão dos factos, que aliás o pretende beneficiar (embora seja uma vez mais irrelevante, mantendo-se os restantes factos, mas não deixando também sobre ela de nos pronunciarmos), que a mesma cria uma situação de dúvida séria e razoável – neste preciso sentido cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29 de Novembro de 2017, relatado por MARIA LUÍSA ARANTES, proc. 1532/16.4PJPRT.P1, disponível para consulta in dgsi.pt. Não é minimamente credível que o Arguido, sendo o responsável pela empresa, nos termos supra referidos, tendo celebrado um contrato no valor de 35.000,00 € (acrescido de IVA), nunca se tenha deslocado à obra. Ademais, e mais importante o Arguido não prestou tais declarações espontaneamente, tendo-se remetido ao silêncio durante todo o julgamento, sendo que, apenas após a reabertura da audiência e mesmo aí apenas a final, após nova audição das testemunhas e não de forma espontânea, mas após conferenciar em privado com o seu advogado, presta tais declarações. Tais declarações foram prestadas de forma mecânica, sem espontaneidade, com claro sentido de oportunidade, visando unicamente, uma vez mais, alijar a sua responsabilidade, não merecendo, por isso, qualquer credibilidade».
3. Do recurso interposto
3.1. Do erro de julgamento quanto à matéria de facto
O arguido/recorrente, nesta parte, defende, em síntese, que: «Da leitura de toda a prova documental apensada nos autos e a audição do depoimento da testemunha DD, inspetora da inspeção geral do trabalho, registado em .../.../2022 no Ficheiro de gravação com início às 10h 28 min. e termo às 10h 58 min, especificamente aos 10 min. 40 ss. a 14 min. 30 ss. e aos 26 min. 50 ss. a 28 min. 20 ss., deve a douta sentença em apelo ser reformulada, acrescentando-se os seguintes factos provados: […] 21. A sociedade AA, era o dono da obra, a entidade executante, o empreiteiro geral. 22. A identificada sociedade não providenciou pela colocação em obra de guarda-corpos. 23. Nem assegurou planeamentos e/ou planos de segurança, no caso para prevenir quedas em altura. 24. Nem acautelou o acompanhamento da obra por um coordenador de segurança. 25. Após o sinistro, o dono da obra e no caso a entidade executante, colocou ou mandou colocar mecanismos de segurança coletiva, guarda-corpos, que tornavam desnecessária a utilização de proteção individual, os arneses. […] Do que igualmente resulta a correção da resposta negativa das alíneas f) e g) dos factos não provados. A motivação do recurso põe em crise a matéria de facto julgada provada, inscrita nos parágrafos 5 a 14 e, os factos julgados não provados nas alíneas a); b) e c). No tocante aos parágrafos 5, 10, 13 e 14 e alíneas a); b) e c), na essência busca-se a verdade quanto à existência ou não de equipamento de proteção individual, os arneses de segurança e, se o sinistrado contrariou as ordens recebidas pela sociedade representada pelo arguido. Importa auditar o depoimento da testemunha EE, encarregado da obra, registado em .../.../2023 - Ficheiro de gravação com início às 10h 23 min. e termo às 10h 47min), especificamente, aos 03 min. 15 ss. a 04 min. 50 ss.; aos 05 min. 50 ss. a 06 min. 37 ss. E ficheiro de gravação do mesmo dia .../.../2023 com início às 10h 51 min. e termo às 11h 07min.), especificamente, aos 01 min. 48 ss. a 02 min. 44 ss.; Aos 03 min. 30 ss. a 04 min. 26 ss. e aos 06 min. 06 ss. a 14 min. 30 ss. Todo o depoimento mostra-se prestado sem hesitações, contradições, sem pausas de reflexão ou outros elementos que nos deixem suspeitar de vieses ou desrespeito pela verdade e portanto pelo tribunal. Deixando concluir-se pela existência de arneses em obra, e que apesar de não terem formação, tinham explicação sobre a sua utilização e sabiam que quando em trabalhos perigosos “ … tinham de usar aquilo”. A avaliação prejudicial do crédito da testemunha seguida pelo tribunal a quo, não tem, salvo o devido respeito, qualquer sentido e fundamento. Quer como resultará da reapreciação da prova pelo forma espontânea, absolutamente descomprometida e genuína do depoimento, quer pelas argumentos marginais e irrazoáveis que o tribunal encontrou para o descredibilizar inexplicavelmente. Em resultado do expendido, a matéria de facto constante dos parágrafos 5, 10, 13 e 14 dos factos provados e, as alíneas a); b) e c) dos não provados, tem de ser revista e reelaborada, considerando que na verdade, na pura verdade, existiam e estavam disponíveis os arneses na obra. Assim como o mencionado na al. f) dos factos julgados não provados, uma vez que o sinistrado no dia do acidente, por motivo de um estado de indisposição que manifestara ao encarregado, recebera ordens para executar outros trabalhos, mais simples, que não o expunham a trabalhos em altura e, nessas circunstâncias, nem tinha necessidade de usar arnês. No que concerne aos factos provados indicados nos parágrafos 6 a 9, 11 e 12, não podem manter-se uma vez que sobre os mesmos nenhuma prova foi produzida, na verdade sequer requerida, ou melhor investigada. Porquanto, dos autos de investigação da IGT ou da GNR extrai-se que ninguém assistiu ao acidente, o trabalhador estaria sozinho na obra, o que não sendo crível, é a verdade processual a que aportamos e que salvo melhor opinião, deverá presidir à decisão. Desconhece-se por completo a origem e as causas do sinistro. Quanto ao parágrafo 12 “Dispunha o Arguido dos conhecimentos técnicos e legais que lhes permitiam evitar o acidente.”, quando conjugado com o facto provado em 19, o arguido “Completou o 4.º ano de escolaridade.”, fica por esclarecer. De novo nenhuma prova foi produzida, sequer requerida, por exemplo documental, nem sequer a questão foi colocada ao encarregado de obra que trabalhava para o arguido, pelo que, na incógnita, deve ser recortado dos factos provados».
Atentemos, pois.
Preliminarmente, como resulta da motivação e das conclusões recursivas, o arguido/recorrente pretende que sejam aditados dois factos sob os n.º 21 e 22 que não foram dados como provados nem como não provados.
A saber:
«21. A sociedade AA, era o dono da obra, a entidade executante, o empreiteiro geral» e «22. A identificada sociedade não providenciou pela colocação em obra de guarda-corpos».
Ora, no que tange a estes factos é manifesto que, não constando os mesmos da acusação, da contestação, nem da sentença revidenda (como provados ou não provados), não é, em sede de impugnação da matéria de facto, pela via do erro de julgamento, possível proceder à rogada sindicância.
Na verdade, no erro de julgamento, a impugnação da matéria de facto está necessariamente circunscrita aos factos que foram dados como assentes e não assentes na decisão recorrida, mostrando-se, assim, legalmente arredada a possibilidade pretextada de vir a ser aditada facticidade alheia à naquela vertida.
Vale por dizer que, a impugnação ampla da matéria de facto e a reapreciação a efectuar pelo tribunal de recurso, não poderá ter por objecto, nem por finalidade, a introdução na factualidade provada de factos não incluídos na decisão recorrida1
Como se refere no Acórdão n.º 312/2012 do Tribunal Constitucional, processo n.º 268/12, in www.tribunalconstitucional.pt., «(…) É que tal fundamento de recurso já não se situa em sede de apreciação da correção do julgamento da instância inferior que não incluiu tais factos, visando antes a realização de um novo julgamento pelo tribunal de recurso da prova produzida na primeira instância».
Por outro lado, se é certo que, como refere Sérgio Poças, in REVISTA JULGAR, Da Sentença Penal – fundamentação de facto, 2007, pág. 24 e sgs «O tribunal, como resulta nomeadamente do disposto nos artigos 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, e 374.º, n.º 2, do CPP, deve indagar e pronunciar-se sobre todos os factos que tenham sido alegados pela acusação, pela contestação ou que resultem da discussão da causa e se mostrem relevantes para a decisão. Ou seja, ainda que para a solução de direito que o tribunal tem como adequada para o caso, se afigure irrelevante a prova de determinado facto, o tribunal não pode deixar de se pronunciar sobre a sua verificação/não verificação — o que pressupõe a sua indagação —, se tal facto se mostrar relevante num outro entendimento jurídico plausível» a verdade é que, no caso, o facto que o recorrente pretende ver aditado sob o n.º 21 consubstancia mera conclusão/juízo valorativo dos factos já descritos sob os pontos 2º e 3º da matéria assente e o outro ao qual o recorrente atribui o n.º 22, no confronto com a factualidade assente no ponto 5º, quanto à ausência de protecção colectiva, e daquela dada como não provada sob as alíneas e), f) e g), afigura-se já supérflua e/ou irrelevante para a boa decisão da causa2.
Neste conspecto - da relevância para a boa decisão da causa da factualidade cujo apuramento foi determinado pelo anterior acórdão deste Tribunal da Relação - ante as interrogações e apreciações do Sr. Juiz na motivação da matéria de facto e em face das reivindicações insertas na peça recursiva, afigura-se que se impõe desde já algumas considerações interlocutórias (sem prejuízo, naturalmente, de maior densificação da temática aquando do tratamento do invocado erro de julgamento na matéria de direito, na parte atinente à subsunção jurídico-penal).
Na verdade, «(…) a doutrina penalista mais reputada confirma que o concurso de acções culposas deve ser criminalmente punido.
A nosso ver a responsabilidade penal dos agentes concorrentes para a prática do facto, deve medir-se pelo domínio do facto de cada um deles, e da contribuição causal no acidente.
Assim, o agente que tenha o domínio do facto e a sua actuação haja influenciado com significado a causalidade do acidente, responderá criminalmente.
Nem poderá a culpa do outro ou outros agentes concorrentes ao facto, compensar a culpa do autor em causa, como sustenta o PROF. FRANCESCO ANTOLISEI: "Pois o princípio da compensação das culpas vale no âmbito do direito privado, no qual estão em jogo interesses predominantemente patrimoniais que haverá a conciliar, mas no terreno penal a ponderação é distinta. Aqui o «castigo» é reclamado por um interesse público, e, portanto, a eventual culpa da vítima, o juiz tê-la-á em conta somente dentro dos limites dos seus poderes discricionários para a aplicação concreta da pena." (Ver "MANUAL DE DERECHO PENAL-Parte General", Trad.Esp.,p.268, 8ªed., 1988).
Quintano Ripollés sobre o problema da concorrência de culpas referia que “Trata-se do mecanismo da causalidade e de determinar, dentro da eficiência de cada conduta, às vezes concorrentes no resultado, o que verdadeiramente interessa analisar e valorar em cada uma delas, com partícula referência ao dever cuja infracção dá origem à culpa.” (in “Derecho Penal de la Culpa (imprudência)”, pág.322, Barcelona, 1958), este autor acrescenta mais adiante a importância de aquilatar a densidade da imprudência de cada sujeito concorrente para se perceber até que ponto a sua conduta aumenta o “denominador causal” (in Op.cit, pág.324)», pelo que, indelevelmente, (…) o concurso de culpas, determinará repercussões na medida da pena e no quantum indemnizatório»3.
Vale, pois, por dizer que, ao invés do (re)afirmado pelo Sr. Juiz do Tribunal a quo, impunha-se, tal qual ordenado no anterior acórdão deste Tribunal da Relação, o apuramento da factualidade respeitante à eventual existência de um concurso de culpas já que, pese embora a sua constatação não exclua a responsabilidade criminal do arguido/recorrente, como este equivocadamente propugna, de todo o modo, sempre consentirá e reclamará a devida valoração, para o que ora importa, na determinação da medida da pena.
No mais e revolvendo à impugnação ampla da matéria de facto:
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22 de Setembro de 2015, processo n.º 2619/12.8GBABF.E1, in www.dgsi.pt., «(…), o juiz que, em 1.ª instância, julga de facto, goza de ampla (conquanto vinculada) liberdade de movimentos ao erigir os meios de que se serve na fixação dos factos provados, de harmonia com o princípio da livre convicção e apreciação da prova.
Nos termos expressamente prevenidos no artigo 127.º, do CPP, as provas são livremente valoradas pelo juiz sem obediência a regras pré-fixadas.
Ora, há-de conceder-se, essa liberdade de apreciação com base no conjunto do material probatório recolhido pela percepção global, traduzido numa síntese decisória, é insindicável por este Tribunal.
Como assim, o Tribunal de recurso só em casos excepcionais de manifesto erro de apreciação da prova poderá comutar a decisão levada na instância – será, por exemplo e caricatura, o caso de o depoimento de uma testemunha ter um sentido diametralmente oposto ao que foi considerado na sentença recorrida.
Vale dizer que, por força do referido princípio da livre apreciação da prova (não estando em causa, como, no caso, não está, prova tarifada ou legal), o processo de formação da livre convicção do julgador na apreciação da prova não é questionável pelo tribunal de recurso.
A esta instância caberá apenas indagar se tal apreciação e julgamento são contrariados pelas regras da experiência comum ou pela lógica do homem médio (diga-se mesmo, do julgador médio) suposto pela ordem jurídica.
Por outro lado, há que sublinhar, a lei é exigente quanto ao modo de impugnação do recurso em matéria de facto, de harmonia com o disposto no artigo 412.º n.os 3 e 4, do CPP, sendo que a modificabilidade da decisão da 1ª instância apenas ocorre nos termos apontados no artigo 431.º do mesmo Código, entre os quais a impugnação da matéria de factos nos termos do artigo 412.º n.º 3, do mesmo diploma.
E aqui devem ser indicados não (apenas) os pontos de facto ou provas dissonantes, mas os concretos pontos de factos e as concretas provas que impõem decisão diversa.
Por isso, o tribunal de 2.ª instância, apesar de ter poderes de cognição em matéria de facto, não pode, sem mais, apreciar quais os meios de prova de que se socorreu o tribunal da 1ª instância para ter dado como provados os factos que veio a dar como provados ou para julgar não provados os factos que sedimento como tal.
Torna-se necessária a indicação expressa dos concretos pontos de facto e concretas provas que, para esses concretos pontos de facto, impõem solução diversa.
Tendo em conta o princípio da apreciação da prova nos termos do art. 127.º do CPP, uma coisa é a valoração da prova efectuada pelo tribunal e outra, o modo da sua impugnação em recurso sobre a matéria de facto, de forma processualmente válida, que não se traduz em mera exposição pelo recorrente como em seu entendimento faz a valoração da prova, sob pena de se limitar a impugnar a convicção do tribunal recorrido.
O que a lei pretende ao vincular o recorrente à indicação das provas que impõem decisão diversa, não é, certamente, que este formule uma outra versão da prova produzida.
Por outro lado, ainda, não é suficiente especificar, de forma sectorial, algum ou outro, elemento da prova.
Só a especificação de todos eles, os indicados pelo tribunal e os que se entende não foram tidos em conta, pode impor decisão diversa.
E as provas que impõem essa diversa decisão são as provas relevantes e decisivas que não foram analisadas e apreciadas, ou, as que tendo sido, ponham em causa ou contradigam o entendimento decantado para a decisão recorrida.
Se a tais provas faltam esses pressupostos, não conduzem a outra decisão.
(…) Importa ademais ter presente que a impugnação do julgamento levado, na instância, sobre a matéria de facto, não conduz a um novo julgamento nem pode supri-lo.
Na verdade, a prova gravada e, em parcelas, transcrita, nunca poderá suprir a abundância de pormenores (a cor e o cheiro) que a oralidade e a imediação proporcionam ao juiz quando aprecia a prova que, pela irrepetível primeira vez, se desenrola no Tribunal.
O modo como o arguido, o declarante, como a testemunha depõem, as suas reacções, as suas reticências, a sua mímica, são factores decisivos na formação de uma convicção e não podem ser captados pela frieza asséptica de quaisquer meios mecânicos.
Pode mesmo dizer-se que, na convicção, desempenham papel de relevo não apenas a actividade puramente cognitiva mas também elementos que, racionalmente, não são explicitáveis (em muitos casos, v.g., a credibilidade que se concede a um meio de prova) e mesmo elementos puramente emocionais - cfr. Figueiredo Dias, «Direito Processual Penal», I, Coimbra Editora, 1974, pp. 204/205 e in «Direito Processual Penal», Lições 1988-1989, pp. 135 e segs.
Ensinava o Prof. José Alberto dos Reis que a livre apreciação da prova é indissociável do princípio da oralidade, «entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), e condição indispensável para actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal». Citando Chiovenda, concluía que «ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar» - Código de Processo Civil, Anotado, Vol. IV, pág. 566».
No caso, tendo o recorrente especificado os concretos pontos de facto que considera deficientemente julgados (pontos 5 a 14 dos dados como assentes e alíneas a), b), c), d), e) e f) dos não provados) as concretas provas que imporiam decisão diversa (toda a documental e os depoimentos das testemunhas DD e GG) e as passagens dos depoimentos (das preditas testemunhas) em que se funda a impugnação, consente-se que o alegado traduz a impugnação do julgamento realizado na instância sobre a matéria de facto, como impõe o art. 412.º n.º 3, do C.P.P. mas, dir-se-á, desde já, que o argumentário aduzido não pode colher provimento.
Rigorosamente o que se constata é que o recorrente refuta a convicção adquirida pelo Tribunal a quo sobre os factos dados como provados e não provados, propondo, ao invés, a sua própria convicção, sem que, de forma sustentada, aponte ao Sr. Juiz a violação das regras da experiência e/ou a existência de dúvida/s (para além das suas) valorada/s em prejuízo do arguido.
Com efeito, desde logo, à luz da prova pessoal apontada que, no caso, se resume aos depoimentos das testemunhas DD e GG (a cuja audição integral se procedeu nesta instância de recurso) não se vislumbra que, no cotejo com a motivação, o Sr. Juiz devesse ter decidido diversamente e/ou alcançado qualquer estado de dúvida a resolver pro reo.
Ao invés, como se constata da motivação transcrita, procedeu a um exame detalhado da prova produzida, concatenando-a num percurso de apreciação pautado pela normalidade e racionalidade e em consonância com as regras da lógica e da experiência comum.
Procedeu, de resto, ao detalhado exame e avaliação dos depoimentos e declarações prestadas, à explicitação das razões subjacentes à triagem da facticidade em assente e não assente e ao iter lógico e racional que a tal operação presidiu e explicou, em pormenor, os motivos pelos quais o depoimento da testemunha GG não foi particularmente valorado, e em especial, nos segmentos em que o mesmo afirmou que existiam arneses disponíveis no local aquando dos factos e que o falecido contrariou ordens recebidas.
E revisitada a prova - toda a documental indicada pelo Sr. Juiz na motivação e os depoimentos integrais das testemunhas DD e GG - não se vislumbra, de todo em todo, que se imponha decisão diversa da recorrida.
Com efeito, tal qual consignou o Sr. Juiz na motivação «O processo inicia-se com o auto de notícia de fls. 3 e ss., com descrição das circunstâncias espácio-temporais, identificação do acidentado e da entidade patronal. O contrato de empreitada da sociedade SC com a sociedade AA encontra-se documentado a fls. 33, constando a ficha de aptidão de FF a fls. 41. A certidão de registo comercial da sociedade encontra-se a fls. 69 e ss., resultando que o Arguido é sócio gerente da sociedade. O exercício de facto desses poderes foi desde logo confirmado por GG (encarregado da sociedade). O mesmo confirmou que a sociedade executava contrato de empreitada, nos termos constantes do documento de fls. 33, sendo, aliás, uma subempreitada, relativa a trabalhos e carpintaria de tosco, armação de ferro. O decesso de FF, resulta do relatório de autópsia de fls. 23 e ss., encontrando-se o exame toxicológico a fls. 29, sendo que o assento de óbito consta de fls. 7 do apenso. Assim, os factos 1. a 4. e 8. e 9. resultam análise conjugada de todos os referidos elementos de prova, levando-se ainda em conta as fotografias de fls. 8 a 12 e 28 a 31, que permitem ter uma real noção da construção onde os factos ocorreram. No que respeita ao local onde o trabalhador laborava, no momento imediatamente anterior à queda, não foram ouvidas testemunhas presenciais, aliás, nos termos do relatório preliminar de fls. 3 do apenso não existirão mesmo testemunhas presenciais. Todavia, tendo em conta a posição do corpo retratada nas fotografias já referidas, o facto de o cabo do guincho ter ficado preso num extensor (cfr. fls. 11), bem como de o ofendido ter caído junto ao mesmo, considerando as lesões e consequências da queda, e que na cobertura, junto ao guincho, inexistia qualquer protecção colectiva ou individual, deve concluir-se, com a necessária segurança, que o ofendido caiu da cobertura, onde se encontrava a operar o guincho. Aliás, essa é a interpretação que fazem todos os intervenientes (cfr. o auto de notícia, o relatório da Inspecção Geral e o depoimento de GG) No que respeita à inexistência de meios de protecção colectiva e individual na cobertura do edifício e junto ao guincho, tal facto resulta das fotografias já referidas, no que respeita a guarda-corpos ou dispositivos similares, bem como do facto de o ofendido não ter qualquer dispositivo individual de segurança no momento da queda, nem ter sido encontrado no local (cfr. o referido auto e fotografias). GG confirma igualmente que inexistia qualquer meio de protecção colectiva na cobertura, e que o trabalhador não usava qualquer meio de protecção individual, nem lhes tinha sido ministrada formação na área de segurança. Tal análise justifica a resposta ao facto 7. e parcialmente aos factos 5. e 10.. Dizemos parcialmente, porquanto, em relação aos meios de protecção individual GG, de modo atabalhoado, acaba por referir que os mesmos existiam e estavam à disposição dos trabalhadores noutro local, nomeadamente no local onde os trabalhadores se vestiam para o serviço. Todavia, a testemunha apresentou um relato comprometido, quiçá por ser encarregado de obra e recear responsabilidade pela morte da vítima, assumindo uma postura defensiva, pouco espontânea, culpando sistematicamente a vítima. A forma como prestou depoimento, foi sempre pouco credível, contrariando os demais elementos de prova, começando a afirmar que havia guarda-corpos e cintos/arnês de segurança, o que manifestamente não corresponde à verdade, tendo por vezes de lhe ser feita a mesma pergunta, duas e três vezes, para que o mesmo, a final, acabasse a reconhecer que na cobertura não existiam guarda-corpos. No que respeita aos cintos o seu depoimento é atabalhoado, apresentando justificações inverosímeis de supetão, designadamente quando afirma que os mesmos não foram apresentados porquanto “ninguém pediu nada, eles estavam lá”, isto é, porquanto não foram solicitados pelas autoridades. Ora, num acidente de trabalho com os contornos do presente, em que esteve presente a GNR e a Inspecção Geral de Trabalho tal versão não é minimamente credível, afigurando-se ao invés, que a pergunta que foi repetidamente feita foi precisamente pela existência de instrumentos de segurança colectiva e individual no trabalho. Essa matéria foi abordada no relatório da Inspecção Geral de Trabalho e os mesmos nunca foram apresentados nos autos, nem localizados na obra ou em qualquer outro local. Ora, não é crível que num processo que teve várias vertentes (laboral/criminal/contra-ordenacional), nunca tenham sido solicitada a apresentação dos arnês de segurança, e que por mais de 15 anos tais elementos nunca tenham sido apresentados ou referidos nos autos. Devemos concluir, inegavelmente, que a testemunha está a faltar à verdade, sendo que, por essa razão será, a final, extraída certidão para instauração de procedimento criminal contra a mesma, por falsidade de testemunho. Deste modo, a versão desta testemunha, quando tenta imputar repetidamente ao trabalhador a culpa pelo acidente é inverosímil, não se lhe atribuindo consequentemente qualquer credibilidade, especialmente depois de se ter considerado que a testemunha falta conscientemente à verdade no relato dos factos. Devemos assim concluir, que a vítima se encontrava no seu trabalho normal, a içar materiais de que necessitava para a obra, em cumprimento das ordens e instruções que lhe foram atribuídas pela entidade patronal, designadamente, por CC, responsável máximo da empresa e que não lhe foram facultados meios de protecção individual que permitisse diminuir os riscos de acidentes de trabalho, nomeadamente de queda, mais concretamente, cinto ou arnês de segurança susceptível de ser preso a ponto fixo, o que justifica a resposta aos factos. 5., 6., 7. e 10.. A existência de tais meios de protecção evitaria, sem qualquer dúvida, pelo menos no que respeita aos meios individuais, normalmente exigidos para operar o guincho, a morte do trabalhador (facto 11). O Arguido era o responsável da obra (subempreitada nos termos do contrato referido em 2.), sendo a entidade empregadora do trabalhador falecido, pelo que estava obrigado ao cumprimento das obrigações inerentes. A demais prova testemunhal não infirma a exposição exposta, sendo que HH (inspectora de trabalho à data dos factos), II (Inspector de trabalho à data dos factos) e JJ (militar da GNR), não tinham conhecimento directo dos factos, remetendo no essencial para os elementos documentais que elaboraram».
Na verdade, não é de descurar que, para além da prova directa do facto, a apreciação do tribunal pode assentar em prova indirecta ou indiciária, a qual se faz valer através de presunções.
No recurso a presunções simples ou naturais (art. 349º do Cód. Civil), parte-se de um facto conhecido (base da presunção), para concluir presuntivamente pela existência de um facto desconhecido (facto presumido), servindo-se para o efeito dos conhecimentos e das regras da experiência da vida, dos juízos correntes de probabilidade, e dos princípios da lógica.
Como já então alertava o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 12 de Setembro de 2007, disponível in www.dgsi.pt: «I - A prova do facto criminoso nem sempre é directa, de percepção imediata; muitas vezes é necessário fazer uso dos indícios.
(…) III - Indícios são as circunstâncias conhecidas e provadas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão, firme, segura e sólida de outro facto; a indução parte do particular para o geral e, apesar de ser prova indirecta, tem a mesma força que a testemunhal, a documental ou outra».
E é, pois, nestas circunstâncias que o Sr. Juiz, como resulta claramente da motivação, deu e assertivamente como assente a matéria de facto relativa à dinâmica do acidente.
Em particular, no que concerne à testemunha GG, de realçar ainda que, da audição do depoimento, ao invés do propalado pelo recorrente e como ficou impressivamente consignado na motivação da sentença revidenda4, resulta que aquela prestou objectivamente um relato titubeante, insuficiente e amiúde contraditório, ou seja, indelevelmente e independentemente da motivação, nada, ou pelo menos muito pouco, coerente, credível e/ou sólido.
Ademais «(…) a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão.
Neste sentido vai a jurisprudência uniforme dos tribunais superiores, ao explicitar que quando a atribuição de credibilidade5 a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum, e, consequentemente, que a crítica à convicção do tribunal a quo sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.
Efectivamente, o julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório»6
A propósito, regista-se, também, que não se constata qualquer erro de julgamento decorrente da circunstância de ter sido dado como assente, concomitantemente, que o arguido possui o 4º ano de escolaridade e que dispunha dos conhecimentos técnicos e legais que lhe permitiam evitar o acidente.
Na verdade, como adequadamente conclui o Tribunal a quo, «Face à factualidade objectiva julgada provada, ao perigo objectivo da actividade de construção civil, nomeadamente nos trabalhos na zona da cobertura a 12 metros de altura sem qualquer protecção, o Arguido, não padecendo de qualquer diminuição intelectual, tinha de ter os conhecimentos técnicos e legais que lhe permitiam evitar o acidente. Ao actuar na qualidade de representante legal da sociedade empregadora de FF, deve concluir-se, talvez com alguma bonomia, que, pelo menos, não manifestou o cuidado que o dever geral de providência aconselha e que podia e devia ter, pondo em perigo a segurança dos seus trabalhadores. Todavia, devia ter evitado a morte de FF que podia e devia ter previsto, caso tivesse agido com diligência e cumprido as obrigações que a lei impunha na execução da construção e para prevenir os acidentes nessa actividade».
Por fim, no que respeita à facticidade dada como não provada que determinou a reabertura da audiência, na sequência do anterior acórdão deste Tribunal da Relação, não merece, outrossim, qualquer reparo ou censura a posição assumida pelo Sr. Juiz.
Com efeito, neste conspecto, em bom rigor, não foi produzida qualquer prova e ouvido integralmente o depoimento da testemunha DD constata-se que a mesma não soube responder, com o mínimo de firmeza, a qualquer das questões adicionais colocadas.
Como dá nota a motivação «O Tribunal, oficiosamente, solicitou à ACT que informasse se, no âmbito dos autos originados pelo acidente de trabalho ou por força de quaisquer outros autos, informações, comunicações ou registos, dispunha de informações que pudessem responder aos factos carentes de resposta no seguimento da anulação, sendo que aquela entidade respondeu que “não dispõe de mais informação para além da constante do Inquérito de Acidente de Trabalho anexado” (cfr. ref. 26186673). No seguimento, o Tribunal, uma vez mais oficiosamente, considerando que nenhuma outra prova foi requerida no seguimento da prolação do Acórdão do Venerando Tribunal da Relação, determinou a audição dos Inspectores de Trabalho que se deslocaram ao local e realizaram as diligências de inquérito, mas nenhum revelou qualquer conhecimento directo sobre tais factos. O máximo que HH conseguiu dizer – II nada sabia sobre tais factos – foi que foi a sociedade AA quem solicitou o levantamento da suspensão, todavia, isso não significa que foi esta sociedade que procedeu à colocação em obra de tais equipamentos segurança ou que os mesmos foram colocados a seu mando. Apenas significa que tal empresa, tal como a sociedade SC, tinha interesse no levantamento da suspensão, e que diligenciou pela mesma. Aliás, a sociedade mais interessada seria inclusivamente a SC, uma vez que apenas os trabalhos desta sociedade tinham sido suspensos (cfr. depoimento de HH), podendo a sociedade AA e os restantes subempreiteiros continuar a laborar livremente. Todavia, naturalmente, enquanto dona da obra e entidade executante, era do interesse da sociedade AA que a sociedade SC concluísse a sua empreitada, mas não se afigura que se possa dizer que tivesse um interesse superior ao da própria empresa suspensa, uma vez que esta, “Silaupsilva – Construções, Obras Públicas e Empreitadas, Lda”, também teria interesse em concluir a sua parte da obra, com vista a receber o pagamento da totalidade do valor acordado pela sua execução (35.000,00 €)».
A questão adicional que aqui especificamente se poderia colocar7 era a de saber qual a incidência do princípio in dubio pro reo estando em dúvida factos favoráveis8 ao arguido/recorrente.
Todavia, falece, a propósito e ab initio, o pressuposto operativo do referido princípio - a dúvida9 - já que, in casu, rigorosamente não foi produzida qualquer prova.
Na verdade, o in dubio pro reo é um princípio atinente ao foro probatório em processo penal, a operar nas condições em que subsiste a dúvida, o non liquet.
«(…) O princípio da livre apreciação da prova, entendido como esforço para alcançar a verdade material, como tensão de objectividade, encontra assim no “in dubio pro reo” o seu limite normativo: ao mesmo tempo que transmite o carácter objectivo à dúvida que acciona este último.
Livre convicção e dúvida que impede a sua formação são face e contra-face de uma mesma intenção: a de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva»10
«(…) O “in dubio pro reo”, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (cfr. Cristina Líbano Monteiro, «In Dúbio Pro Reo», Coimbra, 1997).
(…) Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável (“a doubt for which reasons can be given”)». (…) Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal».11
Por último dir-se-á que «(…) os recursos são remédios jurídicos, que visam detectar e corrigir erros de julgamento, devendo a Relação conter-se no âmbito dos seus poderes de sindicância da sentença com vista à detecção de erros de julgamento, e abstendo-se de efectuar “segundos julgamentos”.
Constatando-se que não são detectáveis desconformidades entre a prova produzida e a percepção que dela foi feita, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, e que o tribunal justificou suficientemente na sentença as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo-lhes valor positivo ou negativo de modo sempre racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo»12, resta-nos manter integralmente a decisão da matéria de facto.
Termos em que, outra conclusão não sobra senão a de que este segmento recursivo terá necessariamente de ser julgado improcedente.
3.2. Do invocado erro de julgamento quanto à matéria de direito
3.2.1. Da subsunção jurídico-penal
Neste particular, o recorrente aduz, em suma, que: «É pacífico que a sociedade AA, era o dono da obra, o empreiteiro geral, a entidade executante e, responsável máximo pela segurança dos trabalhos. E que sobre a conduta e as responsabilidades desta empresa na obra, a Inspeção Geral do Trabalho, o Ministério Público ou alguma autoridade nada investigaram, limitando-se a encaminhar as responsabilidades para o arguido, o que agora mereceu ainda acolhimento do tribunal a quo, que varreu por completo a relevância dos efeitos da conduta daquela sociedade dona da obra, entidade executante e empreiteiro geral. Esta sociedade AA na obra, violou em cascata os ditames do Dec. Lei 273/2003 de 29/10, designadamente, a elaboração de planeamento e planos de segurança na obra; (art.º’s 5.º e 6.º e 17.º); a nomeação de um coordenador de segurança (art.º 9.º, 17.º e 19.º). Este, como determina a lei, deveria promover e verificar o cumprimento do plano de segurança e saúde, bem como das outras obrigações da entidade executante, dos subempreiteiros e dos trabalhadores independentes e coordenar o controlo da correta aplicação dos métodos de trabalho, na medida em que tenham influência na segurança e saúde no trabalho; E de tudo isto, o tribunal a quo sufraga que não tem ou não teve qualquer influencia no infortúnio do sinistrado. O recorrente salienta, a traço grosso, que não pretende aventar que se o dono da obra tivesse procedido do modo correto e legal, a infração não se verificaria. O que se defende e tem-se como razoável sobrelevar, é avaliar se uma conduta daquele dono da obra, que respeitasse as mencionadas regras de segurança, teria evitado ou poderia ter evitado a morte. E das duas uma, ou entendemos que todos aqueles legais procedimentos, com o subsequente acompanhamento da obra por um coordenador de segurança, são meras disposições para efeitos de contraordenação, mas em substância em nada contribuem para a segurança dos trabalhadores, o que parece ser uma conclusão inusitada. Ou efetivamente, aquelas regras têm alguma substrato e razão de ser no sentido de assegurar a providência de acidentes. E nesse caso, há que aceitar que, nesse caso, se o dono da obra tivesse acautelado os planeamentos e planos de segurança e um coordenador de segurança da obra (a quem incumbe a suspensão dos trabalhos em caso de inobservância das regras de segurança), a probabilidade do sinistro ocorrer era nula, o sinistro ter-se-ia evitado. O recorrente discorda em absoluto dos exemplos que o tribunal convoca qualificando de modo próprio como absurdos, pois a situação em apreço tem diametral diferença de figurino. A avaliação da conduta omissiva do dono da obra, da entidade executante, do empreiteiro geral, da direção e fiscalização da obra, encontra um nexo causal direto e imediato com a ocorrência e subtrai ao arguido qualquer responsabilidade criminal pela morte do sinistrado. Podendo caber-lhe responsabilidade contraordenacional, o certo é que a alçada criminal é nas circunstâncias em apreço, manifestamente desproporcionada. Pelo que, a sentença recorrida fez errada interpretação e aplicação dos art.º 277.º n.º 1 al. b) e 285.º do Cód. Penal».
No que tange ao enquadramento jurídico-penal o Sr. Juiz decidiu nos termos que se transcrevem: «Encontra-se o Arguido acusado da prática, em autoria material, na forma consumada, da prática de um crime de infracção de regras de construção, previsto e punido pelo artigo 277.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, agravado pelo resultado, nos termos do disposto no artigo 285.º, ambos do Código Penal. Importa averiguar, face ao manancial fáctico apurado, se a conduta do Arguido é susceptível de integrar a prática do referido ilícito. Estatuía o aludido artigo 277.º do Código Penal (na redacção em vigor na data da prática dos factos – introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março) que, quem: a) No âmbito da sua actividade profissional infringir regras legais, regulamentares ou técnicas que devam ser observadas no planeamento, direcção ou execução de construção, demolição ou instalação, ou na sua modificação; b) Destruir, danificar ou tornar não utilizável, total ou parcialmente, aparelhagem ou outros meios existentes em local de trabalho e destinados a prevenir acidentes, ou, infringindo regras legais, regulamentares ou técnicas, omitir a instalação de tais meios ou aparelhagem; c) Destruir, danificar ou tornar não utilizável, total ou parcialmente, instalação para aproveitamento, produção, armazenamento, condução ou distribuição de água, óleo, gasolina, calor, electricidade, gás ou energia nuclear, ou para protecção contra forças da natureza; ou d) Impedir ou perturbar a exploração de serviços de comunicações ou de fornecimento ao público de água, luz, energia ou calor, subtraindo ou desviando, destruindo, danificando ou tornando não utilizável, total ou parcialmente, coisa ou energia que serve tais serviços; e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. O n.º 2 do mesmo preceito estabelece que se o perigo referido no número anterior for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos. Por fim, o n.º 3 estatuiu que se a conduta referida no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. Com tal incriminação visa o Estado, por intermédio do seu poder punitivo, acautelar a vida, a integridade física e o património de outrem. O ilícito em causa surge configurado como um crime perigo concreto, quanto ao grau de lesão dos bens jurídicos protegidos), decorrente da «forte probabilidade de ocorrência de dano ou do resultado desvalioso que a norma pretende evitar se desencadeie», nas palavras de FARIA COSTA – O Perigo em Direito Penal, Coimbra, 1992, p. 580 e ss. RUI PATRÍCIO qualifica as als. a) e b) deste tipo legal de crime como crimes de perigo concreto complexo, que exigem a verificação do perigo efectivo para os bens jurídicos mencionados e também que esse perigo decorra da violação de regras legais, regulamentares ou técnicas, devendo ser possível estabelecer uma relação causal entre o resultado de perigo e a violação dessas regras – RMP, 81, 2000, p. 99. No que concerne à forma de consumação do ataque ao objecto da acção é um crime de resultado. O crime em presença é um delito comum, na al. b), 1.ª parte e nas als. c) e d) uma vez que qualquer pessoa o pode cometer. Contudo, é um crime específico próprio na al. a) e na al. b), 2.ª parte, sendo agente do crime a pessoa que actua no exercício da sua profissão, estando obrigada à observância de regras, regulamentares ou técnicas válidas no âmbito da sua actividade profissional. Na alínea b) a entidade responsável coincidirá, normalmente, com a entidade patronal, embora nem sempre, nem necessariamente. No que diz respeito ao tipo objectivo iremos centrar a análise apenas nas alíneas a) e b), únicas relevantes para o caso vertente. Na alínea a) o tipo legal em análise tem como elementos a infracção de regras legais, regulamentares ou técnicas que devam ser observadas no planeamento, direcção ou execução de construção, demolição ou instalação, ou na sua modificação (o alargamento obras de “conservação” apenas foi aditado na redacção conferida pela Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro). Na alínea a) os objectos da acção típica são construções humanas, sendo por «construção» deve ser entendido obra humana, de carácter duradouro ou temporário, realizada sobre ou sob o solo ou no mar, de modo fixo, móvel ou suspenso, cuja montagem exige a aplicação de regras técnicas geralmente reconhecidas. A acção típica consiste na infracção de regras legais, regulamentares ou técnicas ou técnicas que devam ser observadas no planeamento, direcção ou execução de construção, demolição ou instalação, ou na sua modificação. O planeamento inclui a elaboração da memória descritiva da obra, do caderno de encargos e do projecto de obra. A direcção inclui a execução da obra em sentido amplo e, designadamente, os trabalhos preparatórios, como a montagem de andaimes e a delimitação da zona de construção e de trabalhos conclusivos, como a limpeza da zona de construção. A direcção pertence a quem tem a disponibilidade fáctica dos meios de produção para a execução da obram tenha ou não contrato válido para o efeito. Em regra, o director de obra é o empreiteiro ou, havendo-o, o subempreiteiro no âmbito da subempreitada. Não é director o dono da obra, nem o vigilante ou o fiscal da obra, nem ainda o fornecedor de materiais. Na alínea b) os objectos da acção típica são a aparelhagem e outros meios existentes no local de trabalho destinados a prevenir acidentes, incluindo a acção típica a destruição, danificação ou inutilização, total ou parcial de tais objectos, ou, a infracção de regras legais, regulamentares ou técnicas com omissão da instalação de tais meios ou aparelhagem. A «aparelhagem e os meios destinados a prevenir acidentes» incluem toos os objectos que visem proteger a integridade física dos trabalhadores e dos terceiros à obra que vivam ou circulem junto à mesma (em sentido amplo, incluindo os “meios pessoais”, intelectuais e organizativos, entre os quais se destaca muito especialmente o dever de informação sobre o risco). Nesta alínea o ilícito apresenta como condutas típicas e ao mesmo tempo modalidades de acção, «destruir, danificar ou tornar não utilizável». No que tange ao tipo subjectivo o mesmo apresenta uma estrutura tripartida: prevê-se o cometimento doloso da conduta com imputação igualmente dolosa do perigo criado (n.º 1), quer o cometimento doloso da conduta, com imputação negligente do perigo (n.º 2), quer ainda o cometimento negligente da conduta, com imputação negligente do perigo (n.º 3). Brevitatis causa, começando por sanear os autos, devemos referir que, pela simples leitura da acusação e, consequentemente, da matéria julgada provada (que é um minus em relação àquela), se constata que está em causa infracção de regras de segurança. O excurso expositivo supra realizado, que estabeleceu a distinção entre as alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 277.º do Código Penal, permite desde logo concluir que a situação fáctica em análise apenas pode ser reconduzida à alínea b). Com efeito, como refere JOSÉ P. RIBEIRO DE ALBUQUERQUE é totalmente inapropriada a subsunção dos casos de acidentes de trabalho, por infracção a regras de segurança, à previsão normativa da alínea a) do referido preceito, uma vez que nada aí é estabelecido no que respeita à violação das regras existentes quanto à segurança no trabalho – A Infracção às Regras de Segurança no Trabalho, Omissão da instalação de meios ou de aparelhagem destinados a prevenir acidentes na construção civil. O tipo omissivo do art. 277º nº 1 al. b) 2ª parte do Código Penal, p. 18, disponível para consulta in https://www.pgdlisboa.pt/textos/files/acidente_de_trabalho.pdf. Assim, tendo por liminarmente afastada a subsunção da factualidade em análise à referida al. a), resta apurar se a conduta em análise é susceptível de ser reconduzida à alínea b), nomeadamente ao tipo omissivo consagrado na segunda parte. Resulta da factualidade assente que o Arguido, enquanto gerente e responsável da sociedade SC, tinha a seu cargo, mediante acordo previamente estabelecido, a execução de todos os trabalhos de carpintaria de tosco e armação de ferro, conforme projecto aprovado de um edifício multifamiliar, que estava a ser construído por AA, figurando, portanto, como subempreiteiro. Na laje de cobertura do edifício, junto à bordadura, a 12 metros de altura, encontrava-se instalado um guincho destinado a içar materiais de construção, que era utilizado pelos trabalhadores da sociedade de que o Arguido era responsável. Inexistia qualquer protecção colectiva no aludido local, nomeadamente, inexistiam guarda-corpos junto as aberturas para o exterior, e os trabalhadores não dispunham de protecção individual de segurança que permitisse prevenir e diminuir os riscos de acidentes de trabalho, designadamente o risco de queda. Não lhes foi ministrada igualmente qualquer formação em matéria de segurança no trabalho. O Arguido tinha o dever legal de instalar tais equipamentos de protecção colectiva, uma vez que, nos termos do artigo 40.º do Decreto n.º 41821/58, de 11 de Agosto (Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil) as aberturas feitas no soalho de um edifício ou numa plataforma de trabalho para passagem de operários ou material, montagem de ascensores ou escadas, ou para qualquer outro fim, serão guarnecidas de um ou mais guarda-corpos e de um guarda-cabeças, fixados sobre o soalho ou a plataforma. De acordo com o parágrafo único do mesmo preceito, os guarda-corpos, com secção transversal de 0,30 m pelo menos serão postos à altura mínima de.1 m acima do pavimento, não podendo, o vão abaixo deles ultrapassar a medida de 0,85 m. A altura do guarda cabeças nunca será inferior a 0, 14 m. De igual modo, nos termos do artigo 11.º, n.º 1 da Portaria n.º 101/96, de 03 de Março, sempre que haja risco de quedas em altura, devem ser tomadas medidas de protecção colectiva adequadas e eficazes ou, na impossibilidade destas, de protecção individual, de acordo com a legislação aplicável, nomeadamente o Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil. O n.º 2 sublinha que, quando, por razões técnicas, as medidas de protecção colectiva forem inviáveis ou ineficazes, devem ser adoptadas medidas complementares de protecção individual, de acordo com a legislação aplicável. Por fim, nos termos do artigo 22.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de Outubro, durante a execução da obra, os empregadores devem observar as respectivas obrigações gerais previstas no regime aplicável em matéria de segurança, higiene e saúde no trabalho e em especial: a) Manter o estaleiro em boa ordem e em estado de salubridade adequado; c) Garantir as condições de acesso, deslocação e circulação necessária à segurança em todos os postos de trabalho no estaleiro; (…) m) Adoptar as prescrições mínimas de segurança e saúde no trabalho revistas em regulamentação específica; De acordo com o n.º 2 do mesmo preceito, quando exercer actividade profissional por conta própria no estaleiro, o empregador deve cumprir as obrigações gerais dos trabalhadores previstas no regime aplicável em matéria de segurança, higiene e saúde no trabalho Ora, verifica-se que apesar de estar obrigado, legalmente, a instalar não só meios de protecção colectiva, mas igualmente individual (uma vez que a abertura no guincho para a passagem de material, dada a sua própria natureza seria insusceptível de ser resguardada com guarda-corpos), o empregador não cuidou de colocar qualquer protecção na cobertura, que permitisse prevenir e diminuir os riscos de acidentes de trabalho, designadamente o risco de queda. De igual modo, o desenvolvimento do plano de segurança e saúde para a execução da obra deve incluir a informação e formação dos trabalhadores, designadamente em matéria de prevenção de riscos profissionais (cfr. artigo 11.º, n.º 1, al. h) do Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de Outubro e Anexo II), não tendo sido ministrada igualmente qualquer formação em matéria de segurança no trabalho. Encontra-se igualmente verificado o perigo para a vida do trabalhador, e mesmo mais do que isso, o dano para o bem jurídico vida, verificando-se deste modo o resultado previsto no tipo. Questão que importa apreciar é se tal resultado foi criado, ou pelo menos potenciado, pelas referidas omissões, nos termos da teoria da imputação objectiva do resultado à acção. Como explica FIGUEIREDO DIAS, o critério geral da teoria da adequação reside em que para a valoração jurídica da ilicitude serão relevantes não todas as condições, mas só aquelas que, segundo as máximas da experiencia e a normalidade do acontecer – e portanto segundo o que é em geral previsível –, são idóneas para produzir o resultado – Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, p. 328: Assim, conforme refere ainda este autor, deve proceder-se a um juízo de prognose póstumo, isto é, deve ponderar-se, observada a conduta do agente, se é normal e expectável de acordo com regras gerais de experiência, que a condição praticada tenha como consequência a produção do evento, levando-se ainda em consideração os especiais conhecimentos do agente. Tal teoria encontra dificuldades de aplicação sobretudo em actividades que, comportando em si mesmas riscos consideráveis para bens jurídicos, são, todavia, legalmente permitidas (não proibidas). Domínios como o da circulação rodoviária, o da produção e transporte de produtos perigosos, intervenções médicas arriscadas ou mesmo da construção civil, como no caso vertente, colocam acrescidos problemas, uma vez que, muitas vezes, a acção se revela em si mesma adequada à produção do resultado típico, apesar de não puder ser proibida sem conduzir a vida social ao retrocesso ou mesmo à paralisação. É nestes casos que é especialmente útil a doutrina da conexão de risco: o resultado só deve ser imputável à acção quando esta tenha criado (ou aumentado) um risco proibido para o bem jurídico protegido pelo ilícito e esse risco se tenha materializado no resultado típico. Cumpre, em primeiro lugar, à ordem jurídica definir quais as regras a observar, quais as precauções e cuidados a ter na prática dessas actividades que por si mesmas comportam perigos para bens jurídicos, aí se estabelecendo a fronteira entre o risco permitido e o proibido. No caso de a ordem jurídica nada dispor, cumpre fazer apelo às chamadas legis artis, isto é, aquelas regras que, na falta de regulação legal, devem ser observadas pelos agentes do respectivo sector do tráfico, por serem seguidas de forma habitual. Neste tipo de actividades perigosas sucede muitas vezes que já está criado, antes da actuação do agente, um risco que ameaça o bem jurídico protegido. Não obstante, o resultado será ainda imputável ao agente se este, com a sua conduta, aumentou ou potenciou o risco já existente, piorando, em consequência, a situação do bem jurídico ameaçado – neste sentido cfr. FIGUEIREDO DIAS, op. cit., p. 336. Ora, é precisamente isso que se verifica no caso vertente. A actividade de construção civil é uma actividade perigosa, e a laboração num edifício em fase inicial de construção, sem paredes, a doze metros de altura, comporta inegavelmente riscos para o próprio. Tais riscos são tolerados pela sociedade até certo ponto, exigindo a ordem jurídica que esses riscos sejam minorados com equipamentos de protecção colectiva e/ou individual, nos termos supra expostos, estabelecendo o legislador qual o risco permitido que não pode ser ultrapassado. No caso, o Arguido, com a sua actuação omissiva, ao não instalar guarda-corpos, nem meios de protecção individual, potenciou o risco de queda a que o trabalhador estava sujeito. Deste modo, a omissão de colocação de barreiras e de meios de protecção individual, que impedissem a queda do trabalhador contribui decisivamente para o acidente de trabalho e a consequente morte do trabalhador, verificando-se assim o necessário nexo de causalidade. Inexiste qualquer facto que permita excluir a responsabilidade do Arguido em função de uma actuação do malogrado trabalhador. Deve notar-se que imputação do resultado ao agente, apesar da participação da vítima, deve manter-se nos casos em que essa intervenção da vítima seja previsível para o agente. No caso, a utilização do guincho, por qualquer trabalhador, incluindo o sinistrado, era previsível, tal como eram os riscos, proibidos, associados. A aceitação do trabalhador prestar trabalho nas referidas condições de (in)segurança não releva para a exclusão da ilicitude do empregador. Em primeiro lugar, num caso de dano para o bem jurídico vida ou integridade física essencial a questão não tem aplicação, uma vez que são bens jurídicos indisponíveis, pelo que apenas se poderia colocar quanto ao perigo para tais bens – no sentido da indisponibilidade dos bens jurídicos cfr. AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal – Parte Geral – Teoria Geral do Crime, II Vol., Porto: Publicações Universidade Católica, 2004, pp. 282 e ss. Todavia, mesmo em relação ao perigo, temos de ter presente que não estamos perante uma relação paritária, sendo a relação laboral necessariamente uma relação desequilibrada. Como refere JOSÉ P. RIBEIRO DE ALBUQUERQUE, para o trabalhador, a alternativa à sujeição às precárias condições de segurança oferecidas pelo empregador é reduzida, uma vez que tem a posição subordinada e mais fraca. Como prossegue o mesmo autor, quem não aceita os riscos inerentes à actividade que exerce apenas pode recusar essa actividade e eliminar o risco na fonte, o que de todo em todo não é exigível, pois que isso corresponde à não obtenção dos ganhos de subsistência que o trabalho representa, quantas vezes sem a alternativa de qualquer outra actividade (desqualificada e) de menor risco – A Infracção às Regras de Segurança no Trabalho, op. cit., p. 25. De igual modo, como prossegue o mesmo autor, não pode esquecer-se que as imposições legais em matéria de SHST são de interesse ou carácter público e por isso não são livremente disponíveis ou renunciáveis. Portanto, excluindo situações evidentes de auto-colocação em risco pelo trabalhador, o consentimento do trabalhador para a prestação laboral só deve incluir a sua força de trabalho e não o perigo para a sua vida ou integridade física, razão por que deve considerar-se irrelevante esse consentimento. Também, a auto-colocação em situação de risco não pressupõe subjacente um eventual consentimento do trabalhador relativamente a bens jurídicos tutelados não essenciais, pois que por via da auto-colocação em risco, salvo situações flagrantes e completamente excepcionais, não fica eximido o empregador da quota parte de responsabilidade na situação de risco, já que na eventualidade de uma concorrência de culpas não tem que haver lugar à compensação entre elas – JOSÉ P. RIBEIRO DE ALBUQUERQUE, A Infracção às Regras de Segurança no Trabalho, op. cit., p. 27. Assim, excluída qualquer excepcional situação de auto-colocação em risco, que não se vislumbra, nem se antolha, nenhuma circunstância exclui ou pode excluir a responsabilidade do Arguido. Aliás, encontramo-nos no caso paradigmático de aplicação do normativo, ou como refere JOSÉ P. RIBEIRO DE ALBUQUERQUE, «o caso habitual do trabalhador da construção civil que cai em altura e morre, por falta de redes de protecção ou de ligação por arnês a “fio de vida”» – A Infracção às Regras de Segurança no Trabalho, op. cit., p. 27. Como refere o mesmo autor, os sinistros na construção civil são de longe os que têm maior expressão estatística e processual, e dentro destes, a queda em altura é, de longe, a principal causa dos acidentes – op. cit. pp. 2 e 4. O perigo criado pela conduta omissiva corresponde precisamente aos perigos subentendidos na incriminação, e por força desse perigo veio a gerar-se um perigo efectivo para os bens jurídicos individuais identificados pela norma, nomeadamente para a vida, e mais do que isso, um dano que resultou na morte do trabalhador. O Arguido em resultado do contrato de subempreitada firmado com a empreiteira, estava obrigado, enquanto representante da sua empresa, a tomar todas as providências, na execução dos seus trabalhos, por forma a acautelar a vida e segurança de todo o pessoal empregado na obra, próprio ou de terceiros que trabalhassem na zona de intervenção. Apesar de conhecer a falta das necessárias medidas de segurança da obra, o Arguido não procurou proceder à colocação de guarda-corpos, redes de segurança, ou meios de protecção individual que anulariam os riscos de queda em altura de algum dos operários. Assim é imputável o resultado lesivo, devendo o Arguido, em face das deficientes condições de segurança, prever o risco de queda dos trabalhadores. Ao nível do tipo subjectivo resultou provado que, o Arguido dispunha dos conhecimentos técnicos e legais que lhes permitiam evitar o acidente, tendo actuado de forma livre, consciente e voluntária, na qualidade de representante legal da sociedade SC, bem sabendo o seu comportamento proibido e punido por Lei, embora não tenha manifesto o cuidado que o dever geral de providência aconselha e que podia e devia ter, pondo em perigo a segurança dos seus trabalhadores, devendo ter evitado a morte de FF que podia e devia ter previsto, caso tivesse agido com diligência e cumprido as obrigações que a lei impunha na execução da construção e para prevenir os acidentes nessa actividade. É o que basta para o preenchimento do tipo subjectivo imputado, na vertente dolo de acção, perigo negligente consagrada no n.º 2. O falecimento do ofendido é fundamento de agravação, nos termos do estatuído nos artigos 285.º, do Código Penal, o qual é imputável ao Arguido, nos termos supra expostos. Deste modo, pelo preenchimento dos elementos quer objectivos, quer subjectivos do tipo, inexistindo causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, conclui-se que o Arguido cometeu 1 (um) crime de infracção das regras de construção agravado pelo resultado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 277.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, e 285.º do Código Penal, devendo todavia ser absolvido da imputação referente à al. a)».
Vejamos, então.
«A expansão do Direito Penal, com a criação de crimes de perigo e a existência de novos bens jurídicos, implicou o alargamento da sua intervenção em diversas áreas da vida humana onde se impunha a tutela de direitos sociais, culturais e económicos, os quais eram colocados em causa nas sociedades industrializadas, por existirem novos riscos no desenvolvimento da actividade humana.
Assim sendo, a concepção de que esta matéria revestia apenas natureza laboral, com a existência apenas do eventual incumprimento das regras regulamentares aplicáveis ao caso, foi abandonada, com a consequente criminalização das condutas violadoras das regras de segurança, desde que ocorresse a criação de perigo para a vida ou para a integridade física de outrem. Tal veio a suceder entre nós com o disposto nos arts. 152º-B e 277º, nºs 1, al. b), 2 e 3, ambos do Código Penal. Aliás, diga-se, que a tutela dos bens jurídicos em causa nestas normas incriminadoras tem como fundamento constitucional o que se encontra previsto no art. 59º, nº 1, al. c) da Constituição, relativo à prestação do trabalho em condições de higiene e segurança como direito dos trabalhadores.
A verificação dos elementos típicos destes crimes envolve várias questões jurídicas as quais advêm, em boa parte, de se estar perante um crime de perigo concreto, um crime específico próprio (segundo a qualidade dos autores), um crime omissivo próprio (omissão de um dever de agir e independente do resultado) e um crime de violação de dever.
As regras técnicas aí mencionadas podem ter por fonte a lei, o regulamento ou o uso profissional.
Está-se, deste modo, a conferir protecção penal a normas de direito laboral. E o preenchimento deste tipo, que é de perigo concreto, tanto pode ter lugar por via de acção como por omissão, sendo discutível que se tenha de recorrer ao disposto no art. 10.º, n.º 2, do Código Penal. O perigo é, aqui, o risco de lesão da vida, da integridade física ou do património alheio. Nos crimes de perigo o legislador penal antecipa a punição para um momento anterior ao resultado, porque a prática de certos actos cria um risco de lesão de bens jurídicos relevantes. E quando o tipo legal pode ser violado por pessoa sobre quem recai um dever especial trata-se de um crime específico próprio, em que a qualidade dos agentes ou o dever que sobre eles impende fundamenta a ilicitude.
Trata-se do dever do concreto cumprimento das normas de segurança.
O conceito de meios utilizado na lei penal reporta-se aos meios materiais, intelectuais e organizativos, em especial o dever de informação sobre o risco, pois a referida informação é um meio imprescindível para que o trabalho se realize sob os parâmetros adequados de protecção.
Por um lado, a noção de meios para efeitos da norma incriminadora engloba os meios materiais e não materiais, colectivos ou individuais, abrangendo a existência dos meios necessários para que os trabalhadores desempenhem a sua actividade em segurança, com cumprimento das regras aplicáveis. Mas, por outro lado, parece ser ponto assente que a noção de meios deve ter como fundamento uma qualquer disposição normativa, relacionada com a segurança no local de trabalho».13
Em abreviada síntese, como decorre da motivação e das conclusões recursórias acima transcritas, o arguido/recorrente cinge o dissenso quanto ao enquadramento jurídico-penal na invocação de que o acidente sempre teria ocorrido por violação das regras de segurança que incumbiam legalmente ao dono da obra - a empresa AA14concluindo, adrede, que «a avaliação da conduta omissiva do dono da obra, da entidade executante, do empreiteiro geral, da direção e fiscalização da obra, encontra um nexo causal direto e imediato com a ocorrência e subtrai ao arguido qualquer responsabilidade criminal pela morte do sinistrado».
Todavia, se é certo que, no caso, não resultou provado que o dono da obra - a empresa AA - elaborou planos de segurança para a obra, no caso para prevenir quedas em altura e/ou que acautelou a presença ou acompanhamento da obra por um coordenador de segurança para assegurar o cumprimento das regras de segurança15 também não é de olvidar que «(…) Sucede muitas vezes que, na situação, já está criado, antes da actuação do agente, um risco que ameaça o bem jurídico protegido. Não obstante, o resultado será ainda imputável ao agente se este, com a sua conduta, aumentou ou potenciou o risco já existente, piorando, em consequência, a situação do bem jurídico ameaçado»16.
E assim sendo, perante a matéria de facto assente, ter-se-á de concluir, neste particular em absoluta adesão ao decidido pelo Sr. Juiz, que se mostram reunidos todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal.
Na verdade, tal como consignado pelo Tribunal a quo: «A actividade de construção civil é uma actividade perigosa, e a laboração num edifício em fase inicial de construção, sem paredes, a doze metros de altura, comporta inegavelmente riscos para o próprio. Tais riscos são tolerados pela sociedade até certo ponto, exigindo a ordem jurídica que esses riscos sejam minorados com equipamentos de protecção colectiva e/ou individual, nos termos supra expostos, estabelecendo o legislador qual o risco permitido que não pode ser ultrapassado. No caso, o Arguido, com a sua actuação omissiva, ao não instalar guarda-corpos, nem meios de protecção individual, potenciou o risco de queda a que o trabalhador estava sujeito. Deste modo, a omissão de colocação de barreiras e de meios de protecção individual, que impedissem a queda do trabalhador contribui decisivamente para o acidente de trabalho e a consequente morte do trabalhador, verificando-se assim o necessário nexo de causalidade».
É que, e reiterando uma vez mais o já anteriormente expresso, o denominado concurso de culpas não belisca a responsabilidade criminal do arguido/recorrente, apenas condescenderá a oportuna valoração na determinação da medida da pena.
Hipóteses «(…) de concausalidade, não influem no plano dos pressupostos da responsabilidade, relevando, unicamente, no momento da determinação das consequências jurídicas do crime.
Com efeito, no âmbito da teoria da causalidade adequada defende-se que se verifica um nexo de causalidade adequada quando uma condição não é a única a contribuir para a produção do resultado, mas aumenta a possibilidade de ocorrência do mesmo de modo não irrelevante.
Já á luz da teoria do incremento do risco, pode dizer-se que se verificará um nexo de imputação objetiva em casos de causalidade cumulativa e em relação a qualquer das causas, pois cada uma das ações, embora não seja causa única de produção do resultado, incrementou o risco dessa produção».17
Em face do exposto, julga-se também improcedente o recurso nesta parte.
3.3. Da escolha e da medida da pena
Por fim, pretende o recorrente ver mitigada a pena em que foi condenado e refuta a adequação da imposição de regime de prova, concluindo que o Tribunal a quo incorreu em erro de jure.
Em síntese, invoca que:
«Quanto à medida da pena, o tribunal a quo parece escrever sem sopesar que o arguido conta 61 anos de idade, que os factos remontam a 2007, há 15 anos, que desde então não tem incidências criminais, porquanto a condenação por crime tributário resulta de factos ocorridos naquele mesmo período. Naquelas circunstâncias, a finalidade preventiva geral ou especial em que assenta a pena de quatro anos de prisão (embora suspensa), carece de sentido e extrapola a finalidade das penas: Mostrando-se igualmente e acentuadamente extemporâneo e desadequado, 15 anos depois, submeter-se o recorrente com 61 anos, a um plano de reinserção social».
Na sentença recorrida, quanto à determinação e escolha da pena ficou consignado o seguinte: «Realizado o enquadramento jurídico-penal da conduta do Arguido importa, agora, determinar a natureza e medida da sanção a aplicar. A moldura abstracta da pena para o crime de infracção das regras de construção, previsto e punido pelo artigo 277.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal é de pena de prisão até 5 (cinco) anos. Nos termos do artigo 285.º do mesmo diploma legal, a moldura é agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo, o que faz com que a mesma seja de 1 (um) mês e 10 (dez) dias a 6 (seis) anos e 8 (oito) meses de prisão. Nos termos do artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, a aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Com a referência à protecção de bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade o legislador erigiu as exigências de prevenção a finalidade única do sistema sancionatório português Assim, por um lado, com a menção a protecção de bens jurídicos, tem o legislador em vista a prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida: em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida – FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, Parte Geral II, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2009, 2ª Reimp. pp. 72 e 73. Por outro lado, no desiderato legal da “reintegração do agente na sociedade” visou o legislador vincar a vertente positiva da prevenção especial, sem se olvidar, segundo FIGUEIREDO DIAS, a utilidade dos efeitos negativos do afastamento, em casos muito contados, e da intimidação a nível individual – As Cons… op. cit. p. 243. Em suma, as penas, devem ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador e são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.03.98, relator LEONARDO DIAS, proc. 98P194 in dgsi.pt, e FIGUEIREDO DIAS, As Cons... op. cit. p. 227. No que diz respeito à determinação concreta da pena, o artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, estatui que, a mesma é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, dentro dos limites definidos pela lei. As exigências de prevenção que o supra citado preceito menciona são as referidas no artigo 40.º, n.º 1. À luz aliás dos princípios emergentes do Direito Penal constituído, as penas devem reflectir essas finalidades de forma harmónica, visando sempre a protecção do bem jurídico que lhes subjaz e a realização dos fins éticos do sistema. Toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, o que significa que não há pena sem culpa, não podendo aquela ultrapassar a medida da culpa, sob pena de violação do princípio da dignidade da pessoa humana. A culpabilidade exige que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente, por aquele se revelar expressão de uma atitude interna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever-ser sócio-comunitário – FIGUEIREDO DIAS, Temas básicos da doutrina penal, Coimbra Editora, 2001, p. 230. Nestes termos, dentro desse limite máximo inultrapassável que é a medida da culpa, a pena é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico em função de exigências de prevenção especial, regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, ou intimidação ou segurança individuais – FIGUEIREDO DIAS, Temas… op. cit. pp. 110 e 111. Para determinação da pena concreta há que ter em consideração os factores previstos no n.º 2 do artigo 71.º, do Código Penal. Não sendo a pena concreta o resultado de simples operações aritméticas – que não teriam nunca razão de ser – ela há-de resultar da ponderação de todo o circunstancialismo provado, aquilatado pela personalidade do agente e sufragando as regras gerais de punição e os princípios delas emergentes – Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 1 de Outubro de 2008, relatado por CRAVO ROXO, proc. 0842659, disponível in dgsi.pt Revertendo ao caso dos autos, as exigências de prevenção geral são muito elevadas. Com efeito, os acidentes de trabalho por infracção de regras de segurança, revestem uma gravidade cuja dimensão é por toda a sociedade sublinhada, ceifando a vida de inocentes e desfavorecidos trabalhadores, exigindo a mesma, legitimamente, a imposição, por parte doTribunal de penas adequadas a repor a confiança da sociedade na eficácia do ordenamento penal. No que respeita à ilicitude, a mesma, dentro da ilicitude típica (onde já se prevê a agravação pelo resultado morte) situa-se num ponto superior ao médio, tendo em conta a gravidade das omissões verificadas (no âmbito da sua esfera de responsabilidade). Surge como circunstância desfavorável a intensidade do dolo, na medida em que o Arguido actuou com dolo de acção e negligência de perigo. A culpa do Arguido, deve ser qualificada como situada num ponto superior ao médio, afectada não só pela ilicitude, mas também pela intensidade do dolo, uma vez mais, tendo em conta a sua responsabilidade, enquanto empregador. No que se refere às exigências de prevenção especial, o Arguido está desinserido profissionalmente, vive com a ajuda de terceiros, não mantém contacto com os filhos, apresenta antecedentes criminais em sentido impróprio (numa situação de concurso com o vertente) por crime de natureza diversa (crime tributário), tendo nascido em .... Não devemos, contudo, olvidar que os factos remontam a 2007 e que não são conhecidos comportamentos semelhantes no ínterim. Tudo ponderado, afigura-se que as necessidades de prevenção especial se situam num ponto superior ao meio da moldura da pena de prisão, pelo que, tendo igualmente presente as elevadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir, é de considerar conforme ao princípio da culpa a aplicação ao Arguido de uma pena de 4 (quatro) anos de prisão. Uma vez determinada a concreta medida da pena importa verificar se a pena principal é de substituir por alguma pena de substituição. Com efeito, o nosso código respondeu aos propósitos politico-criminais do movimento de luta contra as penas de prisão, consagrando um vasto leque de penas substitutivas, vincando o princípio básico de que a pena de prisão constitui a última forma de actuação do sistema sancionatório penal. Assim, as penas de substituição devem ser aplicadas sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos de aplicação e se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades preventivas – neste sentido, cfr. FIGUEIREDO DIAS, As Cons… op. cit. p. 331. O critério para aferir a substituição da pena é unicamente preventivo, com maior predomínio da prevenção especial de socialização, por ser sobretudo tal função que fundamenta a luta contra as penas de prisão. Nestes termos, a prevenção geral funciona apenas como limite, o qual actuará, exigindo a pena de prisão, unicamente quando esta se mostre indispensável para que não sejam irremediavelmente postas em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias – neste sentido, FIGUEIREDO DIAS, As Cons… op. cit. p. 333. Tendo em conta o quantum da pena de prisão, aquela pode ser suspensa na sua execução, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, todos do Código Penal. Estabelece o artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal que, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Para além do pressuposto formal (pena inferior a 5 anos de prisão), a lei exige um pressuposto de ordem material, ou seja, a verificação, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do caso, de um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido no futuro. Assim, ancorado nos factos, para aplicação da suspensão, deverá o juiz efectuar um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do Arguido, no sentido de que a simples ameaça da prisão será suficiente para pleno cumprimento das finalidades da punição, possibilitando ao Arguido a assimilação da advertência que a condenação implica, a qual será suficiente para que não volte a delinquir. No caso vertente, considerando que os factos remontam a 2007 e que não há notícia de novos comportamentos delitivos, e que o Arguido apenas apresenta antecedentes criminaispor crime diverso, afigura-se que a condenação em pena de prisão é suficiente, para que o Arguido tome consciência da gravidade das suas condutas, considerando, ademais, que o mesmo já não exerce (…). Nestes termos, afigura-se possível efectuar um juízo positivo de prognose positivo sobre o comportamento futuro do Arguido, sendo expectável que, em face deste primitivo (e espera-se único) contacto com o sistema judiciário, aquele reveja o seu comportamento, surgindo o período de suspensão configurado como o desejável estímulo extrínseco para que tal suceda. Pelo exposto, entende-se que a suspensão da pena de prisão é adequada às exigências de prevenção especial, de socialização, permitindo que o Arguido tome consciência do desajustamento seus actos, e se responsabilize quer, socialmente, quer interiormente, por eles. Tal pena tem ainda a virtualidade de evitar, por um lado, a contaminação do condenado pelo meio prisional, e por outro, o corte das suas relações sociais. O artigo 50.º, n.º 5 do Código Penal, estabelece que o período de suspensão tem a duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão – na anterior redacção, porquanto mais favorável ao não permitir a aplicação de um período de suspensão superior à concreta pena aplicada. Destarte, tudo ponderado, decide-se suspender a execução da pena de prisão pelo período de 4 (quatro) anos, a contar do trânsito em julgado da decisão, período que se afigura suficiente para se poder concluir pela satisfação das necessidades preventivas. Apesar da opção pela suspensão da pena de prisão, a verdade é que na situação sub iudicio, considerando a gravidade da conduta, reveladora de carências de socialização, se impõe, com vista realizar as finalidades da punição, subordinar a suspensão da execução da pena de prisão a regime de prova, nos termos dos artigos 50.º, n.º 2 e 53.º, n.º 1 do Código Penal. Estabelece o referido preceito que o Tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade. Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, o regime de prova assenta num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social. Pelo exposto, a suspensão da execução da pena de prisão será acompanhada de regime de prova assente num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, durante o tempo de duração da suspensão. O plano de reinserção social contém os objectivos de ressocialização a atingir pelo condenado, as actividades que este deve desenvolver, o respectivo faseamento e as medidas de apoio e vigilância a adoptar pelos serviços de reinserção social. Com vista à adequada execução de tal plano determina-se, nos termos do artigo 54.º, n.º 3 do Código Penal, a imposição ao Arguido das seguintes regras: i) Responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social; ii) Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência; iii) Informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso».
Vejamos.
A medida da pena deve ser determinada em função da culpa do agente, tendo em atenção as exigências de prevenção geral e especial, de acordo com os critérios estabelecidos no art. 71º do C.P.
«As finalidades de aplicação de uma pena assentam, em primeira linha, na tutela de bens jurídicos e na reintegração do agente de sociedade. Contudo, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (artigo 40.º, n.º 1 e 2, do CP).
Logo, num primeiro momento, a medida da pena há-de ser dada pela medida de tutela dos bens jurídicos, no caso concreto, traduzindo a ideia de prevenção geral positiva, enquanto «reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida» [Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pp. 72-73].
Valorada em concreto a medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, a culpa funciona como limite máximo da pena, dentro da moldura assim encontrada, que as considerações de prevenção geral, quer positiva ou de integração, quer negativa ou de intimidação, não podem ultrapassar.
Por último, devem actuar considerações de prevenção especial, de socialização ou de suficiente advertência.
Os concretos factores de medida da pena, constantes do elenco, não exaustivo, do n.º 2 do artigo 71.º do C.P., relevam tanto pela via da culpa como pela via da prevenção»18
«(…) a finalidade de tutela e protecção de bens jurídicos há-de constituir, por isso, o motivo fundamento da escolha do modelo e da medida da pena; de tutela da confiança das expectativas da comunidade na validade das normas, e, especificamente, na validade e integridade das normas e dos correspondentes valores concretamente afectados.
Por seu lado, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há-de ser, em cada caso, prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.
Nos limites da prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização há-de ser encontrado o modelo adequado e a medida concreta da pena, sempre de acordo com o princípio da culpa como seu limite inultrapassável»19
Como decorre claramente do trecho transcrito, o Sr. Juiz ponderou assertivamente, atento o tipo de criminalidade em causa, que sendo fortes e intensas as razões de prevenção geral, urge reestabelecer a confiança da comunidade e reforçar a garantia da validade das normas.
Porém, se é certo que, como uniformemente tem sido defendido na jurisprudência, «(…) em sede de escolha e medida da pena, o recurso não deixa de reter o paradigma de remédio jurídico (na expressão de Cunha Rodrigues), no sentido de que a intervenção do tribunal de recurso, (também) neste particular, deve cingir-se à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e normação que definem e demarcam as operações de concretização da pena na moldura abstracta determinada na lei»20, não será de olvidar que, no caso, numa moldura legal de 1 (um) mês e 10 (dez) dias a 6 (seis) anos e 8 (oito) meses de prisão, o Tribunal a quo fixou uma pena de 4 (quatro) anos de prisão, ou seja, já no limite do segundo terço daquela.
E assim sendo, por referência ao conjunto dos factos, incluindo, necessariamente, o hiato temporal já decorrido e as condições pessoais do recorrente, afigura-se que o recurso interposto nesta parte merece e reclama provimento, já que se nos afigura que a pena aplicada desrespeita os critérios legais, jurisprudenciais e, maxime, os de adequação e proporcionalidade constitucionalmente impostos21.
Com efeito:
Na decorrência do já anteriormente dito, urge valorar, desde logo, que para além do comportamento omissivo do arguido/recorrente, no caso, o dono da obra era a sociedade AA e não se provou que esta tenha elaborado planos de segurança para a obra, para prevenir quedas em altura, e/ou acautelado a presença ou acompanhamento da obra por um coordenador de segurança para assegurar o cumprimento das regras de segurança.
De salientar, por outro lado, que o arguido/recorrente conta actualmente 63 anos de idade, tem averbada, somente, uma outra condenação por crime de diferente natureza22 , em relação de concurso com o crime em causa nos presentes autos23 e que os factos remontam a ... 2007, ou seja, que decorreram, de permeio, 18 anos.
E assim sendo, em vista do disposto nos art. 40º e 71º do C.P., numa moldura legal cujo mínimo é de 1 (um) mês e 10 (dez) dias e o máximo de 6 (seis) anos e 8 (oito) meses de prisão, não nos assolam dúvidas de que as circunstâncias dos factos e as condições pessoais do arguido/recorrente justificam e condescendem a aplicação da pena em medida próxima do ponto médio da moldura, concretamente em 3 (três) anos de prisão, a qual ficará suspensa na sua execução por igual período.
Por último, no que concerne ao regime de prova imposto:
O Tribunal a quo com respaldo único na «gravidade da conduta, reveladora de carências de socialização» decidiu subordinar a suspensão de execução da pena de prisão a regime de prova, nos termos dos art. 50.º, n.º 2 e 53.º, n.º 1 do C.P.
Já o arguido/recorrente insurge-se aduzindo que se mostra «acentuadamente extemporâneo e desadequado, 15 anos depois, submeter-se o recorrente com 61 anos, a um plano de reinserção social».
«O que constitui verdadeiro pressuposto material do regime de prova é a consideração pelo juiz de que se mostra conveniente e adequado a facilitar a reintegração do condenado, ou seja, sempre que se reconheça utilidade para reinserção social do delinquente, desempenhando a maior relevância como peça essencial de todo o processo a elaboração de um plano individual de readaptação social nos termos do n.º 2 do artigo 53.º do Código Penal.
Esse plano individual, que pode ser acompanhado de deveres, de teor essencialmente pecuniário, ou regras de conduta, referidos nos artigos 51.º e 52.º do Código Penal e outras obrigações ainda ajustadas ao plano individual de readaptação e ao aperfeiçoamento do sentimento de responsabilidade social do condenado – nºs 1 e 2 do artigo 54.º do Código Penal –, na sua execução cabe a um técnico de reinserção social.
O plano individual de readaptação é, no dizer do Prof. Figueiredo Dias, “a peça indispensável deste mecanismo de socialização”, o “testemunho da estratégia (e da táctica) que o tribunal entende dever seguir …”, “… a articulação do cumprimento dos deveres e regras de conduta impostas com as tarefas de vigilância a cargo do trabalhador especializado ou técnico de reinserção social” (…), que não deve ceder à tentação de tornar a sua tarefa em “missionarismo paternalista e predicante”, mas ater-se aos limites de “legalidade externa” impostos na sentença, o que vale particularmente para tudo quanto respeite à vida íntima e familiar do condenado»24.
Por assim ser, no caso, não se vislumbra que, tendo em conta o tipo legal perpetrado, o lapso de tempo entretanto decorrido (mais de 18 anos) e a circunstância de o arguido/recorrente não desempenhar já qualquer actividade profissional, se mostrem ainda actuais/prementes quaisquer carências de socialização conexas com a conduta delituosa, a justificar a imposição de um regime de prova25.
Ao invés, estamos em crer que, nas descritas condições, a sujeição do arguido/recorrente a regime de prova surge a destempo e é inadmissivelmente tardia.
Termos em que se conclui pela procedência deste segmento recursivo.
III. DISPOSITIVO
Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:
Conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido CC revogando-se, na parcela atinente à medida da pena e à sujeição a regime de prova, a sentença recorrida, que se substitui pela decisão de condenar o arguido, pela prática, na forma consumada, de 1 (um) crime de infracção das regras de construção agravado pelo resultado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art. 277.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, e 285.º do C.P., na pena de 3 (três) anos de prisão, cuja execução ficará suspensa por igual período, no mais se confirmando o decidido.
Notifique.
Lisboa, 26 de Junho de 2025
Ana Marisa Arnêdo
Paula Cristina Bizarro
Ivo Nelson Caires B. Rosa
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1. Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 7/5/2018, processo n.º 134/16.0GAVF.G1 e do Tribunal da Relação de Évora de 26/4/2016, processo n.º 371/14.1TATVR.E1, in www.dgsi.pt.
2. Recordemos que a insuficiência da matéria de facto para a decisão foi o vício de procedimento apontado no anterior acórdão proferido por este Tribunal da Relação e, nessa sequência, foi determinado o regresso dos autos à primeira instância para reabertura da audiência e apuramento da seguinte factualidade: - A empresa AA, dono da obra e entidade executante, elaborou planos de segurança para a obra, no caso para prevenir quedas em altura. - A empresa AA, dono da obra e entidade executante acautelou a presença ou acompanhamento da obra por um coordenador de segurança para assegurar o cumprimento das regras de segurança. - Após o sinistro e na sequência da notificação feita pela IGT à sociedade “SC”, quem, efectivamente, procedeu à colocação em obra dos equipamentos de protecção colectiva nomeadamente os guarda-corpos visíveis nas fotografias de fls. 31 / a mando de quem foram tais equipamentos ali colocados.
3. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14/10/2020, processo n.º 616/15.0GBAMT.P1, in www.dgsi.pt.
4. E que culminou com a extracção de certidão, para efeitos de procedimento criminal, por eventual crime de falso depoimento por parte da testemunha.
5. Ou de incredibilidade.
6. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 9/1/2012, processo n.º 102/10.5TAANS.C1, in www.dgsi.pt.
7. Equacionada pelo Sr. Juiz na motivação, mas na suposição equivocada de que os factos que determinaram a reabertura da audiência não são factos favoráveis ao arguido.
8. Como já anteriormente referido, a factualidade respeitante à eventual existência de um concurso de culpas, embora não exclua a responsabilidade criminal do arguido/recorrente, consentirá e reclamará a devida valoração na determinação da medida da pena.
9. «Situação diversa, que respeita ainda ao âmbito de aplicação ou incidência do princípio, é a que se verifica quando a dúvida respeita à prova de facto favorável ao arguido. Como diz o Prof F. Dias, “Relativamente … ao facto sujeito a julgamento o princípio aplica-se sem qualquer limitação, e, portanto, não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude (v.g. a legítima defesa …), de exclusão da culpa (v.g. o estado de necessidade desculpante) e de exclusão da pena (v.g. desistência da tentativa…), bem como às circunstâncias atenuantes, sejam elas modificativas ou simplesmente gerais. Em todos estes casos [conclui o autor] a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de atuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido” – Cfr Direito Processual Penal, 1º volume, Coimbra Editora-1974 p. 215.
Só nestas hipóteses de facto favorável o arguido poderá entender-se que, como efeito da aplicação do princípio in dubio pro reo, o tribunal julgue provado o facto favorável, apesar de a prova produzida e valorada não ter convencido o tribunal da realidade daquele mesmo facto e, portanto, persistir a situação de dúvida. Ainda assim, note-se, o Prof F. Dias não afirma no trecho citado que o princípio implique julgar-se provado o facto duvidoso favorável ao arguido, nem estamos seguros que essa solução seja aceitável, na medida em que o princípio da livre apreciação da prova pressupõe que o julgamento do facto assente na convicção do órgão judicante e não em regras que possam ditar o resultado probatório independentemente daquela convicção, como era próprio dos modelos de prova legal ou tarifada. Partindo da distinção patente no trecho de F. Dias citado em texto, entre factos favoráveis e factos desfavoráveis, ao arguido, Cruz Bucho, pronunciando-se contra a solução de julgar provados os factos duvidosos favoráveis ao arguido, entende que o tribunal deve dar como não provado o facto favorável ao arguido sobre o qual recai a dúvida insanável e, também, dar como não provado que tal facto não tenha ocorrido, pois considera que julgar apenas não provado o facto favorável pode não ser suficiente para que o texto da sentença ou do acórdão resulte a existência de dúvida e muito menos para que tudo se passe como se o facto favorável se tivesse provado. “Nestes casos [conclui] parece-nos que será da conjugação destes dois factos não provados que irá emergir com clareza a existência de uma dúvida que irá necessariamente aproveitar ao arguido, permitindo ao tribunal como que ficcionar o facto duvidoso (não provado) e decidir como se esse facto [favorável] estivesse provado.” – Cfr Notas sobre o Princípio “in dubio pro reo”, Comunicação de 6.05.1998 no Centro de Estudos Judiciários, texto policopiado ali acessível, p. 20», Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20/10/2015, processo n.º 988/10.3GTABF.E2, in www.dgsi.pt., com negrito nosso.
10. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30/1/2007, processo n.º 2457/06-1, in www.dgsi.pt.
11. Acórdão do S.T.J. de 10/1/2008, processo n.º 07P4198, in www.dgsi.pt.
12. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30/6/2015, processo n.º 1340/14.7TAPTM.E1, in www.dgsi.pt.
13. João Palma Ramos, Crime de infracção de regras de segurança do art. 277º, nº 1, al. b), 2ª parte do Código Penal – Elementos típicos – Autoria – Estrutura empresarial – Dolo e negligência – Conceitos de Meios, Revista do Ministério Público, n.º 124, pág. 227/253, na síntese efectuada no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 4/4/2013, processo n.º 58/08.4GCSTB-E1, in www.dgsi.pt.
14. Prejudicada que se mostra a controvérsia respeitante à existência de arneses e ao desrespeito por banda da vítima de ordens expressas da entidade patronal, na sequência da decisão de improcedência do recurso na parte do erro de julgamento da matéria de facto.
15. Conforme alíneas d) e e) dos factos não provados.
16. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, pág. 317.
17. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14/6/2023, processo n.º 77/20.2GAVFR.P1, in www.dgsi.pt.
18. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 1 de Março de 2006, processo JTRP00038895, in www.dgsi.pt.
19. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22/9/2015, processo n.º 2619/12.8GBABF.E1, in www.dgsi.pt.
20. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/5/2021, processo n.º 88/16.2PASTS.S2, in www.dgsi.pt.
21. Art. 18º, n. º 2 da C.R.P.
22. Crime de abuso de confiança fiscal.
23. Os factos remontam ao ano de 2003.
24. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29/10/2014, processo n.º 452/13.9PBTMR.C1, in www.dgsi.pt.
25. A materialidade apurada quanto às presentes condições de vida do arguido/recorrente «Encontra-se desempregado, referindo não ter condições de saúde para trabalhar, vivendo da ajuda de terceiras pessoas, tendo anteriormente vivido como sem-abrigo; Actualmente, encontra-se a viver em casa emprestada, por uma amiga, não despendendo qualquer quantia com a mesma, beneficiando de ajuda da mesma no que respeita à alimentação; Tem três filhos adultos, com vidas autónomas e independentes, com os quais não mantém relação», suscitam inequívoca preocupação, mas sem enlace com a conduta criminosa, num plano diverso, estritamente social, putativamente a reclamar intervenção dos serviços da Segurança Social.