INSOLVÊNCIA
MASSA INSOLVENTE
LIQUIDAÇÃO
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
Sumário


I. A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide como causa de extinção da instância (art. 277º, e), CPC) resulta de facto ocorrido na pendência da instância, que conduz a que a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou essa pretensão encontrar satisfação fora do esquema da providência requerida: seja por impossibilidade de atingir o resultado visado, seja por ele já ter sido atingido por outro meio, a solução do litígio deixa de interessar, sem apreciação do mérito da causa.

II. Se uma parte dos pedidos relativos à alienação de bem imóvel apreendido para a massa insolvente não forem afectados pela vicissitude superveniente (frustração da proposta de aquisição, aceite e comunicada pelo administrador da insolvência ao abrigo do art. 61º do CIRE) em termos de poderem ser discutidos e apreciados no âmbito da acção proposta, a impossibilidade não se preenche, tendo em conta a consideração em abstracto dos regimes dos arts. 161º e 164º do CIRE no regime da liquidação insolvencial, sem prejuízo de se confirmar a extinção da instância na parte restante dos pedidos.

Texto Integral


Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I) RELATÓRIO

1. «PREMIERCONSULTING – Serviços de Gestão e Administração de Investimentos, S.A.» foi declarada insolvente por sentença proferida em 19/08/2014.

Em 06/06/2022, a sociedade declarada insolvente intentou, por apenso à insolvência, acção declarativa constitutiva, sob a forma de processo comum, contra a «MASSA INSOLVENTE da sociedade PREMIERCONSULTING – Serviços de Gestão e Administração de Investimentos, S.A.» e a Comissão de Credores da Insolvência da mesma sociedade, peticionando que:

1) seja “proibida a venda do Prédio misto, composto por rés-do-chão e primeiro andar, capela, dependência de rés-do-chão e primeiro andar, pátio e jardim, pomares e horta, com água nativa incluindo duas nascentes que têm a sua origem na ..., com área coberta de 1.101,00 m2 e área descoberta de 40.419,00 m2, sita na Serra de ..., com o respectivo aqueduto com servidão por diversas propriedades, sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., a confrontar a norte, sul e nascente com ... e a poente com AA e Outro, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...........24, inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º .84 e na matriz rústica sob o artigo n.º 2, Secção..., com o artigo .84 da freguesia de ..., a BB ou a sociedade por si representada ou da qual o mesmo seja sócio, por violação expressa do disposto no artigo 825 número 1 alínea b) aplicável ao processo de insolvência por remissão do número 4 do artigo 164 do CIRE”;

2) seja “declarada verificada a nulidade, por violação do disposto no artigo 812º, nº 3, alínea b), do CPC e ao abrigo do disposto no artigo 195º do Código de Processo Civil, designadamente, por preterição de uma formalidade que a lei prescreve – fixação do valor base do imóvel – e que pode influenciar o exame ou a decisão da causa, isto é, a medida da satisfação dos créditos dos credores reclamantes”;

3) seja “declarada verificada a nulidade da deliberação tomada pela deliberação da Comissão de Credores, porque tem por objecto um acto nulo – proposta de alteração do valor base de venda do imóvel e modalidade da venda – ao abrigo do artigo 280º, nº 1, do Código Civil, o que arguiu para os devidos e legais efeitos”;

4) seja determinada “a proibição de alienação, por qualquer meio legalmente admissível, designadamente, por venda, do Prédio misto, composto por rés-do-chão e primeiro andar, capela, dependência de rés-do-chão e primeiro andar, pátio e jardim, pomares e horta, com água nativa incluindo duas nascentes que têm a sua origem na ..., com área coberta de 1.101,00 m2 e área descoberta de 40.419,00 m2, sita na Serra de ..., com o respectivo aqueduto com servidão por diversas propriedades, sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., a confrontar a norte, sul e nascente com ... e a poente com AA e Outro, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...........24, inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º .84 e na matriz rústica sob o artigo n.º ..., Secção... com o artigo .84 da freguesia de ..., com o valor patrimonial de € 802.929,75”; e

5) seja declarada “proibida a venda do Prédio misto, composto por rés-do-chão e primeiro andar, capela, dependência de rés-do-chão e primeiro andar, pátio e jardim, pomares e horta, com água nativa incluindo duas nascentes que têm a sua origem na ..., com área coberta de 1.101,00 m2 e área descoberta de 40.419,00 m2, sita na Serra de ..., com o respectivo aqueduto com servidão por diversas propriedades, sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., a confrontar a norte, sul e nascente com ... e a poente com AA e Outro, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...........24, inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º .84 e na matriz rústica sob o artigo n.º 2, Secção ..., com o artigo .84 da freguesia de ..., com o valor patrimonial de € 802.929,75, por valor base inferior a € 3.000.000,00 (três milhões de euros)”.

Alegou, em síntese, que, por consulta ao apenso que corre termos sobre a letra “K” – liquidação –, verificou que o imóvel apreendido à ordem da massa insolvente, descrito sobre a verba 3 do activo, terá sido vendido por proposta em carta fechada no dia 28 de Fevereiro de 2022. A mesma não foi notificada de qualquer diligência relativa à venda do imóvel senão em 14 de Dezembro de 2020.

O valor base de venda do prédio em questão era de € 3.000.000,00 e em 18/2/2022 o Sr. Administrador da Insolvência (AI) informou os autos que o mesmo foi objecto de proposta de compra no valor de € 2.200.000,00.

De Julho de 2021 a 2/3/2022 foram apresentadas três propostas pelo Sr. BB (nos valores sucessivos de €2.225.000,00, €2.200.000,00, e €2.225.000,00), representante da sociedade M..., Lda.».

O leilão do imóvel promovido por leiloeira não cumpre as formalidades para garantir o valor mais elevado possível.

A Autoria não foi notificada dos actos e decisões do AI e da comissão de credores.

Só em 18/5/2022, o AI informou o tribunal do estado da liquidação, não tendo os credores e a devedora tomado conhecimento de qualquer das alegadas deliberações da comissão de credores a respeito do preço da venda, subsumindo-se o activo apreendido à previsão da al. g) do nº 3 do art. 161º do CIRE.

No caso ocorre violação dos arts. 824º e 825º do CPC, aplicável ex vi art. 164º do CIRE, porque depois de promovida a venda do imóvel por leilão electrónico promovido por leiloeira, o AI decidiu a venda do mesmo por proposta em carta fechada nos termos do art. 811º, 1, a), do CPC, no âmbito da qual a única proposta apresentada foi de BB e pelo mesmo valor já apresentado em Julho de 2021, tendo só então apresentado cheque caução no valor de €445.000,00, sem que até à data tenha depositado o remanescente do preço.

Invocou que BB não poderia ter sido admitido a apresentar nova proposta relativamente ao mesmo bem, que o contrato de compra e venda não pode ser com ele celebrado por violação do art. 825º, 1, do CPC e que a deliberação da comissão de credores de alteração do valor base de venda do imóvel e modalidade de venda é nula nos termos do art. 280º, 1, do CCiv., violando o art. 812º, 3, b), do CIRE.

Veio arguir nulidade nos termos do art. 195º do CPC, porque o valor de mercado a que alude o art. 812º, 3, b), do CPC não depende de deliberação da comissão ou da assembleia de credores e tem que ser fixado em pressupostos reais e justificados e com a audição da devedora e dos restantes credores. O imóvel em questão tem mercado para ser vendido por valor superior a €2.225.000,00 e não inferior a €3 milhões, pelo que a comissão de credores e o AI extravasaram dos seus poderes quanto à fixação do valor de venda do imóvel por violação do art. 3º, 3, do CPC.

Concluiu que, “face às nulidades invocadas, certo é que a venda que se encontra a ser “negociada” no âmbito do apenso K aos autos principais, não pode ser concretizada”.

2. Após terem sido apresentadas Contestações pelas Rés, e tramitados os autos, realizou-se audiência prévia e, na sequência, foi proferido despacho saneador pelo Juiz ... do Juízo de Comércio de ..., julgando procedente a excepção dilatória de nulidade de todo o processo, por erro na forma do processo e, em consequência, absolver as Rés da instância (arts. 193º, 1, 196º, 200º, 2, 278º, 1, b), 576º, 2, 577º, b), CPC).

3. Inconformada, a Autora insolvente interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), com contra-alegações das partes recorridas.

Após admissão e subida do recurso ao TRL, em 15/07/2024, o Sr. AI juntou ao apenso de liquidação – “K” – requerimento no qual declarou que, “no que tange à venda do imóvel apreendido sob a verba 3 – Quinta da ... –, cujo negócio está na origem do apenso W, cumpre referir que a proponente S..., Lda desistiu do negócio (v. doc. anexo).

Nesta medida, afigura-se que o referido apenso W padece de inutilidade superveniente, o que se requer a V.ª Ex.ª (…).

Uma vez compulsados os autos, foi proferido despacho (18/10/2024) pelo Senhor Juiz Relator Desembargador no sentido de solicitar ao tribunal recorrido informação sobre a decisão proferida relativamente ao requerimento apresentado pelo Sr. Administrador da Insolvência no dia 15/07/2024 no apenso de liquidação, despacho esse que foi o seguinte (de 21/10/2024, ref.ª CITIUS .......75):

“Tomei conhecimento.

Decorrido que seja o prazo estabelecido no art. 61º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), sem que tenha sido apresentada informação sobre o estado da administração e liquidação dos bens integrados na massa insolvente, notifique-se o Sr. Administrador da Insolvência para o efeito”.

Configurando-se que se verificaria a impossibilidade do prosseguimento do recurso de apelação, foi proferido despacho no âmbito do art. 655º, 1, do CPC, que mereceu resposta com requerimentos (durante e após o prazo de 10 dias) por parte da Autora Apelante.

Na sequência, foi proferida Decisão Singular (22/11/2024) com declaração de extinção da instância recursiva por impossibilidade superveniente da lide.

Deduzida Reclamação para a Conferência pela Apelante, foi proferido acórdão (14/1/2025) de indeferimento e confirmação da extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide.

4. Novamente sem se resignar, veio a Autora interpor recurso de revista excepcional para o STJ, tendo por base o art. 672º, 1, a), do CPC, visando a revogação do acórdão recorrido e a determinação em última instância da apreciação da apelação interposta, finalizando as suas alegações com as seguintes Conclusões (sendo seleccionadas as pertinentes):

“A. Determina o artigo 671º, nº 3, do CPC que: “Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da relação que confirme, sem voto vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na instância, se alguns casos previstos no artigo seguinte.

B. O artigo 672º do CPC, sob a epígrafe revista excecional, prevê na alínea a) do seu número 1, o seguinte “excecionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da relação referido no número 3 do artigo anterior quando: a) esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.”

C. No caso em apreço, a recorrente instaurou, por apenso ao seu processo de insolvência, ação declarativa de condenação contra a MASSA INSOLVENTE da sociedade PREMIERCONSULTING – Serviços de Gestão e Administração de Investimentos S.A e COMISSÃO DE CREDORES, através da qual formulou os seguintes pedidos: (…)

(…)

I. Pelo Tribunal de primeira instância foi prolatada sentença através da qual, e em síntese, o tribunal a quo determinou que ação instaurada pela recorrente e, naturalmente, as questões jurídicas aí por si suscitadas, deveriam ter sido invocadas no âmbito do apenso de liquidação, que corre termos junto aos autos principais e não em ação declarativa comum, ainda que por apenso àqueles autos de insolvência.

(…)

Y. Ora, no caso concreto, está pois em discussão as circunstâncias concretas em que, face à impossibilidade de apreciação parcial dos fundamentos de um recurso, por verificação superveniente da impossibilidade de concretização de um dos pedidos formulados na petição inicial, o recurso deve ser objeto de despacho que extinga a instância por inutilidade superveniente da lide, conforme foi o caso.

Z. Esta é, certamente, uma questão jurídica da maior relevância, pelo que se entende, salvo melhor e mais douta opinião, que deverá ser apreciada por esse Supremo Tribunal de Justiça, por forma a permitir uma mais clara e melhor aplicação do direito vigente.

AA. De facto, face, aos pedidos formulados pela recorrente na sua petição inicial, à sentença prolatada em primeira instância e aos fundamentos do recurso de apelação interposto pela aqui recorrente, parece-nos evidente, que a mera desistência por banda de um proponente da compra do prédio misto, composto por rés-do-chão e primeiro andar, capela, dependência de rés-do-chão e primeiro andar, pátio e jardim, pomares e horta, com água nativa incluindo duas nascentes que têm a sua origem na ..., com área coberta de 1.101,00 m2 e área descoberta de 40.419,00 m2, sita na Serra de ..., com o respectivo aqueduto com servidão por diversas propriedades, sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., a confrontar a norte, sul e nascente com ... e a poente com AA e Outro, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...........24, inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º .84 e na matriz rústica sob o artigo n.º..., Secção ... com o artigo .84da freguesia de ..., não esvazia o pedido formulado pela recorrente naquela petição inicial e, consequentemente, não pode determinar a inutilidade superveniente da lide.

BB.Com efeito, ocorre inutilidade (ou impossibilidade) superveniente da lide quando, na pendência da instância, a resolução do litígio deixe de interessar seja em razão de desaparecerem o(s) sujeito(s) ou objeto do processo, seja por o Autor lograr satisfação fora do âmbito da instância.

CC. No caso concreto, a Autora, que é a aqui recorrente mantém o interesse na resolução deste litígio.

DD. Litígio que é delimitado pelos pedidos formulados pela recorrente.

EE. Conforme decorre da causa de pedir formulada pela recorrente naquela petição inicial, o proponente da compra do prédio misto anteriormente melhor identificado, não era sequer sujeito processual no âmbito da presente ação declarativa comum.

FF. Na verdade, todos os pedidos formulados pela recorrente dizem respeito à venda deste prédio misto, independentemente do seu comprador, incumprimento das regras do processo e das decisões que já foram sendo tomadas no âmbito daqueles autos de insolvência pelo Senhor administrador de insolvência e pela Comissão de credores, estes, sim, os sujeitos processuais Rés.

GG. Tratando-se de um bem que se encontra apreendido à ordem da massa insolvente, a desistência de um dos proponentes para a sua compra, da realização do negócio, não determina (antes pelo contrário), que a massa insolvente e a comissão de credores vendam a outro proponente, o mesmo prédio misto, porque por isso inferior, com um claro prejuízo de alguns credores e da insolvente, aqui recorrente, que não beneficia ou pode beneficiar da exoneração do passivo restante.

HH. Como é sabido, o administrador de insolvência, que tem autonomia para tomar decisões no âmbito deste processo de insolvência, deve fazê-lo no cumprimento das regras que são aplicáveis, quer ao processo de insolvência, quer ao exercício das suas próprias funções, sendo que cabe ao Juiz titular do processo e há os demais Juízes, é sede de recurso, fiscalizar a atuação do administrador de insolvência, que representa a massa insolvente, e as deliberações das comissões de credores.

II. Ora, face a todos os pedidos que foram formulados pela recorrente, e sem prejuízo de existir uma efectiva inutilidade superveniente da lide na apreciação do pedido formulado sob o nº 1), a apreciação de todos os restantes pedidos mantêm a sua utilidade e pertinência, utilidade e pertinência, aliás, que num deste entendimento da recorrente se manteria, ainda que o prédio misto em causa fosse vendido a terceiro.

JJ. É que, em última instância, também o administrador de insolvência responde civilmente pelos danos que causa à massa insolvente e, a provar-se a pretensão da recorrente, e sendo este prédio misto vendido por um preço inferior e desadequado ao mercado atual ou a um preço inferior daquele que foi deliberado pela Comissão de credores, sempre poderá a recorrente, na defesa dos seus interesses legítimos e patrimoniais, instaurar a ação contra o administrador de insolvência por responsabilidade civil.”

Não foram apresentadas contra-alegações pelas partes recorridas.

5. Subidos os autos ao STJ, e por iniciativa processual oficiosamente desencadeada junto do tribunal de 1.ª instância (12/3/2025), foi proferido despacho de fixação do valor da causa em € 30.00,01, com data de 19/5/2025, transitado em julgado.


Foram colhidos os vistos sob forma electrónica, em cumprimento do art. 657º, 2, ex vi art. 679º, do CPC.

Cumpre apreciar e decidir, tendo que conhecer previamente da admisssibilidade do recurso interposto como revista excepcional, sua configuração e delimitação da questão recursiva.

Foi consultado o apenso “K” dos autos via CITIUS.

II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS

1. Admissibilidade e configuração do recurso

1.1. A Recorrente interpôs recurso de revista excepcional, tendo por base a existência de “dupla conformidade”: art. 671º, 3, do CPC.

Acontece que os fundamentos da improcedência da acção e da apelação não coincidem: em primeira instância, absolvição da instância por força de nulidade total do processo em razão de erro na forma processual ex art. 193º do CPC; na Relação, extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, tendo em conta a vicissitude trazida aos autos decorrente do apenso de liquidação. Logo, não se verifica a coincidência de julgados em termos de fundamentação que permitiria interpor a revista excepcional, como forma de superar o impedimento recursivo em sede de revista normal comum ou regra.

Sem prejuízo, a decisão recorrida é susceptível de revista normal enquanto decisão que, no âmbito do art. 671º, 1, do CPC, põe termo ao processo1.

Por outro lado, sendo apenso ao processo de insolvência, não se aplica o regime de revista do art. 14º, 1, do CIRE.

Assim, determina-se a convolação oficiosa do recurso interposto para impugnação recursiva de revista normal, sem aplicação do art. 671º, 3, e 672º, 1, a), do CPC, de acordo com os poderes atribuídos e exercidos no âmbito dos arts. 193º, 3, 6º, 2, e 547º do CPC.

Estão verificados os requisitos gerais de recorribilidade: art. 629º, 1, e 631º, 1, do CPC.

1.2. Vistas as Conclusões da revista, a questão recursiva consiste em saber se se verificam os pressupostos do art. 277º, e), do CPC para fazer decretar a extinção da instância.

Está excluído do objecto da revista a decisão de absolvição da instância com base em erro na forma de processo, e derivada nulidade do processo, que constituía o objecto da apelação, antes de proferida a decisão singular de extinção da instância, confirmada em conferência na Relação; a Recorrente não incluiu tal matéria na revista, pois a procedência da impugnação sobre a extinção da instância visa restituir o processo à Relação para efeitos de apreciação do objecto da apelação.

2. A factualidade relevante é a que consta supra, do Relatório.

3. Fundamentação de direito

3.1. A 1.ª instância finalizou-se com um saneador de absolvição da instância.

As razões afiguram-se claras na argumentação expendida:

“A autora pretende discutir nestes autos a regularidade de um processo de venda conduzido pelo Sr. Administrador de Insolvência, no âmbito do apenso de liquidação.

Ou seja, está em causa a regularidade do procedimento de venda adotado pelo Sr. Administrador de Insolvência a respeito da venda da verba melhor identificada pela A. e apreendida nos autos de insolvência.

Como é manifesto, a análise da pretensão da autora passaria, necessariamente, pela apreciação do que ocorreu em tal apenso de liquidação.

Ora qualquer decisão a proferir a respeito da validade ou invalidade do processo de venda afetaria não apenas os intervenientes nesta ação, mas todos os demais intervenientes/interessados do processo de insolvência, incluindo a Comissão de Credores e os demais interessados e intervenientes diretos na venda da verba em questão.

Para além disso, a pretensão da autora (na eventualidade de ser atendida), refletir-se-ia também nos termos da liquidação e no seu resultado.

Face a todo o exposto, é manifesto o interesse na discussão concentrada de todas as questões que se possam repercutir na liquidação do âmbito de um processo de insolvência.

A esse respeito, prescreve o artigo 170º do CIRE que o processado relativo à liquidação constitui um apenso (próprio) ao processo de insolvência.

Como anotam LUÍS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, in Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa Anotado, 3ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pág. 638, a respeito deste preceito legal, «(…) quanto aos procedimentos necessários a assegurar a regularidade das alienações, nomeadamente no que se refere às intervenções da comissão de credores ou da própria assembleia em actos de especial relevo para o processo de insolvência, bem como as notificações devidas as credores garantidos e preferentes, tudo tem lugar em sede de processamento da liquidação e, por tal motivo, expressão no respectivo apenso. É também aí que o administrador deve cumprir, quanto à liquidação e seus documentos, as obrigações informativas a que está vinculado, por virtude do disposto no artigo 61º do Código».

Ou seja, toda e qualquer questão que se suscite no âmbito da venda de património da insolvente terá que ter expressão, ser tramitada e resolvida no âmbito do apenso de liquidação previsto neste artigo 170º do CIRE, ali se observando o princípio do contraditório, nos moldes julgados adequados pelo juiz. Nunca numa ação declarativa de condenação, sujeita a limitações de formalismo processual, necessariamente mais rígido.

Só esta interpretação se coaduna com o disposto no artigo 58º do CIRE, segundo o qual o administrador exerce a sua atividade sob a fiscalização do juiz que pode, a todo o tempo, exigir-lhe informações sobre quaisquer assuntos ou a apresentação de um relatório da atividade desenvolvida e do estado da administração e liquidação.

E também só desta forma pode ser cabalmente, em caso de necessidade, controlada a prestação de consentimento exigida pelo artigo 161º do mesmo CIRE.

Acresce que, se o CIRE não prevê diretamente a forma de apreciação da regularidade da venda, a mesma encontra necessariamente resposta nas normas do processo civil que não contrariem as disposições do CIRE (artigo 17º do CIRE). Impõe-se a aplicação subsidiária, a respeito da venda do património da sociedade, das disposições dos artigos 811º e seguintes, sendo que qualquer irregularidade que surja nesse procedimento teria que ser suscitada no âmbito do processo em que decorre a venda – neste caso, no apenso de liquidação.

Não faz, pois, qualquer sentido que as questões que se suscitem no âmbito de uma liquidação em processo de insolvência possam ser apreciadas em ações dispersas, com tramitação autónoma e própria e sujeitos processuais delimitados, ainda que apensas ao processo de insolvência, sob pena de poder vir a ocorrer contraditório de julgados a respeito da mesma liquidação de uma sociedade declarada insolvente.

Em suma, impõe-se concluir que as eventuais irregularidades ocorridas no âmbito de procedimentos de venda no processo de insolvência devem ser todas suscitadas perante o juiz da insolvência, no próprio apenso de liquidação do ativo da insolvente e aí tramitadas e tratadas.

(…)

(…) não se pode aproveitar como ação aquilo que deveria ter sido suscitado, de forma incidental, num processo já em curso e que, em qualquer caso, nunca levaria à condenação ou absolvição dos sujeitos passivos desta ação, mas apenas a decisões jurisdicionais sobre uma venda em concreto, a que ficariam submetidos todos os intervenientes e interessados no processo de insolvência.”

3.2. A absolvição da instância, porém, encontrou-se precludida na Relação pela comunicação por parte do AI da “desistência” da compra, em sede de liquidação, do prédio misto apreendido para a massa insolvente – a referida “Quinta da ...” –, objecto dos pedidos feitos na presente acção e em consideração desse procedimento de venda nos termos dos arts. 158º, 161º e 164º do CIRE.

A Relação concluiu perante este dado:

“O que constitui objecto dos autos é a venda do imóvel nos termos da proposta apresentada pela sociedade S..., Lda e só por referência às formalidades que foram observadas relativamente à mesma as pretensões deduzidas poderiam ser apreciadas. Não é legalmente possível, em abstracto, aferir da validade ou invalidade da venda, nem o valor pelo qual a mesma pode vir a ser realizada.

Tendo a proponente desistido da aquisição do prédio, desistência esta que foi aceite pelo administrador da insolvência, a mesma não se chegou a concretizar.

(…)

Tendo a sociedade que apresentou proposta para aquisição do imóvel nos moldes impugnados pela recorrente desistido dessa aquisição e tendo o Administrador da Insolvência aceitado a desistência, extingiu-se o objecto do recurso in totum.

Assim, não restam dúvidas que o prosseguimento da instância recursiva se tornou impossível – artº 277º, alínea e), do C.P.Civil – sendo que, como referido na decisão proferida pela relatora, o requerimento junto aos autos pela A., recorrente, em 14/11/2024 não infirma tal conclusão – a mesma limita-se a invocar que requereu que o Administrador da Insolvência fosse notificado para juntar aos autos os elementos que refere e que o imóvel fosse objecto de avaliação. Também o invocado no requerimento de 21/11 não é susceptível de afastar a impossibilidade do prosseguimento do recurso, uma vez que a venda não foi concretizada, nem irá prosseguir, com a proposta apresentada pela sociedade S..., Lda, que constitui objecto destes autos.”

3.3. A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide resulta de facto ocorrido na pendência da instância, que conduz a que a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou essa pretensão encontrar satisfação fora do esquema da providência requerida: seja por impossibilidade de atingir o resultado visado, seja por ele já ter sido atingido por outro meio, a solução do litígio deixa de interessar, sem apreciação do mérito da causa2.

3.4. Olhando para os pedidos feitos, a causa de pedir e o regime decorrente do apenso de liquidação e partilha da massa insolvente (arts. 156º e ss do CPC), temos que distinguir entre aqueles pedidos que deixam de poder ser concretizados em concreto por mor da não conclusão da alienação projectada do bem a vender a um determinado interessado e proponente dos demais pedidos que se referem à venda do bem independentemente dos interessados e adquirentes do bem colocado para alienação.

No primeiro caso, a frustração do processo negocial de alienação em concreto perante o interessado identificado numa concreta modalidade e termos de venda deixa sem utilidade nesta acção os pedidos relativos à proibição da alienação do prédio a um certo proponente de compra, entretanto frustrada, independentemente do valor da proposta de aquisição.

Mas não tira utilidade à discussão do demais procedimento de liquidação inerente à alienação deste bem e que aproveitará a qualquer outro procedimento e proposta – em especial, é aqui visada pela Autora, vista a(s) causa(s) de pedir, o consentimento da comissão de credores à luz do art. 161º, 1, 3, g), 4 e 5 (regime dos actos jurídicos de “especial relevo”), e o cumprimento das formalidades da venda, tendo em conta os arts. 811º e ss, ex vi art. 164º, 1, do CIRE, destinadas em especial a escolher a modalidade de venda e a fixar o valor base do bem a vender nos termos do art. 812º do CPC, e o art. 164º, 2, do CIRE.

Neste contexto, na liquidação, avultam os despachos proferidos em sede de apenso de liquidação: (i) de 17/12/2019, a convocar assembleia de credores para “apreciação e decisão da modalidade e forma da liquidação dos bens integrados na massa insolvente e nomeação de Comissão de Credores” em 9/1/2020; (ii) de 26/3/2020, a determinar que o AI “deve prosseguir as diligências tendentes à liquidação dos bens integrados na massa insolvente, com intervenção da Comissão de Credores quando necessário”. Assim como tods as informações do AI sobre o estado da venda/liquidação ao abrigo do art. 61º do CIRE, a começar pela informação de existência de proposta de aquisição, resultante de “leilão electrónico”, de € 2.250.000, e de deliberação favorável da comissão de credores nos termos dos arts. 69º e 161º (de 5/11/2021), seguida de outra proposta de € 2.225.000 com “o conhecimento e anuência da maioria dos membros da Comissão de Credores, em que se inclui o credor hipotecário” (informação de 18/5/2022), e a terminar com a informação relevante de 15/7/2024, em que o AI, na sequência da comunicação do interessado na aquisição da verba 3 da massa insolvente, veio transmitir a “desistência” do negócio pela sociedade S..., Lda» (ref. CITIUS ......83 do apenso “K”), comunicação esta chegada com relevância à presente acção.

Neste contexto delimitativo do relevo da impossibilidade superveniente da lide, somos de entendimento que:

(i) a impossibilidade superveniente da lide afecta os pedidos descritos sob os n.os 1, 4 e 5;

porém,

(ii) não prejudica os pedidos descritos sob os n.os 2 e 3, que devem ser confrontados com o objecto da Apelação, que ficou prejudicada no seu conhecimento pelo veredicto em 2.ª instância da exclusividade processual da apreciação da acção no apenso de liquidação.

Logo, merecem ser sufragadas em parte as Conclusões da Recorrente, expressas sob AA) e ss, o que justifica que se devolvam os autos à Relação para o conhecimento da apelação no que toca ao pertinente para estes últimos pedidos (cfr., em particular, as Conclusões 62. a 81.), o que assim se decidirá.

III) DECISÃO

Nesta conformidade, julga-se parcialmente procedente a revista, devolvendo-se os autos à Relação para conhecimento da apelação no que respeita aos pedidos não afectados pela extinção da instância, a saber, os pedidos descritos sob os n.os 2 e 3 do petitório da Autora, em face do decidido pelo despacho saneador em 1.ª instância.

Custas pela Recorrente na proporção de 60% e pelas Recorridas (em face do decaimento parcial) na proporção de 40%; com aplicação à Recorrente da isenção prevista no art. 4º, 1, u), do RCP (DL 34/2008, de 26 de Fevereiro).

STJ/Lisboa, 9 de Julho de 2025

Ricardo Costa (Relator)

Luís Espírito Santo

Anabela Luna de Carvalho

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC)

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1. Por todos, v. ABRANTES GERALDES, “Artigo 671º”, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, págs. 353-354, 356-357↩︎

2. Por todos, JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 277º”, Código de Processo Civil anotado, Volume 1.º, Artigos 1.º a 361.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, págs. 561-562.↩︎