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PROVA TESTEMUNHAL
IMPEDIMENTO
ANTERIOR CO-ARGUIDO NO MESMO PROCESSO
ARQUIVAMENTO DO PROCESSO
Sumário
1. Os ex-arguidos por crimes conexos em processos arquivados podem ser arrolados como testemunhas, nos processos que prosseguem quanto a outros co-arguidos. 2. Nestes casos, não têm de consentir em prestar depoimento, pois a sua situação está já coberta pelo caso julgado, não podendo ser reaberta, não podendo pois os mesmos virem a ser prejudicados, por via dos depoimentos que prestarem. 3. Não há pois, nestes casos, qualquer violação do direito à não auto-incriminação, reconhecido nos Estados Democráticos e de Direito. 4. Já os condenados por sentença transitada têm de consentir na prestação desse depoimento, pois de outra forma poderiam ser prejudicados, em eventual Recurso Extraordinário de Revisão que pretendam interpor.
Texto Integral
1 – Relatório
Por acórdão proferido nestes autos em 11 de Abril de 2 024, foi proferida a seguinte decisão,nestes autos em que é arguido AA:
- foi o mesmo condenado pela prática de um crime de corrupção ativa agravada, na formna tentada, p. e p. pelos arts.º 374º/1 e 3), 374º-A, n.º 2 e 110º/1, b), C.P., na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período;
- decidiu-se ainda sujeitar a suspensão a regime de prova, em moldes a definir em concreto pelos Serviços de Reinserção Social;
- e às seguintes regras de conduta:
- responder às convocatórias do Técnico de Reinserção Social;
- receber visitas do mesmo e comunicar-lhe ou pôr à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência, devendo estar inscrito, se for caso disso e salvo indicação em contrário, em Centros de Emprego e Formação Profissional;
- entregar ao Estado, até ao termo do primeiro ano de suspensão da execução da pena, a quantia de 1 750€ (mil, setecentos e cinquenta euros).
- Foi ainda absolvido da obrigação de entregar ao Estado, todas as quantias peticionadas a título de perda de bens.
Discordando desta decisão, da mesma interpôs recurso o arguido AA, peça que sintetizou nas seguintes conclusões e pedidos:
“É TEMPO DE CONCLUIR: 1. O recorrente AA, não se conforma com o douto Acórdão prolatado em 11 de abril de 2024, no qual foi o recorrente condenado, pela prática de um crime de corrupção ativa agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 374.º/1 e 3 e 374.º-A/2 e artigo 110.º/1-b), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, a contar do trânsito em julgado da presente decisão. Mais foi determinado sujeitar a referida suspensão da pena aplicada ao arguido AA a regime de prova, a definir em concreto pelos Serviços de Reinserção Social. E ainda às seguintes obrigações/regras de conduta: Responder a convocatórias do técnico de reinserção social; Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência, devendo estar inscrito, se for caso disso e salvo justificação em contrário, em centros de emprego e formação profissional. Bem como ao dever de pagar ao Estado Português, até ao termo do primeiro ano do período da suspensão da execução da pena, a quantia de € 1.750,00 (mil, setecentos e cinquenta euros); 2. O Tribunal não efetuou, sem prescindir a qualidade técnica e humana dos Ilustres Magistrados Judiciais, uma criteriosa e cuidada apreciação da prova produzida em julgamento, dando como provada a matéria fáctica que consta do douto Acórdão de 11.04.2024, que supra transcrevemos e aqui damos por reproduzida; 3. Encontra-se erradamente e incorretamente julgada a matéria de facto dada como provada nos pontos 39, 41 e 47 os quais deveriam antes ser dados como não provados; 4. Acresce que, compulsada e analisada toda a prova produzida, entende o aqui recorrente AA, que não há - com o devido respeito e salvo melhor opinião – nestes autos, qualquer prova segura e inequívoca que permita dar como provada a factualidade vertida nos supra citados pontos dos factos provados que aqui se impugnam, mas antes pelo contrário, a prova produzida impunha decisão diversa e que esse factos fossem, tal como descritos e vertidos nos pontos assentes e aqui impugnados, dados como não provados; 5. Acresce que, conforme resulta da simples análise da factualidade dada como provada, e que aqui se impugna, esta, tal como a fundamentação, tem uma redação genérica e conclusiva, insuscetível de sustentar uma condenação penal, como veio a acontecer, uma vez que não são concretizados, nos factos dados como provados, nos alegados atos da prática do crime as concretas circunstâncias de tempo, modo e lugar que teve lugar o mesmo, nomeadamente quanto ao alegado pagamento do “suborno”, que não o era, mas sim, na convicção do recorrente, o pagamento de “fiança”, cujo valor apresar de elevado seria restituído a final do processo; 6. Ora, essa redação genérica e conclusiva, conforme supra referido, já resultava da acusação - no que se afigurava consubstanciar a nulidade prevista no n.º 3 do artigo 283º do C.P.P., nulidade essa que deveria ter sido conhecida pelo Tribunal a quo, e que não foi, sendo que aqui se argui e invoca para os devidos e legais efeitos; 7. Essa ausência de concretização e redação genérica e conclusiva consubstancia, quanto a nós, uma nulidade da douta Sentença, por se verificar uma insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, que integra o vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal, para além de consubstanciar também o vício previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 379º do CPP, o que aqui se alega para os devidos e legais efeitos; 8. Ora, compulsada e analisada factualidade dada como provada, reitere-se mais uma vez, constata-se que a generalidade dos factos dados como provados, mais concretamente a vertida nos pontos 11, 14, 16, 22, 24, 26, 27, 29, 30, 31, 32, 33 dos factos dados como provados, factualidade essa que aqui se impugna também, têm uma redação genérica e conclusiva insuscetível de sustentar uma condenação penal, uma vez que não são suficientemente concretizados os atos em si que possam consubstanciar a prática pelo aqui recorrente do crime dos autos; 9. Poderá a Ilustre Julgadora ter a convicção íntima que o recorrente AA cometeu o crime dos autos, mas não há, salvo melhor opinião, nestes autos, qualquer prova segura e inequívoca que permita dar como provada a factualidade vertida nos supra citados pontos, aqui impugnados, antes pelo contrário, a prova produzida impunha decisão diversa e que esses factos fossem, tal como descritos, dados como não provados; 10. O recorrente estava e está, nos termos e pelas razões supra referidas, impedido de contrariar a imputação dos factos concretos e que se traduz numa compressão inadmissível do seu direito de defesa garantido inconstitucionalmente e consubstancia, quanto a nós uma nulidade da douta Sentença, conforme supra alegado. Sem prescindir, se se entender que para cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 374º do CPP, e que, para preencher o tipo legal do crime em análise, nomeadamente o de abuso de confiança, é bastante e suficiente dar como provados factos genéricos e conclusivos, tal interpretação será inconstitucional por violação do disposto no n.º 1 do artigo 32º da CRP, o que aqui se suscita e invoca para os devidos e legais efeitos; 11. Sem prescindir, também foi erradamente dada como provada a factualidade vertida nos pontos 39, 41 e 47 que supra se transcreveu e que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais; 12. Estes concretos pontos da matéria de facto que aqui impugnamos por se encontrarem incorretamente julgados, e que impugnaremos especificadamente mas conjugadamente uma vez que estão concatenados, deveriam ter sido antes dados respetivamente como não provados, nos termos e pelas razões que infra elencaremos e porque a prova infra transcrita e a produzida assim o impunha; 13. Não foi produzida prova segura e inequívoca que o arguido, ora Recorrente, AA, estava consciente que inexistiam motivos que validamente justificassem a alteração da sua medida de coação. Aliás, no âmbito do processo crime n.º 85/15.5GEBRG, o arguido, para além de não se ter nunca conformado com a aplicação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação (doravante OPH), porque entendia que as concretas exigências cautelares não impunham a aplicação de uma medida de coação privativa da liberdade, daí ter recorrido, como também, em todos os obrigatórios reexames da medidad de coação da OPH, este pronunciou-se sempre pela alteração da medida de coação, e, por saber que por vezes aquela poderia eventualmente ser alterada por medida não privativa da liberdade com aplicação cumulativa de caução, prestada através de “fiança” (artigos 205º e 206º do CPP), acreditou que tal poderia ter lugar e que essa prestação de “fiança” poderia ter sido feita, nos termos em que o foi, pelo que também acreditou, que nesses termos a alteração que lhe tinha sido sugerida como possível, não consubstanciava ato um ato contrário às funções de um magistrado do ministério público, nem era consequentemente, a sua conduta, proibida e punível por lei e assim lhe tinha sido assugurado pelos demais intervenientes e tendo inclusivamente sido exibido um documento onde era explicada todos os passos processuais para que aquela “fiança” viesse a ser aceite (cfr. ponto 22 dos factos provados); 14. Nesse sentido conferir declarações do recorrente AA, a fls. 967 e seguintes, prestadas perante autoridade judiciária e reproduzidas em audiência de discussão e julgamento, conforme ata de 21.03.2024, que supra aqui parcialmente se transcreveram e que aqui damos por reproduzidas:“Quanto aos factos ora imputados, deseja declarar que foi vítima de burla cometida pelos intervenientes supra identificados. Esclarece que no mês de Fevereiro de 2020, em data que não sabe precisar, num dia em que estava em casa a “desabafar” com o BB sobre a sua situação, e sobre o Procurador do Processo, o BB disse-lhe que pela descrição física que estava a fazer do Procurador, este seria amigo do seu sócio, o CC. Disse-lhe que se quisesse podia abordar o sócio para este falar com o Procurador, no sentido de averiguar se era possível pagar um género de “fiança” para que o declarante pudesse aguardar o julgamento em liberdade.”; 15. Nenhuma prova foi produzida que infirmasse essa realidade e que permitisse dar por asssnete os factos vertidos nos aqui impugnados artigos 39, 41 e 47; 16. Assim, da prova validamente produzida não se pode de todo concluir que o arguido sabia que inexistiam motivos que validamente justificassem a alteração da medida de coação, nem que aquele tivesse a consciente que a sua conduta era proibida. Se assim entendesse não teria apresentado a participação crime que deu origem aos presents autos, nem pressionado o DD a fazer o mesmo, o que alias aquele acabou por temporalmnete faze-lo em primeiro lugar; 17. O Tribunal a quo para formar a sua convicção e para dar por assente a matéria de facto aqui impugnada, e supra transcrita, socorreu-se, além do mais, das chamadas regras da experiência comum e da livre apreciação da prova, e de depoimentos das testemunhas, os quais são manifestamente contraditórios entre si, e nada credíveis e muito menos aportaram qualquer conhecimento direto relevante sobre os factos. Aliás, tendo em conta não só as diversas contradições entre si, mas também a falta de precisão e até a evasão na resposta a determinadas questões, como o Tribunal a quo reconhece, estes não eram susceptíveis de contribuir para a formação da convicção do Tribunal a quo; 18. Antes deveria a factualidade vertida nos pontos 39, 41 e 47 ter sido toda ela dada como não provada, ou quanto muito ter a redação supra descrita na motivação e que aqui por brevidade se dá por reproduzida para todos os efeitsos legais; 19. Assim o impunha toda a parca prova produzida, nomeadamente as supra referidas declarações do aqui recorrente AA, prestadas em sede de inquérito, constante de fls. 967 e seguintes, reproduzida em audiência de discussão e julgamento de 21.03.2024, as quais não se encontram infirmadas por qualquer outro meio de prova; 20. Isto posto, somos do entendimento que a conjugação da prova documental e testemunhal produzida não permitia imputar ao arguido AA a prática dos factos pelos quais vinha acusado e pelos quais foi condenado, designamente os elementos objeticos exigidos pelo preceito legal em apreço nos autos, e muito menos os elementos subjectivos; 21. Acresce que, as meras suspeitas e os indícios por mais fortes que, por vezes, sejam, não podem postergar por completo o princípio da presunção de inocência. A condenação de qualquer arguido exige mais do que uma probabilidade, exige um grau de certeza. Ou seja, todo o arguido, seja ele primário, seja até delinquente crónico, tem o direito de não ser condenado sem prova ou sem prova inequívoca, em cada caso concreto, da sua culpabilidade nos termos da lei e para além ou fora de qualquer dúvida, ou pelo menos de qualquer dúvida razoável; 22. E no caso em apreço, tendo em conta a prova produzida em audiência de discussão e julgamento e para o que ao tipo de crime em causa interessa, a prova produzida afigra-se-nos manifestamente insuficiente para a condenação do arguido pela prática do crime de corrupção ativa agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 374.º/1 e 3 e 374.º-A/2 e artigo 110.º/1-b), todos do Código Penal. Pelo que deveria o Tribunal a quo, ter lançado mão do princípio in dúbio pro reo, deveria ter dado como não provados os factos ora impugnados, e, em consequência absolver o arguido/recorrente; 23. Pelo exposto, foi erradamente dada como provada a factualidade vertida nos pontos 39, 41 e 47 e ainda nos pontos 11, 14, 16, 22, 24, 26, 27, 29, 30, 31, 32, 33, que deveria ser toda ela, ter sido dada como não provada, uma vez que a conjugação da prova documental e testemunhal produzida não permite imputar ao arguido os factos pelos quais vem acusado, designadamente alguns elementos objetivos exigidos pelo preceito legal em apreço nos autos, nem os factos podem ter uma redação genérica; 24. Assim o impunha a prova validamente produzida, nomeadamente a suprareferida e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais; 25. Estabelece o artigo 374.º, sob a epígrafe “corrupção activa” (redacção introduzida pelo diploma de 2010):«1 - Quem, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, der ou prometer a funcionário, ou a terceiro por indicação ou com conhecimento daquele, vantagem patrimonial ou não patrimonial com o fim indicado no n.º 1 do artigo 373.º, é punido com pena de prisão de um a cinco anos; 2 - Se o fim for o indicado no n.º 2 do artigo 373.º, o agente é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa até 360 dias; 3 - É correspondentemente aplicável o disposto na alínea b) do artigo 364.»; 26. A corrupção activa abrange o comportamente de qualquer pessoa que se apresente como corruptora, o que justifica a qualificação da corrupção passiva enquanto crime específico e da corrupção activa como crime comum; 27. A corrupção pode ter como finalidade «a prática de um qualquer acto ou omissão contrários aos deveres do cargo» ou a prática de «acto ou omissão» não «contrários aos deveres do cargo», pelo que também nesta sede se distingue a corrupção activa própria da corrupção activa imprópria; 28. A conduta do funcionário visada pelo suborno terá de preencher os mesmos requisitos exigidos na órbita da corrupção passiva; 29. Ora, a questão que se tem colocado consiste em saber se a conduta (suscetível de integrar o crime de corrupção) do funcionário deve corresponder às específicas competências legais ou se a simples actuação de meros “poderes de facto” decorrentes da sua posição funcional é relevante para este efeito. Por outras palavras, questiona-se, na doutrina e jurisprudência, se para haver corrupção é necessário que a actividade visada pelo suborno esteja abrangida nas específicas atribuições ou competências do concreto funcionário; 30. Mas independemente da resposta, no caso concreto, esta é irrelevante, uma vez que a testemunha EE, não tinha específicas competências legais, como também não detinha quaisquer poderes de facto, uma vez que, tal como foi dado como assente no ponto 6 dos factos provados, este era “apenas” oficial de justiça e a exercer funções no DIAP da Póvoa de Lanhoso, logo nenhum ato podia praticar ou omitir que pudesse, de facto ou de direito, resultar na alteração da medida de coação que fora aplicada ao arguido AA; 31. Ora, de acordo com o se vem de referir supra, é nosso entendimento que os elementos objetivos do crime em apreço, e pelo qual foi o arguido, aqui recorrente, condenado, não se encontram preenchidos, desde logo porque ainda que a testemunha EE, o “funcionário” em causa, se arrogasse junto da testemunha FF ou dos arguidos AA ou BB, ter competências para praticar o ato, ou seja, que estava em condições de poder promover alteração da medida de coação e lograr convencer o competente magistrado juduicial, o certo é que, enquanto oficial de justiça, e a desempenhar funções em Tribunal distinto àquele onde tinha termos o processo, aquele não tinha competência para a prática de qualquer ato naquele sentido, uma vez que as especificas funções que lograriam tal desiderato seria de magistrado judicial titular do processo ou quanto muito magistrado do ministério público titular do mesmo, sendo certo que apesar de a testemunha ser funcionário público e de ser oficial de justiça, não tinha qualquer competência de direito ou de facto susceptível de alcançar o desiderato alegadamente pretendido. 32. Estamos sim, aqui, e a ter aquele EE tido a conduta que lhe é imputada, porventura perante um crime de usurpação de funções (artigo 358º do CP) ou de burla (artigo 217º do CP), de que foi vítima o aqui recorrente; 33. Não tem, pois, o ex-co-arguido EE, competências do concreto “funcionário”. 34. Recorde-se o que Almeida Costa, no seu comentário ao artigo 372.º do Código Penal, para o qual remete a propósito do crime de corrupção activa, afirma não caberem na fattispecie da corrupção «as hipóteses em que o agente, não obstante revista a qualidade de funcionário e, em virtude dela, goze de capacidade “fáctica” para efectuar a conduta a que se destina a peita, não pertença ao serviço ou departamento a que está adstrito aquele sector de actividade social, nem com ele mantenha conexões institucionais directas. Na medida em que não participa da aludida “relação funcional imediata”, aquele empregado público apresenta-se como “estranho” ao serviço e, portanto, numa posição equiparável à de um particular, não se enquadrando na órbita do ilícito acima referenciado»; 35. A nosso ver, não se pode perder de vista que o funcionário visado – a testemunha EE – pertencia de facto à função pública. No entanto, integrando a função publica mas em cujo quadro de competências não se inclui no poder de decisão sobre a alteração da medida de coação do aqui recorrente, nem sequer aquele prestava serviço no mesmo Tribunal ou DIAP, não é aquele de facto funcionário nos termos consignados no artigo 386º do CP; 36. Mais, seria necessário concretizar, minimamente, em que termos a sua condição – enquanto mero funcionário público – lhe conferia condições fácticas de intervenção em áreas que lhe eram funcionalmente alheias, por não caberem ao seu serviço - ora disso não cuida a factualidade provada, que não esclarece a conexão dos factos com as funções do funcionário “visado”. Aliás bem pelo contrário, o Tribunal a quo reconhece, na sua douta motivação, que “a pretendida alteração da medida de coação nunca poderia concretizar-se de facto”; 37. Por conseguinte, sem necessidade de outras considerações, forçoso será concluir que o tipo legal do crime de corrupção ativa não se encontra preenchido, pelo deverá o arguido AA, aqui recorrente, ser absolvido; 38. Sem prescindir, é certo que a única vantagem que a pena de prisão pode apresentar face a qualquer outra pena não privativa da liberdade, reside precisamente na circunstância de corresponder ainda hoje ao sentimento generalizado da comunidade a convicção de que, em muitos casos criminais, a privação de liberdade é o único meio adequado de estabilização contrafáctica das suas expectativas, abaladas pelo crime, na vigência da norma violada, podendo ao mesmo tempo servir a socialização do transgressor; 39. Todavia não se poderá corresponder a tal sentimento generalizado da comunidade, se no caso concreto não se justificar de acordo com as específicas necessidades de prevenção geral e especial apuradas. Antes de mais há que atender às constatações da moderna criminologia tendentes à afirmação de que “aquele que cumpre uma pena de prisão é desinvestido profissional e familiarmente, sofre o contágio prisional, fica estigmatizado com o labéu de ter estado na prisão e não é compensado, muitas vezes, com uma efetiva socialização”; 40. Para além de que a privação da liberdade pode representar um peso diferente consoante a personalidade de quem a sofre sem que essa diferente “sensibilidade á privação da liberdade” possa ser adequadamente levada em conta na medida da pena. Não se olvidem, por fim, embora num plano diferente, os elevadíssimos custos financeiros públicos do sistema prisional; 41. Por conseguinte, a opção pela pena de prisão só se justificará quando tal for imposto especificamente pelos fins das penas – previstos no art.º 40º, n.º 1 do Código Penal: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (sublinhado nosso). 42. Ora, atendendo a matéria dada como provada, é nosso entendimento que o Tribunal a quo, deveria ter absolvido o arguido AA do crime pelo qual foi condenado, porque assim o impunha toda a prova validamente produzida em sede de audiência de discussão e julgamento; 43. Sem prescindir, e caso o Tribunal ad quem entenda não ser de absolver o arguido, como se impõe, salvo o devido respeito, e pelos fundamentos já invocados e que aqui nos escusamos de repetir, deverá a pena em que o arguido foi condenado ser reduzida para próximo do mínimo legal, e ser, como foi , suspensa na sua execução; 44. O Tribunal a quo condenou o arguido/recorrente na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução, quando em nosso entendimento deveria ter absolvido o mesmo nos termos e pelos fundamentos supra referidos, mas ao invés disso condenou e fê-lo, com o devido respeito - que é muito, devido e merecido, reitere-se - sem ter em consideração as concretas necessidades de prevenção geral e especial, e sem valorar devidamente todos os fatores e circunstâncias que depunham a favor do arguido e que supra vimos de referir e sem que tivesse em conta a conduta do recorrente posterior ao crime e face a evolução da sua personalidade; 45. É nosso entendimento, no caso concreto e tendo em conta tudo o que se acaba de referir quanto à determinação da medida da pena e tendo em conta as concretas exigências de prevenção geral e especial e tendo em conta todas as circunstâncias que depunham e depõem a favor e contra arguido/recorrente AA, que a pena aplicável a este último, pelos fundamentos supra referidos, deveria ser próximo do mínimo legal, sugerindo-se numa pena nunca superior a 1 ano de prisão, também suspensa na sua execução, como o foi nos caso dos autos; 46. Pelo exposto, e sem prescindir, deverá o arguido ser absolvido do crime pelo qual foi condenado, porque assim o impunha a prova validamente produzida, e se assim não se entender, o que só se refere para mero efeito de raciocínio, deverá a pena aplicável ao arguido, pelos fundamentos supra referidos, deveria ser próximo do mínimo legal, sugerindo-se uma pena nunca superior a 1 ano de sprisão, suspensa na sua execução, como foi. 47. Foram violados: os art.ºs, 20º, 70º, 71º, 72º e ss, 77º, 78º, 374º, 1 e 3 374º - A/2 e artigo 110º/1-b), todos Código Penal, artigo 32º e 205º da Constituição da República Portuguesa e ainda os artigos 127º, 355º, 372º, 373º, 374º e 379º, 410º do C.P.P. 48. O recorrente AA, mantém interesse no recurso interlocutório por si interposto em 29.01.2024 do douto despacho prolatado em 10.01.2024
Termos em que, se deverá revogar o douto Acórdão nos termos, com os efeitos e pelas razões supra expendidas, absolvendo-se o arguido/recorrente AA da prática do crime crime de corrupção ativa agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 374.º/1 e 3 e 374.º-A/2 e artigo 110.º/1-b), todos do Código Penal, pelo qual foi o mesmo condenado, nos termos propugnados, ou se assim não se entender, sempre a pena deverá ser reduzida para um ano de prisão, nos termos propugnados, suspendendo-se a sua execução pelo período também de um ano. Assim se fazendo, uma vez mais, JUSTIÇA! “
Respondeu, ainda em 1ª instância, o M.P. No que se refere à redação genérica e conclusiva dos factos, considera que os mesmos têm uma linha cronológica, tal como se encontram circunstanciados os locais em que ocorreram. Quanto à impugnação da matéria de facto, refere que o recorrente não concretiza os depoimentos que considera contraditórios e nada credíveis, das testemunhas. Quanto ao princípio “in dubio pro reo”, refere que inexiste situação de dúvida que justifique a sua aplicação. Quanto aos elementos típicos do crime de corrupção, disse que EE tinha as competências de funcionário, embora não tivesse as competências legais para praticar os factos prometidos. Por isso, o arguido tem de ser punido por tentativa e não pelo crime consumado. Não está em causa tentativa impossível não punível (art.º 23º/3 C.P.), porquanto no caso não era ostensivo que a tentativa fosse inidónea. No que se refere à medida da pena, considera que que, tendo em conta as necessidades de prevenção geral neste tipo de crimes e as de prevenção especial, decorrentes dos antecedentes criminais do arguido e ausência de arrependimento demonstrada. Sustenta assim, a final, que o Acórdão recorrido deve ser mantido. Quanto à impugnação da matéria de facto feita pelo recorrente, refere que o arguido discorda dos pontos dados como provados nos factos 39, 41 e 47 apresentando como prova no sentido que preconiza, apenas as suas declarações. Quanto aos demais pontos da matéria de facto provada, manifesta apenas a sua discordância relativamente à convicção do tribunal, que se mostra devidamente fundamentada. Mais, defende que o Acórdão se mostra devidamente fundamentado, não podendo ser classificado como genérico, insuficiente ou conclusivo. Quanto à aplicação do princípio “in dubio pro reo”, considera que não ocorreu situação de dúvida, que sustente a sua aplicação. No que se refere às inconstitucionalidades invocadas, entende que o recorrente não invoca a inconstitucionalidade de uma norma, mas da decisão. Mais, só faz considerações genéricas e conclusivas. No que se refere ao tipo legal de corrupção, refere que o Funcionário Judicial EE se fez passar por Procurador, mas que não era ostensivo que o não fosse. Quanto à dosimetria da pena, considera que a mesma é ajustada, quer por razões de prevenção geral, quer especial decorrentes dos antecedentes criminais do arguido, dolo direto, valor avultado da quantia em causa, antecedentes criminais do arguido e ausência de arrependimento por parte do arguido.
A este parecer respondeu o arguido, nos termos do disposto no art.º 417º/2 C.P.P. Referiu que se o funcionário não foi acusado do crime de corrupção passiva, também o arguido não pode ter cometido o crime de corrupção ativa. Além disso, refere que a redação do art.º 386º C.P. era diferente em 2 020 – que é o ano da prática dos factos. Volta a frisar a omissão de referência ao art.º 386º C.P., na acusação, tal como volta a fazer referência a inconstitucionalidades, por contraditoriedade aos arts. 18º, 29º e 32º C.R.P. No final, volta a defender a procedência do recurso com consequente absolvição do arguido recorrente.
Vai ser proferida decisão em conferência, como dispõe o art.º 419º/3, c), C.P.P.
2 – Fundamentação
A fim de melhor se percecionar a questão em análise, transcrever-se-á de seguida e na íntegra, o Acórdão recorrido: “ACÓRDÃO
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1 – Relatório
O Mmo. Juiz de Instrução Criminal PRONUNCIOU, para julgamento em processo comum e com intervenção do TRIBUNAL COLETIVO:
1. AA, filho de GG e de HH, natural de ..., nascido a ../../1975, solteiro, gerente de uma sociedade de venda de automóveis, titular do Cartão do Cidadão n.º ...68 ..., residente na Rua ..., ..., ... ...; 2. BB, filho de II e de JJ, natural da freguesia ... (...), concelho ..., nascido a ../../1977, divorciado, empresário da restauração, titular do Cartão do Cidadão n.º ...91 3ZX4, residente na Trav. ... - ..., ... ...; 3. FF, de alcunha “CC”, filho de KK e de LL, natural da freguesia ..., concelho ..., nascido a ../../1985, solteiro, empresário, titular do Cartão do Cidadão n.º ...71 ..., residente na Rua ..., ..., ... ...; e 4. EE, filho de MM e de NN, natural de ..., nascido a ../../1954, casado, atualmente aposentado, ex-funcionário judicial, titular do Cartão do Cidadão n.º ...85 ..., residente na Rua ..., ... ...;
Imputando-lhes a prática dos factos constantes da pronúncia datada de 15/05/2023 e da acusação datada de 23/01/2023, aqui dados por reproduzidos, que são suscetíveis de integrar a prática:
Pelo arguido AA, em autoria material, de um crime de corrupção ativa agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 374.º/1 e 3 e 374.º-A/2 e artigo 110.º/1-b), todos do Código Penal.
Pelo arguido BB, como cúmplice, de um crime de corrupção ativa agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 374.º/1 e 3 e 374.º-A/2 e artigo 110.º/1-b), todos do Código Penal.
Pelos arguidos FF e EE, em co-autoria material e de forma consumada, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º/1, 218.º/2-a) e 110.º/1-b), todos do Código Penal.
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O Digno Ministério Público promoveu ainda que se condene os arguidos FF e EE, solidariamente, a pagar ao Estado a quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), valores que correspondem à vantagem da atividade criminosa desenvolvida pelos arguidos, nos termos do art. 110.º, n.º 1, al. b), 4 e 6 do Código Penal (redação introduzida pela Lei n.º 30/2017, de 30 de Maio).
Mais promoveu que se condene os arguidos AA e BB, solidariamente, a pagar ao Estado a quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), valores que correspondem à vantagem da actividade criminosa desenvolvida pelos arguidos e entregue aos arguidos FF e EE, nos termos do art. 110.º, n.º 1, al. b), 4 e 6 do Código Penal (redação introduzida pela Lei n.º 30/2017, de 30 de Maio).
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Foram recebidas a acusação e a pronúncia, por despacho de 08/06/2023.
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O arguido EE apresentou contestação negando a prática dos factos e oferecendo o merecimento dos autos (Cfr. Ref. ...97 de 21/06/2023).
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O arguido AA apresentou contestação negando a prática dos factos e oferecendo o merecimento dos autos (Cfr. Ref. ...37 de 26/06/2023).
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O arguido BB apresentou contestação oferecendo o merecimento dos autos (Cfr. Ref. ...96 de 05/07/2023).
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O arguido FF não apresentou contestação.
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Por despacho de 04/01/2024, foi declarada extinta a responsabilidade criminal nestes autos dos arguidos EE e FF nos termos do artigo 206.º, n.º 1 ex vi artigo 218.º, n.º 4, ambos do Código Penal.
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Procedeu-se a julgamento com observância de todo o formalismo legal.
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1.2 – Saneamento
Não existem quaisquer exceções, questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa.
2 – Fundamentação 2.1 – De facto
Factos provados:
Com interesse para a boa decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
Da pronúncia (da qual se excluíram os factos relativos à extinção do procedimento criminal supra referida):
1. O arguido AA e BB são amigos desde há muitos anos, prestando o primeiro, habitualmente, serviços de mecânica ao segundo.
2. Foi aplicada ao arguido AA, em 03/07/2018, no âmbito do Processo n.º 85/15.5GEBRG, além do mais, a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação (com utilização de meios técnicos de controlo à distância), pelo Juízo de Instrução Criminal de ... – Juiz ....
3. Tal situação processual mantinha-se à data dos factos que infra se descrevem.
4. FF é conhecido pela alcunha de CC.
5. O arguido BB e FF foram sócios da sociedade EMP01..., Lda., tendo-se dedicado, conjuntamente, à exploração de uma Danceteria denominada “EMP02..., sita em ..., ....
6. EE era, à data dos factos que infra se descrevem, oficial de justiça, com a categoria de Técnico de Justiça Adjunto, funções que desde Setembro de 1998 desempenhava no DIAP da Póvoa de Lanhoso, encontrando-se actualmente aposentado.
7. FF e EE são amigos.
8. Em data anterior à abertura do estabelecimento EMP03..., que ocorreu em data não concretamente apurada do mês de Outubro de 2019, EE visitou o espaço, a convite de FF.
9. Nessas circunstâncias, FF apresentou EE ao arguido BB, dizendo-lhe que o mesmo era Procurador no Tribunal de ....
10. Também EE, nos momentos em que frequentou o estabelecimento, após a abertura ao público, se apresentou como sendo Procurador.
11. Em data não concretamente apurada do mês de Fevereiro de 2020, o arguido BB dirigiu-se à residência do arguido AA com vista a que o mesmo o auxiliasse na resolução de um problema mecânico no seu veículo automóvel.
12. No decurso da conversa que mantiveram, como o arguido AA se lamentou pelo facto de se encontrar sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, o arguido BB deu-lhe conta de que o seu sócio, FF, tinha um amigo que era Procurador, a quem tratava por OO.
13. Nessa sequência, ofereceu-se para pedir a FF que falasse com o mesmo de molde a descobrir se seria possível a alteração da aludida medida de coacção, o que o arguido AA aceitou.
14. Posteriormente, em data não apurada, mas situada alguns dias depois dos factos ora descritos, o arguido BB levou FF a casa do arguido AA.
15. Aí, FF afirmou que o “OO” já o tinha ajudado, já o tinha tirado da PJ do ... e que podia falar com ele para ver o que é que se podia fazer para poder ajudar aquele a tirar a pulseira electrónica até ao julgamento.
16. Alguns dias mais tarde, o arguido BB levou novamente FF a casa do arguido AA, tendo FF dito que tinha falado com o Procurador e que se lhe entregasse a quantia de € 50.000,00 era possível alterar a medida de coacção.
17. Nesse momento, o arguido AA explicou a FF que não tinha tal quantia em dinheiro disponível pelo que necessitava de alguns dias para a reunir, dizendo-lhe ainda que pretendia aconselhar-se com o seu advogado.
18. FF retorquiu que o Procurador tinha dito que apesar de ter um bom advogado as coisas tinham que ser feitas directamente consigo e com o Procurador.
19. No decurso destas visitas de FF a casa do arguido AA, aquele telefonou a EE, através da aplicação WhatsApp, colocando o aparelho na função de alta voz.
20. No decurso dos aludidos telefonemas, EE afirmou que a situação era fácil de resolver e que era ele que travava disso, utilizando termos técnicos que os arguidos BB e AA não compreenderam.
21. Ainda no decurso dos referidos telefonemas, FF disse a EE: “quem é que me tirou me tirou da PJ do ..., não foi o OO?”, tendo EE confirmado que tinha sido ele.
22. Ainda, durante uma das visitas de FF à residência do arguido AA, aquele levou uma carta que teria sido escrita pelo Procurador, na qual explicava tudo o que tinha que ser feito para alterar a medida de coacção, que leu ao arguido AA e depois rasgou.
23. Em face da actuação concertada de FF e EE, o arguido AA acedeu a entregar àqueles a peticionada quantia de €50.000,00 com vista a conseguir a alteração da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação a que se encontrava sujeito.
24. Assim, em data não concretamente apurada, mas situada alguns dias depois da última visita de FF, o arguido AA pediu ao arguido BB que se deslocasse à sua residência.
25. Aí, entregou ao arguido BB a quantia de €20.000,00, em notas do BCE, pedindo-lhe que as entregasse a FF, para que este por sua vez as entregasse ao Procurador.
26. Acedendo ao que lhe foi solicitado, o arguido BB combinou um encontro com FF nas imediações da Pastelaria “EMP04...”, sita em ..., ..., onde lhe entregou a citada quantia.
27. Posteriormente, em data não concretamente apurada, mas situada alguns dias depois da primeira entrega, o arguido AA pediu ao arguido BB que se deslocasse à sua residência, onde lhe entregou a quantia de €30.000,00 em notas do BCE, no interior de uma caixa de telemóvel.
28. Mais uma vez lhe pediu que as entregasse a FF, para que este por sua vez as entregasse ao Procurador, pedindo-lhe que se certificasse que FF concretizava tal entrega.
29. Acedendo ao que lhe foi solicitado, o arguido BB combinou novamente um encontro com FF nas imediações da aludida Pastelaria “EMP04...”, onde lhe entregou a citada quantia.
30. Posteriormente, em face da solicitação do arguido AA, o arguido BB seguiu FF, de carro, até à zona de ..., perto das instalações do Jornal “...”, local onde este aparcou o seu veículo automóvel.
31. Posteriormente, FF dirigiu-se a um prédio, onde entrou, tendo o arguido BB constatado posteriormente que se tratava do prédio onde residia EE.
32. Após a entrega da referida quantia global de € 50.000,00, a medida de coacção aplicada ao arguido AA, que continuava a ser revista trimestralmente, não foi alterada.
33. Em data não concretamente apurada, FF deslocou-se a casa do arguido AA, acompanhado pelo arguido BB, e telefonou a EE, através da aplicação WhatsApp, colocando o aparelho na função de alta voz.
34. No decurso do telefonema, EE afirmou que a situação ficaria resolvida em poucos dias, alegando que o atraso se devia à paragem dos Tribunais decorrente da Pandemia de COVID-19.
35. Com o passar do tempo, e em face da ausência de alteração da medida de coacção, os arguidos BB e AA questionaram, de forma reiterada, FF sobre tal circunstância, sendo que o mesmo garantia que a situação ficaria resolvida, alegando que o atraso na resolução se devia à paragem dos Tribunais decorrente da Pandemia de COVID-19.
36. O arguido AA actuou de forma livre, voluntária e consciente.
37. Previu e quis, com o auxílio do arguido BB, entregar a referida quantia de € 50.000,00 a FF, com a intenção de que este a entregasse a EE.
38. Fê-lo na convicção de que EE era Magistrado do Ministério Público, em funções no Tribunal Judicial de ....
39. Com vista a que o mesmo, nessa qualidade, promovesse a alteração da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação a que o arguido AA estava sujeito, bem sabendo que inexistiam motivos que validamente justificassem tal alteração e que tal consubstanciava um acto contrário às funções daquele.
40. O que não se concretizou dado que EE não era Magistrado do Ministério Público, mas sim oficial de justiça, facto que desconhecia, e, como tal, não tinha competências legais para tomar posição sobre a referida medida de coacção a que estava sujeito.
41. O arguido AA sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
42. O arguido BB agiu de forma livre, voluntária e consciente.
43. Actuou prestando auxílio ao arguido AA, procedendo à entrega da quantia de € 50.000,00 a FF, com a intenção de que este a entregasse a EE.
44. Fê-lo na convicção de que EE era Magistrado do Ministério Público, em funções no Tribunal Judicial de ....
45. Com vista a que o mesmo, nessa qualidade, promovesse a alteração da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação a que o arguido AA estava sujeito, bem sabendo que inexistiam motivos que validamente justificassem tal alteração e que tal consubstanciava um acto contrário às funções daquele.
46. Ignorava, porém, que EE não era Magistrado do Ministério Público, mas sim oficial de justiça e, como tal, não tinha competências legais para tomar posição sobre a referida medida de coacção a que estava sujeito.
47. Estavam os arguidos perfeitamente cientes que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Das condições pessoais e económicas do arguido AA
48. À data dos factos, AA residia com a companheira, PP, com quem mantinha uma relação afetiva desde 2013, em habitação arrendada, situada em BB, ....
49. Nesta altura, o arguido encontrava-se sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação fiscalizada com vigilância eletrónica, desde 14/07/2018, até 6/12/2021, à ordem do processo n.º 85/15.5GBBRG, onde foi acusado de 1 crime de associação criminosa, 5 crimes de furto qualificado, 2 crimes de detenção de arma proibida, 3 crimes de falsificação de documento e 1 crime de recetação.
50. Em fevereiro de 2022, o arguido e a companheira mudaram-se para uma habitação propriedade da irmã do arguido, QQ, situada em ... – ..., na morada constante nos autos.
51. A dinâmica relacional entre o casal (arguido e companheira), revelou-se inicialmente tranquila e gratificante, contudo sofreu um desgaste significativo nos últimos anos e ficou comprometida pelas recorrentes discussões entre ambos, culminando na saída da companheira da habitação que partilhava com o arguido e na formalização de uma denúncia referente ao mesmo por ofensa à integridade física e ameaça (processo 1621/22.6PBBRG do Tribunal Judicial da Comarca de ... – Juízo Local Criminal de ... – Juiz 2).
52. Desde então e até à presente data o arguido permanece no mesmo local a residir sozinho. Esta habitação corresponde a uma moradia unifamiliar, tipologia 3, propriedade da irmã QQ, emigrada na ..., sem encargos para o arguido para além do pagamento dos abastecimentos domésticos (água e eletricidade).
53. O processo de desenvolvimento de AA ocorreu junto dos progenitores e 8 irmãos. Sinaliza um ambiente familiar estruturado e um processo educativo normativo, sem exposição a comportamentos maltratantes. O pai faleceu precocemente quando o arguido contava 8 anos de idade.
54. AA tem uma filha, atualmente com 13 anos de idade, resultante de uma relação afetiva já cessada, com a qual mantem uma relação próxima. O arguido estabelece um relacionamento familiar estável beneficiando de apoio por parte da família de origem.
55. AA habilitou-se com o 7º ano do ensino básico, tendo tido um percurso pautado pelo desinvestimento e desinteresse apontando uma reprovação, mas sem problemas de caráter disciplinar.
56. A nível profissional apresenta um percurso regular e consistente desde a adolescência, pautado por experiências laborais de longa duração, tendo desenvolvido diferentes atividades, nomeadamente na área da carpintaria, restauração (café) e no ramo da comercialização e reparação automóvel, por conta própria e posteriormente, durante cerca de dois anos, desenvolveu atividade no mesmo ramo, de forma informal.
57. À data dos factos, o arguido conservava atividade informal de reparação automóvel, que exercia na sua habitação, através de amigos que para ali deslocavam as suas viaturas para reparar, auferindo em média cerca de 900€ mensais e a companheira encontrava-se desempregada, pelo que vivia nessa altura uma situação financeira frágil.
58. Atualmente, e desde novembro de 2023, figura como gerente na “EMP05... – Unipessoal Lda”, empresa dedicada ao comércio e reparação automóvel, propriedade do amigo, RR. A par desta atividade, mantém a título próprio, atividade informal de comércio automóvel.
59. Aufere um vencimento de 757,40€ mensais, que complementa com valores variáveis, provenientes da sua atividade informal de comércio automóvel, apontando uma condição financeira estável. Aponta como despesas mensais fixas as decorrentes do pagamento dos abastecimentos domésticos, água e eletricidade, num valor total global de 130,75€ e o pagamento da Pensão de Alimentos à sua filha menor (300€/mensais).
60. À data dos factos, tal como atualmente, as rotinas do arguido centravam-se, essencialmente, na atividade laboral que desenvolvia. Ainda assim, pratica, quando lhe é possível, atividade desportiva de lazer (bicicleta).
61. O arguido tem antecedentes criminais, registando uma condenação pela prática de um crime de falsificação de documento, um crime de recetação e um crime de burla qualificada, tendo sido condenado numa pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova. Foi ainda constituído arguido, no decurso desta medida, pela prática de 1 crime de associação criminosa, 5 crimes de furto qualificado, 2 crimes de detenção de arma proibida, 3 crimes de falsificação de documento e um crime de recetação, no âmbito do processo 85/15.5GEBRG do Tribunal Judicial da Comarca de ... – Juízo Central Criminal de ... – Juiz 2. A decisão judicial relativa a este processo encontra-se em fase de recurso.
62. O arguido tem ainda pendente o processo 1621/22.6PBBRG do Tribunal Judicial da Comarca de ... – Juízo Local Criminal de ... – Juiz 2, no âmbito do qual se encontra indiciado por um crime de ofensa à integridade física e um crime de ameaça, na pessoa da ex-companheira, com julgamento agendado para 19/09/2024.
63. O arguido manifesta preocupação face ao desfecho do presente processo, verbalizando em caso de condenação adesão à execução de uma medida na comunidade.
64. Não foram sinalizadas outras repercussões, nomeadamente a nível familiar, social ou laboral como decorrentes do presente processo.
65. O arguido mantém uma relação próxima com a família de origem de quem beneficia de apoio, bem como com a filha. Socialmente projeta uma imagem de pessoa bem integrada, trabalhadora e é respeitado social e profissionalmente.
Das condenações anteriores do arguido AA
66. O arguido regista averbada no seu certificado de registo criminal a seguinte condenação:
i. Por sentença proferida pelo Tribunal Judicial de ..., no processo n.º 1122/08.5TABRG, datada de 29/04/2014, e transitada em julgado a 15/12/2014, o arguido foi condenado pela prática, em 2005, de um crime de burla qualificada, um crime de falsificação de documento e um crime de recetação, na pena de 4 anos de prisão, suspensa por igual período e sujeita a regime de prova.
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Das condições pessoais e económicas do arguido BB
67. BB constitui agregado com SS há cerca de 4 anos e com os filhos da companheira, fruto da anterior relação desta, maiores e profissionalmente ativos.
68. A dinâmica relacional intrafamiliar mostra-se positiva e afetuosa entre todos os elementos do agregado.
69. À data dos factos, o arguido já tinha estabelecido uma relação afetiva com a atual companheira, no entanto ainda não coabitavam, pelo que o mesmo vivia sozinho no R/C da habitação dos progenitores.
70. O arguido cresceu integrado no seu agregado de origem, composto pelos pais e uma irmã mais velha, em dinâmica relacional familiar positiva.
71. BB casou aos 23 anos e permaneceu junto dos progenitores com o seu próprio agregado constituído até 2007, altura em que se autonomizou. O seu casamento culminou em divórcio há cerca de 9 anos, segundo refere, motivado por desgaste na relação conjugal. Tem dois filhos desta união, com 21 e 16 anos de idade, com os quais mantém contactos e convívios regulares.
72. Após o divórcio, o arguido permaneceu cerca de 1 ano a residir num apartamento arrendado, até regressar a casa dos progenitores, onde reside ocupando o R/C da habitação. A irmã também reside naquele local, numa habitação adjacente.
73. O arguido vive neste local há cerca de 8 anos, desde o seu divórcio. Iniciou atividade por conta própria há vários anos na área da restauração/venda ambulante de comida, enquadramento que manteve até 2015, altura em que expandiu o negócio e abriu um restaurante que conserva atualmente.
74. O arguido iniciou atividade laboral aos 16 anos de idade, ainda a par da frequência escolar, junto do progenitor na fábrica de móveis deste, onde se manteve para além da conclusão do seu percurso escolar e aí permaneceu até 2002.
75. Posteriormente iniciou atividade por conta própria na área da restauração/venda ambulante de comida, e abriu um restaurante onde continua a trabalhar.
76. Durante este percurso o arguido também participou na sociedade e gestão de duas Danceterias, uma das quais “EMP06...” – ..., que conservou por cerca de 8 anos e a segunda “EMP02..., por apenas 3 meses, por não se adaptar à dinâmica de gestão da sociedade.
77. O arguido aufere um rendimento mensal na ordem do salário mínimo nacional, constando do respetivo recibo a quantia de 729,80€ a título de vencimento líquido. A esposa refere um salário semelhante e os filhos da mesma não comparticipam na economia doméstica.
78. O arguido sinaliza despesas mensais fixas no valor total de 828,00€, respeitantes aos encargos com a habitação, crédito pessoal, pensão de alimentos dos filhos e renda da habitação onde a filha, estudante universitária, reside durante a época letiva.
79. No seu meio comunitário de residência, em ... - ..., o arguido encontra-se bem inserido e é bem aceite, nada constando em seu desabono.
80. O arguido não sinaliza repercussões significativas no seu enquadramento familiar ou social como decorrentes do presente processo, manifestando, no entanto, a nível pessoal sentimentos de ansiedade e frustração pela sua qualidade de arguido, tendo sentido necessidade de recorrer a apoio clínico especializado e intervenção farmacológica.
81. No seu meio social de residência e junto dos seus pares detém uma imagem social preservada, sendo referenciado positivamente.
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Das condenações anteriores do arguido BB
82. O arguido não tem quaisquer condenações averbadas ao seu certificado de registo criminal.
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2.2 - Factos Não Provados
Não existem quaisquer factos não provados com relevância para a decisão da causa. 2.3 - Motivação da matéria de facto
Nos termos do disposto no art. 124.º do C.P.P. constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicável.
O princípio básico que norteia a apreciação da prova é o da sua livre apreciação tal como prescrito pelo art. 127.º, n.º 1 do C.P.P.: «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção da entidade competente».
A este propósito, releva a apreciação feita pelo Cons. Armando Leandro no Ac. do STJ de 16/01/2002, Proc. nº 3649/01 - 3ª Secção, que afirma o seguinte: “O critério da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º, do CPP, não significa a possibilidade de apreciação puramente subjectiva, arbitrária, baseada em meras impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, antes pressupõe uma cuidada valoração objectiva e crítica e em boa medida objetivamente motivável, em harmonia com as regras da lógica, da razão, das regras da experiência e dos conhecimentos científicos; engloba porém não só os factos probandos apreensíveis por prova directa mas também os factos indiciários, no sentido de factos que, por deduções e induções objectiváveis a partir deles, tendo por base as referidas regras, conduzem à prova indirecta daqueles outros factos, que constituem o tema da prova; tudo a partir de um processo lógico-racional que envolve porém, naturalmente, também elementos subjectivos, inevitáveis no agir e pensar humano, que importa reconhecer com honestidade e maturidade para melhor impedir que possam ser fonte de arbitrariedade e permitir actuem, pelo contrário, como instrumento de perspicácia e prudência na busca da verdade processualmente possível”.
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Inspirados por este mote cumpre, então, explanar os elementos probatórios nos quais se baseou o Tribunal para dar como provados e não provados os factos supra elencados.
Na formação da convicção, o Tribunal atendeu, desde logo, aos seguintes elementos de prova documental:
- Ficha biográfica, de fls. 13 - referente ao arguido AA.
- Impressões de mensagens, de fls. 33-85 - nas referidas mensagens é possível verificar que AA troca mensagens com BB, nas quais aquele lhe pede por diversas vezes para lhe entregar dinheiro. Também é visível que trocam mensagens acerca de quantias monetárias.
Fls. 932-962; troca de mensagens entre BB e FF.
- Certidão Permanente, de fls. 119-120 - da sociedade “EMP07..., Lda.”, na qual se verifica que são sócios da mesma BB e FF. A gerência está atribuída a TT desde ../../2020, sendo que até então foi exercida por BB.
- Relatórios de exame a telemóveis, de fls. 129-140 - relativo aos telemóveis de BB e AA; Fls. 603 ss., 630 ss.;
- Auto de visionamento, de fls. 143, 614 (referente ao telemóvel apreendido a EE);
- Autos de intercepções telefónicas, de fls. 247 (verifica-se que EE liga para o Tribunal de ... para saber dados relativos ao processo em que FF vai ser inquirido como testemunha), 284, 323, 346 - são registados diversos contactos entre EE e FF; 486 - conversa entre FF e EE;
- Auto de diligência e fotografias, de fls. 462-463 - constata-se que a fotografia de fls. 54, onde são visíveis os dedos de um indivíduo colocados sob um teclado de computador, foi tirada no domicílio de EE (ver fls. 463);
- Auto de busca e apreensão, de fls. 464, 466;
- Autos de exame, de fls. 646, 656;
- Auto de transcrição de comunicações, de fls. 689-698 - chamada de EE para o Tribunal de ..., onde este pede informações acerca de um processo em que FF será testemunha; Fls. 702-732 - conversas pessoais entre FF e EE (entre outras);
- Declarações do arguido BB, de fls. 922 ss. (incluindo mensagens de fls. 932 ss.);
- Declarações do arguido AA, de fls. 967 ss.;
- Listagens de fls. 1005-1067 - comprova que EE é funcionário judicial desde 1994 e não é magistrado do Ministério Público.
- Apenso I – Dados de telemóveis - mensagens apreendidas nos telemóveis dos arguidos, cujo conteúdo é coincidente com o já analisado supra;
- Apenso III – Dados Informáticos.
- CRC’s constantes dos autos.
- Relatórios sociais de 20/03/2024.
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Elencada a prova tida em consideração pelo Tribunal na sua globalidade, importa agora analisar os meios de prova de forma mais detalhada.
Para prova dos factos dados como assentes foram tidas em conta, desde logo, as declarações dos arguidos AA e BB em inquérito, reproduzidas em audiência de julgamento ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 141.º, n.º 4, alínea b) e 357.º, n.º 1, alínea b), do Cód. Proc. Penal.
Sobre a valoração das declarações dos arguidos, quer produzidas em julgamento quer em inquérito, mas validamente reproduzidas em audiência, em prejuízo de um ou mais coarguidos, é hoje, parece-nos, doutrinária e jurisprudencialmente pacífico que as mesmas, quando não sujeitas ao princípio constitucional do contraditório estabelecido no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, não valem como meio de prova.
Assim, no nosso caso, as declarações prestadas em inquérito pelos arguidos BB e AA, reproduzidas em audiência, apenas podem valer como meio de prova válido, sujeito à livre apreciação do Tribunal, na parte em que se autoincriminam – o que sucedeu -, porquanto na parte em que incriminam coarguido(s) não valem como meio de prova, seja porque o coarguido não esteve presente na audiência – como é o caso do arguido BB -, seja porque, apesar de presente, decidiu remeter-se ao silêncio, no legítimo exercício de um direito – como é o caso do arguido AA.
Sobre esta problemática, ver, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação do ... de 02.02.2022, processo n.º 1560/17.2JAPRT.P1, do Tribunal da Relação de Coimbra de 05.05.2021 e 07.07.2021, processo n.º 4/19.0PECTB.C1, do Tribunal da Relação de Évora, de 05.05.2015, e do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.03.2023, processo n.º 32/21.5PJVFX.L1-9, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
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Comecemos assim, pela sua relevância incontestável para a prova da matéria assente, por analisar as declarações dos arguidos reproduzidas em audiência.
Vejamos, então, as declarações do arguido BB, datadas de 19/10/2022, que iremos transcrever parcialmente tendo em conta a sua particular relevância.
Assim, referiu este que: “Confirma que durante o período em que foi sócio de CC, era frequentador da Danceteria um indivíduo, de nome EE, que se apresentava como sendo Procurador do Ministério Público, e que era amigo do CC. Ainda antes da inauguração do espaço, este individuo foi conhecer a Danceteria, a convite do FF, tendo sido neste momento que o declarante o conheceu. Explica que este individuo foi apresentado como sendo Procurador no Tribunal de .... Refere inclusive que o FF se dirigia ao mesmo utilizando o termo “Procurador”. Diz que o CC lhe contou que quando esteve preso no ..., este Procurador tinha conseguido que ele fosse colocado em liberdade a aguardar julgamento. Confirma que é amigo de AA há muitos anos, indivíduo que está em prisão domiciliária com vigilância electrónica na sequência de um roubo a um balcão do Banco 1..., segundo crê. Explica que este tinha uma oficina de mecânica e que o declarante era cliente. Em data que não sabe precisar, no início do ano de 2020, pensa que no mês de Fevereiro, dirigiu-se a casa do AA por causa de um problema no seu automóvel. Na altura AA estava a queixar-se que queria estar em liberdade, para poder trabalhar. O declarante disse-lhe que conhecia um Procurador que era amigo do sócio e que lhe podia perguntar se havia alguma coisa a fazer. Falou então com o FF, expondo-lhe a situação, e o FF disse que iria falar com o suposto Procurador para ver se este conseguia colocar o AA em liberdade, enquanto aguardava o julgamento. Posteriormente, o FF conversou consigo tendo-lhe dito que o “Procurador” queria 50 mil euros para o efeito. Assim, levou o FF a casa do AA para que estes se conhecessem e aquele pudesse explicar “o negócio”. O FF confirmou que o “Procurador” pretendia 50 mil euros e que no prazo de um mês “ele conseguia que o AA ficasse em liberdade”. Disse que posteriormente, passado um dia o AA decidiu que iria pagar a quantia solicitada, tendo reunido essa quantia, pensa que recorrendo a empréstimo de pessoas conhecidas. Diz que no prazo de uma semana, sensivelmente, o declarante dirigiu-se a casa do AA, tendo este entregue a quantia de 20 mil euros em dinheiro num saco de papel, quantia que o AA contou à sua frente. Neste dia, logo de seguida, encontrou se com o FF em ..., na via pública, perto de uma Padaria “EMP04...” e entregou-lhe o dinheiro. Passado um ou dois dias, o declarante dirigiu-se novamente a casa do AA e este entregou-lhe a quantia em falta - 30 mil euros, em dinheiro acondicionado numa caixa de cartão. Também nesta altura, AA contou o dinheiro à sua frente. De seguida, ligou ao FF, tendo voltado a encontrar-se com o mesmo na mesma zona, onde lhe entregou o dinheiro. Explica que seguiu o FF no seu automóvel, para confirmar se este iria entregar o dinheiro ao “Procurador”, até porque o AA tinha-lhe dito para confirmar se o FF “ia mesmo entregar o dinheiro ao Procurador”. Diz que o mesmo dirigiu-se à zona de ..., perto das instalações do Jornal “...” onde aparcou a viatura – um ... de cor .... Depois o FF saiu e dirigiu-se a um prédio onde entrou. Explica que posteriormente, como o AA continuava em prisão domiciliária e “nada era feito” o declarante começou a insistir com o FF para que este lhe dissesse como estava a situação. Este dizia-lhe que a situação estava a resolver-se, tendo inclusive telefonado na sua presença para o “Procurador”. Este “inventava sempre desculpas... era a pandemia, era problemas relacionados com o Tribunal que eu não entendo”. Por volta do mês de Agosto ou Setembro falou com um amigo que conhecia o indivíduo em causa e que lhe disse que ele não era Procurador “que ele era um escrivão do Tribunal da Póvoa de Lanhoso”. Procurou o FF tendo-o confrontado com o que acabava de saber, e este “começou a tentar trocar-me as ideias, a arranjar desculpas... a dizer que não tinha falado com aquele Procurador...”. Disse-lhe que ia apresentar queixa e o FF disse-lhe que “ia negar tudo e que não ia conseguir provar que lhe tinha dado dinheiro, que ia dizer que o dinheiro era para lhe pagar dividas da sociedade...”. Depois disto, telefonou ao suposto “Procurador”, tendo-se encontrado com o mesmo num Café que se localiza “por baixo do prédio onde ele mora”. Confrontou-o com o sucedido, e este disse-lhe que nunca tinha recebido 50 mil euros do FF, nem outra quantia qualquer, acrescentando que “nem sabia do que se tratava”. Diz que depois disto tentou falar várias vezes com o FF, e este disse-lhe que lhe ia devolver o dinheiro, mas nunca o fez. Diz ainda que por se sentir responsável pelo que aconteceu e por pensar que o FF ia devolver o dinheiro “dei três mil euros ao AA”. (…) A certa altura descobriu o número do EE e ligou-lhe, dizendo que precisava de falar com ele e encontraram-se na Pastelaria por baixo do prédio onde este morava. Questionou-o sobre a situação e o EE negou ter recebido dinheiro e ter conhecimento da situação. O EE chegou a ligar ao FF à sua frente, a perguntar-lhe o que se passava, dizendo que não sabia de nada. O FF negou novamente ter recebido dinheiro.” (sublinhados nossos).
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Ora, repare-se que, apenas analisado o conteúdo das declarações do arguido BB, se constata como o mesmo assume desde logo a sua responsabilidade no “esquema” em causa nos autos, posto que é este arguido quem sugere, de sua livre iniciativa, ao arguido AA falar com o suposto Procurador, para que este o pudesse “ajudar” a alterar a medida de coação a que estava sujeito.
Ademais, é o arguido BB quem se dirige a casa do arguido AA, por duas vezes, e recebe da parte deste o dinheiro para entregar ao falso procurador, por intermédio de FF.
Nesta parte, cumpre também destacar o depoimento da testemunha UU. Este explicou que, como amigo do arguido BB, o acompanhou, a seu pedido, quando este ia “entregar um dinheiro ao FF”.
Assim, a referida testemunha acompanhou o arguido DD quando este foi buscar o dinheiro a casa do arguido AA, sendo que esse pagamento já seria uma segunda tranche.
Depois, referiu que o arguido BB foi ter com o FF para lhe entregar a quantia que recebera do arguido AA, e que ainda seguiram o FF até ..., onde vivia EE, para assegurar que o FF iria efetivamente entregar o dinheiro a EE.
Contudo, afirma que nessa parte já só viu o FF a entrar num túnel próximo do local onde residia EE, e depois não o viu mais.
Esta testemunha, não obstante ser próxima do arguido BB, depôs de forma que se mostrou isenta e credível, tendo o seu depoimento relevo probatório positivo na medida em que corroborou vários pontos das declarações daquele arguido, tendo-o acompanhado na entrega da quantia monetária tal como este afirmou no referido interrogatório.
Verifica-se ainda, nas mensagens constantes de fls. 932 ss. trocadas entre FF e o arguido BB que, após a entrega da quantia monetária pelo arguido AA, aqueles falam sobre se FF já falou com EE, sendo que o arguido DD pressiona FF para saber se “a gaja, o homem” disse alguma coisa, referindo-se a EE.
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Já o depoimento da testemunha EE mostrou-se eivado de parcialidade e denotou uma tentativa de mostrar um desconhecimento dos factos que não logrou convencer minimamente o Tribunal da sua veracidade.
Assim, o seu depoimento mostrou-se relevante apenas na medida em que referiu a sua proximidade à testemunha FF. Foi ainda tido em conta quando referiu que sabia que este dizia que ele era “procurador”.
A testemunha confirmou ainda, confrontado com a Fotografia de fls. 54, que esta retrata o seu computador e a sua secretária em casa (conforme resulta igualmente do auto de diligência de fls. 462).
Por sua vez, a testemunha FF referiu ter sido sócio do arguido BB numa sociedade de eventos, desde 2019, de nome “EMP07...”.
A testemunha revelou ainda, para dizer o menos, graves lapsos de memória no seu depoimento, tendo o Tribunal ficado com a sensação nítida que este não revelou tudo o que sabia relativamente aos factos.
Não obstante, o seu depoimento mostrou-se relevante na parte em que referiu que apresentou o arguido BB a EE na inauguração de uma danceteria que abriu com o primeiro, assim corroborando as declarações do arguido BB a esse respeito.
Confirmou ainda que tinha no seu telemóvel o número de EE gravado como “EE Procurador”. Contudo, afirmou saber que este não era procurador.
A referência ao contacto gravado no telemóvel de FF consta igualmente de fls. 22 do Ap. III.
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Nesta parte, e relativamente ao depoimento das testemunhas (anteriormente arguidos) EE e FF, diga-se desde já, tendo em conta as reservas que a admissão dos referidos depoimentos gerou na defesa do arguido AA que, ainda que o Tribunal pura e simplesmente não valorasse os referidos depoimentos, chegaria inevitavelmente às mesmas conclusões que alcançou a partir dos mesmos.
De facto, o facto de BB e FF serem sócios da sociedade “EMP07..., Lda.” deriva objetivamente do teor da certidão Permanente de fls. 119 ss.
Para além disso, a relação de grande proximidade entre EE e FF, bem como o teor das conversas tidas entre estes, resultam inteiramente documentadas pelos Autos de interceções telefónicas, constantes de fls. 247, 284, 323, 346 dos autos.
Com efeito, destas decorre com clareza a familiaridade com que estes dois se tratam, como é visível dos temas que abordam nos seus contactos telefónicos, por se tratarem de temas da vida pessoal e familiar (embora sem relevância concreta para estes autos).
A fls. 345, encontra-se documentada uma chamada ocorrida a 09/04/2021 entre FF e EE, na qual aquele o convida para ir à sua discoteca celebrar o seu aniversário (constatando-se que de facto o aniversário de FF é a 09 de Abril).
Por outro lado, resulta ainda do Auto de transcrição de comunicações, de fls. 689-698 dos autos, que transcreve uma chamada de EE para o Tribunal de ..., onde este pede informações acerca de um processo em que FF será testemunha, que o referido EE auxilia FF em assuntos relacionados com a justiça.
Acresce ainda que a referida relação foi igualmente confirmada pelo depoimento da testemunha VV, inspetora da Polícia Judiciária que conduziu a investigação, como se analisará em mais detalhe abaixo.
Assim, para concluir esta parte, dir-se-á que, tendo em conta que o Tribunal ficou convicto de que as testemunhas EE e FF prestaram um depoimento vago, parcial e pautado pelos “esquecimentos” mencionados, os mesmos não tiveram valor probatório relevante na matéria dada como assente supra.
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Quanto ao arguido AA, cumpre também analisar as declarações por este prestadas em sede de interrogatório, posto que o mesmo, como se referiu, não prestou declarações em julgamento.
Ora, este afirmou, a 02/11/2022, o seguinte, que pela sua relevância se transcreve parcialmente: “Quanto aos factos ora imputados, deseja declarar que foi vítima de burla cometida pelos intervenientes supra identificados. Esclarece que no mês de Fevereiro de 2020, em data que não sabe precisar, num dia em que estava em casa a “desabafar” com o BB sobre a sua situação, e sobre o Procurador do Processo, o BB disse-lhe que pela descrição física que estava a fazer do Procurador, este seria amigo do seu sócio, o CC. Disse-lhe que se quisesse podia abordar o sócio para este falar com o Procurador, no sentido de averiguar se era possível pagar um género de “fiança” para que o declarante pudesse aguardar o julgamento em liberdade. Passados uns dias, o BB disse-lhe que tinha falado com o FF e que este, por sua vez, tinha conversado com o Procurador, que referiu que “era fácil resolver a situação e que tinha de pagar 50 mil euros”. O declarante inicialmente disse ao BB e mais tarde ao CC que queria conversar com o seu advogado, mas este último disse que não podia ser “que isto tinha de ser directamente tratado com o Procurador”. Antes do declarante tomar a sua decisão, o BB levou o CC a sua casa, tendo-os apresentado. Este garantiu-lhe que se entregasse o dinheiro ao alegado Procurador, a situação ficaria resolvida em 15 dias. O CC contou-lhe que era amigo deste Procurador e que este já o tinha conseguido tirar do Estabelecimento Prisional da PJ do ... e que o teria ajudado noutros processos crimes. O declarante obteve então a quantia solicitada junto de dois amigos que lhe emprestaram este valor, tendo-a entregue em “duas tranches” com um intervalo de cerca de 4 dias, ao BB, que por sua vez tinha o compromisso de a entregar ao CC. Diz que na altura pediu ao BB para acompanhar o CC quando este fosse entregar o dinheiro ao Procurador, tendo mais tarde percebido que este não o tinha feito. Entregou o dinheiro ao BB, uma das vezes numa caixa de cartão e na outra embrulhou-o em papel de alumínio, segundo recorda. Contou este dinheiro na presença do BB. Diz que a maioria das notas eram de 50, 100 e 200 euros, não se recordando se existiam notas de 500 euros. Diz que entretanto “o tempo ia passando”, e a sua situação mantinha-se igual, pelo que ia pressionando o BB para perceber o que se passava. Nessa sequência, o BB levou o CC a sua casa e este leu-lhe uma carta escrita pelo “Procurador”, onde este falava do processo e explicava os motivos porque estava atrasado. Nesta carta, era perceptível que o alegado Procurador “estava a par do processo, sabia pormenores de audiências, de coisas que a Juíza tinha dito...”. (…) Refere que no mês de Junho, o BB disse-lhe que o CC lhe tinha transmitido que lhe iam retirar a pulseira electrónica no dia 15 ou 16 deste mês, o que não veio a acontecer. Refere que nesta altura as suspeitas que já tinha de que estava a ser vitima de um esquema confirmaram-se, e percebeu que a sua medida de coacção não ia ser alterada. A partir de então começou a exigir ao BB para este pedir que os indivíduos em causa devolvessem o dinheiro que entregou. (…) Ainda antes de decorridos os 15 dias, conseguiu obter €30.000,00 e contactou o BB, que foi a sua casa, sozinho, tendo-lhe entregue essa quantia para que entregasse ao FF e este depois ao Procurador. Poucos dias depois tem memória que o BB e o FF foram a sua casa e que o FF lhe disse que o dinheiro devia ser entregue todo de uma vez senão não podia fazer nada. Alguns dias depois, talvez meia dúzia, consegui obter os restantes €20.000,00 e ligou ao BB que foi a sua casa, tendo-lhe entregue o dinheiro.”(sublinhados nossos).
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Ora, do teor das referidas declarações decorre, desde logo, que o arguido AA confirmou integralmente ter entregue a quantia em causa ao arguido BB, para que este a fizesse chegar ao suposto Procurador.
Depois, nesta parte há que conjugar as referidas declarações com o teor das impressões de mensagens, de fls. 33-85.
Ora, nas referidas mensagens é possível verificar que o arguido AA troca mensagens com BB, já após a entrega da referida quantia, nas quais aquele lhe pede por diversas vezes para lhe entregar dinheiro, por considerar que ficou lesado por ter pago a referida quantia e ainda assim ter continuado com a pulseira eletrónica.
Repare-se, a título de exemplo, nas mensagens de fls. 35, em que o arguido AA diz ao arguido DD: “Vai correr mal acredita… Não admito esta merda… Vais ser testemunha vai entrar tudo ao barulho”. Já o arguido DD responde que: “Tens toda razão deixa ver… AA sou mais teu amigo que dele…”.
Vejam-se ainda as mensagens constantes de fls. 51, em que o arguido DD diz ao arguido AA que já foi a casa de EE: “Fui só tava filha toquei campainha perguntei pelo pai ela disse estava em cabeceiras e eu ficava lá mas que hoje já tava não disse meu nome mas final almoço passo aí”.
Depois, diz o arguido AA (cfr. fls. 55): “Amanhã vai ligar ao FF, já conhecia bem o EE que se faz passar por procurador.”
Veja-se ainda, a fls. 69, o arguido AA: “Preciso de dinheiro… Vê o que consegues arranjar.” E novamente a fls. 78: “Bom dia! Vê se tens algum dinheiro, estou a precisar… Aranha uma solução preciso de dinheiro urgentemente.” (e novamente a fls. 79, 80, 82, 85).
Finalmente, a fls. 84 o arguido DD diz ao arguido AA que já apresentou denúncia.
Com efeito, do teor das referidas mensagens decorre que o arguido AA insiste junto do arguido BB, a quem entregou o dinheiro, para que este “resolva a situação”, já que entregou o “pagamento” pedido mas a sua medida de coação não foi alterada.
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Ora, analisadas e conjugadas as declarações de ambos os arguidos, BB e AA, constata-se também que as mesmas se revelam coerentes entre si, mostrando-se coincidentes na parte fulcral da matéria assente, a saber: quando ambos referem que o arguido AA pretendeu entregar a EE, por intermédio de FF, por crer que aquele seria Magistrado do Ministério Público, a quantia de € 50.000, a fim de que a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, a que estava sujeito na altura, fosse alterada. Em todo o processo, o arguido AA foi auxiliado pelo arguido BB, nos termos já delineados supra.
Ademais, foi ainda valorado positivamente o depoimento de VV, Inspetora da Polícia Judiciária que conduziu a investigação.
Assim, a referida testemunha explicou como aquela teve início a partir de uma denúncia do arguido BB, na qual recolheram as mensagens do telemóvel deste.
Posteriormente, fizeram uma vigilância num evento na danceteria, a fim de atestar a relação entre as testemunhas FF e EE.
Esta participou ainda nas buscas realizadas em casa de EE e no Tribunal da Póvoa de Lanhoso. Explicou que EE não ficou surpreendido com o conteúdo do que iam “à procura”, mas tão só com a diligência em si.
A testemunha confirmou ainda como a fotografia de fls. 463 se destinava a mostrar que era o mesmo local onde fora tirada a fotografia de fls. 154, enviada por FF para o arguido BB.
Explicou ainda que, nas buscas realizadas em casa de FF, tiveram dificuldade em aceder à mesma, já que este não abria a porta.
Assim, porque já tinham conhecimento da relação próxima deste com EE, pediram a este último para falar com o FF, já que este o respeitava muito. Assim, tendo em conta o ascendente que já haviam percebido (em razão das escutas telefónicas anteriores) que EE tinha sobre ele, recorreram à sua intervenção.
Sendo que de facto, após insistência de EE, FF acabou por permitir-lhes a entrada na sua residência. Assim confirmando o teor do auto de diligência de fls. 463 e 468-470.
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Nestes termos, conjugadas as declarações dos arguidos BB e AA, e cotejadas as mesmas com os demais elementos probatórios referidos, o Tribunal não teve quaisquer dúvidas em dar os factos supra referidos como assentes.
Com efeito, para além da sua coerência interna e entre os dois arguidos, as versões destes mostraram-se consentâneas e corroboradas pelo teor da demais prova documental constante dos autos.
Assim, e porque se trata de matéria prejudicial para ambos os arguidos e que consequentemente estes não teriam qualquer vantagem em assumir, deu-se inteira credibilidade às suas declarações, tendo merecido relevo probatório positivo.
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Relativamente ao elemento subjetivo, a prova do(s) elemento(s) subjetivo(s) é sempre indireta e deve ser extraída dos demais elementos existentes nos autos e das regras da normalidade e da experiência comum - o que sucedeu no caso em análise -, uma vez que a verificação de estados psíquicos não é passível, por norma, de demonstração direta. Daí que, não existindo confissão do próprio agente, apenas as regras da experiência e da lógica permitem associar determinadas ações a certos estados de espírito.
No entanto, no caso, os arguidos confessaram, ainda que não em sede de julgamento, praticamente a totalidade da matéria assente, pelo que das suas declarações também foi possível retirar a prova quanto ao elemento subjetivo.
Apraz, desde já, assinalar que a materialidade objetiva que se demonstrou não consente outra leitura senão a de que os arguidos, ao procederem, nos termos em que o fizeram, agiram com vontade intencionalmente direcionada, de forma consciente e com pleno domínio de ciência a respeito do desvalor dos seus comportamentos.
No que respeita à voluntariedade dessas condutas e à sua consciência da ilicitude, além do que se infere dos depoimentos das testemunhas acima identificadas, resulta da postura e dos factos dados como assentes que os arguidos têm capacidade de distinguir entre o bem e o mal e de se determinar de acordo com essa avaliação.
A consciência da ilicitude resulta, desde logo, do facto de se tratar de uma conduta axiologicamente relevante, ou seja, qualquer pessoa sabe que não pode pagar a um Magistrado do Ministério Público para obter um determinado resultado do sistema de Justiça que lhe seja mais favorável.
Assim, resultou assente que o arguido AA quis entregar a referida quantia de € 50.000,00 a FF, com a intenção de que este a entregasse a EE, por crer que este seria Magistrado do Ministério Público, a fim de que o mesmo promovesse a alteração da medida de coação de obrigação de permanência na habitação a que estava sujeito à época.
Com efeito, o dito arguido AA atuou convencido que o referido pagamento seria suscetível de fazer com que o suposto “procurador” promovesse a alteração da referida medida de coação, o que não ocorreu dado que EE não era Magistrado do Ministério Público, e como tal nunca poderia proceder a tal promoção por não ter legitimidade para o efeito.
Já o arguido BB atuou auxiliando o arguido AA em todo o processo, tendo este entregue a referida quantia de € 50.000, em duas parcelas, a FF, a fim de que este a entregasse a EE.
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Os factos relativos às condições económico-sociais dos arguidos resultam dos respetivos relatórios sociais constantes dos autos, enquanto os respetivos antecedentes criminais resultam dos CRC’s juntos aos autos.
No que respeita ao arguido BB, foi ainda considerado o depoimento da testemunha WW, que referiu que este é bem considerado e tem de si uma imagem positiva.
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Não se respondeu à restante matéria por ser irrelevante, conclusiva ou respeitar a matéria de direito.
2.4 – Motivação de Direito 2.4.1 – Enquadramento jurídico-penal
DO TIPO LEGAL DE CRIME EM GERAL
Importa, agora, subsumir a conduta dos arguidos na pertinente lei penal, começando por identificar os tipos legais de crime em causa.
Para que um agente possa ser jurídico-penalmente responsabilizado, tem de praticar um facto típico, ilícito e culposo. O facto é típico quando o agente preenche objetiva e subjetivamente com a sua conduta, um tipo legal de crime.
Ou seja, o crime desdobra-se analiticamente nos seguintes elementos, quais sejam: (i) o facto; (ii) a tipicidade; (iii) a ilicitude; (iv) a culpabilidade; e (v) a punibilidade.
Conforme se referiu supra, aos arguidos está agora imputada a prática de:
- Ao arguido AA, em autoria material, um crime de corrupção ativa agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 374.º/1 e 3 e 374.º-A/2 e artigo 110.º/1-b), todos do Código Penal.
- Ao arguido BB, como cúmplice, de um crime de corrupção ativa agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 374.º/1 e 3 e 374.º-A/2 e artigo 110.º/1-b), todos do Código Penal.
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Apreciaremos a responsabilidade criminal dos arguidos, à luz da factualidade dada como provada, tendo por referência o tipo de ilícito que lhes vem imputado, o crime base de corrupção ativa.
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Do crime de corrupção em especial:
Dispõe o artigo 374.º do Código Penal que: 1 - Quem, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, der ou prometer a funcionário, ou a terceiro por indicação ou com conhecimento daquele, vantagem patrimonial ou não patrimonial com o fim indicado no n.º 1 do artigo 373.º, é punido com pena de prisão de um a cinco anos. 2 - Se o fim for o indicado no n.º 2 do artigo 373.º, o agente é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa até 360 dias. 3 - A tentativa é punível.
*
O bem jurídico protegido no crime de corrupção é a legalidade da atuação dos agentes públicos, a quem está interdito mercadejar com o cargo, a autonomia intencional do Estado, sendo que num Estado de Direito o desempenho de funções públicas tem de se pautar por exigências de legalidade, objetividade e independência, que o funcionário infringe ao colocar os poderes funcionais ao serviço dos seus interesses privados quando transacionar com o cargo.
A corrupção contempla as situações em que um funcionário solicita ou aceita uma vantagem patrimonial ou não patrimonial (ou a sua promessa) como contrapartida de um ato ilícito (passado ou futuro) que traduz o exercício efetivo do cargo ou função em que se encontra investido. Os aludidos normativos preveem e punem a corrupção passiva e ativa, expressões que designam a atividade do funcionário corrupto e do agente corruptor.
Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Penal, 3.ª ed., 2015, p. 1190), “O bem jurídico protegido pela incriminação é a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário.
O crime de corrupção ativa apresenta duas modalidades: a dádiva ou a promessa de uma vantagem. A primeira modalidade de cometimento do crime (a dádiva de uma vantagem) é um crime de dano (quanto ao bem jurídico) e de resultado (quanto ao objeto da ação). A segunda modalidade de cometimento do crime (A promessa de vantagem) é um crime de perigo abstrato e de mera atividade.”
*
Nos termos do artigo 374.º-A/2 do Código Penal: “Se a vantagem referida nos artigos 372.º a 374.º for de valor consideravelmente elevado, o agente é punido com a pena aplicável ao crime respectivo agravada em um terço nos seus limites mínimo e máximo.”
Sendo que, nos termos do artigo 202.º, al. b), “Valor consideravelmente elevado: aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto;”.
*
Nos termos do artigo 23.º, n.º 2 do Código Penal, a tentativa é punível com a pena aplicável ao crime consumado, especialmente atenuada.
*
Nos termos do artigo 27.º do Código Penal: 1 - É punível como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso. 2 - É aplicável ao cúmplice a pena fixada para o autor, especialmente atenuada. *
Como diz Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed., p. 839, no que diz respeito à cumplicidade na tentativa. Ela não suscita, todavia, nenhuma dificuldade particular. Se no caso existiu cumplicidade, mas o facto do autor se fica pelo estádio da tentativa punível, e constituindo esta já em si um ilícito típico, a participação nele, segundo o princípio da acessoriedade limitada, é também punível, (…) a pena do cúmplice merecerá dupla atenuação especial, em função da cumplicidade (artigo 27.º/2) e da tentativa (artigo 23.º/2).
Nos termos do artigo 73.º do Código Penal: 1 - Sempre que houver lugar à atenuação especial da pena, observa-se o seguinte relativamente aos limites da pena aplicável: a) O limite máximo da pena de prisão é reduzido de um terço; b) O limite mínimo da pena de prisão é reduzido a um quinto se for igual ou superior a 3 anos e ao mínimo legal se for inferior; (…)
*
A este propósito, cumpre ainda salientar, pela sua clareza e relevância para o caso que nos ocupa, o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (Proc. n.º 102/16.1TRPRT.P1, in dgsi.pt), de 14-04-2021:
“13. O fenómeno da corrupção mostra-se facilmente apreensível para a generalidade das pessoas: na sua forma mais simples, ocorre naquelas situações em que, por força de um suborno recebido, o funcionário não cumpre os deveres inerentes ao exercício das funções públicas de que está investido. É vista, portanto, como um comportamento desvalioso através do qual um funcionário público ou titular de um cargo político ou alto quadro público atua de modo diverso aos padrões normativos do sistema jurídico tendo em vista o favorecimento de interesses particulares, mediante a obtenção de uma vantagem e aqui falamos na atividade do funcionário corrompido e em corrupção passiva; mas também pode ser vista como uma conduta que consiste em alguém seduzir um funcionário público para obter um benefício que, de outra maneira, não conseguiria, assim se caraterizando a atividade do agente corruptor e a corrupção ativa.
Com esta nota, torna-se claro que o combate (também pela via penal) à corrupção encontra a sua pedra de toque na defesa do “interesse geral” ou “público” de que só funcionários públicos (ou equiparados) a cumprir os deveres inerentes ao exercício das suas funções pautados por critérios de legalidade, imparcialidade e objetividade constitui garantia segura da tutela de direitos individuais, mas também a efetiva defesa de interesses coletivos indispensáveis à realização da pessoa enquanto “ser social”. Aliás, este quadro assume cada vez mais relevo no contexto de escassez (da ideia de que os recursos não chegam para satisfazer todas as necessidades) que também marcam as sociedades ou países desenvolvidos, principalmente quando se associa a corrupção à apropriação ilegítima de bens ou recursos públicos.
Assim, há muito que se abandonaram teses que olhavam a corrupção não só com complacência - uma espécie de “mal necessário” - mas até como algo de positivo para a economia, quer de países em vias de desenvolvimento, quer de países desenvolvidos, servindo de “lubrificante” das relações entre o setor privado e os poderes públicos ou como tais encarados. Bem pelo contrário, num tempo - como é o nosso - onde a falta de recursos para a satisfação das necessidades surge como pano de fundo da discussão, construção e reconstrução do Estado e dos direitos das pessoas, deixou de se olhar para ele apenas como um ente ao serviço de todos, mas como uma realidade de que todos fazemos parte (o “Estado somos nós!”), impondo-se-lhe e aos seus agentes uma atuação de acordo com os princípios da boa administração, isto é, de modo imparcial, igual e justo.
A corrupção apresenta-se como um fenómeno transnacional, transversal, complexo e pluridimensional: não conhece fronteiras (o que é facilitado pelos fenómenos de globalização), corrói os pilares do Estado de Direito (nomeada e especialmente, quando associada à corrupção dos representantes escolhidos pela via democrática, fragilizando a própria Democracia), prejudica o crescimento económico e o desenvolvimento sustentável, distorce a livre e sã concorrência, para além de, frequentemente, andar de mãos dadas com outras manifestações criminais as mais das vezes altamente organizada.
Neste quadro, choca a consciência coletiva que, numa democracia, os agentes do Estado sejam “oleados” para atuar de modo a defender particulares interesses espúrios e ocultos em detrimento do interesse geral, constitucional e legalmente definido.
Acrescente-se, aliás, que a preocupação com a necessidade de os funcionários (e equiparados) exercerem as suas funções num quadro de respeito pela legalidade, pautando a sua atuação por critérios de estrita objetividade, imparcialidade e independência em relação a interesses particulares, conduziu o legislador (desde 2001) a incriminar o “mero” recebimento indevido de vantagens — cf. o artigo 372.º, norma que pune a “corrupção sem prova do ato” (exatamente assim, Cláudia Cruz Santos, Os crimes de corrupção – notas críticas a partir de um regime jurídico-penal sempre em expansão, in Julgar, n.º 28, janeiro- abril 2016, pág. 91) contrário ao exercício das funções — assim procurando combater, por esta via, a criação de um “ambiente” mais favorável ou propício a que os deveres de estrito cumprimento do interesse público sejam colocados em causa: não há, aqui, uma contrapartida imediata, mas as “ofertas”, as “atenções”, as “gentilezas” (que, note-se, vão para além das “condutas socialmente adequadas e conformes os usos e costumes — cf. o n.º 3 do artigo 372.º) geram, de imediato, a expetativa de, no futuro, uma “prestação de serviço” que pode (e frequentemente é) contrário ao exercício das funções públicas de que o funcionário está investido. (…)
17. Na corrupção ativa, estamos perante um crime de dano quando o corruptor “dá” o suborno e perante um crime de perigo quando “promete” o suborno (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário cit., pág. 887): no primeiro caso, se o suborno é dado, isso é sinal de que foi aceite pelo funcionário e, por isso, há uma efetiva lesão da autonomia intencional do Estado; no segundo, estando apenas perante uma promessa (e muito embora a consumação do crime pressuponha que esta tenha chegado ao conhecimento do funcionário) e tendo presente o bem jurídico tutelado (a autonomia intencional do Estado), então estamos apenas perante um crime de perigo, uma vez que, sem qualquer manifestação de assentimento ou consentimento por parte do funcionário ao suborno, a autonomia da vontade do Estado não se mostra violada (em sentido diferente, considerando que na corrupção ativa estamos sempre perante um crime de dano, António Almeida Costa, Comentário cit., págs. 681 a 683). Note-se que na corrupção ativa, (seguimos António Almeida Costa, Comentário cit., págs. 681 a 683) o ilícito se esgota num desvalor da ação — o dar ou prometer o suborno ao funcionário — independentemente da reação do funcionário (que pode ser de aceitação ou de repúdio). Aliás, esta nota é particularmente evidente em duas situações:
- quando o corruptor “se limita” a aceitar o repto do funcionário que tomou a iniciativa de lhe pedir um suborno porque nessa situação a ofensa ou lesão do bem jurídico já se consumou (mais precisamente: consumou-se no exato momento em que a solicitação do suborno chegou ao conhecimento do seu destinatário); e
- na situação em que o funcionário, perante a promessa do suborno, o repudia, caso em que, no rigor dos termos, o bem jurídico não chegou a sofrer lesão (muito embora a existência de uma simples promessa seja, na ótica da lei, razão suficiente para considerar que a mesma colocou em perigo a autonomia intencional do Estado).
Fica, assim, dado o mote quanto à questão da consumação do crime de corrupção ativa: esta verifica-se:
- no momento em que o corruptor “dá” (pressuposto desta expressão é que funcionário a aceitou) o suborno ao funcionário e, portanto, o crime consuma com a entrega do suborno (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário cit., pág. 887; M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, Código cit., pág. 1040 vão um pouco mais longe sustentando que, no caso da dádiva fracionada o crime se consuma com a entrega da última parte dela); ou
- o momento em que a sua promessa (de suborno) chega ao conhecimento do funcionário (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário cit., pág. 888) — se, por alguma razão, a promessa foi feita, mas não chegou ao conhecimento do funcionário, importará verificar se os pressupostas da tentativa, expressamente punível nos termos do artigo 374.º, n.º 3 - seja porque aceitou o “repto” que lhe foi lançado pelo funcionário (a “iniciativa do suborno coube a este último), seja porque ele próprio teve a iniciativa de corromper o funcionário com um suborno, sendo, neste último caso, indiferente à consumação do crime de corrupção ativa, a reação do funcionário (podendo esta traduzir-se, de modo irrelevante para a perfeição do ilícito, no repúdio do suborno, na sua aceitação ou na indiferença em relação ao mesmo traduzida no puro silêncio). (…)
Em face destes dados, impõe-se concluir que:
- na promessa de suborno, a consumação do crime de corrupção ativa não depende do efetivo recebimento da vantagem ou do suborno, não sendo sequer necessário que o corruptor tenha a intenção de efetivamente cumprir a promessa e entregar o suborno ou a peita ao funcionário; e
- a consumação do crime, tal como na corrupção passiva, não está dependente da prática, pelo funcionário, de qualquer ato ou omissão contrária aos seus deveres funcionais, sendo irrelevante até, para este efeito, que nunca sequer tenha tido a intenção de o praticar ou omitir;
- a corrupção ativa não é um crime de comparticipação necessária, tal como vimos que não era a corrupção passiva; e
- a corrupção ativa, tal como a passiva, é um crime de execução instantânea. (…)
A referência à função jurisdicional deixa então claro que aqueles que participam na Administração da Justiça (também esta uma forma de Administração — cf. artigo 202.º e seguintes da Constituição da República Portuguesa) devem ser considerados, para efeitos da lei penal, funcionários: o juiz, o magistrado do Ministério Público e o próprio oficial de justiça ou funcionário judicial. Aliás, mais importante que a designação ou o vínculo concreto (provisório, temporário ou definitivo, com remuneração ou a título gratuito) é que ocorra o desempenho ou a participação na atividade jurisdicional. Deste modo, integra-se na categoria de funcionário para estes efeitos não apenas as pessoas que estão ligadas por um vínculo funcional profissional ao exercício da função jurisdicional - tais como juízes, magistrados do Ministério Público ou funcionários judiciais - mas também aqueles que, ocasionalmente, são chamados a desempenhar funções no âmbito da Administração da Justiça, tais como os Juízes Sociais (Decreto-Lei n.º 156/78, de 30 de junho) ou os substitutos dos procuradores adjuntos (artigo 65.º, n.ºs 3 a 5 do Estatuto do Ministério Público).” (sublinhados nossos).
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Feitas as considerações teóricas relevantes para o caso que nos ocupa, vejamos o que sucede, em concreto, nestes autos.
Ora, percorrida a matéria assente, verificamos que, na sequência da intervenção do arguido BB, o arguido AA entregou a FF (para que este a entregasse a EE) a acordada quantia de € 50.000,00, com vista a conseguir que fosse promovida pelo Ministério Público, no processo em que era arguido, a alteração da medida de coação de obrigação de permanência na habitação a que se encontrava sujeito à época.
De facto, conforme já supra se referiu, a consumação do crime de corrupção ativa não está dependente da prática, pelo funcionário, de qualquer ato ou omissão contrária aos seus deveres funcionais, sendo irrelevante até, para este efeito, que aquele nunca sequer tenha tido a intenção de o praticar ou omitir.
Destarte, mostram-se preenchidos os elementos objetivos do tipo de ilícito em apreciação.
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De harmonia com o disposto no artigo 22.º, n.º 2, do Código Penal «são os atos de execução (a) os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; (b) os que forem idóneos a produzirem o resultado típico; (c) os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam atos das espécies indicados nas alíneas anteriores».
É frequente dizer-se que a tentativa constitui um crime imperfeito, o que é verdade quando se reporta a tentativa ao crime que o agente decidiu cometer e que fica incompleto. Nessa medida, a tentativa é um crime incompleto, um minus relativamente ao crime consumado, mas, do ponto de vista estrutural, a tentativa é um crime perfeito porque apresenta todos os elementos da estrutura essencial do crime em geral.
No caso vertente, é inegável que os atos em causa praticados pelos arguidos DD e AA constituem – em relação ao crime de corrupção – uma tentativa: os arguidos praticaram atos de execução do crime que decidiram cometer, a que acresce que os meios por utilizados, nas exatas circunstâncias em que atuaram eram - na perspetiva dos agentes - adequados a alcançar a alteração da referida medida de coação.
Na realidade, em execução de um plano previamente gizado, o arguido AA pretendeu, com o auxílio do arguido BB, entregar a referida quantia de € 50.000,00 a FF, com a intenção de que este a entregasse a EE e a fim de que este promovesse a alteração medida de coacção de obrigação de permanência na habitação a que AA estava sujeito.
Não restam, portanto, dúvidas de que foram praticados verdadeiros atos de execução do crime de corrupção.
Contudo, a pretendida alteração da medida de coação nunca poderia vir a concretizar-se de facto, posto que EE não era Magistrado do Ministério Público, mas sim oficial de justiça, facto que os arguidos AA e BB desconheciam e, como tal, não tinha competências legais para tomar posição sobre a referida medida de coação a que o primeiro estava sujeito.
Por outro lado, não restam também dúvidas de que quer a categoria de oficial de justiça quer o cargo de Magistrado do Ministério Público se integram na categoria de funcionário, pelo que igualmente nesta parte se mostra preenchido o conceito de “funcionário” previsto no artigo 374.º, n.º 1 (e 386.º) do Código Penal.
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Ademais, verificam-se ainda as circunstâncias modificativas agravantes previstas no artigo 374.º-A, n.º 2 do CP, já que no caso, tendo em conta que o montante pago pelo arguido AA foi de € 50.000, esta quantia preenche o conceito de vantagem (referida nos artigos 372.º a 374.º) de valor consideravelmente elevado, posto que o mesmo é superior a € 20.400.
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Ao nível subjetivo, perante o acervo fáctico apurado, resulta à evidência que se encontram preenchidos os elementos subjetivos do tipo legal em apreço, pois que os arguidos atuaram de modo livre, voluntário e consciente, com o propósito, que apenas não concretizaram por razões alheias à sua vontade, de que um (suposto) Procurador do Ministério Público promovesse a alteração da medida de coação – elemento volitivo -, bem sabendo que inexistiam motivos que validamente justificassem tal alteração e que tal consubstanciava um ato contrário às funções daquele, sendo conhecedores da censurabilidade penal inerente à sua conduta – elemento intelectual [factos provados n.ºs 36 a 47].
Sabiam, pois, os arguidos DD e AA que tal conduta não lhes era permitida, mas ainda assim, quiseram livremente agir do modo descrito, atuando com dolo direto, porquanto dispõe o artigo 14. °, n.°1 do Cód. Penal que «Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, atuar com intenção de o realizar».
Assim, e não se colocando questões pertinentes quanto à imputabilidade, inexistindo factos que justifiquem trazer à colação o disposto nos artigos 19.º e 20.º do Código Penal, detemo-nos por aqui, afirmando a sua verificação.
Pelo que, antes de nos determos quanto à questão da atuação do arguido BB na qualidade de cúmplice, cumpre desde já concluir que a atuação do arguido AA preenche a prática de um crime de corrupção ativa agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 374.º/1 e 3 e 374.º-A/2 e artigo 110.º/1-b), todos do Código Penal.
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Da co-autoria vs. cumplicidade:
Relativamente à atuação do arguido BB, que lhe é imputada como cúmplice, cumpre analisar esta forma de atuação.
Determina o art.º 26.º do C. Penal, que “é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.
Ora, como resulta do teor do citado normativo, podem os factos qualificados na lei penal como crime ser cometidos por vários agentes em coautoria, a qual pode, nomeadamente, consistir na participação direta na execução do facto juntamente com outro ou com outros.
Na coautoria cada comparticipante quer o resultado como próprio com base numa decisão conjunta e com forças conjugadas, bastando, para tal, um acordo tácito assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas aquelas à luz das regras de experiência comum.
Assim, coautoria corresponde a “um exercício conjunto no domínio do facto, uma contribuição objetiva para a realização, que tem que ver com a causalidade, embora possa não fazer parte da execução” (cfr. Leal-Henriques - Simas Santos, Código Penal anotado, 1.º vol. pág. 258).
Todos os participantes detêm conjuntamente o domínio do facto, sendo o essencial que exista um “domínio funcional do facto”, o qual ocorre “quando o contributo do agente – segundo o plano de conjunto – põe, no estádio da execução, um pressuposto indispensável à realização do evento intentado, quando, assim, todo o empreendimento ou resulta ou falha” (Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal, sumários e notas das Lições ao 1.º ano do Curso Complementar de Ciências Jurídicas da Faculdade de Direito de Coimbra de 1975-1976, pág. 59).
Contudo, não é imprescindível que o coautor realize todos os elementos do tipo, pois basta que a sua participação seja decisiva para a produção do facto na sua totalidade, encaixando-se a sua parcela de atividade na dos restantes coautores, de modo a, em conformidade com o combinado entre eles, chegar à realização do facto típico ilícito.
Nesse caso ambos os agentes são punidos como responsáveis pela totalidade da conduta, não obstante cada um deles poder praticar apenas uma parte dos factos.
A outra forma de comparticipação – a cumplicidade –, definida no art. 27.º do CP («é punível como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso»), pressupõe um apoio doloso a outra pessoa no facto antijurídico doloso cometido por esta, não havendo na cumplicidade domínio material do facto, pois o cúmplice limita-se a favorecer a prática do facto.
A cumplicidade diferencia-se da co-autoria pela ausência do domínio do facto; o cúmplice limita-se a facilitar o facto principal, através de auxílio físico (material) ou psíquico (moral), situando-se esta prestação de auxílio em toda a contribuição que tenha possibilitado ou facilitado o facto principal ou fortalecido a lesão do bem jurídico cometida pelo autor.
A este propósito, cumpre salientar o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora (Proc. n.º 160/17.1GBLGS.E1, in dgsi.pt), de 24-09-2019:
“i) para que ocorra comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria exige-se a existência de decisão e de execução conjunta. O acordo pode ser tácito, bastando-se com a consciência/vontade de colaboração dos vários agentes na realização de determinado crime.
II) na co-autoria cada um dos comparticipantes quer causar o resultado como próprio, mas com base numa decisão conjunta e com forças conjugadas.
iii) no que respeita à execução, não é indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os actos ou tarefas tendentes a atingir o resultado final, o que importa é que atuação da cada um, embora parcial, se integre no todo e conduza à produção do objetivo em vista.
iv) A cumplicidade diferencia-se da co-autoria pela ausência do domínio do facto, ou melhor, enquanto que o co-autor domina o facto através de uma divisão de tarefas com outros agentes, desde que, durante a execução, possua uma função relevante para a realização típica, o cúmplice limita-se a facilitar o facto principal, através do auxílio físico (material) ou psíquico (moral), situando-se esta prestação de auxilio em toda a contribuição que tenha possibilitado o facto principal ou fortalecido a lesão do bem jurídico cometida pelo autor.
v) a cumplicidade traduz-se num mero auxílio, não sendo determinante da vontade dos autores nem participa na execução do crime, mas é sempre auxílio à prática do crime e nessa medida contribui para a prática do crime, é uma concausa da prática do crime.
vi) enquanto o co-autor tem um papel de primeiro plano, dominando a ação, já que esta é concebida e executada com o seu acordo, inicial, subsequente, expresso ou tácito, o cúmplice é um interveniente secundário ou acidental, somente favorece ou presta auxílio à execução, ficando de fora do acto típico. Só quando ultrapassa o mero auxílio, e assim pratica uma parte necessária da execução do plano criminoso, ele se torna co-autor do facto.” (sublinhados nossos).
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Analisemos, agora, o caso concreto.
No caso dos autos, conforme resultou assente, constata-se que de facto o arguido BB prestou auxílio material à prática do facto doloso por parte do arguido AA.
Com efeito, percorrida a matéria assente, constata-se que foi o arguido BB quem se ofereceu junto do arguido AA para pedir a FF, seu sócio na altura, que falasse com o suposto procurador a fim de saber se seria possível a alteração da medida de coação a que o arguido AA estava sujeito.
Ademais, foi o arguido BB que levou FF a casa do arguido AA, onde FF lhe disse que perante o pagamento de € 50.000 seria possível alterar a medida de coação.
Foi também o arguido BB quem recolheu, por duas vezes, as quantias pagas pelo arguido AA, em casa deste, e as entregou a FF, a fim de que este as entregasse ao “procurador”.
Ora, daqui decorre que a participação do arguido BB nos factos em causa nestes autos permitiu e favoreceu a prática do facto pelo arguido AA, já que este atuou, no fundo, como mediador do arguido AA na prática do facto ilícito.
Não obstante, a sua participação também não foi de tal modo decisiva e indispensável para a produção do facto na sua totalidade, posto que não pode também dizer-se que, sem a sua intervenção, o arguido AA não teria logrado entregar a referida quantia a fim de que fosse promovida a alteração da medida de coação.
Assim, afigura-se-nos correta a imputação da atuação ao arguido BB na qualidade de cúmplice, conforme decorre da acusação e da pronúncia.
Pelo que se conclui pelo preenchimento, por parte do arguido BB, e na qualidade de cúmplice, de um crime de corrupção ativa agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 374.º/1 e 3 e 374.º-A/2 e artigo 110.º/1-b), todos do Código Penal.
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Por fim, a conduta dos arguidos é também ilícita porque contrária à ordem jurídica, e culposa pois, nas concretas circunstâncias em que estavam inseridos, era-lhes exigível a adoção de outra conduta possível e não lesiva dos bens jurídicos tutelados por este tipo de crime, merecendo, nessa medida, a emissão de um juízo de censura penal.
Conclui-se, assim, que a assinalada conduta dos arguidos preenche os elementos objetivos e subjetivos do crime de corrupção que lhes era imputado na acusação e na pronúncia, não se averiguando, in casu, quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, pelo que a sua atuação merece a emissão de um juízo de censura penal.
O tipo de dolo que os arguidos preencheram com as suas condutas corresponde ao dolo direto – [cf. art. 14.º, n.º1 do Código Penal: «Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, atuar com a intenção de o realizar»]. Corresponde, grosso modo, à intenção criminosa e nele o agente prevê e tem como fim a realização do facto criminoso.
Os arguidos sabiam que tal conduta não lhes era permitida e, mesmo assim, quiseram livremente agir do modo descrito.
Por fim, conclui-se igualmente que não existem, in casu, quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, pelo que a atuação dos arguidos merece a emissão de um juízo de censura penal.
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2.4.2 – Das consequências jurídicas do crime
Feito o enquadramento jurídico-penal da matéria de facto dada como provada, importa, agora, determinar qual a natureza e a medida da pena a aplicar aos arguidos.
Na determinação da pena aplicável, deve o juiz socorrer-se dos critérios que o legislador penal consagrou nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, todos do Cód. Penal.
A operação a efetuar consiste na construção de uma moldura legal de prevenção geral, entendida na sua modalidade positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária enquanto forma de proceder à estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma violada, que nos dá o limite mínimo da pena a aplicar.
A culpa, por sua vez, irá dar-nos o limite máximo inultrapassável das exigências da prevenção – diretamente relacionado com a preservação da dignidade da pessoa humana.
Em caso algum a pena poderá ultrapassar a medida da culpa.
DA INDICAÇÃO DA MEDIDA ABSTRATA DA PENA
Ora, em termos abstratos, o crime de corrupção ativa agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 374.º/1 e 3 e 374.º-A/2 e artigo 110.º/1-b), todos do Código Penal, é punido com pena de prisão de 1 mês a 4 anos, 5 meses e 9 dias. Na qualidade de cúmplice, ao mesmo crime é aplicável a pena de 1 mês a 2 anos, 11 meses e 16 dias.
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2.4.2.1 – Escolha da medida da pena
No que toca à escolha da pena, sempre que o crime seja punível em alternativa com pena privativa da liberdade e pena não privativa da liberdade, a lei penal dá preferência à aplicação de penas não privativas da liberdade sempre que as mesmas realizem de forma adequada e suficiente as necessidades da punição, ou seja, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, [artigos 70.º e 40.º, n.º1, ambos do Cód. Penal].
No caso concreto, relativamente ao crime de corrupção em causa nestes autos nada há a escolher, já que a lei apenas prevê a punição do mesmo através de pena de prisão.
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DA DETERMINAÇÃO DA MEDIDA CONCRETA DA PENA
Nesta sede, rege o disposto no art. 71.º do Cód. Penal, que:
«A determinação da medida da pena dentro dos limites definidos na lei, far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes».
Face ao art. 40.º do Cód. Penal, que veio tomar posição expressa quanto à questão dos fins das penas, afigura-se-nos inquestionável que é o modelo da «moldura da prevenção» proposto por Jorge de FIGUEIREDO DIAS [in op. cit., pp. 227 a 231] aquele que melhor se adequa ao espírito desta norma, quanto mais não seja por «nela ter sido consagrado o seu pensamento» - [cf. JOSÉ GONÇALVES DA COSTA, in RPCC, Ano III, 1993, p. 327].
Segundo aquele modelo, primordialmente, a medida da pena há-de ser dada por considerações de prevenção geral positiva, isto é, prevenção enquanto necessidade de proteção dos bens jurídicos que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida, que fornece uma «moldura de prevenção», que fornece um quantum de pena que varia entre um ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e onde, portanto, a medida da pena pode ainda situar-se até atingir o limiar mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.
Através do requisito da culpa, dá-se tradução à exigência de que aquela constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas [limite máximo – ligado ao mandamento incondicional de respeito pela dignidade da pessoa do agente].
Por último, dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva – entre o ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável – podem e devem atuar do ponto de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve, em toda a sua extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade [para uma análise mais desenvolvida, vd. FIGUEIREDO DIAS, op. cit., pp. 227 e ss. e, quanto ao juízo de culpa, ANABELA RODRIGUES, in A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, pp. 478 e ss.].
Tendo presente o modelo adotado, importa infra eleger, no caso concreto, os critérios de aquisição e de valoração dos fatores da medida da pena, mormente os referidos nas diversas alíneas do n.º2 do art. 71.º do Cód. Penal.
Em suma: no que respeita à medida concreta da pena, a mesma terá como limite máximo a culpa do agente revelada nos factos por si praticados [cf. art. 40.º, n.º2, do Cód. Penal], e terá de se mostrar adequada a assegurar as exigências de prevenção geral ― que são consideráveis tendo em conta as mais elementares regras de convivência social que afastam este tipo de comportamento, potencialmente geradores de consequências gravíssimas, razão pela qual se impõe a afirmação, de modo urgente e indubitável, da efetividade e da validade das normas que punem tais condutas, através da condenação de quem incorra nas mesmas ―, e especial, nos termos do disposto nos artigos 40.º, n.º1, e 71.º, n.º1, ambos do Cód. Penal.
Sendo certo que na determinação da medida da pena ter-se-ão em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente, as enumeradas no art. 71.º, n.º 2 do Cód. Penal.
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Neste caso, impõe-se começar por destacar as elevadíssimas necessidades de prevenção geral positiva e negativa aplicáveis no caso.
Com efeito, choca toda a comunidade - e àqueles que trabalham na área da Justiça em particular - um comportamento como aquele que está em causa nos presentes autos - em que alguém considera que, através de um pagamento de € 50.000, um Procurador do Ministério Público - que estudou durante longos anos para chegar a tais funções, certamente com prejuízo da sua vida pessoal - iria promover uma alteração de uma medida de coação num determinado processo apenas porque tal quantia lhe foi paga, e não por considerar que, perante os elementos existentes no processo, a lei assim o impunha.
De facto, não só o comportamento praticado pelos arguidos é de extrema gravidade como é mais grave ainda alguém inserido na nossa sociedade considerar que a posição de um Procurador do Ministério Público seria permeável à aceitação de um pagamento para praticar algo contrário às suas funções.
Finalmente, por se tratar de um crime de corrupção na área da Justiça, em que os seus elementos se devem pautar no seu comportamento por uma ética e lisura irrepreensíveis, importa dar à comunidade um forte sinal de que este tipo de comportamentos não é de todo admissível.
Pelo que, desde logo, as exigências de prevenção geral exigem e implicam a aplicação de uma pena severa aos arguidos, situada acima do limiar médio da moldura legalmente aplicável e supra definida.
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Para além disso, há ainda que ponderar os seguintes factos:
1) Quanto ao arguido AA:
Contra o arguido depõem:
- a intensidade do dolo do arguido: que reveste a forma de dolo direto, de acordo com o art. 14.º, n.º 1 do Cód. Penal, constituindo o grau máximo de censura da conduta por si adotada.
- Os motivos que estiveram na determinação do crime praticado pelo arguido estão na convicção deste de que um pagamento de € 50.000 seria um método válido para alterar a medida de coação de obrigação de permanência na habitação a que estava sujeito.
- O valor em causa, € 50.000, excede em mais do dobro o limiar para que a vantagem seja considerada como revestindo valor consideravelmente elevado, exigindo por isso elevadas necessidades de prevenção geral e especial.
- Os sentimentos manifestados pelo arguido no cometimento do crime – comportamento corruptivo, de pagamento de um suborno, e socialmente desajustado.
- As exigências de prevenção geral são muito elevadas, conforme já referido, importando dar um forte sinal de que esta conduta não é admissível.
- As necessidades de prevenção especial são relevantes, posto que o arguido regista:
- um antecedente criminal pelos crimes de burla qualificada, falsificação de documento e recetação, por sentença transitada em julgado a 15/12/2014, no qual foi condenado na pena de 4 anos de prisão, suspensa por igual período.
- À data dos factos, o arguido encontrava-se sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação fiscalizada com vigilância eletrónica, desde 14/07/2018, situação em que permaneceu até 6/12/2021, à ordem do processo n.º 85/15.5GBBRG, onde foi acusado de 1 crime de associação criminosa, 5 crimes de furto qualificado, 2 crimes de detenção de arma proibida, 3 crimes de falsificação de documento e 1 crime de recetação. O arguido foi condenado no âmbito do referido processo, em 1ª instância, por decisão de 18/12/2020, na pena de prisão de seis anos e dez meses, ainda não transitada em julgado. Não obstante, ressalva-se que não se trata de um antecedente criminal.
- O arguido em momento algum demonstrou ter interiorizado o intenso desvalor da sua conduta.
*
A favor do arguido depõem:
- O arguido tem uma filha com 13 anos de idade, com a qual mantem uma relação próxima.
- A nível profissional apresenta um percurso regular e consistente desde a adolescência, pautado por experiências laborais de longa duração, tendo desenvolvido diferentes atividades, nomeadamente na área da carpintaria, restauração (café) e no ramo da comercialização e reparação automóvel, por conta própria e posteriormente, durante cerca de dois anos, desenvolveu atividade no mesmo ramo, de forma informal.
- Desde novembro de 2023 o arguido é gerente da sociedade “EMP05... – Unipessoal Lda”, e dedica-se ao comércio e reparação automóvel.
*
Sopesados estes elementos, considera-se justa, adequada e proporcional a aplicação ao arguido AA da pena de 3 (três) anos de prisão.
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2) Quanto ao arguido BB: Contra o arguido depõem:
- A intensidade do dolo do arguido: que reveste a forma de dolo direto, de acordo com o art. 14.º, n.º1 do Cód. Penal, constituindo o grau máximo de censura da conduta por si adotada.
- Os motivos que estiveram na determinação do crime praticado pelo arguido estão na convicção deste de que um pagamento de € 50.000 seria um método válido para alterar a medida de coação de obrigação de permanência na habitação a que estava sujeito.
- O valor em causa, € 50.000, excede em mais do dobro o limiar para que a vantagem seja considerada como revestindo valor consideravelmente elevado, exigindo por isso elevadas necessidades de prevenção geral e especial.
- Os sentimentos manifestados pelo arguido no cometimento do crime – comportamento corruptivo, de pagamento de um suborno, e socialmente desajustado.
- As exigências de prevenção geral são muito elevadas, conforme já referido, importando dar um forte sinal de que esta conduta não é admissível.
- O arguido não demonstrou em audiência ter interiorizado o intenso desvalor da sua conduta.
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A favor do arguido depõem:
- As exigências de prevenção especial são reduzidas, posto que o arguido não regista antecedentes criminais.
- O arguido vive com a companheira há cerca de 4 anos e com os filhos desta.
- O arguido iniciou atividade laboral aos 16 anos de idade ainda a par da frequência escolar, junto do progenitor na fábrica de móveis deste, onde se manteve para além da conclusão do seu percurso escolar, onde permaneceu até 2002.
- O arguido mantém atividade por conta própria na área da restauração/venda ambulante de comida desde 2015, altura em que expandiu o negócio e abriu um restaurante que conserva atualmente.
- O arguido encontra-se bem inserido no meio onde reside.
- Não obstante a extrema gravidade da sua conduta, importa destacar que foi o arguido quem denunciou os factos que deram origem aos presentes autos, tendo a sua conduta contribuído para a descoberta da verdade e para que a conduta do co-arguido AA fosse investigada e punida, e que o mesmo teve uma intervenção menos grave nos factos em causa.
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Da aplicação da dispensa de pena ou da atenuação especial previstas no art. 374.º-B do Código Penal ao arguido BB:
Veio o arguido BB requerer a aplicação do instituto da dispensa de pena, como já havia feito em sede de instrução, em sede de julgamento. Ou, subsidiariamente, de uma pena especialmente atenuada.
Cumpre, pois, averiguar se se mostram preenchidos no caso os pressupostos para a referida aplicação.
Dispõe o referido artigo 374.º-B do CP, na redação vigente à data da prática dos factos (que se tem por aplicável posto que têm vindo a ser reduzidos os casos de aplicabilidade do instituto de dispensa de pena nas redações posteriores, designadamente a da Lei n.º 94/2021, de 21/12), que:
“1 - O agente pode ser dispensado de pena sempre que:
a) Tiver denunciado o crime no prazo máximo de 30 dias após a prática do ato e sempre antes da instauração de procedimento criminal, desde que voluntariamente restitua a vantagem ou, tratando-se de coisa ou animal fungíveis, o seu valor; ou
b) Antes da prática do facto, voluntariamente repudiar o oferecimento ou a promessa que aceitara, ou restituir a vantagem, ou, tratando-se de coisa ou animal fungíveis, o seu valor; ou
c) Antes da prática do facto, retirar a promessa ou recusar o oferecimento da vantagem ou solicitar a sua restituição.
2 - A pena é especialmente atenuada se o agente:
a) Até ao encerramento da audiência de julgamento em primeira instância, auxiliar concretamente na obtenção ou produção das provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis; ou
b) Tiver praticado o acto a solicitação do funcionário, directamente ou por interposta pessoa.”
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Ora, no caso aplicável aos autos, constata-se que não se verifica nenhum dos casos em que a lei admite que o agente seja dispensado de pena.
Com efeito, o arguido BB:
- não denunciou o crime 30 dias após o ato - posto que a denúncia foi apresentada a 09/12/2020, tendo os atos de execução do crime sido praticados em data não concretamente apurada mas situada no mês de Fevereiro (o mais tardar Março) de 2020.
- não retirou a promessa nem solicitou formalmente (nem o comprovou) a sua restituição em momento anterior à prática do facto;
- não retirou a promessa ou solicitou a devolução da quantia paga previamente à prática do facto.
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De facto, no caso dos autos, conforme resulta da matéria assente, nenhuma das referidas circunstâncias se verifica, posto que inclusivamente se provou que foi o arguido BB quem recolheu, por duas vezes, as quantias pagas pelo arguido AA, em casa deste, e as entregou a FF, a fim de que este as entregasse ao “procurador”.
Com efeito, constata-se que o arguido teve uma intervenção relevante no pagamento da quantia por parte do arguido AA, pelo que não se pode considerar que este solicitou a restituição da quantia ou o repúdio pelo funcionário anteriormente à concretização do dito pagamento.
Pelo exposto, não pode o agente ser dispensado de pena.
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Ademais, ainda que assim não se entendesse, também não se verificam os pressupostos para a aplicação da dispensa de pena previstos no art. 74.º do CP, posto que o crime de corrupção ativa agravada, na forma tentada, não se trata de crime “punível com pena de prisão não superior a 6 meses, ou só com multa não superior a 120 dias”, conforme exigido pelo referido artigo.
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Não obstante, cumpre ainda verificar se no caso a pena aplicável pode ser especialmente atenuada.
Neste campo, destaca-se desde logo o disposto no artigo 73.º, n.º 3 do CP, onde se dispõe que: “Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo.”
Ora, no caso dos autos, cumpre ressaltar que o arguido DD será punido na qualidade de cúmplice, sendo que a sua intervenção menos significativa beneficiou já de uma atenuação especial da pena.
Assim, desde logo ficaria afastada a aplicação de uma segunda atenuação especial.
Ainda que assim não se entendesse, cumpre averiguar se se verifica alguma das circunstâncias previstas no n.º 2 do referido artigo 374.º-B.
Ora, no caso dos autos, constata-se desde logo que o arguido não compareceu à audiência de julgamento, assim permitindo a valoração das suas declarações na parte em que incriminam o arguido AA, pelo que nessa parte se mostra inaplicável a circunstância prevista na alínea a).
Por outro lado, também não se constata que o arguido tenha praticado o ato a solicitação do funcionário, pois que tal não resulta da matéria assente.
Pelo que se conclui igualmente não ser aplicável ao arguido BB uma nova atenuação especial da pena.
Assim, cumpre prosseguir com a aplicação de uma pena ao referido arguido.
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Pelo exposto, sopesados os elementos supra mencionados a favor e contra o arguido, considera-se justa, adequada e proporcional a aplicação ao arguido BB,pela prática,como cúmplice, de um crime de corrupção ativa agravada, na forma tentada, de uma pena concreta de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.
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Da suspensão da execução da pena de prisão aplicada aos arguidos:
Cumpre agora apreciar de que forma deverá esta pena de prisão ser executada pelos arguidos.
No caso dos autos, tendo em conta a medida da pena concretamente aplicada aos arguidos, cabe ponderar a suspensão da execução da pena que lhes foi aplicada.
Com efeito, ainda que quanto ao arguido BB pudesse ser considerada a substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade, constata-se desde logo que esta se revela manifestamente insuficiente para obviar às muito elevadas necessidades de prevenção geral e especial presentes no caso.
De facto, tratando-se de um crime de corrupção ativa, não se mostra manifestamente adequada a substituição da pena de prisão por tal forma de cumprimento da pena.
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Assim, passemos a ponderar a possibilidade da suspensão da execução da pena.
Ora, dispõe o artigo 50.º, n.º 1 do Cód. Penal que:
«1 – O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
Como decorre do artigo citado, o instituto da suspensão da execução da pena de prisão está dependente da verificação de um pressuposto formal, qual seja a aplicação de uma pena previamente determinada não superior a cinco anos, e de um pressuposto material, consistente numa avaliação da personalidade do agente e das circunstâncias do facto que permita concluir por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente, de tal modo que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizem de forma adequada e suficiente as finalidades de punição.
Assim, o pressuposto material do instituto deve verificar-se não à data da prática do crime, mas antes no momento da decisão [neste sentido, Ac. do STJ, de 24-05-01, in CJ, tomo II, p. 201].
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Quanto ao arguido AA:
Ora, no caso vertente, cabe ter em consideração, desde logo, que as exigências de prevenção especial positiva e negativa são relevantes, posto que o arguido tem já uma condenação anterior na qual foi punido com pena de prisão suspensa na sua execução e sujeita a regime de prova, embora por crimes de natureza diversa do em causa nos presentes autos. Constata-se, ainda, que a referida sentença já transitou em julgado a 15/12/2014, portanto há quase dez anos.
Para além disso, da postura do arguido, bem como das suas condições económicas e sociais dadas como assentes, depreende-se que a sua conduta não reveste gravidade suficiente que impeça a aplicação de uma pena de prisão suspensa na sua execução.
Com efeito, o arguido tem uma filha com 13 anos, está inserido social e familiarmente e tem um percurso laboral estável e consistente. Considera-se, assim, que a sua inserção em meio prisional não é adequada nem proporcional à gravidade dos factos por si praticados.
Assim, entende-se que a gravidade dos factos ainda permite a realização de um juízo de prognose favorável ao arguido, tendo em conta o seu comportamento à data dos factos e posterior à prática do crime.
Pelo que, tudo ponderado, o conjunto dos factos mencionados consubstanciam circunstâncias que atenuam fortemente as necessidades de prevenção geral e especial aqui reclamadas, fazendo-nos supor, em sede de prevenção especial, que a censura do facto e a mera ameaça da prisão ainda realizam de forma adequada e suficiente as finalidades de punição.
Assim sendo, impõe-se uma suspensão da execução da pena de prisão ora aplicada ao arguido AA, por igual período de 3 (três) anos, a contar do trânsito em julgado da presente decisão, ao abrigo do art. 50.º, n.º 5 do Cód. Penal, na redação conferida pela Lei n.º 59/2007, de 04-09.
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Dispõe o n.º 2 do art. 50.º do CP que o tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, sendo que, segundo o n.º 3, os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.
O art. 53.º, n.º 1, do CP, por sua vez, define que “O tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade”.
O regime de prova assenta num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social (cfr. artigo 53.º, n.º 2 do CP).
O concreto plano a que o arguido será sujeito será elaborado, após trânsito desta decisão, pelos serviços de Reinserção Social (art. 494.º do CPP).
No essencial, visa-se, com tal decisão, que o arguido seja confrontado com os factos praticados e, de futuro, deixe de praticar factos violadores de bens jurídicos.
Nestes termos, importará que o arguido demonstre estar ocupado no seu dia-a-dia semanal, se possível, a nível laboral ou, porventura, em outras atividades (ainda que familiares).
O art. 52.º, n.º 1, do CP prevê a fixação de regras de conduta de conteúdo positivo, suscetíveis de fiscalização e destinadas a promover a sua reintegração na sociedade, como seja, frequentar certos programas ou atividades (al. b)), e cumprir determinadas obrigações (al. c)), mas também, segundo o n.º 2, pode, complementarmente, impor-se ao condenado o cumprimento de outras regras de conduta, como seja, (b) não frequentar certos meios ou lugares e (d) não acompanhar, alojar ou receber determinadas pessoas.
O n.º 3 do art. 54.º do CP, estabelece que o Tribunal pode impor os deveres e regras de conduta referidos nos artigos 51.º e 52.º e ainda outras obrigações que interessem ao plano de readaptação e ao aperfeiçoamento do sentimento de responsabilidade social do condenado.
Assim, em conformidade, o Tribunal imporá ao arguido AA, tendo em vista o rigoroso cumprimento do plano de readaptação social e o aperfeiçoamento do sentimento de responsabilidade social do arguido, as seguintes obrigações (e durante o período de suspensão da pena): a) Responder a convocatórias do técnico de reinserção social; b) Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência, devendo estar inscrito, se for caso disso e salvo justificação em contrário, em centro de emprego e formação profissional;
Julgamos que tal regime de prova, com as imposições das obrigações e regras de conduta citadas, se mostra adequado ao comportamento do arguido nos termos referidos sancionado nestes autos e às exigências de prevenção que se fazem sentir.
Entendemos estar perante deveres e obrigações cujo cumprimento é perfeitamente adequado e proporcional (art. 51.º, n.º 2, do CP).
O arguido deve ter consciência de que, para além do mais, o incumprimento das obrigações, regras de conduta impostas, bem como do plano de reinserção social, é causa de revogação da suspensão da pena de prisão, o que determinará o cumprimento efetivo da referida pena (cfr. art. 56.º do CP).
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Para além disso, e a fim de melhor salvaguardar as finalidades da punição, entende-se que a citada suspensão da execução da pena de prisão deverá ainda ser subordinada ao pagamento ao Estado Português, pelo arguido AA, até ao termo do primeiro ano do período da suspensão da execução da pena, da quantia de € 1.750,00 (mil, setecentos e cinquenta euros), devendo fazer prova do respetivo pagamento nos autos.
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Quanto ao arguido BB:
Ora, no caso vertente, cabe ter em consideração que o arguido não regista quaisquer antecedentes criminais. O arguido está integrado social e familiarmente e tem um percurso laboral estável.
Para além disso, da postura do arguido, bem como das suas condições económicas e sociais dadas como assentes, depreende-se que a sua conduta não é de molde a impedir a aplicação de uma pena de prisão suspensa na sua execução, tendo em conta que nunca lhe foi aplicada pena de tal natureza.
Além disso, a conduta posterior aos factos do arguido abona em favor deste, estando atualmente a exercer atividade laboral e com um quotidiano estruturado.
Assim, entende-se que a gravidade dos factos ainda permite a realização de um juízo de prognose favorável ao arguido, tendo em conta o seu comportamento à data dos factos e posterior à prática do crime.
Pelo que, tudo ponderado, o conjunto dos factos mencionados consubstanciam circunstâncias que atenuam fortemente as necessidades de prevenção geral e especial aqui reclamadas, fazendo-nos supor, em sede de prevenção especial, que a censura do facto e a mera ameaça da prisão ainda realizam de forma adequada e suficiente as finalidades de punição.
Assim sendo, impõe-se uma suspensão da execução da pena de prisão ora aplicada ao arguido BB, por igual período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, a contar do trânsito em julgado da presente decisão, ao abrigo do art. 50.º, n.º 5 do Cód. Penal, na redação conferida pela Lei n.º 59/2007, de 04-09.
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Por outro lado, a fim de reparar o mal do crime e para melhor salvaguardar as finalidades da punição, entende-se que a citada suspensão da execução da pena de prisão deverá ser subordinada ao pagamento pelo arguido BB ao Estado Português, nos primeiros 6 (seis) meses do período de suspensão da execução da pena, da quantia de € 2.000 (dois mil euros), devendo fazer prova do respetivo pagamento nos autos. 3 – Da perda de bens e vantagens
O Digno Ministério Público promoveu que se condenassem os arguidos FF e EE, solidariamente, a pagar ao Estado a quantia de €50.000,00 (cinquenta mil euros), valores que correspondem à vantagem da atividade criminosa desenvolvida pelos arguidos, nos termos do art. 110.º, n.º 1, al. b), 4 e 6 do Código Penal (redação introduzida pela Lei n.º 30/2017, de 30 de Maio).
O Ministério Público veio ainda promover que se condenem os arguidos AA e BB, solidariamente, a pagar ao Estado a quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), valores que correspondem à vantagem da actividade criminosa desenvolvida pelos arguidos e entregue aos arguidos FF e EE, nos termos do art. 110.º, n.º 1, al. b), 4 e 6 do Código Penal (redação introduzida pela Lei n.º 30/2017, de 30 de Maio).
Dispõe o artigo 109.º, n.º 1 do Código Penal que: “São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática.
Deriva do artigo 110.º, n.º 1, al. b) do CP que são declaradas perdidas a favor do Estado as vantagens do facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos, ou vantagens que constituam vantagem económica, directa ou indirectamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
Do n.º 4 do referido preceito resulta que se os produtos ou vantagens referidos não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
Acrescenta o n.º 6 do inciso legal referenciado que o “disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido”.
A perda de vantagens abarca todo e qualquer beneficio patrimonial que resulte do crime, quer haja vitima quer não a haja (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque in op. cit., p. 361).
No caso dos autos, tendo em conta que foi declarada extinta a responsabilidade criminal quanto aos arguidos FF e EE, a este respeito nada há a decidir.
Já quanto à condenação solidária dos arguidos AA e BB, no montante de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), cumpre apreciar.
Desde logo, constata-se que, com a extinção da responsabilidade criminal quanto ao crime de burla, ficaram os autos desprovidos, desde logo, do crime de natureza patrimonial que estava em causa nos autos.
Com efeito, os intervenientes que atualmente figuram como arguidos apenas serão punidos pelo crime de corrupção ativa.
Assim, conforme resulta da matéria assente, foi o arguido AA quem ficou inicialmente desapossado da referida quantia de € 50.000 (pese embora entretanto tenha declarado encontrar-se integralmente ressarcido), pelo que seria de todo desprovido de sentido condenar o mesmo no pagamento da referida quantia ao Estado.
Por outro lado, a intervenção do arguido BB, não obstante tenha estado relacionada com a referida entrega, não permite concluir que em momento algum este tenha usufruído de qualquer vantagem patrimonial com a prática do crime pelo qual vai punido nestes autos.
Pelo que da matéria assente não resulta que qualquer um dos arguidos se tenha apoderado da referida quantia ou tenha retirado qualquer vantagem patrimonial da sua atividade criminosa que pudesse sustentar a sua condenação no pagamento da quantia peticionada ao Estado.
Assim, em síntese, absolvem-se igualmente os arguidos BB e AA do peticionado pagamento da quantia de € 50.000.
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4 - Da aplicação da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto:
Entrou em vigor no passado dia 1 de Setembro a Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto, lei esta que estabelece um perdão de penas e amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.
Importa assim verificar in casu com relação à eventual aplicação a ambos os arguidos do perdão/amnistia da referida Lei.
Compulsados os autos, constata-se que, à data da prática dos factos, o arguido AA não tinha idade inferior a 31 anos, posto que nasceu a ../../1975.
Do mesmo modo, o arguido BB nasceu a ../../1977, pelo que igualmente tinha idade superior a 31 anos à data da prática dos factos.
Pelo que não tem lugar quanto a nenhum dos arguidos a aplicação do regime de amnistia e perdão de penas previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02-08 (cfr. artigo 2.º, n.º 1, “a contrario” da referida Lei).
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5 – Custas
Uma vez que se impõe a condenação dos arguidos terão os mesmos de suportar o pagamento das custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC’s para cada um deles – [arts. 374.º, n.º 4, 513.º, n.º1 e 2 todos do C.P.P., e art. 8.º, n.º 9 do R.C.P. e tabela III a este anexa].
*
6 ― Decisão
Pelo exposto, o Tribunal decide:
1. Condenar oarguido AA:
§ Pela prática de um crime de corrupção ativa agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 374.º/1 e 3 e 374.º-A/2 e artigo 110.º/1-b), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, a contar do trânsito em julgado da presente decisão.
§ Sujeitar a referida suspensão da pena aplicada ao arguido AA a regime de prova, a definir em concreto pelos Serviços de Reinserção Social.
§ E ainda às seguintes obrigações/regras de conduta:
· Responder a convocatórias do técnico de reinserção social;
· Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência, devendo estar inscrito, se for caso disso e salvo justificação em contrário, em centros de emprego e formação profissional;
§ Bem como ao dever de pagar ao Estado Português, até ao termo do primeiro ano do período da suspensão da execução da pena, a quantia de € 1.750,00 (mil, setecentos e cinquenta euros). 2. Condenar o arguido BB:
§ Pela prática, como cúmplice, de um crime de corrupção ativa agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 374.º/1 e 3 e 374.º-A/2 e artigo 110.º/1-b), todos do Código Penal), na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, a contar do trânsito em julgado da presente decisão.
§ Sujeitar a referida suspensão à obrigação de pagar ao Estado Português, nos primeiros 6 (seis) meses do período de suspensão da execução da pena, a quantia de € 2.000 (dois mil euros).
3. Declarar que os arguidos não se encontram abrangidos pelo âmbito da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08.
4. Condenar os arguidos no pagamento das custas do processo [art.514.º, n.º1 do CPP], fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC’s para cada um deles [art. 8.º, n.º 9 do RCP e tabela III]. 5. Absolver os arguidos AA e BB de pagar ao Estado todas as quantias peticionadas a título de perda de bens.
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Após trânsito:
- Remeta boletim à D.S.I.C. – [cf. art. 6.º, al. a) e 7.º, n.º 2 da Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio].
- Comunique à DGRS para a elaboração do plano de reinserção quanto ao arguido AA – art. 494.º, n.º 3 do C.P.P.
- Diligencie pela recolha de amostras biológicas ao arguido AA para inserção na base de perfis de ADN, nos termos dos artigos 8.º, n.º 2 e 18.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2008, de 12/02, a solicitar à entidade competente, que deverá observar o prescrito nos artigos 9.º e 10.º desse diploma legal.
*
Lido, vai proceder-se ao depósito do presente acórdão, nos termos e para os efeitos do art. 372.º, n.º 5 do Cód. Proc. Penal.
Notifique.” 3 – Recurso Interlocutório do Despacho de 10 de Janeiro de 2 024
Ao recurso da decisão final juntam-se ainda dois recursos interlocutórios, tendo o recorrente AA manifestado o interesse na sua apreciação, nas conclusões do recurso da decisão final (art.º 412º/5 C.P.P.). Estão em causa os despachos de 10 de Janeiro de 2 024 e de 21 de Fevereiro de 2 024.
Quanto ao primeiro.
Está em causa a admissão de pedido de aditamento ao rol de testemunhas, formulado pelo M.P. Este pedira a admissão como testemunhas também de EE e de FF, ex-coarguidos, como autores de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts.º 217º/1 e 218º/2, a), C.P., já que o respetivo procedimento criminal foi declarado extinto, pela restituição da quantia ilicitamente apoderada – arts.º 206º/1 e 218º/4 C.P.
Tal requerimento de aditamento ao rol de testemunhas do M.P. foi deferido, ao abrigo do disposto no art.º 316º/1 C.P.P.
É deste despacho interlocutório, que também recorre o referido arguido, que recorreu também da decisão final.
O recurso interlocutório interposto apresenta as seguintes conclusões: “1 - Vem o arguido AA apresentar recurso ao despacho de 10.01.2024 que admitiu, como testemunhas, ao abrigo do artigo 316º do C.P.P., dois ex-arguidos do processo que foram inicialmente acusados e pronunciados para julgamento , e que o nome dos mesmos continua plasmado no libelo acusatório. 2 - Estes dois ex-arguidos foram expurgados do processo, por via da extinção da responsabilidade criminal, no despacho de 04.01.2024, sendo que esse mesmo despacho, no seu parágrafo final, foi quem abriu caminho à ideia/a sugestão ao MP de aquele efetuar alterações ao rol de testemunhas, o que veio a promover na sequência de tal despacho de 04.01.2024 3 - Refere esse despacho de 04.01.2024 no dito parágrafo em causa o seguinte: Pelo exposto, em função da extinção da responsabilidade criminal (parcial) agora declarada, determino que seja aberta vista à Digna Procuradora para, caso assim o entenda, promover alterações ao rol probatório constante da acusação e da pronúncia. 4 - Aparentemente o despacho de 10.01.2024 parece dar a entender que admite uma sugestão do MP mas não foi bem assim (longe disso!), essa sugestão partiu do próprio Juiz de Direito titular do processo no despacho de 04.01.2024, último parágrafo. 5 - O recorrente entende e defende o entendimento de que, um arguido que tenha sido acusado e pronunciado num processo e que, por motivos de extinção da responsabilidade criminal saiu do processo pouco tempo antes de se dar início ao julgamento, não pode ser admitido como testemunha nos termos do artigo 316º do Código Processo Penal, ou, em caso de admissão, fica sujeito à disciplina do artigo 133º n.º 1 alínea a) e n.º 2 do C.P.P., considerando-se, de antemão, que tal artigo 133º n.º 1 alínea a) tem que ser aplicado e interpretado como, em casos como os presentes autos, em que um arguido tenha sido acusado e pronunciado, embora tenha sido expurgado do presente processo, não tendo cessado este mesmo processo em relação aos restantes co-arguidos do mesmo, está impedido de depor como testemunha. 6 - Aliás, deveria considerar-se, desde já, expressamente proibido poder ser possível chamarem- se a depor, ao abrigo do artigo 316º do C.P.P. em audiência de julgamento dois ex-arguidos que estavam acusados e pronunciados no mesmo processo em curso. 7 - Qual é o critério que a Justiça Portuguesa aplica para poder requisitar como testemunhas num processo-crime, dois ex-arguidos que ainda se encontram plasmados no texto da acusação, num libelo acusatório que os reputa de delinquentes? Pretende que esses mesmos ex-arguidos confessem um outro crime e se auto-incriminem e ainda profiram declarações que permitam a condenação dos outros dois co-arguidos que sobram? 8 - Tudo isto faz-nos recordar o programa de Televisão da ... “O preço certo” do apresentador XX, quando os concorrentes lançam um preço e o apresentador, sabendo o XX que aquele valor levará à derrota do concorrente, costuma dizer aos mesmos concorrentes o seguinte: “não quer pensar melhor?” 9 - Foi o despacho de 04.01.2024, naquele concreto parágrafo, que abriu portas ao MP com a sugestão dissimulada e indireta, ao estilo do XX, pois como se disse ao MP “não quer trocar ou aditar qualquer coisinha?” mas usando-se uma expressão mais simpática, tal como aquela que se transcreve do citado despacho de 04.01.2024, último parágrafo: “Pelo exposto, em função da extinção da responsabilidade criminal (parcial) agora declarada, determino que seja aberta vista à Digna Procuradora para, caso assim o entenda, promover alterações ao rol probatório constante da acusação e da pronúncia.” 10 Este parágrafo significa, em português direto/mais corrente, o seguinte: uma vez que foram agora retirados do processo os arguidos EE e FF, sugerimos ao Ministério Público que os adicione como testemunhas através da ordem que se acaba de proferir para ser aberta vista ao MP, para que esse MP possa requerer esse aditamento, uma vez que o juiz não pode, de motu próprio, adiciona-los, face ao teor normativo do artigo 316º do C.P.P., e, não podendo o juiz, oficiosamente, fazê-lo, o caminho “à volta” é sugerir ao MP que o faça (como fez) que o Tribunal admitirá sem qualquer problema. 11 Se o Sr. Juiz queria ouvi-los, teria que esperar pelo decurso do julgamento e, se fosse caso disso, acionar o artigo 340º do C.P.P., mas nunca contornar as leis, tentando fintar-se a defesa do arguido, e citando-se naquele parágrafo de 04.01.2024 a ideia ao MP – foi exatamente isto que aconteceu naquele último parágrafo e o processo fala sozinho. É só confrontar os acontecimentos e chega-se a essa conclusão. 12 Ora, os ex-arguidos FF e EE, que foram acusados e pronunciados, quer pelo MP e pelo Exmo. Sr. Juiz de Instrução Criminal, podem agora ser admitidos, em véspera de julgamento, como testemunhas nos termos do artigo 316º do C.P.P.? 13 - Para a defesa, a admissão de duas novas testemunhas que eram dois arguidos do processo e que o nome deles continua ao longo de toda a acusação /pronúncia proferida, não é admissível. 14 - O legislador, na criação e pensamento do art.º 316º do C.P.P. não teve como objetivo que o MP ou o Sr. Juiz aditassem como testemunhas pessoas que foram, até muito recentemente, arguidos no processo, com destaque para arguidos que foram acusados e pronunciados dentro deste mesmo processo – pormenor de alta importância. 15 - O art.º 133º n.º 1 alínea a) do C.P.P. refere que “estão impedidos de depor como testemunhas: a) o arguido e os coarguidos no mesmo processo ou em processos conexos enquanto mantiverem aquela qualidade”, o presente caso que aqui nos ocupa configura uma necessidade de integração de lacuna no normativo (artigo 10º do Código Civil), em que o intérprete criaria, dentro no sistema que houvesse de legislar, recolhendo do ensinamento da letra da lei o pensamento de que, os ex-arguidos mencionados no libelo acusatório, que foram pronunciados para julgamento, também eles estão impedidos de depor como testemunhas no processo. 16 Nos termos do art.º 9º do Código Civil «interpretação à lei», uma vez que o intérprete não deve cingir-se à letra da lei mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, ainda que a alínea a) do n.º 1 do art.º 133º do C.P.P., para o presente caso que aqui nos ocupa tenha uma expressão imperfeita – mas que permite, de forma patente e ostensiva, perceber-se que a intenção do legislador, num caso como o presente, seria sempre o de não se aceitar como testemunha cidadãos que estão narrados no libelo acusatório como potenciais criminosos e, por via disso, ficam desde logo a coberto do regime do impedimento de deporem como testemunhas no processo que ainda corre; INCONSTITUCIONALIDADE 17 - O artigo 316º n.º 1 do Código Processo Penal, na interpretação segundo a qual é admissível a junção de testemunhas num mesmo processo em que essas testemunhas foram arguidos acusados [pelo MP] e pronunciados [pelo M. JIC] nesses mesmos autos processuais a fim de prestarem declarações em audiência e discussão de julgamento sobre os factos constantes da acusação/pronúncia é inconstitucional por violação do princípio da legalidade, legalidade criminal, proporcionalidade, razoabilidade, e todas as garantias de defesa do arguido, insítos nos artigos 3º, 18º, 20º n.º 4 e 32º n.º 1 da CRP. 18 - Foram violados e mal interpretados os artigos 316º e 133º n.ºs 1 alínea a) e n.º 2 do C.P.P., por referência aos artigos 8º e 10º do Código Civil e 3º, 18º, 20º n.º 4 e 32º n.º 1 da CRP. TERMOS EM QUE, FACE ÀS MOTIVAÇÕES E CONCLUSÕES APRESENTADAS NO PRESENTE RECURSO, DEVE O DESPACHO DE 10.01.2024 SER REVOGADO E SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE, de acordo com o presente recurso, não admita, como testemunhas sob a égide do artigo 316º do C.P.P, dois Ex arguidos que foram acusados e pronunciados no mesmo processo e o nome dos mesmos continua plasmado no libelo acusatório ou, se assim não se entender, à cautela e desde já se invoca, a admitir-se os mesmos (em caso de improcedência do presente recurso), terão que ser advertidos, nas respetivas notificações, que só prestam declarações se nisso expressamente consentirem nos termos do n.º 2 do art.º 133º do C.P.P. UMA VEZ QUE O PRESENTE RECURSO SUBIRÁ, NO SEU TODO, COM O PROCESSO COMPLETO, NÃO SE INDICAM QUAIS AS PEÇAS PROCESSUAIS A INSTRUIR O MESMO, POR DESNECESSÁRIO. Caso suba em separado, as peças processuais que devem instruir este Apenso de recurso são as seguintes:
a) Acusação proferida pelo MP; b) Despacho de Pronúncia; c) Despacho saneador do processo chegado a julgamento; d) Despacho de 04.01.2024; e) Promoção do MP que se lhe seguiu; f) despacho de 10.01.2024 (do qual se recorre) g) o presente recurso; h) o despacho que o admita; i) a resposta do MP que vier a apresentar ao mesmo, querendo;”
A este recurso respondeu também o M.P., ainda em 1ª instãncia. Com referência aos impedimentos previstos no art.º 133º/1, C.P.P. – que trata dos impedimentos para depor – e, nomeadamente, à respetiva al. a), refere este dispositivo normativo determina o impedimento para depor dos arguidos e coarguidos no mesmo processo ou em processos conexos, mas apenas “enquanto mantiverem aquela qualidade.” O que refere não ser o caso, uma vez que as referidas testemunhas eram realmente coarguidos, mas já não o são por ter sido declarado já extinto o procedimento criminal contra si. Com efeito, estas agora testemunhas podem depor sem quaisquer constrangimentos, pois por via do princípio “ne bis in idem”, o processo crime não poderá já ser reaberto contra si. Assim, não há impedimento legal a que sejam testemunhas. Sustenta a final, que deve ser negado provimento a este recurso interlocutório.
No seu parecer, o Dignm.º Procurador Geral Adjunto pronunciou-se também, sobre o mérito deste recurso. Considera que FF e EE já podem ser testemunhas nos autos, uma vez que já não são arguidos, por contra si ter sido declarado extinto o procedimento criminal. Em face da extinção do procedimento criminal contra si, já não podem ser objeto de perseguição criminal. Com efeito, já não têm o estatuto de arguidos – cfr. art.º 57º/2 C.P.P. Termina pedindo seja negado provimento ao recurso.
3.1. – Fundamentação
É o seguinte, o teor do despacho recorrido: “Nos termos do artigo 316.º do CPP, admito o aditamento ao rol de testemunhas efetuado pelo Digno MP.
As referidas testemunhas deverão ser notificadas para inquirição data já agendada (21 de Março), às 10h30m.
*
Notifique.”
4 – Recurso Interlocutório do Despacho de 21 de Fevereiro de 2 024
Também deste despacho interlocutório recorreu o arguido AA, tendo também nas conclusões do recurso da decisão final manifestado o seu interesse na apreciação deste recurso.
Este invocara a nulidade da acusação, por na mesma não se fazer referência ao art.º 386º C.P., que prevê quem pode assumir a categoria de funcionário e assim praticar o crime de corrupção.
Considera que a nulidade da acusação é de conhecimento oficioso e pode ser conhecida a todo o tempo, até ao trânsito em julgado da decisão final.
No recurso que interpôs, apresenta as seguintes conclusões: “1- Vem o arguido AA apresentar recurso ao despacho datado de 21 de Fevereiro de 2024 que decidiu julgar totalmente improcedente a nulidade da acusação requerida pelo arguido. 2- O despacho recorrido de 21.02.2024 convoca a seu favor uma tal jurisprudência datada de 23.01.2023 do Tribunal da Relação de Guimarães, nos autos 1420/11.0T3AVR, mas esse acórdão nada decidiu em Relação à nulidade da acusação no seu dispositivo final, conforme acórdão original que segue em anexo para todos os devidos efeitos legais e contestatórios. 3- Um recurso desta natureza, puramente jurídica, leva a que a defesa diga, desde já, o seguinte: não importa quem são os arguidos nem de que é que é composto o processo. Quando ocorre uma enorme violação da lei, nomeadamente a falta de indicação de um dispositivo legal obrigatório, como é o caso dos presentes autos, ocorre a nulidade da acusação, e a mesma tem que ser declarada, sem mais! 4- O despacho aqui recorrido, datado de 21.02.2024, entende que a nulidade da acusação se rege pelo regime do artigo 120º do C.P.P. e que não tendo sido arguida/suscitada após o final do inquérito ou durante a fase de instrução, tal nulidade ficou definitivamente sanada. 5- A defesa do recorrente entende que a nulidade da acusação se rege pelo artigo 119º e 283º n.º 3 do C.P.P., uma vez que o artigo 119º prevê expressamente que “constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais”. 6- Esta expressão “além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais” está a referir-se, também, à nulidade da acusação prevista no artigo 283º n.º 3 do C.P.P. onde se pode ler: “a acusação contém, sob pena de nulidade” 7- O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo 368/07.8TALRA.C1, de 22.05.2013 é do entendimento de que a nulidade da acusação é do conhecimento oficioso até ao trânsito em julgado, não estando dependente de arguição por parte os sujeitos processuais, sendo este o Sumário de tal acórdão: I - Face ao aditamento do n.º 3 do artigo 311.º do CPP, operado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, os vícios estruturais da acusação passaram a sobrepor-se às nulidades previstas no artigo 283.º, do mesmo diploma, e converteram-se em matéria sujeita ao conhecimento oficioso do tribunal, não estando, portanto, dependente de arguição por parte dos sujeitos processuais. II - Sendo a nulidade em causa de conhecimento oficioso, pode ser conhecida, a todo o tempo, até ao trânsito em julgado da decisão final. III - Uma consequência da estrutura acusatória do processo é a independência do Ministério Público em relação ao juiz na formulação da acusação. IV - Da consagração da estrutura acusatória resulta inadmissível que o juiz possa ordenar ao MP os termos em que deve formular a acusação. Por maioria de razão, não pode também o juiz suprir os vícios de que a acusação padeça. V - Assim, não podendo ser sanada a nulidade da acusação, a existência desse vício, verificada antes do trânsito em julgado da decisão final, produz a invalidade dessa peça processual e de tudo o que tiver sido processado posteriormente e, consequentemente, conduz ao arquivamento do processo, por inexistência de objeto. 8- Igualmente entende o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo 6/17.0IDCTB.C1, datado de 28.11.2018, que o vício estrutural da acusação se sobrepõe às nulidades, devendo e podendo ser conhecidas oficiosamente pelo tribunal a todo o tempo, isto é em qualquer fase do procedimento até ao trânsito em julgado da decisão final. 9- A questão que importa decidir neste recurso é, então, a seguinte: quando uma acusação por crimes de corrupção, crimes estes que integram o capítulo «dos crimes cometidos no exercício de funções públicas», onde para a punição desses mesmos crimes é obrigatória a menção da qualidade de funcionário que o arguido tenha, a fim de se verificar se esse tipo de funcionário se enquadra no regime do artigo 386º do C.P., com a especificação do número e da alínea desse mesmo artigo 386º, não tendo sido efetuada essa identificação desse dispositivo legal no libelo acusatório, suscitada a nulidade da acusação por parte do arguido, a nulidade da acusação é do conhecimento oficioso e declarável até ao trânsito em julgado ou é uma nulidade dependente de arguição? 10- O recorrente entende, como se disse, que a nulidade da acusação é do conhecimento oficioso até ao trânsito em julgado, sendo esta a solução jurídica que mais se coaduna com o espírito da lei e a letra do art.º 119º do C.P.P. 11- A acusação não se reescreveu, logo não pode considerar-se sanada a nulidade da acusação. A defesa entende, e pugna por isso, que o despacho de 21.02.2024 tem que ser revogado e substituído por outro que declare a nulidade da acusação nos termos requeridos pelo arguido, porque tal nulidade é insanável nos termos do art.º 119º do C.P.P. INCONSTITUCIONALIDADE 12- O artigo 119º do Código Processo Penal, na interpretação segundo a qual a nulidade da acusação prevista na cominação legal do art.º 283º n.º 3 do mesmo C.P.P. não integra uma nulidade insanável a que faz referência o art.º 119º do C.P.P. na sua expressão “além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais” é inconstitucional por violação dos princípios da legalidade, da proporcionalidade, legalidade criminal e garantias de defesa, ínsitos nos art.ºs 3º, 18º, 29 e 32º da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que expressamente se invoca para todos os devidos efeitos legais. 13- Foram assim violados e mal interpretados os artigos 119º, 120º e 283º n.º 3 alínea c) do Código Processo Penal, na medida em que, a correta interpretação e aplicação do direito é a de que, uma nulidade da acusação prevista no art.º 283º n.º 3 do C.P.P., por estar expressamente prevista nesta cominação legal, está contemplada pelo regime das nulidades insanáveis previstas no art.º 119º, uma vez que o art.º 119º refere “além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais” do C.P.P., afastando-se, por via disso, a aplicação do art.º 120º do C.P.P., e tal nulidade da acusação é do conhecimento oficioso e declarável a todo o tempo – o que se invoca.
TERMOS EM QUE, DANDO-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, ALCANÇAR-SE-À JUSTIÇA! COM ESTE RECURSO DEVEM SER INSTRUÍDAS AS SEGUINTES PEÇAS PROCESSUAIS: a) Acusação pública deduzida b) Decisão instrutória c) Despacho de saneamento do processo (art.º 311º do C.P.P.) d) Requerimento do arguido a requerer a nulidade da acusação, e) Promoção do M.P.; f) Despacho de 21.02.2024 g) O presente recurso;” Respondeu ao recurso o M.P., ainda em 1ª instância. Referiu que, nos autos foi requerida a abertura da Instrução, tendo sido proferida decisão instrutória, nos moldes da acusação e quanto à qual não foi invocada qualquer nulidade. Considera que o art.º 386º C.P. fornece o conceito de funcionário, mas que não incrimina ninguém, pelo que é desnecessária referência explícita ao mesmo. Contudo e no limite, sempre estaria em causa nulidade relativa, pelo que sanada se existiu. Termina referindo que deve ser negado provimento ao recurso.
Também o Dignm.º Procurador Geral Adjunto se pronunciou sobre esta questão, no parecer único que apresentou. Considera também que o referido art.º 386º C.P. constitui mera definição e, por isso, não tem qualquer intenção incriminadora. Com efeito, estão mantidas as possibilidades de defesa, para o arguido, não existindo dúvidas quanto à qualidade de funcionário que EE se arrogava. Nestes termos, considera não ter sido cometida qualquer nulidade, remetendo no mais para a resposta do M.P. em 1ª instância. Considera assim a final, que também este recurso interlocutório, tal como os demais interpostos pelo arguido, não merece provimento.
Na sua resposta após notificação nos termos do disposto no art.º 417º/2 C.P.P., o arguido recorrente reafirma que a ausência de referência ao art.º 386º C.P. conduz à nulidade da acusação, fazendo ainda referência à alteração de redação deste normativo, desde a data dos factos até ao presente. Defende ainda, que caso o art.º 119º C.P.P. não seja considerado nestes termos, será inconstitucional por violação dos princípios da legalidade, proporcionalidade, legalidade criminal e garantias de defesa (arts.º 3º, 18º, 29º e 32º C.R.P.). Termina, pedindo de novo a procedência dos recursos interpostos.
A decisão recorrida tem o seguinte teor: “Veio o arguido AA invocar a nulidade da acusação proferida, porquanto a mesma “não contemplou todas as disposições legais aplicáveis, nomeadamente a imputação do art.º 386º do Código Penal,” concluindo, a final, pelo arquivamento dos autos e pela desmarcação das datas agendadas para a realização do julgamento.
Alega, para tanto, que daquela acusação não constam as normas jurídicas aplicáveis, concretamente o disposto no artigo 386.º CP, o que fere a mesma de nulidade, nos termos do disposto no artigo 283.º nº3 CPP. E sendo tal nulidade insanável por via da aplicação do art.º 119.ºdo C.P.P., que contempla ser uma nulidade insanável todas as que, além das descritas em tais alíneas, estejam também descritas noutras disposições legais.
Conclui, por fim, que tal nulidade, sendo insanável, é de conhecimento oficioso e pode ser arguida a todo o tempo.
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Em vista, pronunciou-se o MP pelo indeferimento da pretensão dos arguidos, defendendo que: ”Uma vez que nos presentes autos houve pronúncia, sendo que oportunamente não foi suscitada qualquer nulidade ou irregularidade por qualquer dos arguidos entendemos não assistir qualquer razão ao arguido.”
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Cumpre apreciar, seguindo-se aqui de perto o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23 de Janeiro de 2023 (Proc. n.º 1420/11.0T3AVR, in https://vlex.pt/vid/922598794):
Dispõe o artigo 283.º CPP, para o que nos interessa, no seu n.º 3 que:
“A acusação contém, sob pena de nulidade:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) As circunstâncias relevantes para a atenuação especial da pena que deve ser aplicada ao arguido ou para a dispensa da pena em que este deve ser condenado;
d) A indicação das disposições legais aplicáveis;(…)”.
Por sua vez, o artigo 311.º, n.º 3 do CPP, sob a epígrafe “Saneamento do Processo”, dispõe que:
“1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 -Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respetivamente.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.”
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Da leitura das preditas normas, resulta, antes de mais, que a nulidade da acusação a que se reporta o artigo 283.º, n.º 3 e a rejeição da acusação com fundamento nos vícios previstos nas als a), b) e c) do n.º 3 do art. 311.º do CPP, não são momentos coincidentes entre si, ou seja, a rejeição da acusação não se confunde com nenhuma daqueloutras nulidades.
Isto porque a nulidade da acusação, e contrariamente ao propugnado pelo arguido/requerente, na falta de disposição legal em sentido contrário, e porque não consta do catálogo das insanáveis, elencado no artigo 119.º CPP, assume-se como uma nulidade dependente de arguição e, nessa medida, sujeita ao regime legal previsto nos art.º 120. ° a 122.º CPP.
No que respeita ao prazo de arguição, dispõe o artigo 120.°, n.º 3 CPP, significando que se não for deduzida por algum dos interessados no prazo legalmente estabelecido, perante a autoridade judiciária competente, não pode ser conhecida enquanto tal em momento posterior. – v. nesta matéria Germano M. Silva, Curso de Processo penal III, 2ª ed-Verbo-2000 pp. 206 a 208.
Sendo ainda que, nos termos do artigo 121. °, n.º l, a nulidade sanável pode ser sanada se os participantes processuais interessados: a) Renunciarem expressamente a argui-la; b) Tiverem aceite expressamente os efeitos do ato anulável; ou c) Se tiverem prevalecido da faculdade a cujo exercício o ato anulável se dirigia.
Por seu turno, a rejeição da acusação com algum dos fundamentos enunciados no n.º 3 do artigo 311.º CPP, é decidida oficiosamente pelo juiz a quem o processo é distribuído, apenas no caso de o processo ser remetido para julgamento sem ter havido Instrução.
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Compulsados os presentes autos, constata-se que o despacho de acusação se encontra datado de 23/01/2023, tendo após sido requerida a abertura de instrução apenas pelo arguido BB.
Após a prolação do despacho de pronúncia, datado de 15/05/2023, foram os autos remetidos para julgamento e aí recebidos, por despacho datado de 08/06/2023.
Ora, e se é certo que nos autos se não vislumbra qualquer das situações previstas no predito artigo 121.º CPP, que implicam a sanação da nulidade, também é certo que a mesma não foi invocada no prazo legal supra indicado, concretamente o previsto no artigo 120.º, n.º 3, al. c) do CPP, ou seja, até ao encerramento do debate instrutório ou, no limite, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito.
Por outro lado, tendo existido a fase de instrução, estava vedado ao Presidente, aquando do recebimento da acusação, despachar nos termos do nº 2 e 3 do artigo 311.º CPP.
E por ser assim, cremos nós, e concordando-se com o doutamente promovido, ultrapassado que foi o momento legalmente definido para arguir qualquer nulidade referente ao inquérito e à instrução – artigo 120.º, n.º 3, al. c) do CPP e, igualmente, para a rejeição da acusação nos termos do artigo 311.º CPP, se mostra agora esgotada essa possibilidade.
Neste sentido, à data da submissão daquela acusação a julgamento, não mais padecia de qualquer vício formal que obstasse ao seu conhecimento em julgamento, sendo que, e cremos nós, que eventual vício ou omissão que na mesma ainda subsistisse, entrava já na discussão dos fundamentos, de facto e direito, subjacentes à respetiva imputação criminal, ou seja, era já uma questão de apreciação do mérito da acusação, da sua procedência ou improcedência, de acordo com o regime processual e substantivo aplicável, o que de todo se pode confundir com uma vicissitude de cariz processual suscetível de afetar a validade da acusação.
Termos em que se julga a ora invocada nulidade da acusação totalmente improcedente.
Notifique.
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Custas do incidente pelo arguido/requerente, que se fixam em 2 UC’s –artigo 7.º, n.º 8 do RCP.” 5 – Questões a Resolver 5.1. – Recurso Interlocutório do Despacho de 10 de Janeiro de 2 024 5.1.1. – Podem os Ex-Arguidos e Ex-Coarguidos nos Autos Ser Indicados como Testemunhas, depois de Declarado Extinto o Procedimento Criminal contra Si? 5.2. – Recurso Interlocutório do Despacho de 21 de Fevereiro de 2 024 5.2.1. – Da Ausência de Referência ao art.º 386º C.P. no Despacho de Acusação – Conceito de Funcionário 5.3. – Do Recurso da Decisão Final 5.3.1. – Da Impugnação da Matéria de Facto e dos Factos Provados 5.3.2. – Do Tipo Legal de Corrupção Ativa 5.3.3. – Da Medida da Pena 5.1.1. – Podem os Ex-Arguidos e Ex-Coarguidos nos Autos Ser Indicados como Testemunhas, depois de Declarado Extinto o Procedimento Criminal contra Si (1º Recurso Interlocutório)?
Nos autos, os coarguidos FF e EE vinham pronunciados pela prática como autores de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts.º 217º/1 e 218º/2, a), C.P. O respetivo procedimento criminal foi já declarado extinto por despacho, pela restituição da quantia ilicitamente apoderada – arts.º 206º/1 e 218º/4 C.P.
O processo crime contra si, mostra-se pois neste momento já arquivado. Assim e não correndo já contra si, na altura em que foram arrolados como testemunhas, o processo crime dos autos, não podem já ser considerados como aqui arguidos – art.º 57º/2 C.P.P.
Contra si, mostra-se assim já formado caso julgado no sentido da sua não responsabilização penal pelos factos em causa nos autos. O que, por via do princípio “ne bis in idem” impede que por estes factos possam vir a ser condenados ou de novo perseguidos criminalmente.
Nos termos do disposto no art.º 133º/1, a), C.P.P., os arguidos ou coarguidos no mesmo processo ou em processos conexos, não podem naqueles autos depor como testemunhas.
Isto, não pelo facto de um arguido não poder ser testemunha, pelo simples facto de ser arguido. Com efeito, não é por ter cometido qualquer ilícito, que o Direito despreza a sua colaboração como testemunha. Até, porque o próprio arguido pode não só confessar o crime, como também colaborar para a descoberta da verdade material. Não é por via de qualquer anátema, que um arguido não pode, nos mesmos autos, ser testemunha.
Isso decorre, em primeiro lugar, do facto de um arguido não poder confundir-se com uma testemunha.
É que um arguido goza dos princípios da dignidade da pessoa humana e da presunção de inocência (arts.º 1º, 25º, 26º e 32º/2 C.R.P.) e assim, do direito de não se autoincriminar (“ne ipso jure jure accusare” ou “nemo tenetur”) e logo, do direito ao silêncio (art.º 61º/1, d), C.P.P.).
Já a testemunha é obrigada a responder e com verdade, às perguntas que lhe forem dirigidas (art.º 61º/1, d), C.P.P.).
Daí, que os estatutos de arguido e testemunha não possam coexistir no mesmo processo, ao mesmo tempo.
No entanto, o próprio art.º 133º/1, a), C.P.P., realça quanto a este impedimento, que o mesmo só ocorre enquanto o arguido mantém aquela qualidade – o que já não acontecia, á data do aditamento de testemunhas proposto pelo M.P.
Aliás, do mesmo modo se tem entendido em casos de separação de processos, quando no processo separado o arguido já tem definida a sua situação em termos de não incriminação, não se fazendo depender a prestação de testemunho do seu consentimento (art.º 133º/2 C.P.P., “a contrario”) – neste sentido e de entre outros, os acórdãos da Relação de Lisboa, de 22/5/2 013, Laura Maurício, da Relação do Porto, de 18/4/2 007, Dias Cabral e da Relação de Évora, de 30/6/2 004, Ribeiro Cardoso.
A redação deste normativo (art.º 133º/2 C.P.P.) foi alterada pela L. n.º 48/07, 29/8, mantendo-se a necessidade do consentimento para depor no caso de os arguidos com condenação transitada, uma vez mais para salvaguarda dos seus direitos, em caso de eventual interposição de recurso de revisão, que poderia soçobrar caso o arguido já tivesse sido obrigado a depor e o tivesse feito em sentido contrário ao propugnado no eventual recurso.
Resumindo: já tendo os referidos ex-arguidos beneficiado do arquivamento dos autos, já não podem ser considerados arguidos, pelo que podem ser arrolados como testemunhas – como decidido.
O facto de ter sido o Juiz, após extinção do procedimento criminal quanto a esses arguidos, a mandar abrir vista ao M.P., nada tem de sugestivo ou de contrário ao princípio da isenção, pois que a decisão de arrolar esses arguidos como testemunhas continuou a pertencer ao M.P. Foi o mesmo, que decidiu fazer o referido aditamento ao rol, sendo certo que o tribunal também sempre poderia determinar oficiosamente a produção desta prova suplementar, ao abrigo do disposto no art.º 340º/1 C.P.P.
Não ocorre pois, qualquer violação dos princípios Constitucionais da legalidade, legalidade criminal, proporcionalidade, razoabilidade ou das garantias de defesa do arguido (arts.º 3º, 18º, 20º/4 e 32º/1 C.R.P.), que aliás o recorrente não explica ou fundamenta. Improcede assim e na íntegra, este primeiro recurso interlocutório do arguido AA. (…)
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Razões por que, 3 - Decisão
a) se julgam totalmente improcedentes os recursos apresentados pelo arguido recorrente AA (interlocutórios e da decisão final), por via disso se mantendo pois na íntegra os despachos interlocutórios recorridos de 4/1/2 024, 21/2/2 024 e a decisão final constante do acórdão de 11/4/2 024.
b) Custas pelo mesmo, com 3 (três) U.C.`s de taxa de justiça por cada um dos dois recursos interlocutórios e 4 (quatro) U.C.`s, pelo recurso da decisão final– arts.º 513º/1 C.P.P., 8º/9 e tabela anexa 3), ao R.C.P.
c) Notifique.
Guimarães, 11 de Junho de 2 025
(Pedro Cunha Lopes) (Paula Albuquerque) (Júlio Pinto)