Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
NULIDADE PROCESSUAL
Sumário
(Sumário da responsabilidade do Relator) I-A competência de um tribunal é a medida da jurisdição exercida por cada tribunal (a competência diz respeito à distribuição do poder jurisdicional, entre os diversos tribunais, no interior de uma determinada categoria). A competência pode ser determinada por critérios como a matéria, o valor da causa, o território, a função ou a hierarquia. II-Estando em causa o conhecimento de uma nulidade processual, invocada perante o tribunal da 1ª instância, relativa a um ato processual praticado pelo tribunal da 1ª instância, compete a este tribunal, dado que goza de competência material para o efeito, proceder ao seu conhecimento e extrair as respetivas consequências processuais caso conclua pela procedência da mesma.
Texto Integral
Acordam no tribunal da Relação de Lisboa
I-Relatório
No processo comum (tribunal coletivo), do Juízo Central Criminal de Lisboa – foi decidido, por despacho de 3-12-2024, o seguinte:
“carece a 1ª Instância de poder jurisdicional e competência para conhecer de qualquer nulidade ou irregularidade do processado relacionada com a notificação ao Arguido do Acórdão da 1ª Instância e das motivações do recurso da Assistente, a subsequente admissão do recurso e demais tramitação”
***
Não se conformando com essa decisão, o MP recorreu para este Tribunal da Relação formulado as seguintes conclusões (transcrição): I-O arguido AA, por acórdão proferido pelo presente tribunal a 30/11/2023, foi absolvido da prática dos crimes pelos quais foi acusado. II. Uma vez que o arguido não esteve presente em qualquer das sessões de julgamento nem na leitura da decisão, o acórdão tem de lhe ser pessoalmente notificado, nos termos do artigo 333º, 5, do CPP, não sendo um caso de representação pelo seu defensor. III. Uma vez que tal notificação pessoal nunca ocorreu, não pode iniciar-se a instância recursiva por verificação de uma nulidade insanável nos termos do artigo 119º, c), do CPP, colocando em causa o direito de defesa do arguido, constitucionalmente protegido (art. 32º, 1 e 7, da CRP). IV. Nestes termos, não poderia ter sido admitido o recurso interposto pela assistente, por extemporaneidade. V. Dada a natureza insanável da nulidade, a mesma não fica “sanada” pela circunstância da mesma não ter sido detetada e, em consequência, sido proferidas decisões pelos tribunais superiores em sede de recursos apresentados nos termos legais. VI.O caso assume particular gravidade uma vez que o arguido veio a ser condenado em pena de prisão pelo acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, confirmado, na parte cível, pelo acórdão do Supremo Tribunal da Justiça. VII. A nulidade da falta de notificação pessoal do acórdão de primeira instância verifica-se mesmo tratando-se de uma decisão absolutória, não só porque a lei não faz qualquer distinção – não competindo ao intérprete fazê-lo – como esta circunstância faria com que em nenhum momento o mesmo fosse notificado pessoalmente de qualquer ato da fase de julgamento e recurso, tendo em conta o entendimento jurisprudencial consensual, constitucionalmente validado, de que as decisões dos tribunais superiores podem ser notificadas apenas ao defensor/mandatário do arguido. VIII. Embora o arguido não tenha direito a recorrer de uma decisão absolutória – e por isso não está em causa o direito ao recurso – está em causa o seu direito de defesa de saber que o seu julgamento já decorreu, o que o tribunal decidiu e que essa absolvição só será definitiva caso não seja interposto recurso, como foi. IX. O princípio da segurança jurídica invocado para a tutela constitucional da intangibilidade do caso julgado nunca poderá prevalecer face à garantia de que a privação da liberdade tenha sido determinada com respeito pelo direito de defesa e do processo justo e equitativo. X. O entendimento de que a falta de notificação pessoal da decisão proferida num julgamento na ausência do arguido – e de qualquer das decisões proferidas - não consubstancia uma nulidade insanável que obsta ao trânsito em julgado da decisão, contraria o artigo 32º, 1 e 7, da Constituição da República Portuguesa, que exige que o processo criminal assegure todas as garantias de defesa e atribua efetivamente ao ofendido o direito a intervir no processo. Pelo exposto, deverá o presente recurso ser considerado procedente e, em consequência, ser declarada a nulidade insanável prevista no artigo 119º, c), do CPP, por falta de notificação pessoal do acórdão ao arguido julgado na ausência, revogando-se o despacho recorrido e declarando inválida a admissão do recurso interposto pela assistente e todos os atos posteriores.
***
Notificado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413º do Código de Processo Penal, a Assistente respondeu (conclusões): A - Por via do presente recurso, o Digno Ministério Público, com o devido respeito, põe em causa o princípio da autoridade das decisões transitadas em julgado, conferindo ao processo penal um cariz de revisitação contínua, procurando finalidades próprias do recurso de revisão, sem, porém, alegar qualquer dos fundamentos previstos no art. 449.º n.º 1 do CPP; B – O Digno Ministério Público, lança mão de um recurso ordinário procurando obter o efeito de um recurso extraordinário de revisão, sem observar as disposições que lhe são próprias, o que desde logo seria causa para a rejeição do seu (douto)recurso nos termos do ar. 414.º CPP. C - Mesmo que não tivesse ocorrido o trânsito em julgado das decisões que o Digno Ministério Público põe em crise, com o devido respeito, não teria razão no que alega a respeito de vícios: O arguido foi absolvido em primeira instância e não tinha interesse em recorrer cc art. 101.º n.º 1 al. b) CPP; a falta de notificação pessoal do arguido do acórdão da primeira instância que o absolveu constitui uma mera irregularidade, nos termos do art. 118.º n.º 1 e 2 do CPP, e, por não ter sido alegada por nenhum dos sujeitos processuais interessados, ficou sanada nos termos do art. 123.º n.º 1 do mesmo diploma. D - O Tribunal recorrido, ao decidir que, perante o trânsito em julgado das decisões dos Tribunais superiores, não lhe compete apreciar alegados vícios da tramitação processual, proferiu uma decisão materialmente irrepreensível, juridicamente inatacável, não enferma de qualquer deficiência, obscuridade ou contradição, estando em plena conformidade com os princípios e normas que regem o processo penal. E - O (douto) recurso do Digno Ministério Público não merece provimento, não tendo, com o devido respeito, razão em nenhuma das suas objeções. F- As movimentações processuais posteriores ao trânsito em julgado, e a instauração do presente recurso, são causa de intensa revitimização da assistente, submetendo-a a um desgaste emocional que se afigura injustificado, e privam-na da estabilidade que um processo ordenado deveria garantir, essencial para a superação dos graves traumas que sofreu. Destarte, mantendo o sentido da decisão recorrida, será por V. Exas. feita, como vem sendo hábito, a costumada e desejada.
***
Notificado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413º do Código de Processo Penal, o arguido respondeu. Conclusões (transcrição): Concorda-se integralmente com as posições defendidas nas alegações de recurso apresentadas nos autos pelo Ministério Público, que fazemos nossas e aqui damos por reproduzidas para os devidos efeitos legais, até porque são favoráveis ao arguido, Uma vez que o arguido não esteve presente em qualquer das sessões de julgamento nem na leitura da decisão, o acórdão tem de lhe ser pessoalmente notificado, nos termos do artigo 333º, 5, do CPP, não sendo um caso de representação pelo seu defensor. A isto acresce, tendo-se já informado os presentes autos, para os efeitos que se acharem por convenientes, nomeadamente, de falta de conhecimento pleno por parte do arguido do que sucedeu em todo este processo de que veio a final a ser condenado em pena de prisão, que o arguido nunca compareceu no escritório do defensor que lhe foi nomeado, nem foi estabelecido nunca com ele qualquer contacto por outra via ou meio, desconhecendo o defensor o seu paradeiro ou um qualquer contacto do mesmo. Tendo a defesa sido assim feita, nestas particulares circunstâncias. O caso assume particular gravidade uma vez que o arguido veio a ser condenado em pena de prisão muito elevada pelo acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Uma vez que tal notificação pessoal nunca ocorreu, não pode iniciar-se a instância recursiva por verificação de uma nulidade insanável nos termos do artigo 119º, c), do CPP, colocando em causa o direito de defesa do arguido, constitucionalmente protegido (art. 32º, 1 e 7, da CRP). Não nos parece aceitável, em pleno século XXI, já nem no XX, que alguém possa ser condenado, mormente na privação da sua liberdade, sendo conduzido a um estabelecimento prisional para cumprir pena, e aqui até pesada, sem que tenha tido qualquer conhecimento sobre o que se passou no tribunal. Pelo exposto, concorda-se plenamente, que, deverá o presente recurso ser considerado procedente e, em consequência, ser declarada a nulidade insanável prevista no artigo 119º, c), do CPP, por falta de notificação pessoal do acórdão ao arguido julgado na ausência, revogando-se o despacho recorrido e declarando inválida a admissão do recurso interposto pela assistente e todos os atos posteriores.
***
Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, em separado e com efeito devolutivo
***
Neste Tribunal, na vista a que se refere o art.º 416º do CPP, o Mº. Pº aderiu à fundamentação expendida na resposta ao recurso apresentada pelo MP junto do tribunal recorrido pronunciou-se, no dia ...-...-2025, nos seguintes termos: “Será de proceder o recurso em análise, revogando-se a decisão recorrida, por verificação da nulidade insanável prevista no Art.119º, al. c), do C. P. Penal, por falta de notificação pessoal do acórdão ao arguido julgado na ausência, com a consequente invalidade de admissão do recurso interposto pela assistente e dos demais os atos posteriores”.
***
Não foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º nº 2 em virtude do MP, junto deste tribunal, não ter elaborado uma pronúncia autónoma.
***
No dia 30-5-2025 o Senhor PGA, junto deste tribunal, veio promover o seguinte: ”Considerando o trânsito em julgado, na parte referente a matéria crime, do acórdão do STJ, datado de 11/07/2024 – Referência: 12512212 – no âmbito do Processo n.º 491/21.6PFLSB.L1.S1, a decisão judicial, datada de 22/11/2024 – Referência: 12828415 – do mesmo Tribunal Superior e a prolação do acórdão do TRL, datado de 19/02/2025 – Referência: 22752749 – no âmbito do Processo n.º 491/21.96PFLSB.L2, relativo à matéria cível, forçoso é concluir que se mostra prejudicado o prosseguimento destes autos impondo-se o seu arquivamento, o que se promove”.
Notificados o arguido e assistente para se pronunciarem quanto ao promovido, nada disseram.
II-Delimitação do objeto do recurso.
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995].
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, é a seguinte a questão a apreciar:
Questão prévia: se se mostra prejudicado o conhecimento do presente recurso e se os autos devem ser arquivados neste TRL.
Se o tribunal de primeira instância tem jurisdição para apreciar a invocada nulidade de falta de notificação pessoal do acórdão da primeira instância e extrair as respetivas consequências processuais. ***
III-Fundamentação
O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição):
Despacho de 3-12-2024. “Tomei conhecimento da douta promoção que antecede. Remetendo para o exposto no despacho de 8.11.24, consigno que, vistos os autos e na sequência do despacho proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça supra referido, carece a 1ª Instância de poder jurisdicional e competência para conhecer de qualquer nulidade ou irregularidade do processado relacionada com a notificação ao Arguido do Acórdão da 1ª Instância e das motivações do recurso da Assistente, a subsequente admissão do recurso e demais tramitação, mormente por terem ocorrido também na fase de recurso, sendo certo que os despachos proferidos transitaram em julgado”
Importa reter a seguinte dinâmica processual.
Despacho proferida em ata de julgamento no dia 26-10-2023. “consignando que atenta a posição assumida pelos sujeitos processuais e, inexistindo oposição a que a audiência de julgamento tenha lugar, nesse sentido e uma vez que o arguido se encontra regularmente notificado, determina-se que a presente audiência de julgamento se inicie, ao abrigo do disposto no art.º 333.º, n.º 1 do C. P. Penal, sem prejuízo das diligências que possam vier a ser determinadas, no sentido do mesmo ser ouvido numa outra sessão de julgamento, designadamente através de emissão de Mandados de Detenção”
O acórdão foi depositado no dia 30-11-2023.
Por ofício de 30-11-2023 foi solicitado, através da PSP, a notificação pessoal do arguido quanto ao acórdão.
No dia 27-12-2023 foi junto aos autos a informação prestada PSP no sentido que não teria sido possível proceder à notificação pessoal do arguido em virtude do mesmo não residir na morada indicada e não ser conhecido o seu atual paradeiro.
O recurso da assistente foi interposto no dia 30-12-2023.
O recurso foi admitido por despacho de 4-1-2024.
Por despacho de 4-2-2024 foi ordenada a subida dos autos ao Tribunal da Relação.
Despacho de 4-10-2024. “Melhor compulsados os autos, constato que o Arguido foi julgado na ausência e não foi dado cumprimento, ao disposto no art.º 333º/5 e 411º/7 do Código de Processo Penal, o que pode contender com o trânsito em julgado certificado a fls. 623 dos autos. Assim, por ora, dou sem efeito a emissão dos mandados determinada no despacho anterior, devendo o ato com a Referência Citius ... ser eliminado. Dou ainda sem efeito a subida dos autos nos termos determinados no despacho anterior. Na sequência do exposto, antes de mais, vão os autos ao Ministério Público a fim de, querendo, se pronunciar”
Promoção do MP de 9-10-2024. “Como muito bem assinala a Mma. Juíza no despacho de 4/10/2024, circunstância da qual não nos tínhamos apercebido quando tomamos contacto com o processo e que louvamos, o acórdão deste tribunal que absolveu o arguido AA nunca lhe foi notificado, nos termos previstos no artigo 333º, 5 e 6, do CPP. Com efeito, uma vez que o julgamento decorreu totalmente na ausência do arguido, para a qual foi regularmente notificado – como decorre da consulta das atas de audiência -, estando também ausente na leitura da decisão, o mesmo tem de ser notificado pessoalmente, nos termos do artigo 333º, 5, do CPP, não sendo um caso de representação pelo seu defensor (neste sentido, ver Paulo Pinto de Albuquerque, anotação ao artigo 333º do CPP, pág. 312, Comentário do CPP, Vol. II, 5º edição, ECP Editora). Assim, e como refere o mesmo autor, “o prazo para interposição de recurso pelo arguido conta-se a partir da notificação”. No caso destes autos, o recurso foi interposto pela assistente, tendo o defensor do arguido sido notificado da sua admissão. Entende o mesmo autor acima citado, em termos com os quais concordamos, que se o recurso for apresentado pelo MP, assistente ou parte civil, o mesmo não deve ser admitido enquanto o arguido não for notificado da sentença. Com efeito, a falta de conhecimento por parte do arguido da decisão, associada à sua ausência total ao julgamento obsta ao exercício pleno dos seus direitos de defesa, não podendo estes serem exercidos apenas pelo seu defensor. No caso, não é relevante a circunstância do defensor do arguido não ter suscitado a questão e até ter respondido ao recurso, uma vez que o que está em causa é precisamente a falta de poderes legais para vincular o arguido, pessoa visada com o processo. Embora seja apenas um elemento circunstancial para confirmar que a defesa poderá ter sido limitada pelo desconhecimento do arguido do acórdão e do recurso, de referir que na resposta o defensor se limita a remeter para a resposta do Ministério Público. Por ter desrespeitado o artigo 333º, 5, do CPP, colocando em causa o direito constitucional de defesa (art. 32º, 1, do CPP), o despacho de admissão e subida do recurso interposto pelo assistente sem que o arguido tenha sido notificado do acórdão violou a lei. De acordo com alguma jurisprudência, o recurso poderia ter sido rejeitado, por extemporâneo, no caso, por interposição “antes de tempo” (cfr, Ac. TRC de 15/05/2013, proc. 414/10.8TAMGR.C1, in dgsi.pt). Pensamos que, tratando-se de um ato praticado antes do prazo perentório, o princípio do aproveitamento dos atos aponta antes para a sua não admissão, até que existam pressupostos para o efeito, no caso, se ter iniciado o prazo de recurso com a notificação do acórdão ao arguido. Mas para o caso em análise, saber se o recurso deveria ter sido rejeitado ou apenas se ter aguardado pela notificação do arguido não é relevante. O importante é que não poderia ter sido admitido e prosseguido os seus termos. A questão agora é saber qual o efeito dessa violação da norma legal: admitir um recurso do assistente quando o prazo ainda não se tinha iniciado por falta de notificação do acórdão ao arguido. A estrutura legal das nulidades encontra-se prevista nos artigos 118º e seguintes do CPP, em termos que se poderiam resumir nos seguintes termos: a) Existe nulidade apenas quando a lei o refere expressamente. Se não o referir, estamos perante uma irregularidade (art. 118º do CPP); b) As nulidades são insanáveis se assim o considerar a lei, nomeadamente as previstas no artigo 119º do CPP. Se não for o caso, dependem de arguição. Naturalmente que a qualificação do vício está associada ao entendimento do legislador sobre a gravidade dos efeitos para, diremos, o processo justo e equitativo. Embora não prevista expressamente na lei, logo numa primeira análise, não literal, entendemos que este vício é grave, pois está em causa a essência do direito de defesa do arguido, consagrado no artigo 32º, 1, da CRP. O caso é disso exemplo, uma vez que após uma absolvição em primeira instância, o arguido vem a ser condenado em pena de prisão sem ter tido qualquer intervenção na instância recursória. Estamos numa situação equiparável à prevista no artigo 119º, al. c), do CPP, prevista para a presença física, estando neste caso em causa uma “ausência” processual. Entendemos assim estarmos perante uma nulidade insanável do despacho que admitiu o recurso e que torna inválidos todos os atos subsequentes, ou seja, toda a instância recursória posterior. A solução, concebível em tese, de entender que seria uma nulidade sanável ou mera irregularidade, em que o arguido, quando notificado do acórdão, poderia não a invocar por qualquer motivo, aceitando os atos praticados, é incompatível com a gravidade dos efeitos para o direito de defesa. Pelo exposto, entendo que deverá ser declarado nula a admissão do recurso e dados sem efeitos todos os atos subsequentes. Tendo em conta que os atos subsequentes foram praticados por tribunais superiores, incluindo o Supremo Tribunal de Justiça, entendemos que, antes do mais, se justificará a apresentação dos autos ao referido tribunal para o mesmo ter prévio da anómala situação e, ou decidir ele mesmo sobre a validade do processo ou remeter à primeira instância para decisão”
A assistente, em resumo, pronunciou-se que a falta de notificação pessoal do arguido da sentença que o absolveu, não foi por ninguém suscitada quer na sequência do despacho que admitiu o recurso da assistente, quer nos dois graus de recurso. Salvo o devido respeito (que é muito), estará a irregularidade sanada.
O defensor do arguido pronunciou-se nos seguintes termos:
Para além de se concordar com as posições defendidas nos autos que são mais favoráveis ao arguido, Informa-se, para os efeitos que se acharem por convenientes, que o arguido nunca compareceu no escritório do defensor que lhe foi nomeado, nem foi estabelecido nunca com ele qualquer contacto por outra via ou meio, desconhecendo o defensor o seu paradeiro ou um qualquer contacto do mesmo.
Despacho proferido no dia 8-11-2024. Compulsados os autos, e já após ter determinado, em cumprimento do Acórdão condenatório do Colendo Supremo Tribunal de Justiça, a emissão de mandados para cumprimento de pena pelo Arguido AA, julgado na ausência, constatei que, por lapso, pelo qual me penitencio, o recurso da Assistente foi admitido na 1ª instância sem que tenha sido dado cumprimento ao disposto nos artigos 333º/5 e 411º/7 do Código de Processo Penal, o que pode contender com o trânsito em julgado certificado a fls. 623 dos autos. Assim, concorda-se com a promoção do Ministério Público no sentido de que tendo o tribunal de 1ª instância absolvido o Arguido julgado na ausência nunca lhe tendo sido notificado o Acórdão e o Recurso da Assistente, conforme o previsto no artigo 333.º, n.ºs 5 e 6 e 411º/7 do Código de Processo Penal (CPP) a notificação do Acórdão deveria ter sido feita pessoalmente ao Arguido e não ao seu Defensor, para assegurar o seu direito de defesa, o que não ocorreu. A jurisprudência defende que nos casos em que o recurso é interposto pelo Ministério Público, Assistente ou Demandante, este não deve ser admitido antes que o arguido seja formalmente notificado da decisão. O arguido tem o direito a ser informado para poder exercer pessoalmente a sua defesa. No caso em questão, o recurso foi interposto pela Assistente, e o Defensor do arguido respondeu ao recurso, mas isso não substitui a obrigatoriedade de notificação ao próprio arguido. Se, antes da notificação por contacto pessoal do arguido, for interposto recurso pelo Defensor nomeado ou constituído, ou este deduzir resposta, a "admissão do recurso e a apreciação do mesmo, nessas circunstâncias, são prematuras, ocorrendo circunstância que obsta ao conhecimento do mesmo, no tribunal de recurso, qual seja a de o arguido julgado na ausência não se mostrar notificado da sentença em causa contra si proferida" [acs. STJ, 5.12.2019 (MARGARIDA BLASCO), RL, 09.11.2020 (FILIPA COSTA LOURENÇO)]. É prematuro, porque o despacho de admissão do art. 414.° do Código de Processo Penal pressupõe a notificação regular do arguido nos termos assinalados. Se, não obstante, for admitido, o Tribunal Superior, ao abrigo do art. 420./1/b, deverá declarar a impossibilidade de conhecer do recurso, e determinar a baixa à 1.ª instância para diligenciar pela notificação por contacto pessoal [ac. RL, 09.11.2020 (FILIPA COSTA LOURENÇO)], Se não o fizer, nunca se poderá concluir pelo trânsito em julgado, pelo que, se for ordenado o cumprimento de pena de prisão existe motivo para libertação através de habeas corpus.1 Dada a ausência de notificação pessoal do Acórdão ao Arguido, o ato de admitir o recurso viola o direito de defesa garantido pela Constituição, ao ignorar a necessidade de notificação do arguido. O artigo 333.º, n.º 5 do CPP e o artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa asseguram que o arguido deve ser pessoalmente informado da decisão. Salvo melhor opinião, a omissão pode redundar numa nulidade insanável, o que invalida os atos subsequentes, incluindo os da instância recursória. Assim, suscitam-se sérias dúvidas quanto ao trânsito em julgado do Acórdão condenatório proferido pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo do dever de acatamento das decisões dos Tribunais Superiores a que este Tribunal está sempre obrigado (art.º 4º/1 do EMJ), considerando ainda que a questão ora respeitosamente suscitada, quanto do trânsito em julgado, deverá ser esclarecida por aquele Tribunal Superior a fim de se dar cumprimento ao que for determinado em conformidade. Em face do exposto, determino que os autos sejam remetidos ao Colendo Supremo Tribunal de Justiça para apreciação e melhor decisão”
No dia 22-11-2024 no STJ foi proferido o seguinte despacho: “Compulsados os autos, retira-se com imediata clareza que foram os mesmos remetidos a este STJ, por força de despacho proferido em 1ª Instância que depois de vários considerandos a respeito de eventuais vicissitudes processuais, e sem que sobre os mesmos efetivamente se pronuncie e decida, vem afirmar (…) suscitam-se sérias dúvidas quanto ao trânsito em julgado do Acórdão condenatório proferido pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo do dever de acatamento das decisões dos Tribunais Superiores a que este Tribunal está sempre obrigado (art.º 4º/1 do EMJ), considerando ainda que a questão ora respeitosamente suscitada, quanto do trânsito em julgado, deverá ser esclarecida por aquele Tribunal Superior a fim de se dar cumprimento ao que for determinado em conformidade. (…) determino que os autos sejam remetidos ao Colendo Supremo Tribunal de Justiça para apreciação e melhor decisão. Mostrando-se, igualmente, cristalino, que a Mma. Juíza subscritora do despacho em causa, em nenhum momento do mesmo indica qual a normação legal em que se estriba para tal determinação, não é menos límpido, crê-se, que calcorreando as regras da competência material relativas à intervenção do STJ, fixadas no CPPenal – artigo 11º, mormente o seu nº3– e, bem assim na Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, alterada em último pela Lei nº 18/2024, de 05/02 (Lei da Organização do Sistema Judiciário) – artigo 55º -, não se descortina onde nas mesmas cabe um pedido de esclarecimento como se pretende. Também, e da mesma forma, não se alcança em que se respalda o Digno Mº Pº, para subscrever a promoção de fls. 630 e 631 propondo (…) a apresentação dos autos ao referido tribunal para o mesmo ter prévio da anómala situação e, ou decidir ele mesmo sobre a validade do processo ou remeter à primeira instância para decisão. Na verdade, com a prolação do Acórdão de 11 de julho de 2024, tanto quanto se cogita, não tendo havido qualquer reação, a respeito do mesmo, por nenhum dos interessados sujeitos processuais, não pode o STJ ter qualquer outra intervenção, e muito menos, atuar por força de uma promoção e sequente determinação do Tribunal da 1ª Instância que, sem a invocação do menor fundamento legal, decide remeter os autos a este Tribunal. Ao que se crê, há uma leitura completamente desconforme quanto aos poderes e competências dos diversos tribunais e da hierarquia dos mesmos. Nestes termos, e sem necessidade de outros considerandos, devolvam-se de IMEDIATO os autos à 1ª Instância para que, caso assim o entenda, decida o que tiver por conveniente, após o que, se seguirão os seus trâmites legalmente fixados, cabendo pronunciamento ao STJ se e quando ocorrer alguma situação determinante da sua intervenção de acordo com os incisos legais supracitado”.
Veio o MP junta da 1ª instância, no dia 29-11-2024, promover, em resumo, no seguinte sentido: “Pelo exposto, entendemos, tal como anteriormente nos pronunciamos, que deverá ser declarada nula a admissão do recurso do assistente e dados sem efeitos todos os atos subsequentes, diligenciando-se pela notificação pessoal da decisão ao arguido”.
Sobre esta promoção incidiu o despacho de 3-12-2024 objeto do presente recurso.
O acórdão do STJ foi proferido no dia 11 de julho de 2024.
O acórdão do TRL relativo à matéria cível foi proferido no dia 19-2-2025.
Cumpre apreciar.
Por uma questão de ordem lógica e dado que a sua eventual procedência terá implicações ao nível do conhecimento dos fundamentos do recurso, importa conhecer a questão suscitada pelo MP, junto deste Tribunal da Relação, através da promoção de 30-5-2025, onde se pronunciou pelo arquivamento dos presentes autos em face do trânsito em julgado do acórdão do STJ, de 11-7-2024, quanto à matéria criminal, e do acórdão do TRL de 19-2-25, quanto à matéria cível.
Quanto a este aspeto cumpre dizer que, em 10-1-2025, na vista que o MP teve, ao abrigo do artigo 416º do CPP, pronunciou-se no sentido da procedência do recurso interposto pelo MP, sendo que nessa data (10-1-2025) já havia sido proferido o acórdão do STJ (11-07-2024).
Assim sendo, dado que não foi invocado qual o fundamento legal, não se alcança o sentido da mudança de posição do MP junto deste tribunal da Relação.
Apesar de ter sido admitido o recurso, a decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior (nº 3 do artº 414º do CPP)
O art. 399.º do Código de Processo Penal consagra o princípio geral segundo o qual é permitido recorrer dos acórdãos, sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.
O artigo 400º do CPP identifica as decisões que não admitem recurso.
Quanto à rejeição, estabelece o artigo 420º nº 1 o seguinte:
O recurso é rejeitado sempre que:
a. For manifesta a sua improcedência;
b. Se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414.º; ou;
c. O recorrente não apresente, complete ou esclareça as conclusões formuladas e esse vício afetar a totalidade do recurso, nos termos do n.º 3 do artigo 417.
2 - Em caso de rejeição do recurso, a decisão limita-se a identificar o tribunal recorrido, o processo e os seus sujeitos e a especificar sumariamente os fundamentos da decisão.
Assim sendo, não estando previsto na lei a irrecorribilidade do despacho em que o juiz da 1ª instância alega não ter jurisdição para conhecer de uma nulidade insanável perante si suscitada e não tendo esse despacho transitado em julgado, não existe fundamento legal para rejeitar o recurso interposto pelo MP ou, como pretende o MP junto deste Tribunal da Relação, determinar, nesta fase e neste tribunal, o arquivamento dos autos.
Deste modo, improcede a promoção do MP de 30-5-2025.
Cumpre agora conhecer os fundamentos do recurso do MP.
Antes de mais, há que precisar que o objeto do presente recurso consiste em saber se o tribunal de primeira instância tem jurisdição para apreciar a invocada nulidade de falta de notificação pessoal do acórdão da primeira instância e extrair as respetivas consequências processuais e não, como parece resultar das conclusões do MP no seu recurso, em ser declarada a nulidade insanável prevista no artigo 119º, c), do CPP, por falta de notificação pessoal do acórdão ao arguido julgado na ausência, revogando-se o despacho recorrido e declarando inválida a admissão do recurso interposto pela assistente e todos os atos posteriores.
Com efeito, o despacho recorrido (despacho de 1-11-2024) não se pronunciou quanto à nulidade insanável invocada na promoção do MP de 9-10-2024, precisamente por ter entendido que carecia de jurisdição para o efeito. Ora, não tendo o tribunal da 1ª instância tomado concreta posição quanto à invocada nulidade está o Tribunal da Relação impedido de reapreciar uma decisão que não existe, sendo que as nulidades processuais, com exceção das nulidades da sentença, conforme resulta do artigo 379º nº 2 do CPP, não podem ser arguidas ou conhecidas em recurso.
Deste modo, não compete ao Tribunal da Relação, como pretende a recorrente, conhecer, em primeira mão, da nulidade processual em causa, tanto mais que a existir recurso, como existiu no caso concreto, nunca poderia ter como fundamento a prática desse vício processual, mas sim sindicar, em sede de recurso, a decisão do juiz que incidir sobre vícios processuais perante ele invocados.
Nesta conformidade, o presente recurso terá apenas como objeto saber se o tribunal da 1ª instância tem jurisdição, ou competência, para conhecer da nulidade invocada pelo MP na promoção de 9-10-2024.
Quanto ao princípio da jurisdição o mesmo significa que o processo penal é uma forma de realização da jurisdição penal, na medida em que a aplicação de uma pena ou sanção penal é da competência exclusiva da função jurisdicional, isto é, dos tribunais, conforme resulta dos artigos 32.º e 202.º da Constituição da República Portuguesa. No âmbito deste princípio da jurisdição, assume especial relevância o princípio do juiz natural ou legal, segundo o qual “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior” (artigo 32.º, n.º 9 da CRP).
Por sua vez, a competência de um tribunal é a medida da jurisdição exercida por cada tribunal (a competência diz respeito à distribuição do poder jurisdicional, entre os diversos tribunais, no interior de uma determinada categoria). A competência pode ser determinada por critérios como a matéria, o valor da causa, o território, a função ou a hierarquia.
A competência material: refere-se à matéria ou ao tipo de causa que um tribunal está autorizado a julgar. A competência territorial: determina a área geográfica em que um tribunal pode exercer sua jurisdição. A competência funcional: relaciona-se com a atribuição de julgar determinadas matérias ou processos de acordo com a função do tribunal. Por fim, a competência hierárquica: estabelece a divisão de atribuições entre diferentes instâncias judiciais, como primeira instância, segunda instância e Supremo Tribunal de Justiça.
Nesta conformidade, estando em causa o conhecimento de uma alegada nulidade processual relativa a um processo criminal, a questão não se reconduz, como defendido no despacho recorrido, a uma questão da jurisdição, dado que estamos perante tribunais criminais, mas sim perante uma questão de competência em razão da matéria, nos termos 14º do CPP e artigos 40º, 79º e 134º da LOSJ.
Ora, estando em causa o conhecimento de uma nulidade processual, invocada perante o tribunal da 1ª instância, relativa a um ato processual praticado pelo tribunal da 1ª instância, compete a este tribunal, dado que goza de competência material para o efeito, proceder ao seu conhecimento e extrair as respetivas consequências processuais caso conclua pela procedência da mesma. Na verdade, não se incluindo a situação em causa em nenhuma das situações previstas nos artigos 11º (competência do STJ) e 12º (competência das Relações) ambos do CPP recai sobre o tribunal da 1ª instância a competência para conhecer a invocada nulidade.
IV – Decisão
Face ao exposto, acordam os Juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo MP e, em consequência, revogam a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que conheça da nulidade invocada na promoção de 9-10-2024.
Sem custas
Notifique.
Lisboa, 26 de junho de 2025
Processado por computador e revisto pelo Relator (cf. art.º 94º, nº 2, do CPP).
Ivo Nelson Caires B. Rosa
Ana Marisa Arnêdo
André Alves