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ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO
ATROPELAMENTO
VIOLAÇÃO DE NORMAS DE SEGURANÇA
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Sumário
I – Para que opere a descaraterização do acidente de trabalho nos termos previstos na al. a) 2ª parte do n.º 1 do artigo 14º da NLAT terão de se verificar de forma cumulativa os seguintes requisitos: - a existência de condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; - que sejam voluntariamente violadas pelo trabalhador as condições de segurança (exigindo-se aqui a intencionalidade ou dolo, na prática, ou omissão, o que exclui as chamadas culpas leves, ou outras atitudes que se prendem com os actos involuntários, resultantes ou não da habituação ao risco); - que a violação das condições de segurança seja sem causa justificativa do ponto de vista do trabalhador; - que o acidente seja consequência, em termos de causalidade adequada, dessa conduta. II - Não há lugar à descaracterização do acidente de trabalho nos termos prescritos na al. a) do n.º 1 do art.º 14.º da NLAT, no caso de se ter apenas demonstrado a violação de normas de segurança, sem que se tenha logrado provar que o sinistrado atuou com um grau de culpa acentuada, severa e indesculpável e sem se ter apurado a “inexistência de causa justificativa” da atuação do sinistrado na violação das regras de segurança. III - Para que se verifique a descaraterização do acidente com base na negligência grosseira é necessária a prova de que ocorreu um ato ou omissão temerária, reprovável e indesculpável em alto e relevante grau por parte do sinistrado, injustificados pela habitualidade ao perigo do trabalho executado, pela confiança na experiência profissional ou pelos usos e costumes da profissão, e, além disso, é também preciso provar que o acidente ocorreu exclusivamente por causa desse comportamento.
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães I – RELATÓRIO
AA, residente ... residente ... Rua ..., ... ..., ..., com o patrocínio do Ministério Público intentou ação especial emergente de acidente de trabalho contra EMP01...-Companhia de Seguros, S.A, com sede no Largo ..., ..., ..., pedindo a condenação desta no pagamento:
- do capital de remição da pensão anual no valor de €969,14, com inicio em 2022.03.05.
- da quantia de €73,65, relativa à indemnização pelos períodos de incapacidade
temporária aludidos em 4.º e tendo em conta o já pago a esse título pela Ré;
- da quantia total de €10,00, relativa a despesas de transporte;
- Juros de mora sobre tais prestações, vencidos e vincendos, desde a data dos respetivos vencimentos e até integral e efetivo pagamento, encontrando-se vencidos até esta data juros no montante de €359,64, termos do artigo 135.º do CPT.
Regularmente citada, a ré veio contestar, mantendo a posição assumida em sede conciliatória, ou seja, não aceitou a caracterização do acidente de trabalho, por entender que o mesmo se ficou a dever a culpa exclusiva do sinistrado, quer por incumprimento das instruções expressas emitidas pelo seu empregador, que sem causa justificativa violou, quer pela sua atuação com negligência grosseira, ao realizar trabalhos em plena faixa de rodagem e numa movimentada artéria, sem sinalizar fosse de que modo fosse a sua presença, violando grosseiramente os artigos 8.º e n.º 2 do art.º 88.º ambos do Código da Estrada.
Foi proferido despacho saneador, foi fixada a factualidade assente, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizou-se audiência de julgamento e foi proferida sentença que terminou com o seguinte dispositivo: “Decisão Nos termos de tudo o exposto, decide-se julgar a acção integralmente improcedente e, nessa consonância, absolver a ré dos pedidos. Custas pelo sinistrado, nos termos do artigo 527.º do Código de Processo Civil Valor da ação: €2.000 Registe e notifique.”
Inconformada com esta decisão, dela veio o Autor interpor recurso de apelação, para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam mediante a formulação das seguintes conclusões: “CONCLUSÕES: A. MATÉRIA DE DIREITO. I - Vem o presente recurso interposto da decisão do tribunal que julgou a acção integralmente improcedente e, em consequência, absolveu a Ré, dos pedidos. II - O tribunal julgou verificados os pressupostos para a descaracterização do acidente previstos no artº 14º, nº 1, al, a) e b), da LAT. III - O autor não se conforma com a decisão do tribunal que absolveu a Ré dos pedidos, nem com a decisão que considerou estarem verificados os pressupostos para descaracterizar o acidente, que esteve na base da improcedência da acção, IV - O autor, salvo melhor opinião, entende que não se verificam, mesmo com a matéria de facto julgada provada e, sem prescindir, os pressupostos previstos nos artº 14º, nº 1, als a) e b), da LAT que dispõe que: o empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente de trabalho que: for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, (sublinhado nosso) das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei”. V- Desde logo, quanto ao pressuposto da al. a), da norma atrás referida, da matéria de facto provada, não resulta que o autor tenha actuado com culpa grave, acentuada, severa, indesculpável, inútil e gratuita, como exige esta norma e de acordo com a posição da jurisprudência mais recente, vid. Acórdão do STJ, de 10-02-2021 e Ac. da RG, de 14- 03-2024, ambos publicados na internet, em www.dgsi.pt. VI - Não se provou que igualmente o segundo pressuposto desta norma – a inexistência de causa justificativa do sinistrado na violação de regras de segurança. VII a X (…) XI - De igual forma, não se provou o requisito previsto na al. b), do nº 1, do artº 14º, da LAT que isenta o empregador de reparar os danos emergentes do acidente que: “ provier, exclusivamente, de negligência grosseira do sinistrado” ( sublinhado nosso). XII – (…) XIV - Mas também não se provou matéria de facto que se possa enquadrar na negligência grosseira, definida no nº 3, do art 14º citado, como comportamento temerário em alto e relevante grau, (sublinhado nosso) que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão. XV - Da matéria de facto provada não se vislumbram factos que consubstanciem ou permitam qualificar a conduta do sinistrado como grosseira, em alto e relevante grau, temerária, inútil e gratuita. XVI- O tribunal afirma que a culpa do sinistrado foi grave, temerária até, mas não sustenta em que actos ou omissões do sinistrado justificam tal qualificação. XVII- Em que acto ou actos se encontra tal conduta do sinistrado, que não vá para além da habitualidade ao risco da profissão e ao trabalho executado? XVIII - Surgiu o sinistrado, porventura, naquele local, de forma repentina, inesperada, na frente do condutor do veículo? XIX - Não se apresentava visível a um condutor normal que circulasse naquela via? XX- Pela via passam centenas de veículos por dia, mas à hora do acidente, havia muito trânsito? XXI - Não resulta da prova julgada como provada que à hora do acidente houvesse tal avalanche de veículos, que tornasse a tarefa do sinistrado muito perigosa e arriscada. XXII - Nem que se tratava de uma via rápida ou de uma autoestrada, em que os veículos circulam a uma velocidade elevada. XXIII - Pelo contrário, trata-se uma via, dentro de uma localidade, em que a velocidade se encontra limitada ao máximo de 50 Km/h. XXIV - Acresce que, como resulta da prova em audiência, o sinistrado apenas se encontrava no local para fiscalizar o saneamento numa tampa existente na via ( ponto 5 ) da matéria de facto ), que nem sabia que se encontrava naquele local, tão dentro da via. XXV - Acresce que, não consta da matéria de facto que o acidente de deveu ao comportamento exclusivo do sinistrado ( autor ). XXVI - O tribunal apenas na fundamentação escreve “A conduta do sinistrado foi demasiado, temerária até dando origem exclusiva à ocorrência”. XXVII - A palavra exclusivamente utilizada pelo legislador, não é um mero conceito de direito, é também um facto, que é exigível para descaracterizar o acidente com base na negligência grosseira do sinistrado previso na al. b), do nº 1, do artº 14º, do CPT. XXIX - Não constando da matéria de facto provada, não pode o tribunal, salvo melhor opinião, com base na sua mera alusão na fundamentação da decisão, considera-lo como provado. XXX O tribunal não especificou, na fundamentação, em que meios de prova assenta a -matéria de facto constante dos pontos 5. 11., 12. e 13, da matéria de facto provada, em violação do disposto no artº 615º, nº 1, al. b), do CPC, que comina como nulidade da sentença, nesta parte, o que se invoca.
B. DA MATÉRIA DE FACTO SEM PRESCINDIR, XXXI- O tribunal errou, de forma grave, na apreciação e valoração da matéria de facto provada que consta nos pontos 5., 11., 12. e 13, da matéria de facto provada e, por isso, esta deve ser reapreciada e alterada nos atermos abaixo indicados. XXXI - Com efeito, quanto ao ponto 5., contém uma formulação ambígua e equívoca, quando afirma que “nem o autor nem qualquer dos seus colegas usou colete refletor, antes se posicionando, pelo menos o autor, agachados junto a uma tampa de saneamento que levantaram para inspecionar um tubo que por ali passava”. XXXIII - Na verdade, resulta de vários depoimentos, acima transcritos e passagens citadas, nomeadamente da testemunha BB, que apenas o sinistrado se encontrava agachado. XXXIV - Assim, no ponto 5. da matéria de facto deve apenas constar que “nem o autor nem qualquer dos seus colegas usou colete refletor, encontrando-se o autor agachado junto a uma tampa de saneamento, que levantaram para este inspecionar um tubo que por ali passava e os outros dois estavam ali ao lado, em pé. XXXV - O ponto 11., da matéria de facto provada encontra-se também erradamente apreciado e julgado. XXXVI- Com efeito, a testemunha BB, como resulta da impugnação da matéria de facto supra, declarou na sessão e passagens aí citadas, que apenas o sinistrado se encontrava a olhar para o buraco. XXXVII - Assim, este ponto da matéria de facto deve ser alterado, dele devendo constar que “quando se dá o acidente, estava o autor junto à tampa de saneamento a olhar para o buraco que a mesma tapava, enquanto os outros dois trabalhadores se encontravam, ao lado, em pé. XXXVIII - Quanto ao ponto 12., encontra-se erradamente julgado, como resulta dos depoimentos das testemunhas CC e DD, do depoimento do condutor EE e de BB, cujos depoimentos se encontram acima transcritos. XXXIX - Deles resulta que o condutor do veículo não se apercebeu da presença do sinistrado e demais trabalhadores, por ter ficado encadeado pelo sol. XL - Mais se apurou que o condutor do veículo, por esse motivo, só travou quando embateu no sinistrado, como resulta do próprio depoimento do condutor acima transcrito: ”não os vi e só depois de bater é que me apercebi”, depoimento acima transcrito em passagens citadas. XLI - Depoimento que o tribunal desvalorizou, considerando incoerente, sem qualquer motivo ou justificação válidas. XLII - Incoerente porque? Repetiu esta afirmação várias vezes, espontaneamente a instâncias nossas e do tribunal. Foi corroborado pelo depoimento dos trabalhadores, que depuseram como testemunhas, que afirmaram, logo após o acidente, que o condutor lhes disse não se tinha apercebido da sua presença, por ter sido encadeado pelo sol. A própria testemunha BB, declarou, em local e passagem acima citadas que o sol batia na direcção do condutor do veículo e é possível que lhe causasse dificuldades de visibilidade. XLIII - Não existe qualquer razão de ciência ou de qualquer outra natureza que justifique considerar incoerente o depoimento do condutor do veículo. XLIV - Salvo o devido respeito, afigura-se-nos que o depoimento do condutor não só é coerente, como é credível e plausível, nesta parte, atenta a forma como embateu no sinistrado sem antes de dele se aperceber, bem dos demais trabalhadores, não obstante se admitir que estava nervoso, o que se compreende, afinal foi, objectivamente, o causador directo do acidente, independentemente da culpa que lhe possa ou não ser imputada. XLV - Assim, os pontos 12. e 13. devem ser alterados e neles constar o seguinte: ponto 12:” Foi então que surgiu o veículo de matrícula ..-IS-.., conduzido por EE, que circulava a uma velocidade inferior a 50k/h, quando foi encadeado pelo sol e, por via disso, não se apercebeu da presença do sinistrado ( autor ) e seus colegas em plena faixa de rodagem”. XLVI- Ponto 13: “Indo embater com o espelho retrovisor na orelha do autor, embatendo igualmente na tampa de saneamento levantada, a qual veio a raspar também a perna do Autor” XLVII - Donde resulta que a causa do embate foi o facto do condutor do veículo não ter avistado os trabalhadores e o sinistrado, devido ao encadeamento pelo sol. XLVIII - Não fora esse encadeamento, o condutor do veículo, facilmente se teria apercebido da presença do sinistrado e demais trabalhadores na via, dada a boa visibilidade na mesma. XLIX - Daqui se conclui que nem sequer existe nexo de causalidade adequada entre a violação das regras de segurança e o acidente. L - Sem prescindir, mesmo que se admitisse existir nexo de causalidade, a conduta do sinistrado nunca seria a única e exclusiva causa, pois a conduta do condutor do veículo foi a causa imediata, surgindo sempre como causa concorrente para o acidente. XLVI - Destarte, não se mostra verificado o pressuposto da exclusividade da culpa na conduta do sinistrado, para efeitos de a qualificar como culpa grosseira, nos termos do nº 1, al. b), do artº 14º, da LAT. XLVII - Inexistindo, assim, fundamento legal para descaracterizar o acidente. XLVIII - Ao decidir como decidiu, o tribunal violou o disposto no artº 14º, nº 1, als a e b) da LAT e o artº 615º, nº 1, al. b). do CPC.
Termos em que, nestes e nos demais de direito, deve o presente recurso ser jugado procedente, mesmo considerando a matéria de facto considerada provada na sentença e, sem prescindir, caso se entenda que se torna necessária a reapreciação da prova para decidir pela descaracterização do acidente, deve proceder-se à reapreciação da prova constante dos pontos 5., 11., 12. e 13., da matéria de facto provada, alterando-a nos precisos termos acima expostos, revogando-se, assim, a decisão que absolveu a Ré dos pedidos e substituindo por outra que julgue a acção totalmente provada e procedente, Assim Fazendo V.Exas a costumada, JUSTIÇA.”
Não foi apresentada qualquer resposta ao recurso.
Admitido o recurso na espécie própria, com o adequado regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a esta 2ª instância.
Foi dado cumprimento ao disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil e posteriormente foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II – DO OBJECTO DO RECURSO
Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões do Recorrente, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal da Relação são as seguintes:
- Da descaraterização do acidente por violação das regras instituídas sobre higiene e segurança no trabalho por parte do sinistrado e da descaracterização do acidente negligência grosseira.
- Da impugnação da matéria de facto e respetivas consequências;
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Factos Provados
1. O autor, no dia ../../2022, cerca das 15.50 horas, em ..., trabalhava sob as ordens, fiscalização e direcção da entidade empregadora “EMP02... – Tratamentos de águas, Sa”, com a categoria profissional de técnico de manutenção.
2. Quando se encontrava a verificar uma tampa de saneamento, na via pública, foi atropelado por um veículo automóvel, do que resultou para o autor as lesões constantes dos autos de perícia médica a que se procedeu em 02.06.2022, designadamente traumatismo da perna direita e do ouvido esquerdo.
3. O acidente ocorreu na faixa de rodagem da Avenida ..., em ..., uma artéria em que passam centenas de veículos por dia.
4. O autor, assim como todos os seus colegas, tinha instruções expressas da sua entidade patronal para, caso tivessem que efectuar qualquer trabalho na via pública, sinalizar o mesmo, bem como para usar os coletes reflectores; o autor e seus colegas tinham à sua disposição sinais, assim como fitas e barreiras limitadoras e coletes reflectores. Todos conheciam as regras de segurança impostas pela sua entidade patronal de proceder sempre à sinalização das obras nas vias públicas e especialmente se em faixa de rodagem - e de usar coletes reflectores, percebendo o seu sentido e alcance – avisar utentes da via da sua presença e dos trabalhos em curso, de modo a evitar o seu atropelamento ou outros acidentes.
5. Nem o autor, nem qualquer dos seus colegas usou colete reflector, antes se posicionando, pelo menos o autor, agachados junto a uma tampa de saneamento, que levantaram para inspecionar um tupo que por ali passava.
6. O autor manteve-se com ITA entre 13.01.2022 e 16.02.2022 e com ITP de 25%, entre 17.02.2022 a 04.03.2022.
7. Na data do acidente o autor auferia a quantia mensal de €705x14, acrescida €7,32x22x11 de subsídio de alimentação e de €30x12, de outros subsídios.
8. A entidade empregadora do autor transferira a responsabilidade por acidentes de trabalho para a ré, através da apólice nº ...29 e pela totalidade da retribuição acabada de referir.
9. O autor recebeu da ré, a título de indemnização pelos períodos de IT a quantia de €823,99.
10. Do acidente resultou uma IPP de 11,5360% e, em consequência do evento, despendeu a quantia de €10 de deslocações ao Tribunal e GML.
11. Quando se dá o acidente, estava o autor e os demais colegas, que o acompanhavam, junto à tampa de saneamento que haviam levantado, a olhar para dentro do buraco que a mesma tapava.
12. Foi então que surgiu o veículo de matrícula ..-IS-.., conduzido por EE, o qual não obstante circular a uma velocidade inferior a 50 Km/h, foi surpreendido pela presença do autor e seus colegas em plena faixa de rodagem.
13. Apesar de ter travado e dada a distância a que o autor se tornou visível, o condutor bateu com o espelho retrovisor na orelha do autor, embatendo igualmente na tampa de saneamento levantada, a qual veio raspar também a perna do autor.
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Factos Não Provados
1. A. O condutor da viatura que colidiu não observou ou obedeceu às orientações de trânsito efectuadas por um colega de trabalho do autor.
IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO
1. Da Descaraterização do Acidente
Importa desde já deixar consignado que por os factos em apreciação terem ocorrido em 12.01.2022, a Lei aplicável, no que respeita ao regime dos acidentes de trabalho é a Lei n.º 98/2009 de 4/09 (doravante NLAT), que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais, nos termos do art.º 284º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009 de 12/02.
O tribunal julgou verificados os pressupostos para a descaracterização do acidente previstos no art.º 14º, nº 1, al, a) e b), da NLAT.
Atenta a factualidade apurada e sem necessidade de se proceder à apreciação da impugnação da matéria de facto, podemos desde já adiantar que não partilhamos da posição assumida pelo Tribunal a quo relativamente à descaraterização do acidente de trabalho, razão pela qual passamos desde já a analisar a decisão recorrida, perante o quadro factual apurado pelo tribunal de 1.ª instância.
Da descaracterização do acidente por a violação das condições de segurança por parte do sinistrado - al. a) do nº 1 do art.º 14º da NLAT.
Insurge-se o Recorrente quanto ao facto do tribunal recorrido ter entendido que o acidente se ficou a dever à violação das condições do segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei, por parte do sinistrado.
Na sentença recorrida após algumas considerações jurídicas, a este propósito consignou-se o seguinte: “Do elenco dos factos julgados como provados extrai-se que o sinistrado pretendia verificar duas tampas de saneamento, situadas em plena faixa de rodagem, num cruzamento e estrada com trânsito intenso, sendo, por isso, da mais elementar prudência o uso de um qualquer equipamento de protecção/sinalização, sendo que nada foi feito no sentido de evitar o embate. Todos sabem que permanecer numa faixa de rodagem com bastante trânsito, ainda que para fazer algo rápido, tem que se sinalizar de qualquer forma e, indubitavelmente, usar colete reflector; trata-se de uma situação especialmente perigosa e os condutores não são obrigados a adivinhar ou precaver-se de algo que não é habitual – três pessoas na faixa de rodagem, sem sinalização prévia alguma. Estas três pessoas tinham como função aquela que estavam a executar e conheciam aquilo que todos conhecem no âmbito estradal… peões parados na faixa de rodagem sem qualquer sinalização traduzem uma probabilidade muito elevada de acidente, estando aqui nos autos plenamente provado exclusivo nexo causal entre a conduta do sinistrado e o evento, já que não resultou demonstrado que o condutor, por qualquer forma, tivesse violado qualquer norma de ordenação estradal.”
Daqui resulta a violação pelo sinistrado das regras estabelecidas pelo empregador ao ter dado instruções expressas ao sinistrado e aos seus colegas para, caso tivessem que efectuar qualquer trabalho na via pública, sinalizar o mesmo, bem como para usar os coletes reflectores; o autor e seus colegas tinham à sua disposição sinais, assim como fitas e barreiras limitadoras e coletes reflectores. Mais, todos conheciam as regras de segurança impostas pela sua entidade patronal de proceder sempre à sinalização das obras nas vias públicas e especialmente se em faixa de rodagem - e de usar coletes refletores, percebendo o seu sentido e alcance – avisar utentes da via da sua presença e dos trabalhos em curso, de modo a evitar o seu atropelamento ou outros acidentes – cfr. ponto 4 dos pontos de facto provados.
Será que a factualidade provada nos permite concluir pela descaracterização do acidente por a violação das condições de segurança por parte do sinistrado - al. a) do nº 1 do art.º 14º da NLAT.
Vejamos:
Prescreve o artigo 14.º da NLAT, o seguinte: “1 – O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que: a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei; (…) 2 – Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.
Resulta do normativo, aliás, como tem sido também entendido pela jurisprudência e pela doutrina, que para que opere a descaraterização do acidente de trabalho nos termos previstos na al. a) 2ª parte do n.º 1 do artigo 14º da NLAT terão de se verificar de forma cumulativa os seguintes requisitos:
- a existência de condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
- que sejam voluntariamente violadas pelo trabalhador as condições de segurança (exigindo-se aqui a intencionalidade ou dolo, na prática, ou omissão, o que exclui as chamadas culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração, esquecimento, ou outras atitudes que se prendem com os atos involuntários, resultantes ou não da habituação ao risco.)
- que a violação das condições de segurança seja sem causa justificativa (do ponto de vista do trabalhador), o que passa pelo claro conhecimento do perigo que possa resultar do ato ou omissão, a causa justificativa ou explicativa não tem que ter um carácter lógico ou normal em relação à atividade laboral; pode ser uma brincadeira a que não se associam consequências danosas, uma inadvertência ou momentânea negligência, uma imprudência, ou mesmo um impulso instintivo ou altruísta.
- que o acidente seja consequência, em termos de causalidade adequada, dessa conduta[1].
Importa referir que o ónus da prova dos factos que referentes à descaracterização incumbe à entidade responsável pela reparação, designadamente a prova da “falta de causa justificativa” enquanto facto impeditivo do direito do autor – cfr. art. 342.º n.º 2 do Código Civil[2]
Acresce dizer que a violação de regras de segurança estabelecidas por lei, contemplada no n.º 1 al. a) do artigo 14.º da NLAT, deve ser entendida como abarcando as normas ou instruções que visam acautelar e prevenir a segurança dos trabalhadores, tendo em vista a eliminação ou diminuição dos perigos/riscos para a saúde vida ou integridade física do trabalhador, razão pela qual não podemos concluir que a violação pelo trabalhador de qualquer norma prevista na lei ou de uma qualquer regra imposta pelo empregador, dá lugar à descaracterização do acidente. A violação terá de ser de norma legal ou regra imposta pelo empregador que vise acautelar ou prevenir a segurança dos trabalhadores abrangendo apenas as que se conexionam com o risco da atividade profissional exercida, as que estão de alguma forma ligadas à própria execução do trabalho que o sinistrado se obrigou a prestar no exercício da sua atividade[3].
Atenta a factualidade apurada é manifesto que o sinistrado e os dois colegas que o acompanhavam violaram as regras de segurança determinadas pelo empregador, uma vez que a tampa de saneamento que tinham de verificar se situava na via pública, a meio de uma faixa de rodagem, da Av. ..., em ... e estes não sinalizaram o trabalho que tinham de efetuar, nem usaram os coletes refletores, que tinham à sua disposição, sendo conhecedores das regras impostas pelo seu empregador.
A violação das regras de segurança consistiu no facto dos trabalhadores, neles se incluindo o sinistrado, terem iniciado a verificação de uma tampa de saneamento, situada a meio de uma faixa de rodagem, sem terem assinalado os trabalhos e sem se munirem de coletes refletores.
Quanto à atuação voluntária do sinistrado, à sua culpa e à inexistência de causa justificativa apraz dizer que concordamos com as considerações jurídicas defendidas pelo Tribunal a quo.
Contudo delas extraímos ilação diversa, pois para que haja lugar à descaracterização não basta a violação da norma de segurança, importa ainda que a culpa atinja determinada gravidade, ou seja, tem de tratar-se de um comportamento subjetivamente grave e tem ainda que se provar a inexistência de justa causa[4].
Como se escreve a este propósito no Ac. deste Tribunal de 14.03.2024 (relatora LEONOR BARROSO), do qual fui 2.ª Adjunta “(…)é certo que a lei distingue a descaracterização do acidente de trabalho com base em duas causas diferentes, por um lado, a decorrente de violação das regras de segurança fixadas por empregador ou lei (14º, 1, a) e, por outro lado, a decorrente de atitude de negligência grosseira. O que poderia levar à conclusão de que uma prescinde da outra e que são questões apartadas. A questão não tem merecido uma resposta unívoca, quer por parte da jurisprudência, quer por parte da doutrina. Ao nível da jurisprudência superior do STJ identificamos duas tendências. Uma, mais recuada no tempo, que entende que a violação das regras de segurança enquanto causa de descaracterização do acidente de trabalho carece apenas de inexistência de “causa justificativa”, prescindindo-se da verificação de negligência grosseira na actuação do sinistrado. A argumentação principal é a de que esta última é gizada na lei como uma causa autónoma de descaracterização do acidente de trabalho prevista na alínea b) do preceito em causa e que, ademais, a violação voluntária e consciente de regras de segurança acarreta, por si, a existência de culpa - ac. STJ 14/03/2007, p. 06S4907 e ac. 23/09/2009, p. 323/04.0TTVCT.S1, www.dgsi.pt. Na doutrina um dos autores defensores deste entendimento encontra-se em Pedro Romano Martinez, que refere que, em caso da exclusão de responsabilidade com base na violação por parte do trabalhador das condições de segurança “está fora de questão o requisito de negligência grosseira da vítima”, exigência esta que apenas se reporta à alínea b), do artigo 14º, 1, NLAT. Ainda assim, este autor não deixa de frisar que a negligência deve assumir uma certa gravidade e que a violação dessas regras tem de ser consciente. Só nestes casos se justifica afastar a responsabilidade em empresarial assente no risco. Segundo o autor “Não é qualquer atuação menos cuidada por parte do trabalhador que acarreta a exclusão ou redução da responsabilidade, torna-se necessário que a falta tenha alguma gravidade”- Direito do Trabalho, 9º ed., p. 902, 903 e 904. Uma outra tendência do STJ, que podemos apelidar de mais recente, entende que a descaracterização do acidente de trabalho por violação das regras de segurança pelo sinistrado, a par dos demais requisitos, exige ainda um grau acentuado de culpa Neste sentido do STJ ac.s de: 13-10-2021, p. 3574/17.3T8LRA.C1.S1 em cujo sumário consta:” I- Ocorre descaracterização do acidente de trabalho com o fundamento estabelecido na segunda parte da alínea a), do n.º 1, do art.º 14.º, da LAT, se o acidente provier de ato ou omissão da vítima, se ela tiver violado, sem causa justificativa, as condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal. II- Assim, não basta a mera violação das regras de segurança para que o acidente seja descaraterizado. É necessário que essa infração ocorra por culpa grave do trabalhador e que este tenha consciência da violação.”); ac. 10/02/2021, p. 2267/18.9T8LRA.C1.S1, colhendo-se da fundamentação que a violação de regras terá de ser subjectivamente grave e que, ademais, a ré que excepciona a descaracterização tem de provar que “inexiste causa justificativa” e no caso não se apuraram factos sobre o motivo pelo qual o sinistrado não usava arnês quando caiu); ac. 11-05-2017, p. 1205/10.1TTLSB.L1.S1 de cuja fundamentação se colhe que adere ao entendimento de Júlio Gomes referindo-se “....parece-nos bem conforme com os objetivos de uma lei que se pretende que seja o mais amplamente reparadora dos acidentes de trabalho, daí que se aceite que a violação das regras de segurança, por parte do trabalhador, possa ter outras causas justificativas para além das referidas no n.º 2, do art.º 14, do Regulamentação do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais”. A RG tem alinhado no entendimento de que, para a descaracterização do acidente de trabalho em caso de violação de regras de segurança por parte do trabalhador, é necessária a verificação de uma culpa grave - RG ac.s de 19-03-2020, p. 334/16.2T8VCT.G1; de 21-01-2021, p. 1081/17.3T8VRL.G1 ; de 6/05/2021, p 2170/19.5T8VCT.G1 (de que fomos relatora); de 13-07-2022, p. 122/19.4T8BGC.G1. Alguma jurisprudência (por ex. ac. STJ de 10/02/2021 acima referido) encontra arrimo para a exigência de culpa mais acentuada na expressão “violação voluntária, embora não intencional, e sem causa justificativa” mencionada no preceito. A expressão é “aberta” e muito abrangente. A lei (nº 2, do art. 14º, NLAT), tenta clarificar o conceito, associando-o ao desconhecimento ou dificuldade de o trabalhador entender a norma ou a instrução violada, em face do seu grau de instrução ou do acesso à informação. Contudo, como já se entreviu a jurisprudência tem vindo a acolher que a não descaracterização do acidente por violação da lei ou de instruções do empregador relativas à segurança/saúde no trabalho pode radicar noutras causas para além das dificuldades em conhecer ou entender a norma ou a instrução. Salientando-se que se deve atender ás circunstâncias concretas do caso, à gravidade da infracção, à forte consciência do perigo que a sua conduta necessariamente acarretaria (negligência consciente) e até mesmo à exclusividade da culpa na produção do acidente. Não se trata de aferir uma pura negligência grosseira, temos consciência que esse é outro fundamento distinto de descaracterização do acidente de trabalho previsto noutra alínea legal (b), 1, 14º, NLAT). Trata-se, antes, de afastar culpas mais ligeiras, omissões menos conscientes do perigo e cujo resultado acaba por ser influenciado por outros factores que não só a infracção cometida. A jurisprudência, na verdade, pelo menos nos tempos mais recentes, têm coincidido em que não é qualquer imprudência que descaracteriza o acidente e que tal só se justifica em situações de culpa severa - ac. do STJ de 11-05-2017, proc. 1205/10.1TTLSB.L1.S1 acima citado, e, além dos já citados, ac. da RP de 23-11-2020 (sinistrado atingido no olho por uma limalha ao cortar cm rebarbadora uma calha, sem usar óculos de protecção), em cujo sumário consta: “IIII - Sendo um dos requisitos exigidos a voluntariedade na violação das regras de segurança, quer legais quer estabelecidas pela entidade patronal, ficam excluídos da descaracterização os actos ou omissões que resultem as chamadas culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração, esquecimento ou outras atitudes que se prendem com os actos involuntários, resultantes ou não da habituação ao risco. IV - A violação das regras de segurança, só por si, não é bastante que operar a descaracterização, devendo exigir-se um comportamento subjetivamente grave do sinistrado. V. - A violação das regras de segurança, por parte do trabalhador, pode ter outras causas justificativas para além das dificuldades daquele em conhecer ou entender a norma legal ou estabelecida pelo empregador.” Na doutrina, Júlio Manuel Vieira Gomes é frequentemente citado como um dos autores que mais fortemente frisa que a exclusão da reparação por acidente de trabalho é uma consequência desproporcionada, que só se justifica: “….para comportamentos dolosos ou com um grau de negligência muito elevado que sejam, eles próprios, a causa do acidente, de tal modo que verdadeiramente se quebre o nexo etiológico entre o trabalho e o acidente”. Mais referindo “… não pode ser o mero facto da violação das regras de segurança que opera a descaracterização, devendo exigir-se um comportamento subjetivamente grave, ao que acresce que outras “justificações” poderão ser relevantes. Terá, por conseguinte, que verificar-se, também aqui, uma culpa grave do trabalhador, tão grave que justifique a sua exclusão, mesmo que ele esteja a trabalhar, a executar a sua prestação, do âmbito de tutela dos acidentes de trabalho. Essa culpa deve ser aferida em concreto e não em abstrato, e não poderá deixar de atender a fatores como o excesso de confiança induzido pela própria profissão, a passividade do empregador perante condutas similares no passado […] e, simplesmente, fatores fisiológicos e ambientais como o cansaço, o calor ou o ruído existente no local de trabalho, Destarte, deve considerar-se […] que a violação das regras de segurança pode ter outras causas justificativas para além da dificuldade em conhecer ou entender a norma legal ou estabelecida pelo empregador” – sublinhado nosso- O acidente in itinere, Coimbra Editora, 2013, p.s 232/234 e 240/246. O autor chama a atenção para a história do preceito e a técnica legislativa empregue “elemento histórico da norma sublinhado que :“(…) desde logo, que “a prática de atos e omissões que importem a violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei” não representa uma alínea autónoma, mas a parte final da alínea a) onde estão igualmente previstos os acidentes dolosamente provocados pelo sinistrado. Este elemento sistemático é importante, porque ilustra bem que estas situações de violação das condições de segurança contempladas pela lei são aquelas suficientemente graves para terem sido quase “equiparadas” ao dolo”, dado que, “(…) historicamente, a violação das regras de segurança foi tratada, entre nós, como um caso de desobediência, de rebelião contra a autoridade – que só depois se estendeu á violação de regras legais – próximo do dolo e por isso tratada na mesma alínea que os comportamentos dolosos.” - negrito nosso.
Também Carlos Alegre exige uma espécie de “culpa qualificada”, não bastando a culpa leve. Afirma o autor que só se exclui a reparação caso de verifiquem cumulativamente as seguintes condições:” «1ª. Que sejam voluntariamente violadas as condições de segurança, exigindo-se, aqui, a intencionalidade ou dolo, na prática ou omissão, o que exclui as chamadas culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração, esquecimento ou outras atitudes que se prendem com os atos involuntários resultantes ou não da habituação ao risco; 2ª. Que a violação das condições de segurança sejam sem causa justificativa (do ponto de vista do trabalhador), o que passa pelo claro conhecimento do perigo que possa resultar do ato ou omissão: a causa justificativa não tem que ter um carácter lógico ou normal em relação à atividade laboral, pode ser uma brincadeira a que não se associam consequências danosas, uma inadvertência ou momentânea negligência, uma imprudência ou mesmo um impulso instintivo ou altruísta. 3ª. Que as condições de segurança sejam, apenas, estabelecidas pela entidade patronal (em regulamento de empresa, ordem de serviço ou outra forma de transmissão.» 4º ….que o acidente seja consequência necessária do acto ou omissão do sinistrado” - Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado – 2ª edição, Almedina, página 61. Sabe-se que a negligencia (mera culpa) consiste na omissão de um dever objectivo de cuidado ou de diligência aferido pelo padrão de um homem médio, que, segundo as características do caso, seria adequado a evitar a produção de um evento, que o agente seria capaz de adoptar e lhe seria exigível (487º CC). Com recurso aos conceitos penais (15º CP) e tendo presente que a culpa comporta sempre um aspecto volitivo (o querer) e um intelectual (saber ou ter consciência), importa distinguir a negligência consciente em que o sinistrado prevê como possível a produção do resultado lesivo mas crê, por leviandade ou incúria, na sua não verificação, e a negligência inconsciente em que o sinistrado, podendo e devendo prever aquele resultado e cabendo-lhe evitá-lo, não chega a equacionar a possibilidade da sua verificação. Sob outra perspectiva, a negligência pode apresentar diferentes graus, em função da ilicitude e da culpa:” será levíssima quando o agente tiver omitido os deveres de cuidado que uma pessoa excepcionalmente diligente teria observado; será leve quando o parâmetro atendível for o comportamento de uma pessoa normalmente diligente e será grave quando a omissão corresponder àquela em que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta teria também incorrido” – ac. STJ de 9-06-2010, proc. 579/09.1yFLSB”
Em suma, tendo presente que a lei da reparação dos acidentes de trabalho pretende que a reparação dos acidentes seja o mais amplo que for possível, para que se considere o acidente de descaracterizado, não basta provar que o sinistrado violou regras de segurança e saúde no trabalho impostas pelo empregador, pois importa provar o grau de culpa do sinistrado, que terá de ser considerado de grave ou severo, bem com provar da “inexistência de causa justificativa”.
De retorno ao caso dos autos teremos de dizer que os factos provados não permitem concluir que o grau de culpa da atuação do sinistrado possa ser considerado de elevado ou grave, pois apesar de não se ter munido do equipamento necessário, nem ter assinalado os trabalhos no local, o certo é que estava acompanhado de outros dois colegas que tiveram procedimento igual, a que acresce o facto dos trabalhos se resumirem a uma simples verificação das tampas de saneamento, o que por norma é de considerar uma operação rápida, o que pode ter dado lugar a algum facilitismo, próprio de quem executa este tipo de funções. Estando três trabalhadores para verificarem uma caixa de saneamento um deles faria a verificação e os outros tomariam conta do trânsito de forma a evitar o acidente.
Os factos quanto a este conspecto não abundam, pois não sabemos das razões pelas quais não sinalizaram o local da intervenção, nem se muniram de coletes, mas permite concluir, que estando o sinistrado acompanhado de outros dois colegas de trabalho que agiram da mesma forma, a culpa do autor não pode ser considerada nem de suficiente grave, nem de severa, nem o seu comportamento se revela de subjetivamente grave. Ao invés, a factualidade apurada nem sequer nos permite concluir que o sinistrado teve consciência da violação, pois terá agido, ou não, com excesso de confiança induzido pela sua profissão, no qual foi acompanhado pelos seus colegas de trabalho.
Voltamos a reforçar não é possível, face aos factos apurados, fazer qualquer juízo sobre a existência de um comportamento culposo do trabalhador e qual a sua gravidade já que se desconhecem as condições e as causas que determinaram a falta de sinalização dos trabalhos e o não uso de colete refletor.
Por outro lado, da factualidade provada também não resulta qualquer facto sobre o motivo pelo qual o sinistrado e os colegas que o acompanhavam não sinalizaram o trabalho, nem se muniram de coletes refletores para verificar a tampa de saneamento, situada em plena faixa de rodagem, ou seja, não se provaram factos que nos permitam concluir pela inexistência de causa justificativa para não observância das normas violadas pelo sinistrado. Ao invés, a factualidade apurada permite concluir que por serem três a realizar um serviço rápido, ainda que em plena faixa de rodagem (desconhecendo-se, na altura do acidente, a intensidade do tráfego que por aí circulava) facilitaram no cumprimento das normas de segurança.
Em suma, não há lugar à descaracterização do acidente de trabalho nos termos prescritos na al. a) do n.º 1 do art.º 14.º da NLAT, no caso de se ter apenas demonstrado a violação de normas de segurança, sem que se tenha logrado provar que o sinistrado atuou com um grau de culpa acentuada, severa e indesculpável e sem se ter apurado a “inexistência de causa justificativa” da atuação do sinistrado na violação das regras de segurança.
Da descaraterização por negligência grosseira
Importa agora, apreciar se o comportamento do sinistrado integra a situação prevista no n.º 1 al. b) do artigo 14.º da NLAT.
O Recorrente insurge-se contra o facto de na sentença recorrida se ter concluído pela descaracterização do acidente, fazendo-se, assim, uma errada interpretação dos factos provados, já que a factualidade apurada não permite qualificar a conduta do sinistrado como grosseira, em alto e relevante grau, temerária, inútil e gratuita, nem permite concluir que o evento infortunístico tenha ocorrido exclusivamente por culpa do sinistrado.
Sob a epígrafe de “Descaracterização do acidente” estabelece o artigo 14º da NLAT, a este propósito o seguinte: “1. O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que: (…) b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado; (…). 3. Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.”
Conforme é pacífico na doutrina e na jurisprudência, para que determinada conduta integre a negligência grosseira, não basta que se verifique uma culpa leve, como a imprudência, a distração, a imprevidência ou comportamentos semelhantes. Ao invés, exige-se um comportamento temerário, um elevado grau de inobservância do dever objetivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo reprovado por um elementar sentido de prudência.
A negligência grosseira corresponde a uma culpa grave, o que pressupõe que a conduta do agente, seja gratuita, infundada e que se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum.
Trata-se de uma negligência temerária, configurando uma omissão ostensivamente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares, que deve ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstrato de conduta.
Em suma, para que se verifique a descaraterização do acidente com base na negligência grosseira é necessária a prova de que ocorreu um ato ou omissão temerária, reprovável e indesculpável em alto e relevante grau por parte do sinistrado, injustificados pela habitualidade ao perigo do trabalho executado, pela confiança na experiência profissional ou pelos usos e costumes da profissão, e, além disso, é também preciso provar que o acidente ocorreu exclusivamente por causa desse comportamento.
Com relevo para apreciação desta questão resulta da factualidade provada que o sinistrado, no dia ../../2022, cerca das 15.50 horas, quando prestava a sua atividade profissional técnico de manutenção, sob as ordens, direção e fiscalização da “EMP02... – Tratamentos de águas, Sa”, e se encontrava, juntamente com dois outros colegas de trabalho, a verificar uma tampa de saneamento, na faixa de rodagem da Avenida ..., em ..., foi atropelado. Nem o autor, nem qualquer dos seus colegas usou colete reflector, antes se posicionando, pelo menos o autor, agachados junto a uma tampa de saneamento, que levantaram para inspecionar um tubo que por ali passava. Quando se dá o acidente, estava o autor e os demais colegas, que o acompanhavam, junto à tampa de saneamento que haviam levantado, a olhar para dentro do buraco que a mesma tapava. Foi então que surgiu o veículo de matrícula ..-IS-.., conduzido por EE, o qual não obstante circular a uma velocidade inferior a 50 Km/h, foi surpreendido pela presença do autor e seus colegas em plena faixa de rodagem. Apesar de ter travado e dada a distância a que o autor se tornou visível, o condutor bateu com o espelho retrovisor na orelha do autor, embatendo igualmente na tampa de saneamento levantada, a qual veio raspar também a perna do autor. O autor, assim como todos os seus colegas, tinha instruções expressas da sua entidade patronal para, caso tivessem que efectuar qualquer trabalho na via pública, sinalizar o mesmo, bem como para usar os coletes reflectores; o autor e seus colegas tinham à sua disposição sinais, assim como fitas e barreiras limitadoras e coletes reflectores.
Desta factualidade resulta a conduta descuidada, imprudente e até temerária quer do sinistrado, quer dos seus colegas de trabalho que o acompanhavam, ao desrespeitaram as instruções emanadas pelo empregador ao verificar uma tampa de saneamento, na via pública, em plena faixa de rodagem, sem terem assinalado os trabalhos e sem se terem munido de coletes refletores, originando que o veículo de matrícula ..-IS-.., conduzido por EE, que circulava uma velocidade inferior a 50 Km/h, embatesse no autor.
Contudo, não podemos deixar de considerar que este comportamento temerário radica, quer no facto de se tratar de um trabalho que deveria ser rápido, tratava-se apenas de uma verificação, quer no facto de o sinistrado estar acompanhado pelos seus colegas de trabalho, que atuaram da mesma forma, o que nos permite concluir que a habituação ao perigo que, por efeito do tempo de prestação de trabalho e da experiência adquirida, se tenha desenvolvido no sinistrado, tenha minorado os níveis de cautela, por si observados, pois por serem pelo menos três trabalhadores a executarem um serviço de curta duração ao posicionarem-se na faixa de rodagem, seriam avistados pelos condutores que por ali circulassem. Importa referir que não se apurou das condições de visibilidade do local, nem se apurou das razões pelas quais os três trabalhadores tomaram a mesma decisão de não acatar as instruções do empregador.
A factualidade apurada permite concluir pelo comportamento perigoso e imprudente do sinistrado, mas não nos permite caraterizá-lo como de alto e relevante grau, pois, para além de resultar da habitualidade ao perigo, atentas as funções desempenhadas pelo sinistrado, não seria esta a primeira vez que fazia verificações nas tampas de saneamento, e, por outro lado, estava acompanhado por outros colegas trabalho que atuaram da mesma forma. Não podemos esquecer que a atuação é concertada e não individual, o que permite deduzir que a confiança própria da experiência, fez baixar as cautelas dos trabalhadores e conduziu ao facilitismo, infringindo os procedimentos que estavam obrigados a adotar.
Em suma, podemos afirmar que estamos perante uma omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado e da confiança na experiência profissional, mas não podemos concluir que o sinistrado assumiu um comportamento altamente temerário e de relevante grau, configurando negligência grosseira.
Acresce dizer que ainda que assim não entendêssemos, teríamos de concluir pela não descaracterização do acidente, por não se verificar o requisito da exclusividade do comportamento do sinistrado na ocorrência do sinistro, uma vez que a factualidade é manifestamente insuficiente para concluir pela exclusividade da culpa do sinistrado na ocorrência do sinistro, pois algo se terá passado, para o condutor do veículo não se ter apercebido dos três indivíduos em plena faixa de rodagem, designadamente, como resulta do depoimento do condutor do veículo, (cujo depoimento o tribunal a quo desprezou), ficou encadeado com o sol e não os viu. Por outro lado, estando o autor acompanhado por dois colegas de trabalho estes também poderiam e deveriam ter adotado medidas para assinalarem a sua presença na faixa de rodagem.
Concluindo, da factualidade provada também não resulta a exclusividade do comportamento do sinistrado na ocorrência do sinistro, quer porque não resulta suficientemente concretizada a participação do condutor na ocorrência do sinistro, quer porque estava presente terceiro (outros colegas) que podiam ter evitado o acidente, e cuja participação também não foi suficientemente apurada.
Não estando assim descaraterizado o acidente, importa revogar a decisão recorrida e determinar a sua reparação, deixando consignado que fica prejudicado o conhecimento da questão, por nós acima enunciada, referente à impugnação da matéria de facto.
Da reparação do acidente
Estando perante um típico acidente de trabalho cabe agora proceder à sua reparação, designadamente proceder ao cálculo do capital de remição, bem como à indemnização devida por incapacidade temporária tendo por referência o valor da retribuição anual auferida pelo sinistrado e transferida para a Ré Seguradora e demais despesas reclamadas.
Atenta a factualidade provada da qual resulta que o sinistrado ficou a padecer de sequelas que lhe determinaram uma IPP de 11,5360%, bem como o valor da retribuição anual transferida para a Ré Seguradora de €12.001,44 é devida ao sinistrado a pensão anual e obrigatoriamente remível no montante de €969,14 assim calculado €12.001,44 x 70% x 11,536%.
No que respeita à indemnização por Incapacidade Temporária, atento o facto do sinistrado ter estado na situação de incapacidade temporária absoluta (ITA) durante um período de 35 dias e ter estado na situação de incapacidade temporária parcial (ITP) de 25% durante um período de 16 dias, bem como o valor da retribuição anual transferida para a Ré Seguradora de €12.001,44, é devida ao sinistrado a este título a quantia global de €897,64, assim calculada €12.001,44:365 x 70% x 35 + €12.001,44:365 x 70% x 25% x 16.
Resultando da factualidade apurada que a seguradora a título de indemnização pelo período de IT liquidou ao sinistrado €823,99, será agora apenas condenada no pagamento do remanescente que se cifra em €73,65.
Por fim, tendo-se se apurado que em consequência do evento o sinistrado despendeu a quantia de €10,00 em deslocações ao Tribunal e GML, ao abrigo do prescrito no art.º 39.º da NLAT vai a seguradora condenada no pagamento das referidas despesas.
V – DECISÃO
Pelo exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 87.º do CPT. e 663.º do CPC., acorda-se, neste Tribunal da Relação de Guimarães, em dar provimento ao recurso de apelação interposto por AA e consequentemente revoga-se parcialmente a sentença recorrida e condena-se a Ré Seguradora EMP01... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. a pagar ao Autor AA
- a pensão anual e obrigatoriamente remível de €969,14, devida desde 05.03.2023, acrescido dos juros de mora, à taxa legal, devidos desde a referida data;
-a quantia de €73,65, a título de diferença pela indemnização devida pelo período e incapacidade temporária, acrescida de juros de mora, à taxa legal, devidos desde 05.03.2023;
- a quantia de €10,00, a título de despesas com as deslocação ao Tribunal e o GML
Quanto ao mais é de manter a sentença recorrida.
Valor da ação: €16.127,76
Custas a cargo da Seguradora/Recorrida.
Notifique.
Guimarães, 18 de Junho de 2025
Vera Sottomayor (relatora)
Antero Veiga
Maria Leonor Barroso
[1] Neste sentido ver entre outros ac. do STJ de 19-11-2014, proc. n.º 177/10.7TTBJA.E1.S1, de 29-10-2013, proc. n.º 402/07.1TTCLD.L1. S1, de 6-07-2017 proc. n.º 1637/14.6T8VFX.L1.S1, da RP de 26-10-2017, proc. n.º 455/13.3TTVNG.P2, 23-11-2020, proc. n.º 1425/18.0T8MTS.P1, da RG de 15-02-2018, proc. n.º 681/12.2TTVCT, de 10-09-2020, proc. n.º 3723/18.4T8VCT.G1 e de 14-03-2024, proc. n.º 3512/22.1T8VNF.G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt, [2] Neste sentido, entre outros Acórdão do STJ de 03/03/2016, proc.º n.º 568/10.3TTSTR.L1.S1 (relator GONÇALVES ROCHA), no qual se refere o seguinte “cabe á entidade responsável pela reparação do acidente de trabalho o ónus da prova dos factos donde se possa concluir pela descaraterização do acidente de trabalho, por se tratar de facto impeditivo do direito invocado”. [3] Neste sentido se tem vindo a pronunciar o STJ, nomeadamente nos Acórdãos proferidos em 24/02/2010, Proc. n.º 747/04.2TTCBR.C1.S1; em 1/07/2009, Proc. n.º 823/06.7TTAVR.C1.S1 e 17/05/2007, Proc. 07S053, consultáveis em www.dgsi.pt. [4] Como se pode ler no Acórdão do STJ de 12/12/2017, no proc.º n.º 2763/15.0T8VFX.L1.S1 (relator RIBEIRO CARDOSO), “a descaracterização do acidente de trabalho com fundamento na 2.ª parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (…) exige que o trabalhador atue com culpa grave, que tenha consciência da violação, não relevando os casos de culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração ou ao esquecimento.”