INSTITUTO DA PERDA DE VANTAGEM DE FACTO ILÍCITO
REPARAÇÃO DA ORDEM PATRIMONIAL ANTES DA FORMULAÇÃO DA ACUSAÇÃO
Sumário

I - O instituto da perda de vantagem de facto ilícito típico visa não só a neutralização da vantagem económica (não necessariamente patrimonial), mas esta não deixa de ser instrumental perante as finalidades de prevenção especial e geral de dissuasão contra a prática do crime. Ambas as finalidades têm que estar presentes, com potencialidade de concretização, aquando da aplicação do dito instituto.
II - Se a reparação da ordem patrimonial, ou seja, a neutralização da vantagem ilicitamente obtida, já havia sido alcançada aquando da formulação da acusação pública, a condenação do recorrente decorrente da declaração de perda carece de fundamento.

Texto Integral

Processo: 24/20.1T9MAI.P1

Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

1-RELATÓRIO
No processo comum nº 24/20.1T9MAI, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal da Maia - Juiz 1, após julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«III. DECISÃO
Em face do exposto, o Tribunal decide julgar procedente, por provada, a acusação pública, e, em consequência:
A) Condenar os arguidos AA e BB, pela prática em autoria material, de um crime de Abuso de Confiança contra a Segurança Social, previsto e punível nos termos do disposto nos artigos 6.º, n.º 1, 7.º, n.º 3, 105.º, n.º 1, e 107.º do Regime Geral das Infracções Tributária, nas penas de 115 (cento e quinze) dias e 120 (cento e vinte) dias de multa, às taxas diárias respectivamente de 10,00€ (dez euros) e de 7,00€ (sete euros), perfazendo as quantias globais de 1.150,00€ (mil cento e cinquenta euros) e de 840,00€ (oitocentos e quarenta euros);
B) Declarar perdida a favor do Estado a quantia total de 12.736,91€ (doze mil setecentos e trinta e seis euros e noventa e um cêntimos), de que são solidariamente devedores os arguidos AA e BB, a título de perda de vantagens advenientes do facto ilícito típico enquadrado e referenciado em A;
C) Condenar os arguidos AA e BB, nas custas criminais que se fixam em 3 UC’s, sem prejuízo do apoio judiciário deferido …
(…).»

*
Não se conformando com esta sentença, o arguido AA recorreu para este Tribunal da Relação, concluindo na sua motivação o seguinte (transcrição):
(…)
A Douta Sentença recorrida fez uma incorreta avaliação da prova, designadamente do depoimento do Recorrente e de 3 testemunhas.
A impugnação da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício de texto previsto no art.º 410.º nº 2 do Cód. Processo Penal, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou através do recurso amplo ou efetivo em matéria de facto, previsto no art. 412.º, nºs 3, 4 e 6 do Cód. Proc. Penal.
No primeiro caso, a discordância traduz-se na invocação de um vício da sentença ou acórdão e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito; no segundo, o recorrente terá de socorrer-se de provas examinadas em audiência, que deverá então especificar, cumprindo os ónus de impugnação previstos no art. 412.º, nº 3 do Cód. Processo Penal.
Face a todo exposto, deverá ser alterada a fundamentação da Sentença constando da mesma que o Recorrente confessou os factos, com reserva exclusivamente ao modo como ocorreram, que não terá sido do modo constante da acusação, mas sem deixarem de preencher o tipo legal de crime de que estava acusado, não por ação, mas por omissão do dever de cautela a que estava obrigado.
Devendo ainda ser retirada da mesma a menção de que, «à postura dos arguidos que em sede de audiência de discussão e julgamento optaram por uma narrativa desculpabilizante e de imputação da responsabilidade criminal ao arguido, entretanto, falecido, CC».
Não foi feita uma correta aplicação do estatuído no artigo 71º do Cód. Penal, designadamente não foi tida em conta a inexistência de necessidade de prevenção especial, devido ao decurso do tempo desde os factos e a confissão do Recorrente.
Pelo que entendemos que a multa penal deverá ser reduzida para 100 dias à taxa diária de €6,00.
Não tendo sido deduzido pedido cível pelo Instituto da Segurança Social, e tendo-se verificado que a mesma é inexigível, correspondendo ao total do montante das quotizações retidas e respetivos juros de mora devidos, o qual correspondia à vantagem económica obtida com a prática do crime, já não podem os Arguidos serem obrigado a pagar tal valor ao Estado, devendo, por isso, na sentença, declarar-se extinta a instância, por inutilidade superveniente, relativamente ao pedido de perda de vantagens formulado pelo Ministério Público.
Termos em que deverá ser revogada a Douta sentença recorrida, e substituída por outra a condenar o Recorrente na multa penal de 100 dias à taxa diária de €6,00.
Termos em que deve o presente recurso ser declarado procedente por provado, e em consequência ser revogada a Douta Sentença Recorrida, sendo o Recorrentes unicamente condenado na multa penal de 100 dias à taxa diária de €6,00, e declarar-se extinta a instância, por inutilidade superveniente, relativamente ao pedido de perda de vantagens formulado pelo Ministério Público.”
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O Ministério Público, nas suas alegações de resposta, pronunciou-se no sentido de ser negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida, tendo deduzida as seguintes conclusões:
“1- AA, arguido nos presentes autos, não se conformando com a sentença que o condenou pela prática de um crime de Abuso de Confiança contra a Segurança Social, previsto e punível nos termos do disposto nos artigos 6.º, n.º 1, 7.º, n.º 3, 105.º, n.º 1, e 107.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 115 (cento e quinze) dias de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros), perfazendo a quantia global de € 1.150,00 (mil cento e cinquenta euros) veio da mesma interpor recurso.
2- Na sentença, foi ainda declarada perdida a favor do Estado a quantia total de € 12.736,91 (doze mil setecentos e trinta e seis euros e noventa e um cêntimos), de que são solidariamente devedores os arguidos AA e BB, a título de perda de vantagens advenientes da prática de um crime de Abuso de Confiança extinta a instância, por inutilidade superveniente relativamente a tal pedido de perda de vantagens formulado pelo Ministério Público.
6- Em nossa opinião não assiste qualquer razão ao arguido/recorrente, entendendo tal recurso apenas por ser um direito de qualquer condenado.
7- O incumprimento das formalidades impostas pelo artigo 412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto, sendo que, in casu, o recorrente não indica os pontos da matéria de facto que são considerados incorretamente julgados, o que, no nosso entender, inviabiliza o conhecimento do recurso.
8- Contudo, caso assim não se entenda, sem prescindir nem conceder, pouco há a acrescentar para além do que consta da motivação da decisão sobre a matéria de facto da sentença proferida, uma vez que o Tribunal a quo, fundamentou a sua convicção de uma forma clara, concreta e precisa, baseada em na prova documental junta aos autos, e ainda nos depoimentos das testemunhas inquiridas que arroladas pala acusação quer pela defesa, tudo analisado à luz das regras da experiência, já que há que ter em conta quer o principio da livre apreciação da prova de que o julgador dispõe, quer o princípio da imediação que só a audiência de julgamento proporciona.
9- A fundamentação da sentença recorrida o Tribunal a quo espelha uma tomada de posição, clara e inequívoca, relativamente aos factos constantes da acusação, com indicação clara e coerente das razões que fundaram a convicção do tribunal.
10- Ora, a gerência é o órgão da sociedade criado para que aquela possa atuar no comércio jurídico, criando, modificando, extinguindo, relações jurídicas com outros sujeitos de direito, pelo que, in casu, o recorrente, ao contra a Segurança Social.
3- Em resumo e atento o teor das conclusões do recurso, o arguido requer a alteração da fundamentação da Sentença, devendo constar da mesma que o recorrente confessou os factos, com reserva exclusivamente ao modo como ocorreram, que não foi o modo constante da acusação, admitindo ter praticado o crime de Abuso de Confiança contra a Segurança Social, previsto e punível nos termos do disposto nos artigos 6.º, n.º 1, 7.º, n.º 3, 105.º, n.º 1, e 107.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, por omissão do dever de cautela a que estava obrigado e não por ação;
4- Considera ainda que não foi feita uma correta aplicação do disposto no artigo 71.º do Código Penal, uma vez que não foi tida em consideração a inexistência da necessidade de prevenção especial, devido ao decurso do tempo desde os factos e a confissão do recorrente, entendendo que a multa penal deverá ser reduzida para 100 (cem) dias à taxa diária de € 6,00 (seis euros);
5- Considera também que os arguidos não devem ser responsabilizados pelo pagamento ao Estado a titulo de perda de vantagens da quantia total de €12.736,91 (doze mil setecentos e trinta e seis euros e noventa e um cêntimos), uma vez que o Instituto da Segurança Social não deduziu pedido de indemnização cível, pelo que tal quantia não é exigível, devendo declarar-se reconhecer as suas obrigações de gerente, sabia que tinha obrigação de agir para que as importâncias devidas à segurança social fossem entregues.
11- Além do mais, o recorrente indica que as ordens de pagamentos bancários eram realizadas sempre por transferência bancária, ato para o qual eram precisos dois códigos de validação remetidos por sms, um dos quais por si rececionado, o que demonstra ter forma de vigilância e de controlo dos pagamentos mensais que iam sendo realizados, conformando-se conscientemente, a partir desse momento, com a omissão da entrega à Segurança Social das quotizações devidas.
12- No caso dos autos, o Tribunal a quo explana de forma criteriosa e completa o processo de formação da sua convicção, indicando os meios de prova utilizados e enunciando as ilações extraídas dos mesmos, não se verificando a partir do teor da decisão recorrida que haja procedido a uma valoração probatória errática, desprovida de qualquer sustento nas regras que se lhe impunham nessa sede.
13- Relativamente à pena a aplicar, a qualquer determinação de pena está subjacente um juízo contrabalançado por duas ideias fundamentais: a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente do crime na sociedade, sendo certo, que esta decisão está sempre balizada no seu máximo por um critério fundamental: a medida da culpa do agente (artigo 40.º do CP), sendo que a medida da pena jamais pode ultrapassar a medida da culpa, sob pena de violação da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental de um Estado de Direito Democrático.
14- O Tribunal a quo considerou que no caso o arguido evidenciava necessidades de prevenção especial diminutas, considerada a ausência de averbamentos no seu certificado de registo criminal.
15- Relativamente ao crime em causa, é necessário atender às necessidades de prevenção geral, que se manifestam elevadas atentos os problemas de sustentabilidade da Segurança Social amplamente reconhecidos.
16- Foi também considerado pelo Tribunal a quo que: “(…), embora as necessidades de prevenção geral sejam elevadas, a tutela do bem jurídico ínsito à norma incriminadora, violado com o comportamento imputado aos aqui arguidos, fica devidamente acautelado com a aplicação de uma pena de multa, pois não só se demonstra à sociedade a reafirmação do valor contrafáctico da norma colocada em causa com a conduta perpetrada, como será tal pena uma advertência suficiente para evidenciar aos arguidos o desvalor das suas acções.”
17- A pena fixada ao recorrente foi pena atenuada, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 22.º do RGIT, pelo que o seu mínimo seria de 10 dias e o máximo de 240 dias, aplicando o Tribunal 115 dias, o que nem sequer corresponde a metade do limite máximo aplicável.
18- No que se refere aos argumentos que o recorrente convocou, em nada modificam tal raciocínio, mesmo considerando o arrependimento demonstrado, pelo que, quer ao nível das necessidades de prevenção geral, quer especial, nenhum reparo nos merece a sentença recorrida, que analisou e ponderou suficientemente as circunstâncias relevantes, suscitando preocupações de prevenção que se fazem sentir no que se refere ao tipo de ilícito em questão.
19- Tendo presente a sobredita moldura abstrata aqui em apreço, respeitados que foram os apontados critérios que norteiam a aplicação das penas, e relembrando-se que nesta matéria existe sempre alguma margem de subjetividade do julgador, pelo que as penas só poderão ser alteradas nos casos em que, apesar de respeitados os subjacentes critérios legais, é ostensivo o seu exagero ou desproporção, pelo que, afigura-se-nos que nada há a apontar quanto à escolha pelo Tribunal a quo na medida concreta da pena em que o arguido foi condenado.
20- Quanto ao quantitativo diário, entendemos também que nenhuma crítica pode ser efetuada ao quantitativo diário de 10,00€, pois tal quantitativo foi fixado tendo em conta a atual situação socioeconómica e financeira do arguido e do seu agregado familiar, bem como os seus encargos pessoais, expressos nos factos provados.
21- Importa também referir que a pena de multa, tem de causar, pelo menos, algum desconforto e um sacrifício económico para os condenados, sob pena de não ser considerada como uma verdadeira pena.
22- O arguido não indica outras despesas ou encargos que suporta mensalmente, para além das despesas das consideradas pelo Tribunal a quo, pelo que não se vislumbra qualquer fundamento que justifique a alteração do quantitativo diário da pena de multa fixada, sendo o decidido é justo e equitativo.
23- É entendimento unânime da doutrina jurisprudência que a perda de vantagens tem como objetivo a prevenção da criminalidade, associada à ideia de que “o crime não compensa”, conduzindo colocando o agente dos factos ilícitos no patamar patrimonial em que se encontrava antes da prática do facto ilícito, forma de evitar que enriqueça o seu património.
24- Resulta do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 5/2004 que: “A perda de vantagens distingue-se do imposto e das cotizações em dívida, bem como, da indemnização por perdas e danos emergentes de crime e não fica dependente do êxito da cobrança tributária ou da dedução do pedido civil, sendo que o ressarcimento das quantias em dívida cuja génese é o incumprimento da prestação tributária apenas terá lugar uma vez. Nunca poderá existir dupla execução, sob pena de subverter as finalidades pretendidas com a declaração de perda de vantagens, pois tornar-se-ia um mecanismo de redução do seu património lícito, ao invés de repor a situação patrimonial que detinha antes da prática do facto ilícito.”
25- Daqui se conclui que o facto de a Segurança Social ter prescindido de formular pedido de indemnização nos presentes autos, optando antes pela execução fiscal, em nada obsta à declaração da perda de vantagens resultantes da prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
26- A circunstância do ofendido ser o Estado, que detém mecanismos de ressarcimento coercivo bem mais amplos que os concedidos aos particulares, não impede a declaração da perda de vantagens resultantes da prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, sob pena de não serem salvaguardados os fins preventivos do direito sancionatório, sendo que a declaração de perda de vantagens não determina que o condenado seja obrigado a entregar ao Estado as quotizações em dívida duas vezes.
27- O decidido é justo e equitativo e não violou qualquer preceito legal ou constitucional, antes tendo efetuado uma correta aplicação do direito aos factos.
Concluindo, dir-se-á, pois, que se nos afigura que o recurso do arguido não merece provimento em qualquer das suas vertentes, devendo manter-se a douta decisão recorrida.(…)”
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Nesta instância a Exma. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de ser negado provimento ao recurso.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2 do CPP, na sequência do que foi apresentada resposta pelo recorrente que manteve os precisos termos do recurso interposto.
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Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
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Cumpre apreciar e decidir.
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2-FUNDAMENTAÇÃO
2.1-QUESTÕES A DECIDIR
Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, são as seguintes as questões a decidir:
1 – Impugnação alargada da matéria de facto.
2- Da medida da pena e eventual redução do seu quantum assim como da taxa diária aplicável.
4 – Dos requisitos para se declarar a perda de vantagens e sua compatibilização com a existência/inexistência de pedido de indemnização civil.
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2.2- A DECISÃO RECORRIDA:
Tendo em conta as questões objeto do recurso, transcrevem-se os factos assentes como provados na decisão recorrida:
«(…) A – FACTOS PROVADOS
Discutida a causa resultaram provados com interesse para a decisão os seguintes factos:
1. A sociedade comercial denominada “A..., Sociedade Unipessoal, Ld.ª”, foi uma sociedade por quotas cuja actividade consistiu na “actividade de cedência temporária de trabalhadores para utilização de terceiros utilizadores, podendo ainda desenvolver actividades de selecção, orientação e formação profissional, consultadoria e gestão de recursos humanos”, com sede na Rua ... S N, Maia, tendo a respectiva matrícula sido cancelada em 07.10.2020.
2. Esta sociedade esteve inscrita e colectada como contribuinte da Segurança Social Portuguesa sob o n.º ..., e, entre Junho e Agosto de 2015, teve ao seu serviço trabalhadores por conta de outrem obrigatoriamente inscritos naquela entidade.
3. O arguido AA foi gerente da sociedade entre 12 de Março de 2013 e 14 de Dezembro de 2015, o arguido BB foi gerente da sociedade entre 26 de Dezembro de 2014 e 18 de Abril de 2016, o arguido DD foi gerente da sociedade entre 2 de Maio de 2015 e 14 de Dezembro de 2015 e CC foi gerente da sociedade entre 9 de Junho de 2015 e 16 de Novembro de 2015.
4. Entre Junho e Agosto de 2015, com excepção de CC, os demais arguidos DD, BB e AA, exerceram a gerência de facto da sociedade, cabendo-lhes os poderes de administração e gestão da mesma, no uso dos quais dirigiram os respectivos negócios, deram ordens e instruções aos trabalhadores, decidiram e procederam ao pagamento de salários, impostos e contribuições/quotizações e dirigiram as relações comerciais no que concerne a pagamentos a clientes e instituições bancárias.
5. Nessa qualidade, os arguidos DD, BB e AA eram responsáveis pela dedução percentual de 11% sobre os valores das remunerações pagas aos seus trabalhadores e sobre as remunerações pagas aos gerentes, assim como pelo preenchimento e entrega das respectivas declarações de remuneração mensal nos serviços da Segurança Social.
6. No exercício da descrita actividade, a sociedade “A..., Sociedade Unipessoal, Ld.ª”, através dos arguidos DD, BB e AA, descontou nos salários pagos aos seus trabalhadores e aos gerentes, as seguintes cotizações legalmente devidas à Segurança Social:
Mês e ano Taxas (%) Cotizações Retidas
Junho 2015 11,00 € 7.494,81
Julho 2015 11,00 € 4.000,47
Agosto 2015 11,00 € 1.241,63
Total € 12.736,91
7. Porém, apesar de terem procedido aos referidos descontos no valor global de 12.736,91€ e terem entregue as respectivas declarações de remuneração, os arguidos DD, BB e AA não entregaram essa quantia na Segurança Social no prazo legal, isto é, até ao 15.º dia do mês seguinte àquele a que respeitavam, conforme estavam obrigados, nem no período dos 90 dias ulteriores.
8. Assim como, não procederam à entrega de tais quantias até à presente data [01.06.2023], tendo-as feito da sociedade e utilizado em proveito desta, afectando-as ao giro económico da sua actividade.
9. Ao actuarem da forma descrita, agiram sempre os arguidos DD, BB e AA em nome e no interesse da sociedade e no seu próprio interesse.
10. Enquanto gerentes da sociedade, os arguidos DD, BB e AA tinham plena consciência de que estavam obrigados a entregar ao competente organismo da Segurança Social as quantias retidas que descontaram nos salários dos trabalhadores e nas suas próprias remunerações de gerentes nos prazos legais, e actuaram de forma deliberada, livre e consciente, com intenção de as utilizar como se fossem desta, não obstante saberem que as mesmas não lhes pertenciam e que actuavam contra a vontade e lesando os interesses da beneficiária de tais quantias.
11. Sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei e tinham capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
12. Os sobreditos arguidos foram notificados nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105º, nº4, al. b) do RGIT, na redacção da Lei nº53-A/2006, de 29 de Dezembro, para comprovarem nos autos o pagamento das quantias descritas na acusação e respectivos juros de mora no prazo de 30 dias a contar da notificação, o que não fizeram.
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MAIS SE PROVOU:
13. Em 09.06.2015 a forma de obrigar a sociedade comercial identificada em 1, bem como o seu capital social, foi(ram) alterada(os), passando a exigir-se a intervenção de dois gerentes ante o incremento de capital de 7.000,00€ para 14.000,00€, após a entrada do sócio EE a par com AA e BB, até, então, detentores de duas quotas nominais de 3.500,00€ (três mil e quinhentos euros).
14. Por decisão exarada em 21.07.2020, o ISS,IP declarou prescrita, quanto ao arguido AA, a dívida elencada em 6, cobrada nos processos de execução n.ºs ..., ..., ..., ..., ... e ..., respeitante aos períodos de Junho e de Julho de 2015.
15. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 04.06.2024, o montante discriminado em 6 foi integralmente liquidado.
16. Os juros e custas administrativas associados aos montantes elencados em 6, foram liquidados em 08.11.2024, pelo arguido AA.
17. O arguido BB reside com a mãe e a avó materna em casa própria desta, não contribuindo com qualquer quantia para as despesas comuns.
18. O arguido BB trabalha na Junta de Freguesia ... auferindo salário correspondente ao salário mínimo nacional.
19. O arguido BB não tem imóveis, nem móveis sujeitos a registo.
20. O arguido BB estudou até ao 12.º ano de escolaridade.
21. O arguido BB não tem averbamentos no seu certificado de registo criminal.
22. O arguido AA reside em casa própria com a esposa e os dois filhos, com 4 e 11 anos de idade.
23. O arguido AA é empresário auferindo mensalmente a quantia de 1.200,00€ (mil e duzentos euros).
24. O arguido AA tem duas viaturas, uma da marca “Mercedes” e outra da marca “Nissan”, respectivamente dos anos de 2006 e de 2011.
25. O arguido AA tem diabetes carecendo de tomar medicação mensalmente que comporta no montante de 200,00€ (duzentos euros).
26. O arguido AA estudou até ao 9.º ano de escolaridade.
27. O arguido AA não tem averbamentos no seu certificado de registo criminal.
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B – FACTOS NÃO PROVADOS: inexistem com relevância para a boa decisão
da causa.
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Para além dos factos não referidos por irrelevantes, repetidos, conclusivos, por conterem matéria de direito ou por se apresentarem em contradição com os factos provados, não se provaram, com relevância para a boa decisão da causa mais quaisquer factos.
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C – MOTIVAÇÃO DE FACTO
A convicção do Tribunal relativamente aos factos supra dados como provados resultou da apreciação livre e crítica da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, de acordo com o preceituado no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Com base na prova documental junta aos autos, não impugnada por nenhum interveniente processual, deu o Tribunal como provados os factos elencados em 1 a 3, 5 a 8 e 12 a 16.
Vejamos.
Analisada a certidão comercial permanente (a fls. 23 a 36, 150 a 156 e 469 a 476), os prints extraídos do portal das publicações (a fls. 7 a 18 e 191 a 202) e os elementos identificativos a fls. 5, deu o Tribunal como provados os factos elencados em 1, 2, 3 e 13.
Depois, conjugadas as informações de fls. 19, 203, 218 e 223, com os extractos de remunerações de fls. 219-222, 338 a 340, 409 a 435, com os contratos de trabalho de fls. 277 a 292, com os recibos de féria e declaração para efeitos de IRS de fls. 293 a 302 e 303 e com a participação da notifica de crime a fls. 3 e 146, com o extracto de dívida de cotizações de fls. 20, 204 a 207 e 211, deu o Tribunal como provados os factos elencados em 6 a 8.
Por fim, compulsadas as notificações de fls. 71, 147, 157 a 160, 163 a 166, 208 e 325, a decisão datada de 21.07.2020 exarada pelo ISS, IP (a fls. 528 a 529 verso), com os emails juntos aos autos em 04.06.2024 e em 24.09.2024 e os documentos juntos pelo arguido AA em 08.11.2024, considerou o Tribunal provados os factos vertidos em 12 e 14 a 16.
Aliás, refira-se que a convicção formada pelo Tribunal no que concerne à existência de mão de obra subordinada pela sociedade comercial identificada em 1, concomitantemente devida e regularmente remunerada e participada às entidades oficiais, no que ao caso dos autos diz respeito ao ISS, IP, ficou fortemente robustecida com a audição das testemunhas, FF (outorgante nos contratos de trabalho supra elencados), GG e HH, todos ex-funcionários da sociedade comercial identificada em 1 e que, de forma convergente e corroborante, identificaram o arguido BB como sendo aquele que era o responsável, não só pela angariação da respectiva mão de obra, mas também aquele que emitia ordens, processava salários e regularizava qualquer situação conexa com o exercício do seu labor, isto é, assuntos conexos com local de trabalho, vencimentos, férias, faltas e salários.
Vejamos.
FF, num depoimento orientado no tempo e focado no que à concreta relação laboral com a sociedade comercial identificada em 1 diz respeito, soube precisar que fora admitido há mais de nove anos para o exercício de funções como servente, tendo, posteriormente, exercido funções correspondentes à categoria profissional de ajudante de cofrador, sem que tenha existido qualquer percalço remuneratório.
Ademais, confrontado com os contratos de trabalho supra elencados, bem como com as folhas de féria e declaração para efeitos de IRS, reconhecera substancialmente em quase todos os mencionados documentos a sua assinatura, importando, aqui denotar o seguinte: a assinatura aposta na qualidade de entidade patronal, como 1.ª outorgante, sobressai a olho nu corresponder à do arguido BB por comparação com o seu TIR prestado nos autos a fls. 314.
Arguido que a testemunha identificou como tendo sido a pessoa responsável pela exibição e formalização do seu vínculo laboral com a sociedade comercial identificada em 1.
Por sua vez, ouvido GG, também, orientado no tempo e focado no que à concreta relação laboral com a sociedade comercial identificada em 1 diz respeito, soube precisar que trabalhou dois anos com o arguido BB, identificando, por sua vez, o arguido AA como sócio daquela sociedade.
Isto porque, soube precisar que entrou para a “A..., Lda.” por intermédio de um seu irmão que trabalhava em outra empresa do arguido AA (actividade empresarial que também foi confirmada pelo arguido AA quando prestara declarações), precisando que quem o admitiu foi o sr. BB, pessoa com quem negociou o seu vinculo laboral, mas, também, com quem sempre tratou de qualquer assunto que tivesse conexo com o trabalho, mencionando, de forma espontânea, que fora sempre este quem lhe prescrevera ordens no local e horário de trabalho.
Mais precisou, a identificada testemunha, que durante o lapso temporal em que foi trabalhador da “A..., Lda.” sempre recebeu as folhas de féria e as declarações para o IRS.
Questionado qual o papel do arguido AA na empresa não o soube precisar, referindo, apenas, que se chegara a cruzar com este, durante o horário de expediente, na sede da empresa, tendo-lhe, então, sido referenciado que aquele “fazia parte da empresa” (sic).
Inquirido HH soube este, de forma espontânea, mencionar que conhece o arguido AA por ser sócio da empresa para a qual trabalhou que identificou como sendo a “A..., Lda.”, bem como o arguido BB por ser a pessoa responsável pela sua contratação nesta para exercer funções na área da construção civil em França, mencionando que a dinâmica salarial sempre foi cumprida.
Questionado quanto ao papel do arguido AA na identificada empresa, sua entidade patronal, referiu que o chegara a ver “(…) 3 ou 4 vezes numas reuniões em Braga para orientar o trabalho quando saíram de França para ir para a Bélgica para ver quem queria ir para a Bélgica (…)” (sic), reconhecendo-o como “patrão” (sic), até porque, já depois de ter sido contratado, a ele foi apresentado.
Ora, analisado criticamente este depoimento com as declarações prestadas pelos identificados arguidos, deu o Tribunal como provados os factos vertidos em 4, 5 e 9 a 11.
Porquanto, pese embora ambos os arguidos, de forma sumária, tenham pretendido dar a entender ao Tribunal que desde a entrada do falecido DD nos quadros da empresa que deixaram de ter qualquer papel activo na lide e gestão da “A..., Lda.”, o Tribunal não atribuiu credibilidade a tais declarações por várias razões.
Concretizando, o arguido AA referiu que, à data dos factos, era gerente de outra empresa na área da construção civil, sendo responsável pela área das cobranças na “A..., Lda.”, só indo à empresa uma vez por semana.
Ora, se o arguido é parte na gestão da empresa, ainda que, afecto à parte de cobrança de facturas/receitas, tal posição gestionária denota que o arguido tinha participação na vida societária, bem como tinha conhecimento das necessidades de tesouraria da empresa.
Depois, foi pelo identificado arguido, de forma bastante espontânea, mencionado que as ordens de pagamentos bancários eram realizadas sempre por transferência bancária, acto para o qual eram precisos dois códigos de validação remetidos por sms, um dos quais para si, o que evidencia que o identificado arguido tinha capacidade de controlo dos pagamentos mensais feitos, e como empresário que à data já era, tinha conhecimento da obrigatoriedade de, não só efectuar os descontos nas folhas de féria legalmente devidos para o ISS,IP, como de mensalmente realizá-los a este.
Assim sendo, e como é exigido a um gerente diligente de acordo com o padrão do bom pai de família, deveria ter cuidado de saber que pagamentos estava constantemente a autorizar ao fornecer o mencionado código de validação, pugnando por autorizar aqueles a que estava legalmente obrigado, incúria que lhe é imputável e manifestamente censurável face ao seu papel de gestor e de empresário a título profissional.
Ademais, admitiu ter injectado capital na “A..., Lda.”, cerca de 15.000,00€, para liquidação de dívidas reportadas ao ano de 2015, o que evidencia que, não só participava na gestão activa da empresa, como não cumpriu com zelo a sua função de cobrador, porquanto, as receitas eram menores que as despesas.
Mais: o próprio arguido AA admitiu conhecer a existência de uma divida à ISS, IP no ano de 2015.
Ora, o facto da intervenção do aqui arguido AA ser conexa materialmente com o departamento de cobranças não o exonera de responsabilidades nos presentes autos, porquanto, enquanto gerente e responsável por um departamento umbilical para o funcionamento da empresa era sua função cuidar de saber o andamento da mesma, porquanto as despesas que a empresa gerava ditavam a necessidade de imprimir maior ou menor aceleração ao departamento de cobranças para, assim, gerar receitas.
Acrescentando-se, ainda, que, não vingou a tentativa dos arguidos de dar a entender ao Tribunal que, a partir do momento da entrada do arguido DD estes ficaram esvaziados de qualquer função material na “A..., Lda.”, pois, não só o arguido AA mencionou que o arguido BB continuou responsável pela angariação de massa salarial, o que este também confirmou, e que evidencia que este sabia da capacidade, pelo menos hipotética e abstracta, de aumento do volume de dívidas mensais à SS, ante a mensal tributação dos salários dos seus empregados, como não cuidaram os dois de acompanhar cuidadosamente o rumo económico financeiro da sociedade, até porque eram sócios e gerentes destas.
Vínculo societário que romperam ao renunciar à gerência, como decorre da compulsa da supra mencionada certidão comercial permanente.
Ademais, os sectores em que os arguidos actuavam andavam a par e passo de mãos dadas, porquanto, só haveria capacidade de contratação de pessoal se houvessem receitas económicas para o efeito, isto é, se o departamento financeiro estivesse robustecido pela acção do sector das cobranças, o que evidencia que havia, sim, uma gestão conjunta, mas segmentada pelo polo em que cada um dos arguidos era mais apto e eficaz, BB na angariação e gestão da massa salarial e AA como cobrador de dívidas.
Repartição de funções que não exonera de responsabilidades os arguidos, porquanto, todos convergiam nos seus actos, gerar liquidez para a sociedade, para, concomitantemente terem lucro e dividendos em detrimento de operações de injecção de capital próprio para suprimento das necessidades financeiras da empresa e que seriam feitos à custa do seu património pessoal.
Ouvido, por sua vez, o arguido BB, este reiterara as declarações do arguido AA, precisando, ainda, ser do seu conhecimento que, à data dos factos, entravam vários cheques de origem francesa por semana para liquidar.
Ora, este argumento vem corroborar a convicção já formada pelo Tribunal, isto porque, visando a constituição de uma sociedade a obtenção de lucro, e sabendo o identificado arguido da entrada de capital na empresa, omitiu, pura e simplesmente, o dever de diligência em saber qual o rumo dado ao mesmo(?), sabendo que os seus dividendos estariam dependentes da profícua e cuidadosa gestão da empresa (?), não cremos.
A tentativa, renova-se, vã, de tentar iludir o Tribunal não colheu.
Aliás, vislumbrou-se uma passagem de testemunho entre os dois arguidos, ora um imputava ao arguido BB a contratação de trabalhadores, ora este mencionara que fora AA quem dissera que os assuntos bancários, a partir da entrada do sr. DD, seriam pura e simplesmente da responsabilidade deste.
Tais declarações não colhem, porquanto, dizem-nos as regras de experiência comum que, quando entra um elemento externo a uma equipa, como a assembleia geral de sócios nas sociedades comerciais, os elementos daquele órgão cuidam de fazer uma monitorização de acompanhamento ao papel desenvolvido pelo elemento novo, por este ser um corpo estranho, até, então, à gestão empreendida, e, por outro, para desse modo perceber da adequação de critérios desenvolvidos pelo elemento novo à realidade material tratada e desenvolvida como escopo societário.
Aqui chegados, e na conjugação critica de toda a prova, documental e testemunhal, com as já aludidas regras de experiência comum, e divergências encontradas nas declarações dos arguidos, deu o Tribunal como provados os factos elencados em 4 e em 5, pois, não tem dúvidas que houve uma conjugação de esforços, pelos aqui arguidos, com os demais elementos da identificada sociedade “A..., Lda.” em tentar manter a operacionalidade desta, o que perpassou pela necessidade de alocar os capitais disponíveis na empresa, concretamente ao pagamento, não só de salários, mas também das várias despesas que mensalmente suportavam para manter os seus trabalhadores no estrangeiro, designadamente em alojamento e em seguros.
Assim, conjugada a factualidade supra dada como provada em 1 a 8, em 13 e em 16, com as próprias declarações dos arguidos onde se identificaram como empresários na área da contratação de pessoal (BB) e da construção civil (AA), com o critério do bom pai de família adaptado ao sector comercial, que requer que os elementos dos órgãos deliberativos e executivos dos corpos sociais cuidem de uma monitorização diligente da vida societária, deu o Tribunal como provados os factos vertidos em 9 a 11.
Para prova das condições sócio-económicas apuradas aos arguidos respectivamente em 17 a 20 e em 22 a 26, valorou o Tribunal as declarações dos arguidos BB e AA, porquanto demonstraram-se objectivas e assertivas, além de encontrarem respaldo nos resultados obtidos após pesquisas nas bases de dados do ISS,IP juntos aos autos em 12.08.2024.
Já analisados os CRC’s juntos aos autos em 12.08.2024, considerou o Tribunal como provados os factos elencados em 21 e em 27.
Por fim, importa salientar que, apesar de se ter ouvido o técnico superior da ISS, I.P. II, as declarações deste que contenderam com o valor em dívida, pagamentos e objecto dos presentes autos, não trouxeram elementos novos ante a prova documental supra aludida, motivo pelo qual não foram atendidas.
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D) MOTIVAÇÃO DE DIREITO
Vêm os arguidos BB e AA acusados da prática, em autoria material, de um crime de Abuso de Confiança contra a Segurança Social, previsto e punível nos termos do disposto nos artigos 6.º, n.º 1; 7.º, n.º 3, 105.º, n.º 1, e 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.
Vejamos.
Prescreve o artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, do RGIT que “(…) As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.os 1 e 5 do artigo 105.º.
2 - É aplicável o disposto nos n.os 4 e 7 do artigo 105.º. (…)”.
Atenta a remissão legal operada, prescreve o artigo 105.º, nos n.ºs 1, 2, 4, 5 e 7, do RGIT que:
“(…) 1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja. (…)
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas. (…)
7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária. (…)”.
Ora, a obrigação de legalmente deduzir as cotizações mensalmente devidas e liquidadas nas folhas de féria dos trabalhadores e órgãos do membro estatutário são das correspondentes entidades patronais, conforme prescreve o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, quando diz que “(…)1 - As entidades patronais e respectivos trabalhadores abrangidos pelas caixas de previdência concorrerão para estas com as percentagens que se encontrem legalmente estabelecidas sobre as remunerações pagas e recebidas.
2 - As contribuições dos beneficiários devem ser descontadas nas respectivas remunerações e pagas pela entidade patronal, juntamente com a própria contribuição, mediante guias fornecidas pela caixa.
3 - O pagamento das contribuições deve ser efectuado no mês seguinte àquele a que disserem respeito, dentro dos prazos regulamentares em vigor.
4 - A importância total a pagar em cada mês será arredondada, por excesso, em escudos. (…)”.
Cotizações que, por sua vez, são determinadas e liquidadas tendo em consideração o disposto nos artigos 13.º do Decreto-Lei n.º 199/99, de 8 de Junho1, e 53.º e 69.º, n.º 2, do Código Contributivo2, e entregues ao “Instituto da Segurança
1 Que dispõe que “(…) A taxa contributiva relativa aos membros dos órgãos estatutários das pessoas colectivas e entidades equiparadas, é de 31,25%, sendo, respectivamente, de 21,25% e de 10,00% para as entidades empregadoras e para os trabalhadores. (…)”.
2 Respectivamente prescrevem que “(…) A taxa contributiva global do regime geral correspondente ao elenco das eventualidades protegidas é de 34,75 %, cabendo 23,75 % à entidade empregadora e 11 % ao trabalhador, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte. (…)” e “(…) A taxa contributiva relativa aos membros das pessoas coletivas Social, I.P.” no prazo determinado nos artigos 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 199/99, de 8 de Junho3, e artigo 43.º do Código Contributivo.
Tal obrigação advém para as entidades patronais decorrente da sua legal instituição como fiéis depositários da entidade credora, beneficiária das cotizações liquidadas, e que a lei denominou de substituição tribuária, regulando-a no artigo 20.º da Lei Geral Tributária, e que materialmente se traduz na operação de liquidação da cotização, sua retenção e posterior entrega, pelo substituto tributário,
nos momentos temporais preconizados pelo legislador, isto é, para as pessoas colectivas. Contudo, estas só se tornam funcionalizáveis através dos agentes que compõem os seus órgãos societários, daí que, a imputação da prática delitual seja a estes concretos agentes extensível através do disposto nos artigos 6.º e 7.º do RGIT quando prescrevem que:
“(…) Quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem, será punido mesmo quando o tipo legal de crime exija:
a) Determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado;
b) Que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado. (…)”,
“(…) 1 - As pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo. (…)
3 - A responsabilidade criminal das entidades referidas no n.º 1 não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes. (…)”, o que faz com que se que exerçam funções de gerência ou de administração é de 34,75 %, sendo, respetivamente, de 23,75 % e de 11 % para as entidades empregadoras e para os trabalhadores. (…)”.
3 “(…) As contribuições previstas neste decreto-lei devem ser pagas até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que disserem respeito, salvo as situações previstas no artigo 39.o, que serão objecto de regulamentação própria. (…)”.
4 “(…) O pagamento das contribuições e das quotizações é mensal e é efectuado do dia 10 até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que as contribuições e as quotizações dizem respeito. (…)”.
(…)
Com a norma incriminatória constante do artigo 107.º do RGIT pretende o legislador tutelar, de forma directa, o património financeiro do “Instituto da Segurança Social, I.P.” que se trata de um instituto público dotado de autonomia, administrativa e financeira (cfr. artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 83/2012, de 30 de Março), e, indirectamente, a necessidade de proteger a confiança daquele organismo público em relação a quem tem a obrigação de deduzir e entregar a prestação contributiva.
Como refere Susana Aires de Sousa in “Crimes Fiscais”, Almedina, página 112, “(…) pretende-se tutelar o património tributário do Estado, por via da obtenção completa das prestações tributárias, através do cumprimento dos deveres de colaboração impostos pela lei fiscal (…)”, entendimento que, com as devidas adaptações, é passível de aplicação ao caso dos presentes autos, atenta a ligação umbilical existente entre as duas normas incriminadoras invocadas, a do artigo 105.º e a do artigo 107.º do RGIT.
Para se verificar a prática do crime em análise basta que o agente não entregue dolosamente as cotizações deduzidas mensalmente na folha de féria dos seus trabalhadores e órgãos dos membros estatutários, lesando, assim, o “Instituto da Segurança Social, I.P.”.
Do exposto, podemos concluir estarmos na presença de um crime de mera actividade, de dano e de omissão pura, já que basta a não entrega das quantias deduzidas, dentro do prazo legal conferido para o efeito, para se verificarem os elementos do tipo objectivo de ilícito.
Trata-se também de um crime específico próprio, já que só a(s) entidade(s) empregadora(s) pode(m) ser autora(s) deste crime, sendo esta qualidade o fundamento do ilícito.
Entidades empregadoras que tanto podem ser pessoas singulares, como pessoas colectivas, daí a previsão vertida no artigo 7.º do RGIT.
E aqui façamos uma pequena distinção.
Os crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a Segurança Social distanciam-se da conformação jurídico-penal imprimida ao crime
de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º do Código Penal, pois aqueles tipos legais de crime não requerem que o agente do crime possua um concreto animus de ilegítima apropriação, ou seja, a necessidade do agente exteriorizar, através de actos inequívocos, pretender fazer sua a quantia que meramente detém na sua esfera patrimonial de disponibilidade, invertendo, assim, o título da posse.
Como referem Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos in “Regime Geral das Infracções Tributárias – Anotado”, Áreas Editora, 3.ª Edição, 2008, página 741, objecto deste ilícito circunscreve-se às “(…) deduções das contribuições devidas pelos trabalhadores feitas no valor das remunerações destes; deduções das contribuições devidas pelos membros dos corpos sociais feitas no valor das remunerações destes; [e a] prestação deduzida [que] tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente (…)”.
Contudo, o crime de abuso contra a segurança social contém também especificidades em face do crime de abuso de confiança fiscal.
Isto é, a primeira advém de se tratar de um crime próprio ou específico das entidades empregadoras que constituem o agente do crime circunscrito na letra da norma incriminadora.
Depois, quanto ao objecto do ilícito, este ilícito abrange, apenas, as contribuições devidas à segurança social deduzidas do valor das remunerações dos trabalhadores ou membros dos órgãos estatutários, com exclusão das demais, ou seja, o objecto do tipo legal de crime, por comparação com o objecto do crime de abuso de confiança fiscal, é mais circunscrito.
Neste sentido, veja-se Isabel Marques da Silva in “Regime Geral das Infracções Tributárias, Cadernos IDEF, n.º 5”, 3.ª Edição, Almedina, 2010, página 238.
Mas, para haver consumação do crime, exige o legislador que, o fiel depositário legalmente instituído tenha procedido à emissão de documentação contabilístico-contributiva na qual liquide a cotização, cotização que retém em face do sujeito passivo (seu trabalhador), e que, posteriormente, e por imposição da lei, tinha de entregar em prazo legalmente pré-determinado, mas não entregou.
No fundo, a punição decorrente da prática do crime de abuso de confiança contra segurança social está conexa, por via indirecta, com a frustração da confiança depositada pelo “Instituto da Segurança Social, I.P.” no substituto tributário decorrente da violação dos deveres de colaboração e de cooperação a que aquele está adstrito.
Já ao nível do elemento subjectivo o crime em apreço é de natureza dolosa, pois “(…) O agente tem de representar os elementos do tipo, designadamente a violação da relação de confiança pelo incumprimento dos deveres de colaboração e cooperação com a administração fiscal [leia-se Instituto da Segurança Social, I.P.] que a lei lhe impõe (…)”5, devendo para o efeito o substituto tributário, enquanto agente do crime, ter conhecimento do dever legal que sobre si impende de entregar aquela quantia dentro de determinado prazo, incumprindo-o.
Aqui chegados, tem o aplicador do direito de ter presente que o legislador, nesta matéria, previu expressamente uma condição de punibilidade [para outros segmentos da Doutrina denominada de procedibilidade], concretamente a que está descrita no n.º 4 do artigo 105.º do RGIT já acima transcrita, aplicável atenta a remissão operada pelo artigo 107.º, n.º 2, do RGIT.
Condição que está intimamente conexa com razões de política criminal.
Explica Susana Aires de Sousa in ob cit [o que deve ler-se com a devida adaptação terminológica] que “(…) o legislador terá atendido ao facto de a entrega, ainda que fora de prazo, pôr fim ao prejuízo patrimonial do Estado provocado pelo agente; por outro lado, pela norma constitui um incentivo ao pagamento das prestações em falta permite ainda evitar os custos que o procedimento criminal acarreta para a administração fiscal; por último, a alteração legislativa foi sensível à necessidade de um certo lapso temporal que permita à administração fiscal o tratamento das informações fiscais relevantes, designadamente as que dizem respeito ao não cumprimento dos deveres fiscais 5 Cfr. ob cit. página 121.
(…) o legislador considerou que um atraso superior a 90 dias na entrega das prestações tributárias deduzidas é um acto concludente da apropriação pelo agente das quantias, em clara violação dos deveres de colaboração e cooperação com a administração fiscal que sobre ele impendem, justificando a intervenção penal (…)”.
Assim, verificando-se os elementos supra elencados, pratica a sociedade comercial substituta tributária um crime de abuso de confiança à segurança social, p. e p. pelo artigo 107.º, n.º 1, por referência ao artigo 105.º, n.º 1, do RGIT.
Crime esse que, como supra se consignou, nos termos do disposto no artigo 6.º do RGIT se estende aos seus representantes societário-legais.
Por fim, importa ressalvar que, se o montante das cotizações não entregues ao “Instituto da Segurança Social, I.P.” for superior a 50.000,00€ (cinquenta mil euros) o crime passa da sua configuração simples para a modalidade agravada, o que, concomitantemente, tem efeitos no que à moldura penal abstracta diz respeito, porquanto passa de uma pena de prisão de 1 mês a 3 anos ou pena de multa de 10 dias a 360 dias, quer para pessoas singulares quer para pessoas colectivas, para uma pena de 1 a 5 anos de prisão para as pessoas singulares e de 240 a 1200 dias de pena de multa para as pessoas colectivas.
Vertendo, então, ao caso sob apreciação.
Ficou provado que os arguidos BB e AA, na qualidade de gerentes da sociedade comercial “A..., Lda.” e como tais empregadores, procederam efectiva e mensalmente, nos períodos elencados no facto provado em 6 – ainda que por via indirecta ante a gestão tripartida que tinham preconizado com o falecido DD da sociedade comercial –, aos descontos das contribuições referentes aos salários pagos aos seus trabalhadores e aos membros de órgão estatutário, nos montantes supra elencados naquele ponto factual, não os entregando, no prazo legal estipulado, ao “Instituto da Segurança Social I..P.”, nem nos 90 dias seguintes, tendo apenas liquidado tais montantes, acrescido de juros de mora e de custas processuais, na integra, em 08.11.2024, mediante pagamento unilateral de AA.
Mais ficou provado que os arguidos AA e BB sabiam que era sua obrigação legal, enquanto gerentes da supra identificada sociedade comercial arguida entregar aqueles montantes descontados nas folhas de féria e retidos, pelo que, ao não os entregarem, agiram de forma livre, voluntária e consciente, sabendo da punição e proibição legais de tais condutas.
Atendendo a que as quantias discriminadas em 6 não foram entregues nos termos e nos prazos legais, realizada a notificação prevista no artigo 105.º, n.º 4, do RGIT (facto provado 12), preenchidas estão as condições de punibilidade legalmente previstas.
Em face do exposto, conclui o Tribunal que os arguidos BB e AA praticaram o crime de abuso de confiança contra a segurança social de que vinham acusados, impondo-se a sua responsabilização jurídico-penal.
Atendendo a que as quantias devidas a título de juros e de custas administrativas relativas às quantias descontadas no vencimento mensal dos trabalhadores da sociedade comercial e membros de órgão estatutário foram pagos na integralidade em 08.11.2024, além da divida de capital que já estava liquidada desde data anterior a 04.06.2024, há que aplicar, no caso dos presentes autos, o disposto no artigo 22.º, n.º 2, do RGIT, no que concerne ao arguido AA.
Por fim, refira-se que o montante mínimo de 7.500,00€, constante do artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, não tem aplicabilidade no tipo legal de crime em análise, pois o douto acórdão de fixação de jurisprudência nº 8/2010, de 23 de Setembro, publicado em Diário da República, I Série, em 23.09.2010, fixou jurisprudência no sentido de que “(…) A exigência do montante mínimo de (euro) 7500, de que o n.º 1 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias - RGIT (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, e alterado, além do mais, pelo artigo 113.º da Lei n.º 64- A/2008, de 31 de Dezembro) faz depender o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, não tem lugar em relação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no artigo 107.º, n.º 1, do mesmo diploma (…)” – sublinhados nossos.
Por tudo quanto se expôs, incorreram os arguidos BB e AA na prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de Abuso de Confiança contra a Segurança Social, previsto e punível nos termos do artigo 6.º, n.º 1, 7.º, n.º 3, 105.º, n.º 1, e 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.
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Não se mostram verificadas quaisquer causas de exclusão da ilicitude e/ou da culpa, previstas na lei penal (cfr. artigos 31.º a 39.º do Código Penal).
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E) DAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO CRIME
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E 1.) DA ESCOLHA DA MEDIDA DA PENA
Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta dos arguidos, importa agora proceder à escolha da pena aplicável.
Porquanto, quanto ao arguido BB, o crime sob análise, na forma simples, é punido com uma pena de prisão [de 1 (um mês)] até três anos ou com pena de multa [de 10 (dez)] até 360 dias, por sua vez, no caso do arguido AA, ante o facto provado em 16 é tal pena especialmente atenuada, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 22.º do RGIT, ou seja, é de 10 dias a 240 dias de pena de multa e de 1 mês a 2 anos de pena de prisão, pelo que há que proceder à referida escolha – cfr. artigos 105.º, n.º 1, ex vi n.º 1 do artigo 107.º, e 12.º, n.ºs 1 a 3, 22.º, n.º 2, do RGIT e 41.º, 47.º, 72.º e 73.º do Código Penal.
A respeito da escolha da pena dispõe o artigo 70.º do Código Penal aplicável ex vi artigo 3.º, alínea a), do RGIT, que “(…) Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. (…)”.
Quanto às exigências de prevenção especial, ante a ausência de averbamentos no certificado de registo criminal dos arguidos, entende o Tribunal que a conduta por estes empreendida constituiu um acto isolado nas suas vidas, que, sem consideração dos factos dos presentes autos, evidencia ter sido pautada pelos padrões ético-sociais conformes com a vida em sociedade.
No caso dos presentes autos, embora as necessidades de prevenção geral sejam elevadas, a tutela do bem jurídico ínsito à norma incriminadora, violado com o comportamento imputado aos aqui arguidos, fica devidamente acautelado com a aplicação de uma pena de multa, pois não só se demonstra à sociedade a reafirmação do valor contra-fáctico da norma colocada em causa com a conduta perpetrada, como será tal pena uma advertência suficiente para evidenciar aos arguidos o desvalor das suas acções.
Acresce que, aplicar aos arguidos uma pena de prisão seria desproporcionado e completamente desajustado, pois a pena de prisão deve ser reservada para os crimes que merecem maior censura e desvalor pela sociedade, enquanto modo de tutela e de garantia dos bens jurídicos essenciais à vida em comunidade.
Por tudo quanto se expôs, entende o Tribunal dever ser aplicada aos arguidos BB e AA uma pena de multa a cada um.
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E 2) DA MEDIDA CONCRETA DA PENA
Nos termos do disposto no artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal aplicável ex vi artigo 3.º, alínea a), do RGIT, a determinação da medida da pena concreta, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa e das exigências de prevenção geral e especial do(s) agente(s), determinando o n.º 2 do mesmo preceito legal que, para o efeito, se atenda a todas as circunstâncias que deponham contra ou a favor do(s) arguido(s), desde que não façam parte do tipo legal de crime (para que não se viole o princípio "ne bis in idem", uma vez que tais circunstâncias já foram tomadas em consideração pela própria lei para a determinação da moldura penal abstracta).
Para o efeito, atribui-se à culpa a função única de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração positiva das normas e valores) a função de fornecer uma moldura de prevenção cujo limite máximo é dado pela medida óptima da tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa – e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico (exigências de prevenção geral) e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do(s) agente(s).
Depois, nos termos do disposto no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal aplicável ex vi artigo 3.º, alínea a), do RGIT, as finalidades da punição são, por um lado, de prevenção especial de ressocialização, visando a reintegração do(s) agente(s) na sociedade e prevenindo-se a prática de futuros crimes, atendendo-se a diversas variáveis como, por exemplo, a conduta, a idade, a vida familiar e profissional e os antecedentes do(s) agente(s), e, por outro lado, de prevenção geral ou de integração, que, dirigida à satisfação da consciência colectiva com o objectivo de repor a conformidade para com o Direito, procura restabelecer a confiança da comunidade na validade da norma infringida, isto é, atende-se, sobretudo, ao sentimento que o crime causa na comunidade, tendo em conta diversos índices, como a frequência e o espaço em que o mesmo ocorre e o alarme que está a provocar na comunidade.
Ora, no presente caso, atender-se-á:
a) ao grau da ilicitude da conduta dos arguidos que, quanto ao desvalor da sua acção, é diminuto, já que as suas condutas, tanto quanto foi perceptível ao Tribunal, não revelaram ter resultado de um grau de preparação ao nível do planeamento e do esforço empregues;
b) ao dolo directo com que os arguidos agiram e que, em resultado da conduta conjuntamente adoptada, provocou prejuízo ao “ISS,IP”, entretanto, esbatido com o pagamento das custas e dos juros advenientes da dívida elencada em 6;
c) a prática delitual ter por objecto um período temporal constrito de três meses consecutivos;
d) às condições pessoais dos arguidos que evidenciam, com excepção do comportamento na origem dos presentes autos, tiveram, e têm, uma vida conforme com o Direito, e estão integrados pessoal, familiar, profissional e socialmente;
e) do facto dos arguidos não terem qualquer averbamento nos seus certificados de registo criminal;
f) à postura dos arguidos que em sede de audiência de discussão e julgamento optaram por uma narrativa desculpabilizante e de imputação da responsabilidade criminal ao arguido, entretanto, falecido, CC.
Importa, ainda, ter em conta que as necessidades de reprovação e prevenção geral são particularmente elevadas, face ao alarme social que está associado à frequente omissão de entrega dos montantes tributários devidos ao Estado, pelas entidades empregadoras, e que são a propulsão do Estado de Direito Democrático, na vertente social, que caracteriza o Ordenamento Jurídico Português.
Assim, tudo ponderado, afigura-se adequado aplicar:
• ao arguido AA a pena de 115 (cento e quinze) dias de multa, e
• ao arguido BB a pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, previsto e punível nos termos do artigo 6.º, n.º 1, 7.º, n.º 3, 105.º, n.º 1, e 107.º do Regime Geral das Infrações Tributárias.
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E 3) DO QUANTITATIVO DIÁRIO
Quanto às pessoas singulares dispõe o artigo 15.º, n.º 1, do RGIT, que o quantitativo diário é fixado em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais entre os 1,00€ (um) euro e 500,00€ (quinhentos) euros, tratando-se de pessoas singulares, e entre 5,00€ (cinco) euros e 5000€ (cinco mil) euros, tratando-se de pessoas colectivas ou entidades equiparadas, devendo a pena de multa comportar um sacrifício económico palpável para aqueles.
Razão pela qual se reserva a aplicação dos limites mínimos para as situações excepcionais de muito reduzida capacidade económica, quase absoluta indigência, ou ausência de actividade comercial, quando se trata de pessoas colectivas.
Ora, em face das condições sócio-económicas actuais apuradas aos arguidos, supra dadas como provadas, por um lado, e considerando que os limites pecuniários mínimos de €1,00 e de €5,00, previstos pelo legislador no n.º 1 do artigo 15.º do RGIT, estão reservados para as situações em que os arguidos evidenciam encontrar-se numa situação de indigência, quase total ausência de rendimentos ou ausência de actividade económica por outro, o que não ficou demonstrado nos presentes autos, entende o Tribunal que é adequado, suficiente e proporcional aplicar os quantitativos diários a pagar pelos arguidos AA e BB respectivamente em 10,00€ (dez euros) e em 7,00€ (sete euros).
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F – DA PERDA DE VANTAGENS PATRIMONIAIS
Dispõe o artigo 110.º do Código Penal, sob a epígrafe “Perda de produtos e vantagens”, que:
“(…) 1 - São declarados perdidos a favor do Estado:
a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.
3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.
4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
5 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido4 declarado contumaz.
6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido. (…)” – negritos nossos.
Por sua vez, e em complemento, dispõe o artigo 111.º, nos n.ºs 1 e 3, do Código Penal que “(…) 1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a perda não tem lugar se os instrumentos, produtos ou vantagens não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada.
3 - Se os produtos ou vantagens referidas no número anterior não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A. (…)” – negritos nossos.
Quanto à natureza do instituto em análise, quer a jurisprudência, quer a doutrina, são unânimes ao entenderem que se trata de uma providência sancionatória de natureza análoga às medidas de segurança que não exige qualquer perigosidade, nem do agente, nem dos concretos bens.
Pretende-se, apenas e tão só, prevenir a eventual prática de novos crimes.
No fundo, quis o legislador dar forma ao brocardo popular “o crime não compensa”.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 4.ª Edição, Universidade Católica Editora, Unipessoal Lda., 2021, página 495, a “(…) perda de vantagens é determinada exclusivamente por necessidades de prevenção, não se tratando de uma pena acessória (porque não tem relação com a culpa do agente), nem de um efeito da condenação (porque também não depende de uma condenação), mas de uma medida sancionatória análoga à medida de segurança, pois baseia-se na necessidade de prevenção do perigo da prática de crimes (…)”.
A ratio legis do instituto em apreço visa, assim, abarcar todo o plus patrimonial que tenha advindo para o agente do crime em face do delito cometido.
Isto é, só se justifica a aplicação do regime jurídico da “perda de vantagens” quando em concreto tenham existido vantagens, pois não foi intenção do legislador permitir declarações de perda de vantagens meramente intimidatórias e sem qualquer utilidade prática.
Neste sentido, vejam-se os doutos acórdãos do venerando Tribunal da Relação do Porto de 30.04.2019, de 10.07.2019, de 13.11.2019 e de 24.05.2023, exarados nos processos n.ºs 1325/17.1T9PDR.P1, 4929/17.9T9PRT.P1, 15710/17.5T9PRT.P1 e 2915/17.8T9AVR.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Ante o exposto, pode-se concluir que o instituto em análise visa assegurar a privação de ganhos ao agente delitual com a prática criminosa, para, assim, reafirmar, na realidade patrimonial, o dever-ser jurídico penal, e desmotivar a adopção de comportamentos ilícitos.
Aliás, com a recente jurisprudência fixada pelo colendo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de uniformização de jurisprudência proferido em 9 de Maio de 2024, publicado na Série I do Diário de República de 09.05.2024, no qual se concluiu
que “(…) «Nos termos do disposto no artigo 111.º, n.os 2 e 4, do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 32/2010, de 02/09, e no artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 30/2017, de 30/05, as vantagens adquiridas pela prática de um facto ilícito típico devem ser declaradas perdidas a favor do Estado, mesmo quando já integram a indemnização civil judicialmente pedida e atribuída ao lesado pelo mesmo facto.» (…)”, pôs-se fim à querela verificada na jurisprudência já que determinado segmento entendia que quando havia pedido de indemnização civil deduzido julgado procedente não haveria lugar à declaração de perda de vantagens.
E compreende-se o porquê, o instituto jurídico-penal em apreço visa, ainda, dar satisfação às necessidades de prevenção geral que a prática do ilícito despoleta, enquanto a procedência do pedido de indemnização civil visa dar satisfação ao direito de crédito do lesado cujo reconhecimento, e inerente pagamento, solicitou, daí que mesmo que haja prescrição deste direito de crédito tal facto de natureza peremptória não tem reflexos na instância penal, já que se visam com os diferentes institutos fins também eles materialmente distintos.
Veja-se neste sentido o consignado no sumário exarado pelo venerando Tribunal da Relação do Porto no douto acórdão exarado, em 15.02.2023, no processo autuado sob o número 786/20.6T9VLG.P1, disponível in www.dgsi.pt., no qual se consignou que:
“(…) I – A perda de vantagens do crime através do confisco é o único mecanismo eficaz e não ingénuo de dissuasão da criminalidade que visa o lucro, que é aquela que mais prejuízos inflige aos cidadãos, ainda que muitas vezes sem vítimas identificadas.
II – Em concretização da necessidade de restauração da ordem patrimonial, enquanto conjunto de valores protegidos, será ainda imprescindível acrescentar que as medidas ablativas das vantagens do crime visam, não só assegurar a sobrevivência do Estado de Direito, mas essencialmente proteger valores fundamentais de toda a comunidade.
III – O confisco produz um efeito dissuasivo, mediante o reforço da noção de que o crime não compensa.
IV – Por outro lado, ao contrário do que sucede no confisco dos instrumentos ou dos produtos, onde o fundamento do confisco radica nas características de um objeto concreto, já no caso das vantagens o que está em causa é um benefício.
Após leitura do referenciado aresto, bem como análise crítica da jurisprudência firmada sobre este tema, realidades que nos levaram a inflectir a posição que anteriormente defenderamos, que ia no sentido da corrente jurisprudencial minoritária.(…)
económico, ou se preferirmos, um incremento patrimonial, pelo que, na restauração da situação económica existente antes da prática do crime, é absolutamente indiferente que o confisco opere por referência às vantagens diretas ou ao seu valor.
V – Assim sendo, o confisco das vantagens não constitui um mecanismo eventual ou facultativo de assegurar as finalidades que lhe estão subjacentes, pois o legislador nacional estabeleceu-o como uma medida obrigatória, subtraída a qualquer critério de oportunidade, e que ocorrerá sempre, por imperativo legal, que com a prática do crime tenham sido gerados benefícios económicos. (…)” –
negritos nossos.
Aqui chegados, e tendo presente que a conduta delitual dos arguidos BB e AA redundou num incremento patrimonial da sociedade comercial “A..., Lda.” no montante indicado em 6 [incremento que desmotivou a necessidade de prestação de suprimentos pelos arguidos pessoas singulares enquanto gerentes de facto e de direito], sociedade da qual eram sócios e gerentes, declara-se tal montante nos seus exactos termos perdido a favor do Estado, cfr. artigos 110.º, n.º 1, alínea b), e n.º 4, e 111.º, n.º 3, do Código Penal, sendo os arguidos co-responsáveis pelo seu pagamento, no montante total de 12.736,91€, atenta a sua deliberação conjunta com vista a alcançar o incremento patrimonial gerado na esfera jurídica da identificada sociedade comercial, e reflexamente na sua, até porque tal montante em sede de processos executivos movidos pelo ISS, IP foi declarado prescrito como decorre da factualidade supra dada como provada..» (…)
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2.3- APRECIAÇÃO DO RECURSO.
2.3.1- Da Impugnação alargada da matéria de facto.
A matéria de facto pode ser sindicada de dois modos. Um mais restrito, a chamada «revista alargada», que abrange os vícios previstos no artigo 410º, nº2, do CPP. Outro, a chamada impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do CPP.
Nos termos do artigo 428.º, n.º 1 do Código Processo Penal, as Relações conhecem de facto e de direito e de acordo com o artigo 431.º “Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.
Por outro lado, dispõe o artigo 412.º, n.º 3 que “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”.
E, no seu n.º 4 que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Ao recorrente impõe-se o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa, sendo que tal ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e bem assim referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão.
E nos termos do art. º 417 n. º3 do C.P,P. se das conclusões do recurso não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n. º2 a 5 do art. º412, não obstante a constatação de aperfeiçoamento daquelas, o recurso deve ser rejeitado ou não deve ser conhecido na parte afectada.
Porém, nem da Motivação nem das Conclusões apresentadas pelo recorrente se retira que tenha sido dado cumprimento ao preceituado no art. º412 n. º3 a) do C.P.P. do C.P.Penal, razão pela qual não se conhece da parte do recurso que visa a impugnação da matéria de facto.
Recordamos aqui que o reexame da matéria de facto não abarca a realização de um novo julgamento, mas apenas tem por objectivo sindicar aquele que foi efectuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso (Ac. STJ de 16.06.2005).
E assim sendo, o recurso sobre a matéria de facto não pressupõe a reapreciação pelo tribunal de recurso de todos os elementos de prova que foram produzidos e que serviram de fundamento à sentença recorrida, mas apenas e tão-só a reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente – Ac. do STJ de 10.01.2007.
O nosso Código de Processo Penal consagra no artigo 127.º o princípio da livre apreciação da prova. De acordo com este princípio, o tribunal é livre na formação da sua convicção, mas encontra-se vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que estão subtraídas a essa livre convicção, sendo esta motivada, e estando ainda o tribunal sujeito aos princípios do processo penal, como o da legalidade das provas e in dubio pro reo.
O princípio in dubio pro reo, emanação da injunção constitucional da presunção da inocência do arguido, na vertente de prova (artigo 32.º, n.º 2 Constituição), constitui um limite do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe nos casos de dúvida fundada sobre os factos que o Tribunal decida a favor do arguido.
Postas estas considerações, cabe concluir que assim e para além da violação das provas subtraídas à livre apreciação do julgador, ou da violação dos referidos princípios, o juízo decisório da matéria de facto só é suscetível de ser alterado, em sede de recurso, quando a racionalidade do julgamento da matéria de facto corresponda, de um modo objectivo, a um juízo desrazoável ou mesmo arbitrário da apreciação da prova produzida.
Mas uma coisa é o recorrente não concordar com a apreciação da prova pelo Tribunal e da credibilidade ou falta de credibilidade por este dada a determinados testemunhos em detrimento de outros, outra é o recorrente pretender substituir-se ao Tribunal na apreciação da prova.
Diga-se ainda que da análise do texto da decisão recorrida não se vislumbra qualquer violação das regras da experiência e do normal suceder das coisas da vida, não se evidenciando qualquer violação do princípio da livre apreciação da prova tal como o mesmo vem previsto no art. º127 do C.P.P., o mesmo se verificando no que toca aos princípios da presunção da inocência previsto no art.º32 n. º2 da C.R.P. e o princípio do in dubio pro reo, ao que acresce que da leitura do texto da decisão recorrida não se retira ou detecta qualquer dos vícios enquadráveis no disposto no artigo 410º n. º2 do C.P.Penal, os quais de conhecimento oficioso, nomeadamente, o erro notório na apreciação da prova (alínea c) do n. º2 do referenciado artigo).
Concluindo, pelas razões acima expostas, rejeita-se o recurso na parte em que pretende impugnar a matéria de facto por manifesto incumprimento do ónus de especificação consagrado no art. º412 n.º3 e 4 do C.P.P..
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2.3.2 Determinação da pena: redução da medida da pena principal aplicada
O recorrente AA pugna pela redução da pena de multa aplicada pelo tribunal recorrido alegando que não se verificam, no caso em apreço, exigências de prevenção especial, o que se retira do decurso do tempo desde a prática dos factos a par da confissão do Recorrente.
Entende, uma vez que aquelas circunstâncias reflectem a ausência de necessidades de prevenção especial, que a multa penal deverá ser reduzida para 100 dias à taxa diária de €6,00.
Relida a decisão recorrida verificamos que o tribunal recorrido, após indicar os critérios legais a atender no que se reporta à fixação concreta da pena, indicou como parâmetros da escolha e medida da pena para o caso subjudice os que infra se indicam:
“(…)no caso do arguido AA, ante o facto provado em 16 é tal pena especialmente atenuada, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 22.º do RGIT, ou seja, é de 10 dias a 240 dias de pena de multa e de 1 mês a 2 anos de pena de prisão, pelo que há que proceder à referida escolha – cfr. artigos 105.º, n.º 1, ex vi n.º 1 do artigo 107.º, e 12.º, n.ºs 1 a 3, 22.º, n.º 2, do RGIT e 41.º, 47.º, 72.º e 73.º do Código Penal.
(…)”
Ora, no presente caso, atender-se-á:
a) ao grau da ilicitude da conduta dos arguidos que, quanto ao desvalor da sua acção, é diminuto, já que as suas condutas, tanto quanto foi perceptível ao Tribunal, não revelaram ter resultado de um grau de preparação ao nível do planeamento e do esforço empregues;
b) ao dolo directo com que os arguidos agiram e que, em resultado da conduta conjuntamente adoptada, provocou prejuízo ao “ISS,IP”, entretanto, esbatido com o pagamento das custas e dos juros advenientes da dívida elencada em 6;
c) a prática delitual ter por objecto um período temporal constrito de três meses consecutivos;
d) às condições pessoais dos arguidos que evidenciam, com excepção do comportamento na origem dos presentes autos, tiveram, e têm, uma vida conforme com o Direito, e estão integrados pessoal, familiar, profissional e socialmente;
e) do facto dos arguidos não terem qualquer averbamento nos seus certificados de registo criminal;
f) à postura dos arguidos que em sede de audiência de discussão e julgamento optaram por uma narrativa desculpabilizante e de imputação da responsabilidade criminal ao arguido, entretanto, falecido, CC.
Importa, ainda, ter em conta que as necessidades de reprovação e prevenção geral são particularmente elevadas, face ao alarme social que está associado à frequente omissão de entrega dos montantes tributários devidos ao Estado, pelas entidades empregadoras, e que são a propulsão do Estado de Direito Democrático, na vertente social, que caracteriza o Ordenamento Jurídico Português.
Assim, tudo ponderado, afigura-se adequado aplicar:
• ao arguido AA a pena de 115 (cento e quinze) dias de multa, e
• ao arguido BB a pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, previsto e punível nos termos do artigo 6.º, n.º 1, 7.º, n.º 3, 105.º, n.º 1, e 107.º do Regime Geral das Infrações Tributárias.
A este respeito cabe desde já referir que os factos que relevam para a determinação da medida da pena são, além dos notórios, os factos provados da sentença e não outros. E a este propósito retira-se do teor da decisão recorrida a sua opção por desvalorizar a alegada confissão do arguido/ recorrente, dada a gravidade inerente à “postura dos arguidos que em sede de audiência de discussão e julgamento optaram por uma narrativa desculpabilizante e de imputação da responsabilidade criminal ao arguido, entretanto, falecido, CC”.
Opção essa que está fundamentada de modo claro e racional na decisão recorrida, a qual salientou que “Acrescentando-se, ainda, que, não vingou a tentativa dos arguidos de dar a entender ao Tribunal que, a partir do momento da entrada do arguido DD estes ficaram esvaziados de qualquer função material na “A..., Lda.”, pois, não só o arguido AA mencionou que o arguido BB continuou responsável pela angariação de massa salarial, o que este também confirmou, e que evidencia que este sabia da capacidade, pelo menos hipotética e abstracta, de aumento do volume de dívidas mensais à SS, ante a mensal tributação dos salários dos seus empregados, como não cuidaram os dois de acompanhar cuidadosamente o rumo económico financeiro da sociedade, até porque eram sócios e gerentes destas.
Vínculo societário que romperam ao renunciar à gerência, como decorre da compulsa da supra mencionada certidão comercial permanente.
Ademais, os sectores em que os arguidos actuavam andavam a par e passo de mãos dadas, porquanto, só haveria capacidade de contratação de pessoal se houvessem receitas económicas para o efeito, isto é, se o departamento financeiro estivesse robustecido pela acção do sector das cobranças, o que evidencia que havia, sim, uma gestão conjunta, mas segmentada pelo polo em que cada um dos arguidos era mais apto e eficaz, BB na angariação e gestão da massa salarial e AA como cobrador de dívidas.
Repartição de funções que não exonera de responsabilidades os arguidos, porquanto, todos convergiam nos seus actos, gerar liquidez para a sociedade, para, concomitantemente terem lucro e dividendos em detrimento de operações de injecção de capital próprio para suprimento das necessidades financeiras da empresa e que seriam feitos à custa do seu património pessoal.
Ouvido, por sua vez, o arguido BB, este reiterara as declarações do arguido AA, precisando, ainda, ser do seu conhecimento que, à data dos factos, entravam vários cheques de origem francesa por semana para liquidar.
Ora, este argumento vem corroborar a convicção já formada pelo Tribunal, isto porque, visando a constituição de uma sociedade a obtenção de lucro, e sabendo o identificado arguido da entrada de capital na empresa, omitiu, pura e simplesmente, o dever de diligência em saber qual o rumo dado ao mesmo(?), sabendo que os seus dividendos estariam dependentes da profícua e cuidadosa gestão da empresa (?), não cremos.
A tentativa, renova-se, vã, de tentar iludir o Tribunal não colheu.
Aliás, vislumbrou-se uma passagem de testemunho entre os dois arguidos, ora um imputava ao arguido BB a contratação de trabalhadores, ora este mencionara que fora AA quem dissera que os assuntos bancários, a partir da entrada do sr. DD, seriam pura e simplesmente da responsabilidade deste.(…)
Atento o supra exposto, este tribunal ad quem nada tem a objectar às conclusões a que chegou o juiz a quo e que resultaram na não valorização da invocada confissão dos factos.
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Vejamos, então, o direito aplicável quanto à determinação da pena.
As regras aplicáveis nesta matéria são as do Código Penal, acrescentando o RGIT no seu artigo 13º que na determinação da medida da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime, o que acaba por ser apenas uma concretização da alínea a) do n.º 2 do artigo 71º do Código Penal, onde se impõe a consideração entre outras circunstâncias do grau de ilicitude do facto e da gravidade das suas consequências. Ora, o prejuízo causado com a prática do crime é uma consequência deste, sendo que se haverá de tomar em conta a diminuição patrimonial sofrida pela Administração Tributária.
Nos termos do art.º 40º, nº 1, do Código Penal as finalidades das sanções penais são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo nunca a pena ultrapassar a medida da culpa (art.º 40º, nº 2).
Dito de outro modo, a pena visa finalidades exclusivas de prevenção geral e especial, sendo que, dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva (necessidade de manutenção da confiança da comunidade na validade da norma posta em crise pelo cometimento do crime) devem atuar as exigências de prevenção especial (necessidade de preparação do agente para, no futuro, não cometer crimes).
O artigo 70º do Código Penal, por outro lado, estabelece as regras de escolha da pena e dispõe o art.º 71º, nº 1, que «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». Acrescentando-se no nº 2 deste último artigo que na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente as que aí se encontram elencadas nas alíneas a) a f).
Quanto às penas de substituição da pena de prisão, nada dispondo o RGIT com exceção da especialidade prevista para a suspensão da execução da pena no artigo 14º deste diploma, que se prende, essencialmente, com a obrigatoriedade do condicionamento da suspensão da pena de prisão ao pagamento das quantias referidas na norma, valem as regras gerais do Código Penal[1].
A moldura penal aplicável ao crime cometido é nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 22.º do RGIT, ou seja, é de 10 dias a 240 dias de pena de multa.
Entendemos ter razão a decisão recorrida no que se reporta à opção por uma pena não detentiva, pois que a pena de multa mostra-se adequada a satisfazer as exigências de prevenção evidenciadas no caso em apreço.
Tendo em conta os critérios de determinação da pena já acima enunciados, é de referir desde logo o grau diminuto da ilicitude dos factos, considerando o tipo de ilícito e, tal como se refere na decisão recorrida, o pagamento dos montantes envolvidos à entidade competente, assim como o período relativamente curto de tempo em que ocorreram os factos. Note-se, porém, que a culpa é elevada, atento o dolo direto, intenso, tal como se considerou na sentença da primeira instância.
As necessidades de prevenção geral positiva são significativas, como se referiu na primeira instância, atenta a já referida ilicitude mediana e a frequência da prática deste tipo de ilícito, a reclamar pela comunidade alguma firmeza na repressão deste tipo de criminalidade de modo a que a generalidade dos cidadãos sinta confiança nas normas que punem o abuso de confiança fiscal.
Em sede de prevenção especial, haverá de se sopesar o facto de o arguido estar familiar e socialmente integrado. Concluindo, entendemos que o grau das exigências de prevenção especial de ressocialização foram adequadamente graduadas pela decisão recorrida.
E assim sendo, consideramos que, para cumprir as exigências de prevenção geral positiva e de prevenção especial de ressocialização, a pena de 115 (cento e quinze) dias de multa fixada pelo Tribunal a quo, situada no terço médio da moldura abstrata, se mostra adequada e proporcionada, não ferindo os princípios constitucionais da culpa, da igualdade, da necessidade e da proporcionalidade.
O mesmo se diga ao montante de €.10,00 fixado para a taxa diária atenta a condição pessoal do arguido. A este propósito apurou-se que que o arguido AA reside em casa própria com a esposa e os dois filhos, com 4 e 11 anos de idade. É empresário auferindo mensalmente a quantia de 1.200,00€ (mil e duzentos euros). Tem duas viaturas, uma da marca “Mercedes” e outra da marca “Nissan”, respectivamente, dos anos de 2006 e de 2011. É diabético carecendo de tomar medicação mensalmente no montante de 200,00€, circunstâncias adequadamente ponderadas na fixação daquela taxa.
Ainda nesta sede não podemos deixar de relembrar aqui o teor do Acórdão da Relação de Coimbra de 09/02/2003, relatado por Barreto do Carmo[2]:
“(…) São características da pena de multa:
- é uma autêntica pena criminal
- isto é, tem um carácter expiatório e ressociabilizador, determinando-se, essencialmente, em função da culpa do agente
- não é um direito de crédito do Estado ou um imposto - por isso não pode ser determinada pelos mesmos critérios da prestação pública do cidadão para a comunidade;
- tem natureza pessoalíssima - não podendo por ela ser responsáveis as forças da herança, nem pode ser paga por terceiros, nem objecto de transmissão ou negócio;
- mantém as funções de prevenção geral e especial das penas - a aplicação concreta da multa, não pode converter-se numa forma disfarçada de absolvição ou de atenuação, nem uma forma de punição meramente bagatelar;
- a aplicação da pena de multa deve representar uma suficiente censura do facto - garantindo à comunidade a validade, vigência e eficácia da norma punitiva;(…)”
É, pois, dados os factores atendidos e referenciados na decisão recorrida, notória a adequação da taxa diária fixada pelo tribunal a quo no caso concreto.
Por força do até agora expendido, soçobra, também nesta parte, o recurso do arguido.
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2.3.3 Perda de Vantagens
A decisão recorrida, no seu dispositivo, declarou (…) perdida a favor do Estado a quantia total de 12.736,91€ (doze mil setecentos e trinta e seis euros e noventa e um cêntimos), de que são solidariamente devedores os arguidos AA e BB, a título de perda de vantagens advenientes do facto ilícito típico enquadrado e referenciado em A;
Considera o recorrente que Não tendo sido deduzido pedido cível pelo Instituto da Segurança Social, e tendo-se verificado que a mesma é inexigível, correspondendo ao total do montante das quotizações retidas e respetivos juros de mora devidos, o qual correspondia à vantagem económica obtida com a prática do crime, já não podem os Arguidos serem obrigado a pagar tal valor ao Estado, devendo, por isso, na sentença, declarar-se extinta a instância, por inutilidade superveniente, relativamente ao pedido de perda de vantagens formulado pelo Ministério Público.
E sustenta tal pretensão no facto da inexigibilidade da prestação resultar do facto do mesmo ter já procedido ao pagamento das quotizações devidas e respectivos juros, montantes que correspondiam à vantagem económica obtida com a prática do crime.
Ora, de acordo com a decisão recorrida “tendo presente que a conduta delitual dos arguidos BB e AA redundou num incremento patrimonial da sociedade comercial “A..., Lda.” no montante indicado em 6 [incremento que desmotivou a necessidade de prestação de suprimentos pelos arguidos pessoas singulares enquanto gerentes de facto e de direito], sociedade da qual eram sócios e gerentes, declara-se tal montante nos seus exactos termos perdido a favor do Estado, cfr. artigos 110.º, n.º 1, alínea b), e n.º 4, e 111.º, n.º 3, do Código Penal, sendo os arguidos co-responsáveis pelo seu pagamento, no montante total de 12.736,91€, atenta a sua deliberação conjunta com vista a alcançar o incremento patrimonial gerado na esfera jurídica da identificada sociedade comercial, e reflexamente na sua, até porque tal montante em sede de processos executivos movidos pelo ISS, IP foi declarado prescrito como decorre da factualidade supra dada como provada.”
Da factualidade dada por assente resulta que:
No exercício da descrita actividade, a sociedade “A..., Sociedade Unipessoal, Ld.ª”, através dos arguidos DD, BB e AA, descontou nos salários pagos aos seus trabalhadores e aos gerentes, as seguintes cotizações legalmente devidas à Segurança Social:
Mês e ano Taxas (%) Cotizações Retidas
Junho 2015 11,00 € 7.494,81
Julho 2015 11,00 € 4.000,47
Agosto 2015 11,00 € 1.241,63
Total € 12.736,91
(…)
Por decisão exarada em 21.07.2020, o ISS,IP declarou prescrita, quanto ao arguido AA, a dívida elencada em 6, cobrada nos processos de execução n.ºs (…), respeitante aos períodos de Junho e de Julho de 2015.
15. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 04.06.2024, o montante discriminado em 6 foi integralmente liquidado.
16. Os juros e custas administrativas associados aos montantes elencados em 6, foram liquidados em 08.11.2024, pelo arguido AA.(…)”
Cumpre aferir se dada a factualidade ora evidenciada, nomeadamente a exarada em 15 e 16, o recorrente deveria ter sido condenado solidariamente no montante correspondente ao apurado incremento da sociedade - 12.736,91€ (doze mil setecentos e trinta e seis euros e noventa e um cêntimos), a título de perda de vantagens.
Reza o art.º 110.º do Código Penal, sob a epígrafe «Perda de produtos e vantagens», na redação dada pela Lei n.º 30/2017, de 30.05, o seguinte:
«1 - São declarados perdidos a favor do Estado:
a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.
3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.
4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
5 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.
6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.»
Em causa nos autos está a perda da vantagem de facto ilícito típico – crime de abuso de confiança fiscal – no montante global de 12.736,91€, que corresponde ao montante global da apropriação pela sociedade dos valores descontados dos salários dos respectivos trabalhadores para entrega das devidas quotizações à Segurança Social.
Os tribunais superiores têm aderido ao pensamento do Professor Figueiredo Dias sobre a matéria do instituto da perda de vantagem de facto ilícito típico, isto é, a de que a perda, neste caso específico de vantagens derivadas de facto ilícito típico, anda que não resulte em condenação - n.º 5 do art.º 110.º do Código Penal –, tem assim fins preventivos, tanto de natureza especial como geral, isto é, tanto ligadas à pessoa do agente como ligadas à defesa do ordenamento jurídico, como fator dissuasor do visado e da comunidade em geral para a prática do crime, na justa medida em que se procura neutralizar a vantagem patrimonial/económica obtida e de modo a criar a perceção no visado e na comunidade que o “crime não compensa”.
A perda de vantagens não se correlaciona com qualquer noção de perigosidade imediata (mas mediata, conforme entendimento do Professor Figueiredo Dias), operando-se com a neutralização da vantagem patrimonial/económica emergente do facto ilícito típico ou de restabelecimento da ordem económica conforme o direito ou ainda, dito doutro modo, com a colocação do agente do facto ilícito típico (ou de terceiro) na situação patrimonial e/ou económica em que estaria se não tivesse ocorrido tal facto ilícito típico.
Esta finalidade de neutralização da vantagem ilicitamente obtida, segundo nos parece, acaba por ser instrumental da finalidade última da perda de vantagens, imediatas ou mediatas, qual seja, a finalidade de prevenção especial (perante o agente) e geral (perante a comunidade), de molde a criar a perceção que o “crime não compensa”, para usar a expressão do Professor Figueiredo Dias.[3]
Conclui-se, assim, que a perda de vantagem visa não só a neutralização da vantagem económica (não necessariamente patrimonial), mas esta não deixa de ser instrumental perante as finalidades de prevenção especial e geral de dissuasão contra a prática do crime. Não obstante, ambas as finalidades têm que estar presentes, com potencialidade de concretização, aquando da aplicação do dito instituto.
Ora, no caso em apreço verifica-se que a vantagem ilicitamente obtida – o apurado incremento da sociedade - 12.736,91€, foi integralmente liquidado pelo ora recorrente perante a Segurança Social.
Donde se constata que, com a entrega do valor do incremento patrimonial à Segurança Social foi cumprida uma das funções do referido instituto, concretamente, a reparação da ordem patrimonial ferida, e sem que tenha sido anulada a função de combate ao crime traduzida na dissuasão da prática de outros actos ilícitos típicos de idêntica natureza.
Em suma, a declaração da perda de vantagens com a concomitante condenação na entrega do respetivo valor impõem-se sempre desde que reunidos que estejam os seus requisitos, estando subtraída a respetiva decisão à discricionariedade do tribunal, inserindo-se antes no círculo dos seus poderes-deveres, e ainda que tenha sido deduzido PIC, conforme emerge do AUJ n.º 5/2024, de 11.04., publicado no DR n.º 90/2024, Série I, de 09.05[4].
Porém, no caso em análise, a reparação da ordem patrimonial, ou seja, neutralização da vantagem ilicitamente obtida, já havia sido alcançada pelo que a condenação do recorrente decorrente da declaração de perda carece de fundamento.
Razão pela qual se determina a revogação parcial da sentença recorrida, concretamente, na parte em que declara perdida a favor do Estado a quantia total de 12.736,91€ (doze mil setecentos e trinta e seis euros e noventa e um cêntimos) a título de perda de vantagens advenientes do facto ilícito típico enquadrado e referenciado em A, assim como a condenação do recorrente AA no pagamento do referido valor.
Atentos os fundamentos da determinada revogação dá-se igualmente sem efeito a sentença recorrida na parte em que condena solidariamente no pagamento do referido valor o arguido BB – art.º402 n. º2 do C.P.P.
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3- DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso do arguido AA e, em consequência:
- revoga-se a sentença recorrida na parte em que declara perdida a favor do Estado a quantia total de 12.736,91€ (doze mil setecentos e trinta e seis euros e noventa e um cêntimos) a título de perda de vantagens advenientes do facto ilícito típico enquadrado e referenciado em A, assim como na condenação no pagamento do referido valor, decisão esta que beneficia não só o arguido recorrente mas também o arguido BB – art.º402 n. º2 do C.P.P..
- no mais, mantém-se o demais decidido em sede de primeira instância.
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Sem custas – artigo 513 n. º1 do C.P.Penal.
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Notifique.
(Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º n.º 2, do CPP)

Porto, 25 de junho de 2025
(assinaturas electrónicas)
Maria Ângela Reguengo da Luz
Amélia Catarino
Nuno Pires Salpico
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[1] Cfr. neste sentido Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, 2018, p.132 e o Ac. TRP de 27.01.2021 (proc. 268/16.0IDAVR.P1, não publicado em dgsi.pt).
[2] in www.dgsi.pt;
[3] Acórdão do TRP de 21/05/2025, relatado por José Castro e disponível in www.dgsi.pt, que referencia ainda, no sentido de que a perda de vantagens é determinada por necessidades de prevenção, M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, in Código Penal, Parte Geral e especial, Almedina, março de 2014, pág. 446; bem como Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª ed. atualizada, Universidade Católica Editora, , agosto de 2021, pág. 495.;
[4]«Nos termos do disposto no artigo 111.º, n.ºs 2 e 4, do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 32/2010, de 02/09, e no artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 30/2017, de 30/05, as vantagens adquiridas pela prática de um facto ilícito típico devem ser declaradas perdidas a favor do Estado, mesmo quando já integram a indemnização civil judicialmente pedida e atribuída ao lesado pelo mesmo facto.»