CONCESSIONÁRIA DE ESTACIONAMENTO
COBRANÇA DE TAXAS
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Sumário

I - A competência material dos tribunais afere-se pela causa de pedir e pelo pedido concretamente formulados.
II - A cobrança pela concessionária das taxas devidas pelo estacionamento em zonas abrangidas pelo contrato de concessão celebrado com um Município insere-se no âmbito da realização, em substituição deste, de uma função pública a que corresponde o exercício de um poder público emanado de um regulamento municipal.
III - Assim, não se tratando de serviços públicos essenciais, os litígios entre a entidade concessionária e os utilizadores das zonas de estacionamento são da competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.

Texto Integral

Proc. n.º 147514/24.7YIPRT.P1 – Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Matosinhos– Juiz 3



Relatora: Carla Fraga Torres
1.º Adjunto: José Nuno Duarte
2.º Adjunto: António Mendes Coelho





Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da 5.ª Secção Judicial/3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:


I. Relatório.


Recorrente: Data Rede, S.A.
Recorrida: AA


Data Rede, S.A. apresentou contra AA requerimento de injunção que deu origem à presente acção declarativa de processo comum em que pede a condenação deste a pagar-lhe a quantia global de 1.703,30 €, dos quais são 1.590,65 € de capital; 36,15 € de juros de mora e 76,50 € de taxa de justiça.
Para o efeito, alegou, em suma, que, o requerido, proprietário do veículo automóvel de matrícula ..-..-VP, estacionou por diversas vezes, desde 14/03/2023 a 29/08/2024, em vários parques de estacionamento, por si explorados, sem proceder ao pagamento do tempo de utilização através das máquinas para pagamento de estacionamento automóvel que aí colocou e conforme regras devidamente publicitadas no local, perfazendo o montante em dívida o valor do capital supra referido, que o requerido, apesar das interpelações para o efeito, se recusa a pagar, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos desde a data do vencimento dos respectivos avisos de pagamento até à presente data. Acrescentou que “o valor de cada aviso pela falta de pagamento do estacionamento devido nas vias públicas supra indicadas, é de €6,60, € 7,15 a partir de 03/10/2023 e € 7,50 a partir de 01/07/2024, podendo terem sido emitidos dois avisos diários, caso a duração do estacionamento seja superior a 4 horas, a que acrescem €15,00 de penalização por falta de pagamento dentro do prazo estabelecido de 15 dias indicados nos respetivos avisos”.
Citado, o R. contestou, além do mais, invocando a excepção dilatória da incompetência em razão da matéria do Juízo Local Cível de Matosinhos, por entender que é aos Tribunais Administrativos que cabe conhecer dos presentes autos, em virtude de o crédito em causa emergir da actividade desenvolvida pela A. em locais públicos da área urbana da cidade de Matosinhos, no âmbito de um contrato de concessão e da prestação que decorre do fornecimento dos alegados serviços.
Notificada para se pronunciar quanto à mencionada excepção dilatória, a A. pugnou pela sua improcedência por defender que, tendo celebrado um contrato de cessão de exploração, para fornecimento, instalação e exploração de parquímetros, em parques de estacionamento de duração limitada, mediante o qual passou a explorar e gerir parques de estacionamento automóvel na cidade de Matosinhos, os valores cujo pagamento reclama correspondem a contraprestações pela utilização dos estabelecimentos concessionados no âmbito de uma relação contratual de facto criada pelo comportamento dos automobilistas, que, não nascendo de um negócio jurídico em sentido restrito, está, ainda assim, subordinada ao regime jurídico das relações contratuais, designadamente em matéria de incumprimento, que gera não procedimentos contraordenacionais mas sim procedimentos de cobrança comercial.
Sobre a invocada excepção da incompetência material foi proferida a seguinte decisão:
“Face ao exposto, julga-se verificada a excepção dilatória da incompetência material deste Juízo Local Cível de Matosinhos, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto e, em consequência, absolve- se da instância o aqui R.”.
Inconformada com esta decisão, dela interpôs recurso a A., que, a terminar as respectivas alegações, formulou as seguintes conclusões:
(…)

*

O recorrido apresentou contra-alegações pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
*

O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
*

Recebido o processo nesta Relação, proferiu-se despacho a considerar o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com o efeito e o modo de subida legalmente previstos.
*

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*

II. Questões a decidir.
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas, a única questão que se coloca a este Tribunal é a de saber se o Juízo Local Cível de Matosinhos, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, é materialmente competente para o conhecimento da presente acção.
*

III. Fundamentação de facto.
Os factos materiais relevantes para a decisão da causa são os que decorrem do relatório supra.
*

IV. Fundamentação de direito.
Delimitada, nos termos sobreditos sob o ponto II, a questão essencial a decidir, cumpre apreciá-la.
A organização judiciária portuguesa, em obediência ao art. 209.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), prevê no art. 29.º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), diferentes categorias de Tribunais, de que se destacam os Tribunais Judiciais e os Tribunais Administrativos e Fiscais, duas ordens jurisdicionais distintas, que, conforme a repartição do poder de julgar segundo o critério da natureza das matérias em causa, assim dispõem de diferentes competências jurisdicionais em razão da matéria, residual para os primeiros no confronto com os segundos, nos termos dos arts. 64.º do CPC e 40.º, n.º 1 da LOSJ. Como salientam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, no plano das diferentes ordens de jurisdições são justamente as questões não atribuídas à ordem dos Tribunais Administrativos e Fiscais que os Tribunais Judiciais abarcam na sua competência (in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração”, Almedina, pág. 92).
Acresce que, conforme é entendimento jurisprudencial e doutrinário pacífico, a competência material do Tribunal afere-se pelo pedido efetuado e pela causa de pedir, e, portanto, como se escreveu no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 1/10/2015 “… a competência material dum tribunal constitui um pressuposto processual, sendo aferida pela questão ou questões que o A coloca na respectiva petição inicial e pelo pedido formulado, conforme ensina Manuel de Andrade. E nesta lógica, a apreciação da competência dum tribunal tem de resolver-se face aos termos em que a acção é proposta, aferindo-se portanto pelo “quid disputatum”, ou seja pelo pedido do A e respectiva causa de pedir, sendo irrelevantes as qualificações jurídicas alegadas pelas partes ou qualquer juízo de prognose que possa fazer-se quanto à viabilidade ou inviabilidade da pretensão formulada pelo Autor. Foi também neste sentido que se firmou a jurisprudência, podendo ver-se o acórdão do STJ de 14/5/2009, www.dgsi.pt, de cujo sumário se conclui que “a competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a acção é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respectivos fundamentos. Daí que para se determinar a competência material do tribunal haja apenas que atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados”. Será portanto a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada na petição inicial que deveremos decidir da questão de saber qual é a jurisdição competente para o seu conhecimento” (in www.dgsi.pt n.º convencional JSTA00069359). No mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 8/10/2015 esclarece ainda que “…a apreciação de tal pressuposto processual (tal como os demais) é feita tendo por base a forma como o autor configura a sua ação, na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir, tendo-se ainda em conta as demais circunstâncias disponíveis pelo tribunal que relevem sobre a exata configuração da causa. Em suma, para decidir qual das diversas normas definidoras dos critérios que presidem à distribuição do poder de julgar entre os diferentes tribunais, deve olhar-se aos termos em que a ação foi posta – seja quanto aos seus elementos objetivos seja quanto aos seus elementos subjetivos. A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da ação. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão. Como assim é, será em função do modo como a causa é delineada na petição inicial, e não pela controvérsia que venha a resultar da ação e da defesa, que a competência do tribunal se averigua” (in jurisprudência.csm.org.pt/ecli).
Comecemos, pois, pela competência abstracta dos Tribunais Administrativos e Fiscais determinada - quer pela CRP, no seu art. 212.º, n.º 3, quer pela LOSJ, no seu art. 144.º, n.º 1, quer ainda pelo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovada pela Lei n.º 13/2002 de 19/02, no seu art. 1.º, n.º 1 - em função do respectivo objecto que os indicados preceitos legais circunscrevem aos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais nos termos densificados no art. 4.º deste último diploma legal, através de uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (n.ºs 3 e 4).
Entre as matérias que expressamente são atribuídas à competência dos Tribunais Administrativos conta-se a validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes (art. 4.º, n.º 1, al. e) do ETAF), desde que, com interesse in casu, em causa não estejam relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respectiva cobrança coerciva, que o art. 4.º, n.º 4, al. e) do ETAF exclui do âmbito da competência da jurisdição administrativa e fiscal.
Da factualidade de que dispomos, verifica-se que, reconhecidamente, entre a recorrente e a Câmara Municipal de Matosinhos foi celebrado um contrato através do qual aquela passou a explorar e a gerir parques de estacionamento automóvel na cidade de Matosinhos, entre os quais se contam os localizados nas vias públicas identificadas no requerimento inicial, como seja a Rua ..., a Av. ... B, a Av. ..., o Parque ..., a Rua ..., a Rua ... e a Rua ... (cfr. conclusões b), c) e arts. 2.º a 6.º do articulado de Resposta). De onde, o contrato assim descrito é um contrato de concessão de exploração de bens do domínio público, contrato administrativo, nos termos do art. 407.º, n.º 2 do Código dos Contratos Públicos (CCP). Em anotação a este preceito legal, Jorge Andrade da Silva escreve que “embora precipuamente dirigidos à satisfação dos interesses do concessionário…, não deixam de tender sempre à prossecução do interesse público…Trata-se de um contrato administrativo pelo qual uma pessoa colectiva pública (concedente) transfere para outrem (concessionário, normalmente um particular) os poderes públicos associados à gestão e exploração económica de um ou vários bens do domínio público, de modo a proporcionar a obtenção da utilidade pública que os bens são capazes de gerar, por conta e risco do concessionário, tendo como contrapartida o pagamento de uma taxa pelo concessionário, que pode, por sua vez, cobrar taxas ou preços pelas vendas de bens ou prestação de serviços em que se traduz a exploração. É, pois, o contrato pelo qual a Administração Pública procede à transferência para outrem de uma parcela do domínio público, com a faculdade do exercício de todos os poderes inerentes; ou, pondo a tónica noutro elemento, é o contrato administrativo pelo qual um particular se encarrega de gerir ou explorar um bem do domínio público, exercendo sobre esse bem os poderes e atividade que legalmente cabe à Administração, em substituição desta. Com a transferência da exploração de um bem do domínio público, transfere-se igualmente a faculdade de exercício relativamente aos poderes que sobre ele tem a entidade pública concedente, respeitantes à respetiva gestão ou exploração económica. São deste tipo as concessões de exploração de um porto, de uma praia, de um parque público, dos recursos minerais, etc.” (in “Código dos Contratos Públicos”, Comentado e Anotado, 12.ª Edição Revista e Atualizada, Almedina, 1210/1211).
De acordo com o Regime Jurídico das Autarquias Locais estabelecido pela Lei n.º 75/2013, de 12/09, uma das competências da Câmara Municipal é deliberar sobre o estacionamento de veículos nas vias públicas e demais lugares públicos (art. 33.º, n.º 1, al. rr) e elaborar e submeter à aprovação da assembleia municipal os projectos de regulamentos externos do município, bem como aprovar regulamentos internos (art. 33.º, n.º 1, al. k). No caso, foi aprovado pela Câmara e Assembleia Municipal e publicado no Diário da República, em 8/03/2016, o Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada do Concelho de Matosinhos. No preâmbulo do Regulamento n.º 494/2018 (DR, 2.ª Série, n.º 147, de 1/08/2018), que procedeu à 3.ª alteração daquele Regulamento, pode ler-se que em Agosto de 2016 deu-se início à concessão do estacionamento de duração limitada, na sequência de um concurso para a Concessão da Gestão, Exploração, Manutenção e Fiscalização de Lugares de Estacionamento Pago na Via Pública e de Dois Parques Públicos de Estacionamento para Viaturas Ligeiras. De acordo com o art. 4.º, n.º 1 deste Regulamento, a ocupação de lugares de estacionamento fica sujeita ao pagamento de uma taxa dentro dos limites horários fixados, de acordo com o Anexo I, que faz parte integrante desse Regulamento, fixando o art. 19.º do mesmo Regulamento o valor das taxas de incumprimento. Por sua vez, o art. 1.º, n.º 4, dispõe que este Regulamento aplica-se ainda à ZEDL [zonas de estacionamento de duração limitada- cfr. n.º 2] com exploração concessionada ou a concessionar a entidades privadas.
Do que fica dito dito, verifica-se, portanto, que a actuação da recorrente em ordem a cobrar os valores em causa tem o seu respaldo no contrato de concessão celebrado com o Município de Matosinhos, ao abrigo do qual realiza, em substituição da administração local, a função pública de explorar e gerir parques de estacionamento automóvel na cidade de Matosinhos e exerce o correspondente poder público que emana do regulamento municipal. A relação jurídica entre as partes emerge, pois, de um contrato previsto pela lei como um contrato administrativo, cuja execução contempla a relação estabelecida entre a cessionária e o utilizador, com a submissão deste ao poder público exercido por aquela, tal como sucederia se a exploração do bem fosse efectuada directamente pelo Município. De facto, como se escreveu no acórdão da RP de 26/05/2025 (Proc. 69237/24.3YIPRT.P1; rel. Ana Olívia Loureiro), para situação idêntica à dos presentes autos “a recorrente .. opera, na referida relação que afirma ter estabelecido com a ré, como concessionária de um serviço público, pelo que manifestamente, ao fiscalizar, como fez, o estacionamento que atribui à ré e pelo qual lhe imputa um incumprimento do dever de o pagar, a mesma está a exercer um poder público que o Município lhe atribuiu por via da concessão. Não fora este contrato de concessão a autora não teria quaisquer poderes para regular, fiscalizar e cobrar a quem quer que fosse o pagamento do estacionamento em lugares destinados a tal pela autarquia concedente. E diga-se, a propósito, que a recorrente também não tem razão quando alega que não exerceu qualquer atividade de fiscalização em relação à ré apenas porque os valores que lhe quer cobrar não constituem coima. Manifestamente a autora fiscalizou o estacionamento do veículo da ré - que lhe imputa subjetivamente -, e pretende cobrar uma quantia que ela mesma desconhece se corresponde à duração efetiva do estacionamento e que calculou pelo valor máximo da tarifa diária fixada. A atividade que a mesma leva a cabo ao verificar o pagamento do estacionamento é claramente de fiscalização e visa a cobrança de quantia que não corresponde necessariamente ao uso efetivo do serviço, mas antes reflete um critério unilateral de fixação de uma compensação pelo incumprimento do dever de pagar” (in www.dgsi.pt).
Igual entendimento se perfilhou no acórdão também da RP de 24/02/2025 (Proc. 143394/23.8YIPRT.P1; rel. Miguel Baldaia Morais) sumariado nos seguintes termos: ”V- Por força do contrato de concessão que a autora firmou com a Câmara Municipal ... - nos termos do qual lhe foi cedida a exploração de zonas de estacionamento automóvel -passou aquela a assumir a qualidade de concessionária de um serviço reconhecidamente de interesse público, atuando, nessa medida, em “substituição” da autarquia com os poderes inerentes que lhe foram concessionados. VI - Independentemente da natureza jurídica que assumam os contratos ou acordos tácitos que se concretizam sempre que os utentes utilizam para estacionamento os espaços públicos concessionados à autora, tanto esta como os referidos utentes estão submetidos às regras do Regulamento Municipal que disciplina esses estacionamentos, e só por isso tem a demandante direito a cobrar as taxas de utilização fixadas nesse instrumento normativo (cfr. artigo 4º) e de exercer a respetiva atividade de fiscalização (cfr. artigo 7º do DL nº 146/2014, de 9.10, artigo 16º do Regulamento e cláusula 1ª do contrato de concessão)” – in www.dgsi.pt.
Ainda desta Relação, no acórdão de 10/02/2025 (Proc. 126592/24.4YIPRT.P1; rel. José Eusébio Almeida) pode ler-se: “…parece-nos claro, também a nós, que entre o Município e a recorrente foi celebrado um contrato de concessão, concretamente de concessão de exploração do domínio público (artigo 408 do Código dos Contratos Públicos). Está em causa, como refere Diogo Freitas do Amaral [Curso de Direito Administrativo, Volume II, 3.ª Edição, com a colaboração de Pedro Machete e Lino Torgal, Almedina, 2016, pág. 468] “um bem dominial, isto é, um bem que, por motivo da sua afetação à utilidade geral, ao interesse público, está submetido a um regime de proteção que exorbita o direito comum. Este é gerido pelo concessionário, em vez de o ser pela Administração; e o primeiro não é pago pela segunda: paga-se pela cobrança de taxas ao público – se se tratar de um bem no uso direto do público (é o caso, por ex., da concessão de exploração de um porto de recreio ou de uma doca) – ou pela exploração económica do bem – nos casos em que o bem não é usado diretamente pelo público (concessão de uma pedreira, de uma mina, de uma nascente de águas mineromedicinais, etc.)” – no mesmo sentido, vide, entre outros, acórdão da RP de 20/02/2025, proc. 79555/24.5YIPRT.P1, rel. Isabel Peixoto Pereira e acórdão da RE de 30/01/2025, proc. 42537/24.5YIPRT.E1, rel. José António Moita, todos in www.dgsi.pt).
Para mais, a relação entre as partes não é uma relação de consumo relativa à prestação de serviços públicos essenciais, porquanto o bem em causa não está contemplado na enumeração que o art. 1.º, n.º 2 da Lei n.º 23/96 de 26/07 fornece:
a) Serviço de fornecimento de água;
b) Serviço de fornecimento de energia eléctrica;
c) Serviço de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados;
d) Serviço de comunicações electrónicas;
e) Serviços postais;
f) Serviço de recolha e tratamento de águas residuais;
g) Serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos.
h) Serviço de transporte de passageiros.
“Este elenco legal, clarifica José Engrácia Antunes, reveste natureza taxativa: por elementares razões de segurança jurídica, não se pode aceitar que outros serviços inominados possam, “à la carte” e por mera via interpretativa, acresce à lista” (in “Direito do Consumo”, 2.ª Edição, Almedina, pág. 476).
Por tudo quanto vem de se dizer, conclui-se que o litígio dos autos emerge de uma relação jurídica administrativa, tendo por objecto questão relativa à execução de um contrato administrativo, ou seja a cobrança pela recorrente, enquanto entidade concessionária, das taxas pela utilização de um bem público, devidas em função do respectivo regulamento municipal, e, como tal, por força dos arts. 1.º, n.º 1 e 4.º, n.º 1, al. e) do ETAF, deve esse litígio ser apreciado pelos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
De onde, são os Tribunais Administrativos e Fiscais os competentes em razão da matéria para conhecer da presente acção e não os Tribunais Judiciais, designadamente o Juízo Local Cível de Matosinhos que, assim, é materialmente incompetente para o efeito.
Note-se que a apurada competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, como se decidiu no Acórdão do Tribunal de Relação de Évora de 7/05/2020, “não é afastada pela circunstância de o crédito emergente da execução de contrato público ter sido reclamado através do procedimento de injunção, seguindo-se, na hipótese de haver oposição, o processo declarativo previsto no artigo 35.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – acórdãos do Tribunal Central Administrativo do Sul de 07.11.2013 (proc. n.º 09992/13; relator: Paulo Pereira Gouveia), 05.06.2014 (proc. n.º 10080/13; relator: Rui Pereira); 26.02.2015 (proc. 08987/12; relatora: Helena Canelas) e 09.05.2019 (proc. n.º 105/12.5BELLE; relatora: Alda Nunes); acórdãos do Tribunal Central Administrativo do Norte de 11.02.2015 (proc. n.º 0047/14.5BEBRG; relator: Rogério Martins) e 06.11.2015 (proc. n.º 280/12.9 BEBRG; relatora Helena Ribeiro)” – in www.dgsi.pt – Proc. n.º 24120/19.9YIPRT.E1, Rel. Vítor Sequinho).
Ora, a violação das regras da competência em razão da matéria, por força do art. 96.º, al. a) do CPC, determina a incompetência absoluta do tribunal, excepção dilatória (art. 577.º, al. a) do CPC) que, podendo ser arguida pelas partes, como sucedeu, é também, por imposição do art. 97.º, n.º 1 do CPC, do conhecimento oficioso, com a consequente absolvição do R. da instância (art. 278.º, n.º 1, al. a) do CPC), sem prejuízo da remessa do processo ao tribunal competente a requerimento do A. no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, nos termos do art. 99.º, n.º 2 do CPC.
Pelo exposto, cabendo à Jurisdição Administrativa e Fiscal a apreciação do objecto da presente acção, impõe-se confirmar a decisão recorrida.

As custas são pela recorrente por ter ficado vencida (art. 527.º, n.º 1 e 2 do CPC).
*

Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC):
……………………………………….
………………………………………
………………………………………


*




V. Decisão
Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, e, por consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas do recurso pela recorrente.

Notifique.







Porto, 26/6/2025.

Carla Fraga Torres

José Nuno Duarte

Mendes Coelho