CRÉDITOS LABORAIS
INSOLVÊNCIA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Sumário


Tendo a ré, contra quem a autora reclama créditos laborais, sido declarada insolvente por sentença transitada em julgado, ocorre inutilidade superveniente da lide, porquanto a sentença que viesse a ser proferida não surtiria o seu efeito útil normal, já que a autora sempre teria de reclamar o seu crédito na insolvência.
Ademais, tendo em acção ulterior apensada ao processo de insolvência sido verificado a totalidade do crédito que ora reclama, ocorre inutilidade superveniente da lide, porque a autora já viu o seu direito satisfeito por outra via.

Texto Integral


I. RELATÓRIO

AA intentou acção de processo comum emergente de contrato de trabalho contra EMP01... SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA., pedindo a condenação deste no pagamento de 21.652,53€, por créditos laborais (descontos na retribuição, subsídio de alimentação, créditos de formação profissional, férias e subsídio de férias) e indemnização por resolução de contrato com invocação de justa causa à razão de um mês de reatribuição por cada ano/fração de antiguidade, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos.
Alegou que, desde novembro de 2002 e até 28-06-2023, trabalhou para a ré como costureira, altura em que resolveu com justa causa o contrato de trabalho devido ao ambiente intimidatório e hostil criado pelo gerente da ré e pelo facto deste, recorrentemente, lhe ordenar que não se apresentasse ao serviço alegando redução ou falta de encomendas e inexistência de trabalho para executar, procedendo a descontos no vencimento relativamente aos períodos em que não desempenhava funções, apesar de tal não ser imputável à autora e de esta estar disponível para trabalhar.
Na tentativa de conciliação e perante  informação de que a ré foi declarada insolvente por sentença proferida em 14/03/2024, proc. 1724/24.2T8GMR – Comarca de Braga – Juízo de Comércio de Guimarães-J2, a senhora juiz, em 22-04-2024, julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, de acordo com o disposto no art.º 277.º, alínea e) do Código de Processo Civil”, tendo em conta a declaração de insolvência da ré por decisão transitada em julgado, citando em abono o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2014, de 08/05/2013 (publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 39, de 25/02/2014.
A autora recorre deste despacho. A primeira instância não admitiu o recurso, despacho esse que, após reclamação para esta Relação, foi revogado e admitida a apelação que ora cumpre decidir.

*
Entretanto, em 14-07-2024, por apenso ao processo de insolvência, a autora interpôs contra o ora réu, e massa insolvente, ação de verificação ulterior de créditos, reclamando o mesmo crédito peticionado na presente acção.
Em 17-09-2024, foi proferida sentença reconhecendo e certificando à Autora o crédito no montante global de €21.652,53, transitada em 08/10/2024.

FUNDAMENTOS DO RECURSO -CONCLUSÕES:

B.1 - A sentença recorrida viola e faz uma errada interpretação das disposições legais constantes do artigo 277.º, alínea e), do C.P.C., aplicável por força da norma constante do artigo 1.º, n.º 2, alínea a), do C.P.T., e dos artigos do C.I.R.E.
...B.2 – À data da prolação decisão a quo não estavam, e não estão, ainda, reunidos todos os pressupostos tendentes a declaração de extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide.
B.3 - Antes de se determinar a extinção da instância, por aquela causa, haverá que apurar se a sentença de declaração de insolvência foi, ou poderá vir a ter resultados semelhantes, à declaração com carácter limitado, se a Autora reclamou, ou não, de facto e de direito, os créditos suscitados na acção declarativa, mais, se tais créditos foram admitidos e reconhecidos pelo administrador de insolvência e se verificados e graduados, por apropriada sentença de verificação e graduação de créditos.
B. 4 - Ao invés de uma aplicação automática da declaração de insolvência e a imediata extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, deverá, antes disso, ser aquela questão potencial colocada à consideração das partes a respeito de uma eventual utilidade no prosseguimento da acção ou, até, hipoteticamente, alvitrar-se uma suspensão da instância declarativa até que determinada circunstância ocorra e defina, exemplarmente, os contornos do caso concreto.
...B.5 – O A.U.J. citado emerge de um caso em concreto, pois, estávamos perante uma acção declarativa em que era peticionado o pagamento de um crédito, já, reclamados no processo de insolvência, este de carácter pleno, e onde até já havia sido reconhecido, embora, ainda, em lista provisória de créditos reconhecidos e não reconhecidos pelo administrador de insolvência.
B.6 - A força persuasiva dos A.U.J. aplica-se às situações de facto semelhantes àquela que foi tida em consideração para a uniformização de jurisprudência, não estendendo a respectiva força aos casos em que a materialidade subjacente seja, substancialmente, diversa e, por tal, nem sequer tenha sido tida em conta aquando da uniformização de jurisprudência.
...B.7 - In casu, a situação de facto é bastante diferente da circunscrita no A.U.J, pelo que é-lhe, este, inaplicável.
De facto, 
B.8 - Resulta verificado, por ora, nos presentes, apenas, que a presente acção foi instaurada a 23/03/2024; a Ré foi declarada insolvente por sentença proferida em 15/03/2024; que do anúncio epigrafado como Publicidade de sentença e citação de credores e outros interessados nos autos de Insolvência acima identificados, publicado no Portal Citius, em 15/03/2024, resulta o supra mencionado; e, finalmente, que a sentença proferida em 15/03/2024 transitou em julgado.
....B.9 - A inutilidade superveniente da lide ocorre sempre que a pretensão do autor, por motivo superveniente, verificado na pendência do processo, deixa de ter qualquer efeito útil, porque já não é possível dar-lhe satisfação ou porque o resultado pretendido foi alcançado/assegurado por outro meio – fora do esquema da providência pretendida.
B.10 - Neste caso, a presente acção foi intentada, já, depois de declarada a insolvência da Ré, o que, por si só, bastava para excluir a aplicabilidade do artigo 287.º, alínea e), do C.P.C., uma vez que a declaração de insolvência é anterior à propositura da acção, inexistindo, portanto a superveniência.
B.11 - A declaração de extinção da instância só poderá ter lugar em virtude da prática do facto da reclamação do crédito ou do da sua relacionação; transitada em julgado a sentença que declara a insolvência e fixa prazo para reclamação de créditos e que o crédito seja garantido por bens integrados na respectiva massa insolvente; e, finalmente, a reclamação de um crédito num processo de insolvência, ou o seu relacionamento pelo administrador de insolvência é causa de extinção da instância, por inutilidade da lide, da acção declarativa em que o pedido formulado contra o insolvente é o mesmo crédito.
....B.12 - Declarada a insolvência, mas não se tendo designado prazo para a reclamação de créditos por se ter concluído pela insuficiência da massa insolvente, ou, determine a extinção da instância dos processos de verificação de créditos, produz efeitos na acção declarativa.
B.13 - Declarada a extinção da lide, por inutilidade, desconsiderando a superveniência do facto, não pode ser mantida até que, pelo menos por ora, pois a sentença a proferir na presente acção declarativa poderá vir a tornar-se relevante. 
....B.14 - Se é certo que a decisão a proferir seria inoperante perante os demais credores e massa insolvente, isto é apenas válido para o processo de insolvência e para os fins que tal processo visa atingir.
...B.15 - A sentença a proferir na presente acção poderá vir a produzir efeitos, fora do processo de insolvência, nos casos em que este seja encerrado sem que chegue a ser proferida sentença de verificação de créditos. 
...B.16 - É nosso entendimento que a sentença a proferir será a única forma de o credor obter o reconhecimento judicial do seu crédito, para, por via dela, poder exercer esse seu direito de crédito perante o devedor ou em sede de liquidação da sociedade, ainda que, para obtenção de um pagamento parcial.
Nessa medida, B.17   - Encerrado o processo de insolvência por insuficiência da messa, nada impede a execução da acção declarativa pendente para cobrança, ainda que parcial, dos créditos que vierem a ser reconhecidos na presente acção.
Em suma,  B.18   - Se a todo o direito corresponde a tutela jurídica adequada, incluindo a possibilidade da sua realização coerciva, designadamente pela via executiva, conforme expressa o artigo 2.º, n.º 2, do C.P.C., a jurisprudência formada no A.U.J. citado, com a interpretação que dele fazemos, não se aplica à Ré, pelo menos por ora, designadamente com os elementos de factos e a circunstâncias conhecidas, a qual, pelas razões acima expendidas, mantém integral utilidade a presente acção declarativa.
 
Termos em que... deverá o presente recurso ser declarado procedente e em consequência, revogar-se a decisão recorrida, com as consequências daí decorrentes, designadamente, substituindo-a por outra que, a final, ordene a suspensão da instância até à ocorrência de um facto superveniente que justifique a declaração de inutilidade superveniente da lide. “

SEM CONTRA-ALEGAÇÕES.
PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO: sustenta-se que a apelação não merece provimento.
Sem resposta ao parecer.
O recurso foi apreciado em conferência.

QUESTÃO A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso[1]): saber se ocorre inutilidade superveniente da lide em face da declaração de insolvência da ré, bem como do posterior reconhecimento dos créditos da autora por apenso ao processo de insolvência.

I.I. FUNDAMENTAÇÃO

A - FACTOS:
Os constantes do relatório.

B - DIREITO:
Importa saber se a primeira instância decidiu bem em declarar a extinção da instância por inutilidade superveniente desta acção em que a autora pediu a condenação da ré sociedade no pagamento de créditos, quando esta foi, entretanto, declarada insolvente.
A inutilidade superveniente da lide é uma forma de extinção da instância em que o juiz dá por encerrado o processo sem chegar a apreciar quem tem razão na causa - 277º, e), CPC.
O acesso ao direito e aos tribunais é um princípio basilar de qualquer Estado de Direito, sendo a denegação de justiça alvo de proibição constitucional - 2º e 20º CRP. Assim, a não apreciação do mérito da causa terá de encontrar explicação à altura.
A qual reside na constatação de que a pretensão que o autor pretendia fazer valer na acção foi, entretanto, alcançado por outra via. A continuação da acçao torna-se, pois, desnecessária e, aliás, redunda “em puro desperdício para as partes processuais envolvidas” - Francisco Manuel L F Almeida, Direito Processual Civil, Vol. I, 3ª ed., Almedina, pág. 765. Sendo igualmente um desperdício para todos os cidadãos, na medida em que a “máquina judiciária” é um bem comum, que deve ser gerida com eficiência, procurando resolver os conflitos que subsistem e não prolongar os insubsistentes.
Como exemplos claros de inutilidade superveniente da lide pode citar-se a acção de investigação da paternidade durante a qual se dá o acto de perfilhação, ou uma acção intentada pelo MP para dissolução de sociedade comercial em virtude de insuficiência de capital quando, entretanto, o aumento de capital foi efectuado.
A jurisprudência tem estendido o conceito de inutilidade superveniente da lide a “uma situação, posterior à sua instauração que implique a desnecessidade de sobre ela recair pronúncia judicial por falta de efeito” - ac. STJ de 15-03-2012, proc. 501/10.2TVLSB.S1, www.dgsi.pt. Nestas situações, embora a parte não tenha alcançado decisão sobre o direito que reclama, esta, ainda que venha a ser proferida, é inócua.
O caso das acções declarativas onde se peticionam créditos contra entidades entretanto declaradas insolventes é um exemplo deste segundo tipo de inutilidade, que em tempos deu origem a decisões jurisprudenciais diversas, mas que, entretanto, cremos, estabilizaram com a prolação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 1/2014, de 08/05/2013, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 39, de 25/02/2014.
A querela encontrava razão de ser no facto de a declaração de insolvência de uma sociedade não garantisse que o credor tivesse alcançado o efeito jurídico que pretendia fazer valer na acção delarativa. Assim, enquanto uns faziam depender a extinção da instância (por inutilidade superveniente) da decisão de verificação e graduação de crédito no processo de insolvência, outros declaravam-na logo que fosse reconhecida a insolvência considerando que o autor sempre teria de neste último processo exigir os seus créditos.
O Acórdão uniformizador referido fixou este último entendimento:
Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.”

Valendo-nos da doutrina fixada no acórdão, recorda-se que a declaração de insolvência implica que todos os créditos, independentemente da sua natureza, tenham de ser reclamados neste processo especial. Nenhum credor está dispensado de pedir o reconhecimento do seu crédito no processo de falência, ainda que, note-se, disponha de sentença transitada em julgado. Tal exigência decorre da natureza concursal do processo de insolvência e do princípio par conditio creditorum, de tratamento igual de todos os credores, sem prejuízo das legais preferências.
 A lei (CIRE -DL nº 53/2004, de 18 de março) é clara, dispondo nesse sentido em várias normas, destacando-se as seguintes:
1º CIRE donde se extrai que a insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, mormente através da liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.
90º CIRE donde se extrai que os credores da insolvência durante a pendência do processo de insolvência estão limitados no modo de exercer os seus direitos, que terão de obedecer ao disposto no CIRE, destacando-se as exigências infra referidas;
 128º CIRE - donde se extrai que dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem todos credores da insolvência reclamar a verificação dos seus créditos. De sublinhar, como já aflorado, que a “verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento” - nº 5, 128º cIRE.
145º e 148º CIRE - donde se extrai que findo o prazo das reclamações, só é possível reconhecer outros créditos mediante certo prazo e condições e por meio de acção contra a massa insolvente, os credores e o devedor, a qual é apensada ao processo de falência.
85º- donde se extrai que, uma vez declarada a insolvência, todas as ações em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência.
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Assim sendo, do regime que norteia a insolvência resulta que o credor tem sempre de reclamar o crédito na insolvência, pelo que a continuação da acção declarativa se traduza num acto inútil. Donde, está correta a decisão da senhora juiz a quo em declarar a inutilidade superveniente logo que transitada em julgado a sentença de insolvência.
No caso dos autos, acresce que a ora autora, inclusive, reclamou o crédito que exerce na presente em acção ulterior apensada à insolvência, o qual lhe foi integralmente reconhecido, o que acentua ainda mais a sua falta de razão.
Ocorre inutilidade superveniente da lide quer porque a decisão que viesse a ser proferida nesta acçao não teria efeito útil, quer porque a autora já obteve por outra via o direito que reclamava.
Desta RG ver acórdão recente de 8-05-2025, proc. 3362/23.8T8BCL.G1, www.dgsi.pt

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, de acordo com o disposto nos artigos 87º, CPT e 663º, CPC, acorda-se em negar provimento ao recurso mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente.
Notifique.
18-06-2025

Maria Leonor Barroso (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Francisco Sousa Pereira


[1] Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC.