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SERVIDÃO PREDIAL
DESTINAÇÃO DE PAI DE FAMÍLIA
Sumário
I – Não obstante as evoluções legislativas que têm simplificado as tarefas impostas aos recorrentes que pretendam impugnar aquilo que foi decidido na primeira instância quanto à matéria de facto, continua a ser claro, face ao disposto no artigo 640.º do Código do Processo Civil, que a revisão da decisão sobre os factos apenas é possível quando os impugnantes, para além de indicarem os pontos a rever e especificarem a decisão alternativa que pretendem obter, manifestam e concretizam as divergências que, face aos meios de prova que devem referir, suportam a sua pretensão. II – Resulta do artigo 1549.º do Código Civil que os requisitos para a constituição de servidão predial por destinação de pai de família são: i) a pertença de dois ou mais prédios, ou de mais do que uma fracção do mesmo prédio, ao mesmo dono; ii) a existência de sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em algum ou alguns desses prédios ou fracções, reveladores de serventia de um deles para com algum ou alguns dos outros; iii) a separação quanto ao domínio dos prédios ou das fracções dominantes e servientes; iv) a inexistência no acto translativo da propriedade de uma declaração, devidamente documentada, que afaste a relação de serventia/servidão. III – A prova de que, em consequência de condutas alheias, alguém passou a vivenciar nervosismo e angústia por recear vir a ser impedido de exercer o direito de passar por uma parcela de terreno para aceder à garagem da sua casa e a outros espaços adjacentes da sua habitação e, assim, usufruir das utilidades desse seu direito, mesmo sem estar caracterizado em que medida essa afectação do seu bem-estar psicológico se reflectiu na sua actividade quotidiana, é bastante para que se reconheça a existência de um dano de natureza não patrimonial cuja gravidade não deve ser exacerbada, mas que, ainda assim, é suficiente para que lhe seja atribuída dignidade indemnizatória à luz do disposto no artigo 496.º do Código Civil.
Texto Integral
Processo: 913/22.9T8PRD.P1
Relator: José Nuno Duarte; 1.º Adjunto: Mendes Coelho; 2.º Adjunto: Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo.
Acordam os juízes signatários no Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO
AA e mulher, BB, intentaram a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra A..., S.A., e CC, alegando, em síntese, que:
- são proprietários do prédio urbano que identificam no artigo 1.º da petição inicial;
- na parte sul desse prédio existe uma parcela de terreno (descrita nos artigos 16.º e 17.º da petição inicial) na qual está implantado um caminho, pelo qual se faz o acesso desde a via pública, situada a nascente, até à garagem e ao rés do chão do edifício existente no prédio;
- tal caminho prolonga-se até ao prédio, situado a poente, que pertence à 1.ª R;
- o 2.º R. enquanto administrador da 1.ª R., começou a fazer obras nesse caminho que fizeram com que a cota do leito do mesmo fosse baixada e, por via disso, aumentada a altura do degrau de acesso ao quintal do prédio dos AA. através do portão que existe no local, assim como que fosse aumentado o desnível do acesso à garagem da casa;
- o 2.º R., enquanto administrador da 1.ª R., ordenou ainda aos trabalhadores que executavam a obra que construíssem um muro ao longo da estrema norte da aludida faixa de terreno, de modo a criar um obstáculo físico à passagem, através do caminho, para o interior da casa dos AA. e, muito especialmente, a criar uma barreira à entrada e saída de veículos e pessoas da respectiva garagem;
- como o A. marido e filhos, com vista a obstar à construção do muro, se colocaram em cima da primeira fiada de blocos que já estava assente, o 2º R., para os humilhar, espalhou o cimento sob os seus pés;
- A conduta dos RR. é um foco de permanente preocupação e angústia dos AA. que andam constantemente receosos de a qualquer momento ficarem impedidos de usar e fruir a parcela de terreno e de através dela terem acesso à construção destinada à garagem e mesmo ao interior da sua casa pela porta existente no rés-do-chão da parede sul.
Concluem, formulando o seguinte pedido: «(…) deve a presente ação ser julgada provada e procedente e em consequência: a) Declarar-se que integra o prédio dos AA. identificado no artigo 1º deste articulado a parcela de terreno descrita nos artigos 16º e 17º deste mesmo articulado. b) Condenados os RR. em consequência a reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre a parcela de terreno referida no item anterior e a remover qualquer construção que separe ou delimite a parcela do prédio que integra. c) Condenados os RR. a abster-se de praticar qualquer ato sobre a parcela identificada que perturbe o direito e posse dos AA. sobre a mesma, para além do direito de servidão de passagem que os AA. reconhecem ao prédio da 1ª R. d) Condenados os RR. com fundamento no artigo 829-A do C.C. no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória cujo quantum deve ser fixado pelo Tribunal, segundo critérios de equidade, por cada ato de infração ou turbação do direito de propriedade dos AA. sobre o seu prédio e sobre a parcela de terreno do mesmo destinada a caminho e identificada nos antecedentes artigos 16 e 17 desta peça processual. e) Condenado os RR. a pagar aos AA. a título de indemnização pelos danos morais que lhe infligiu e que resulta acima descritos a quantia de 6.000,00€ sendo atribuído desse montante 5.000,00€ a favor do A marido, pelos factos perpetrados conta si pelo 2º R., tudo acrescido dos respetivos juros vencidos e vincendos desde a citação até efectivo pagamento. Atítulosubsidiárioeparaahipótesedenãoprovarematitularidadedo direitodepropriedadedaparceladeterrenoidentificadanosartigos16ºe17ºcomaconsequenteimprocedênciadospedidosprincipais,entãoosAApedem: a) O reconhecimento de que o prédio dos AA. identificado no artigo 1º deste articulado, goza do direito de servidão de passagem constituído por destinação de anterior proprietário, sobre o prédio da 1ª R., o qual é exercido através da parcela de terreno identificada nos artigos 16º e 17º para acesso à garagem e ao rés do chão do edifício que integra o prédio dominante. b) Condenados os RR. a absterem-se de praticar qualquer ato que impeça total ou parcialmente o exercício do aludido direito de servidão sobre a parcela identificada e a remover toda e qualquer construção ali realizada, nomeadamente guias ou muros que de qualquer forma limitem ou impeçam o exercício do invocado direito de passagem. c) Condenado os RR. com fundamento no artigo 829-A do C.C. no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória cujo quantum deve ser fixado pelo Tribunal, segundo critérios de equidade, por cada ato de infração ou turbação do direito de servidão de passagem de que goza o prédios dos AA. sobre a parcela de terreno destinada a caminho do prédio da 1ª R. identificada nos antecedentes artigos 16 e 17 desta peça processual. d) Condenado os RR. a pagar aos AA. a título de indemnização pelos danos morais que lhe infligiu e que resultam acima descritos a quantia de 6.000,00€ sendo atribuído desse montante 5.000,00€ a favor do A marido, pelos factos perpetrados conta si pelo 2º R., tudo acrescido dos respetivos juros vencidos e vincendos desde a citação até efectivo pagamento.»
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Os RR. apresentaram contestação/reconvenção, pugnando pela improcedência dos pedidos deduzidos contra si e pelo reconhecimento de que a parcela de terreno descrita nos artigos 16.º e 17.º da petição inicial é propriedade exclusiva da 1.ª Ré. Nesse sentido:
- requereram nos artigos 245 e 246 da sua peça processual que “… os AA. reconvindos” sejam condenados «… a reconhecer a que a parcela melhor identificada nos pontos 16.º e 17.º da PI é propriedade exclusiva da 1.ª Ré reconvinte, respeitando essa propriedade e absterem-se de a utilizar por qualquer modo.»;
- formularam, a final, o seguinte pedido: «Deve o pedido reconvencional ser julgado procedente por provado e serem os AA. reconvindos solidariamente condenados no pagamento da quantia de 20.000€ à 1.ª ré ou condenados no pagamento de todas as despesas que a 1.ª Ré renha de suportar a liquidar em execução de sentença. Devem os AA. serem condenado a pagar à primeira Ré a quantia de 30.000,00€ por impedimento e obstrução da passagem dos veículos da primeira Ré, nos moldes atrás descritos.»
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O processo seguiu os seus regulares termos até à realização da audiência de julgamento. Finda esta, foi proferida sentença cujo dispositivo foi o seguinte:
«Pelo exposto, julgo a ação parcialmente procedente, por provada e emconsequência:
a) Condenam-se os Réus a reconhecer que o prédio dos Autores identificadono artigo 1º da p.i., goza do direito de servidão de passagem constituído por destinaçãode anterior proprietário, sobre o prédio da 1ª Ré identificado no ponto 6, o qual éexercido através da parcela de terreno identificada nos pontos 16 e 17 para acesso àgaragem e ao rés do chão do edifício que integra o prédio dominante.
b) Condenam-se os Réus a absterem-se de praticar qualquer ato que impeça total ou parcialmente o exercício do aludido direito de servidão sobre a parcela identificada e a remover toda e qualquer construção ali realizada, nomeadamente guias ou muros que de qualquer forma limitem ou impeçam o exercício do invocado direito de passagem.
c) Condenam-se os Réus, nos termos do artigo 829-A do C.Civil, no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, que se fixa em € 2.000,00 por cada ato de infração ou turbação dos Réus do direito de servidão de passagem de que goza o prédios dos Autores sobre a parcela de terreno destinada a caminho do prédio da 1ª Ré identificada nos pontos 16 e 17.
d) Condenam-se os Réus a pagar aos Autores, a título de indemnização pelos danos morais que lhe infligiu, a quantia de € 4.000,00, sendo atribuído desse montante € 1.000,00 à Autora mulher e € 3.000,00 a favor do Autor marido, pelos factos perpetrados contra si pelo 2º Réu, acrescida de juros legais contados desde a presente data até integral pagamento.
e) Julga-se parcialmente procedente o pedido reconvencional e, em consequência, condenam-se os Autores a reconhecer que a parcela identificada nos pontos 16 e 17 da factualidade provada é propriedade exclusiva da 1ª Ré, respeitando essa propriedade.
f) Absolvem-se os Réus do restante pedido deduzido pelos Autores.
g) Absolvem-se os Autores do restante pedido reconvencional deduzido pelos Réus. Custas da ação principal por Autores e Réus, na proporção do respetivo decaimento, que se fixa, respetivamente em 30% e 70%. Custas da ação reconvencional por Autores e Réus, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa, respetivamente, em 40% e 60%.»
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Desta decisão vieram os RR. interpor recurso, apresentando alegações que foram finalizadas com as seguintes conclusões:
1. A Sentença recorrida errou ao concluir que existe sobre o prédio dos recorrentes e recorridos uma situação de servidão por destinação de pai de família.
2. A sentença recorrida está esvaziada de sustentação, quer de direito, quer de facto, bem assim como de qualquer motivação capaz de demonstrar em que se baseou o Mm.º Juiz do Tribunal a quo na (surpreendente) final decisão.
3. Entendem os recorrentes que o prédio dos recorridos encontra-se a confinar de todos os lados com o imóvel da 1.ª Ré (sem prejuízo do referido no ponto 21.º da presentes contestação), exceto na parte confinante de nascente, que confina com a via publica, a denominada avenida ...,
4. Quando os recorridos adquiriram o seu prédio, o mesmo encontrava-se totalmente delimitado, e era constituído apensa e tão só por uma moradia, sem logradouro e sem anexos.
5. Os recorridos só passavam pelo caminho se tivessem que se deslocar para a sua garagem que só passou a existir a partir da sua construção, sempre depois de 2011, o que lhes veda a possibilidade de invocar o instituto da usucapião, por falta de prazo legal.
6. Inexiste igualmente necessidade de passagem para o prédio dos recorridos, pois esse prédio confina com a via pública.
7. A prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento se provou, efetivamente, os factos vertidos nos pontos 84, 90, 93, 247, 258 A 267 da contestação apresentada.
8. Para sustentar a posição que pretende demonstrar, os Recorrentes apresentarão também recurso da decisão proferida sobre a matéria de facto, nomeadamente – por incorreta apreciação da matéria de facto - quanto aos seguintes factos dados como não provados, nomeadamente: 84, 90, 93, 247, 258 A 267 da contestação apresentada.
9. A Mma. Juiz a quo apresentou a sua fundamentação para a decisão ora em recurso, o que, com o devido respeito, fez com absoluto desprendimento da realidade fáctica e em desconformidade com os elementos carreados para os autos, assim como com desconsideração da prova produzida e relevante para a presente causa.
10. Não podem os recorrentes concordar com os critérios e valoração do Mmo. Juiz a quo. Aliás, a decisão do Tribunal a quo fez uma ponderação errada da provada carreada para os presentes autos, considerando na decisão a quo, factualidades que nunca deveriam ter sido valoradas e desconsiderando outras que possuíam força probatória plena.
11. As plantas topográficas, os documentos que comprovam a inexistência de licença pela câmara municipal, os registos fotográficos do google earth, bem como as declarações prestadas em sede de audiência de julgamento pela testemunha Eng. DD, e ainda as declarações prestadas pelo Recorrente, impunham decisão diversa.
12. Sempre se deviam ter dado como PROVADOS os factos vertidos no ponto c), d), e) f), g), h) r i) dos factos dados como não provados, uma vez que, face ao depoimento prestado pelo recorrente e testemunha, Sr. Engenheiro DD, impunham decisão diversa!!
13. O sentido decisório da sentença a quo vem inquinado por erro de julgamento e que mereciam resposta em sentido diametralmente oposto.
14. Destes depoimentos, outras conclusões se impunham ao tribunal, nomeadamente dar por provado a matéria da contestação tida como não provada. Os recorrentes não aceitam que o próprio depoimento do recorrente não tenha sido devidamente considerado e ponderado.
15. Nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, pretender ver alterada a resposta aos factos da contestação tidos como não provados, nomeadamente as alíneas c), d), e) f), g), h) r i) dos factos não provados, cujo sentido decisório vem inquinado por erro de julgamento e que mereciam resposta em sentido diametralmente oposto.
16. O imóvel em causa foi vendido a terceiro.
17. O anterior proprietário destacou os imóveis nos termos e na configuração que se verifica atualmente, e não o fez de outra forma, uma vez que acedia ao imóvel pela frente da moradia.
18. Quando os recorridos adquiriram o dito imóvel, esta confinava com a via pública, como sempre confinou, e confina, até hoje.
19. A edificação que foi realizada – garagem – foi construída de forma ilegal, sem licença municipal prévia.
20. Assim sendo, não tinham os recorridos de passar por nenhum caminho para aceder a um espaço ilegal e que tinha acesso pelo seu interior diretamente à via pública.
21. Para que se verifique a constituição de servidão por destinação de pai de família é necessário que estejam reunidos os seguintes requisitos: que num determinado prédio haja sinais visíveis e permanentes de serventia de uma fração do prédio relativamente a outra ou que existam tais sinais de serventia de um prédio relativamente a outro no mesmo dono.
22. No presente caso, inexistem quaisquer sinais de serventia de um prédio em relação ao outro.
23. Salvo melhor entendimento, os recorridos não lograram provar um único facto que tão pouco indiciasse os invocados sinais de serventia.
24. Inexiste, in casu, qualquer situação de prédio encravado, uma vez que este imóvel confina – e sempre confinou – diretamente com a via pública.
25. A garagem em causa não teve origem no prédio primitivo, tendo sido construída – de forma ilegal, reitera-se – pelos ora recorridos.
26. Pretendem agora os recorridos invocar o direito de servidão, alegando que não conseguem aceder à dita garagem que eles próprios construíram ilegalmente.
27. Pelo que, é falso que tenha advindo do proprietário anterior a utilização daquele acesso, uma vez que à data da aquisição da casa, inexistia qualquer garagem.
28. A mesma foi criada pelos recorridos, sem que para tanto existisse a respetiva licença camarária.
29. Como se não bastasse, vêm agora exigir aos recorrentes acesso à garagem através de parte do imóvel pertença destes.
30. Invocando uma situação de servidão de passagem completamente irreal.
31. O imóvel adquirido pelos recorrentes sempre se verificou desonerado de quaisquer ónus ou encargos.
32. No presente caso falha completamente o requisito da existência de uma relação estável de serventia de um prédio a outro, correspondente a uma servidão aparente, revelada por sinais visíveis e permanentes.
33. Em qualquer caso, não pode o imóvel propriedade dos recorrentes ser onerado com uma servidão de passagem para “dar acesso” aos recorridos à garagem de sua propriedade que os mesmos construíram ilegalmente, após a aquisição do imóvel.
34. Consideram os recorrentes ter feito prova bastante que os recorridos, só em 8 de janeiro de 2021 é que iniciaram o pedido de licenciamento da dita garagem (doc. 14 junto com a contestação), depois de uma queixa apresentada pela recorrente junto do Município ....
35. Processo de licenciamento que corre termos com o n.º 10/21LI nos serviços municipais do urbanismo do Município ..., encontrando-se suspenso o processo de licenciamento da referida garagem.
36. Os recorrentes provaram tais factos através da prova documental inequívoca, todavia, ainda assim se considerou como não provado o facto vertido na alínea c) dos artigos não provados, nomeadamente: “A garagem a que se alude no ponto 18 foi construída após 2011, sem licença municipal, sendo o acesso à mesma pelo interior da moradia dos Autores, não tendo estes necessidade de passar por qualquer caminho”.
37. Pelo que, uma vez mais, entendem os recorrentes não ter sido valorada toda a prova documental carreada para os presentes autos e que impunham decisão diversa.
38. A douta sentença está ferida de patente e ostensiva nulidade por completa falta de fundamentação.
39. Estabelece o art.º 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na Lei”.
40. A decisão recorrida não explicita, nem imediata nem mediatamente, o entendimento que estará subjacente à improcedência da pretensão do Recorrente, sendo certo que o mesmo é dizer que o julgador não deu a conhecer na sentença em causa a subsunção jurídica e factual que terá sido levada a cabo, sendo, por isso, absolutamente impossível ao Recorrente conhecer e, eventualmente, questionar o processo cognitivo do julgador.
41. Tal sentença recorrida é omissa quanto aos motivos da decisão, porque não tem motivos nenhuns explicitados, inexistindo a eventual motivação respetiva e as razões da decisão que não só não foram expressas como nem tão pouco se encontram implícitas na sentença recorrida.
42. Os Recorrentes não sabem por que razão se decide como se decide em tal sentença quenão compreendem porque absolutamente nada ali é referido a esse respeito.
43. Concluiu a sentença em crise que “os antigos donos do prédio dos Autores na parte poente do edifício de casa de rés do chão e primeiro andar ampliaram o mesmo com uma construção de rés-do-chão destinada a garagem e, pelo menos em agosto de 2012, já lá se encontrava um portão que permite o acesso a veículos automóveis e pessoas a pé, que após um espaço de rampa, deita diretamente para essa faixa de terreno e desta para a via pública”.
44. Não obstante, não referiu a douta sentença que tal garagem foi criada ilicitamente pelos recorridos, bem como foi aposto o portão de entrada pelos próprios, em data posterior à aquisição da casa – criando assim, eles próprios, a situação de necessidade de acesso.
45. Os recorrentes ficam sem saber o motivo pelo qual a sentença a quo não considerou como assente os factos vertido nos pontos 84, 90, 93, 247, 258 A 267 da contestação apresentada pelos mesmos.
46. A decisão em causa é ostensivamente nula por absoluta falta de fundamentação (cfr. art.º 615º, nº 1, al. b) do Cód. Proc. Civil), o que expressamente se invoca e se requer seja deferido, julgando-se nula a mesma e anulando-se os ulteriores termos processuais.
47. Inexiste qualquer relação de servidão no caso em apreço, apenas pretendendo os recorridos utilizar uma parcela de terreno pertença dos recorrentes para poderem usufruir e acessar à garagem que por eles foi ilicitamente criada.
48. Ao decidir como decidiu, a sentença a quo violou os artigos 406.º, 798.º e 799.º do CC.
49. A apreciação crítica da prova trazida aos autos, como a prova documental que foi junta, impunha que a decisão sobre a matéria de facto que supra foi já individualizada o fosse em sentido diverso.
50. Isto é, que os presentes autos fossem absolutamente improcedentes, por não provados.
51. A sentença recorrida julgou in abstrato, de forma desadequada à lei e à justiça do caso.
52. Termos em que a sentença em crise padece de erro de julgamento, bem como de erro na aplicação do direito, sendo certo que no presente caso o erro de julgamento verifica-se na interpretação e subsunção dos factos e também na aplicação de matéria de direito.
53. Para além disso, a sentença a quo condenou também os recorrentes no pagamento aos recorridos de uma indemnização no valor de 4000,00€, por danos não patrimoniais.
54. Também aqui, a sentença a quo violou o princípio da proporcionalidade que está consagrado no artº 18.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, uma vez que não ponderou corretamente a necessidade (ou exigibilidade), adequação e racionalidade (ou proporcionalidade em sentido restrito.
55. Para além de não se ter logrado provar um único facto no que concerne a existência de danos morais – não passam de meras alegações vazias de sustentação fáctica –
56. O que é facto é que resulta, sempre, o excesso do quantum desta condenação.
57. No cálculo do montante reparatório por este tipo de dano atende-se, entre o mais, ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às dos lesado e do titular da indemnização e às flutuações do valor da moeda.
58. E deve tal montante ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.
59. No presente caso, a quantia arbitrada a título de reparação de danos morais é manifestamente excessiva, desproporcional e inadequada, motivo pelo qual deve a mesma ser alterada por um valor justo e equitativa,
60. Caso se entenda subsistirem quaisquer danos morais, o que não se concede, uma vez que resulta claro – também dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento – não se ter verificado nenhuma situação que infligisse sobre os recorridos quaisquer danos.
61. Por tudo quanto exposto, deve a sentença em crise ser revogada e, assim, serem os pedidos formulados pela recorrida totalmente improcedentes, por não provados, devendo os recorrentes ser absolvidos de todos os pedidos contra eles formulados. Termos em que deve ser, por V. Exas., concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, assim se fazendo JUSTIÇA
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Os AA. apresentaram contra-alegações, pugnando pela confirmação da sentença recorrida, formulando, a final, as seguintes conclusões:
I) Não se vê qualquer reparo que mereça a douta sentença recorrida quer quanto aos factos provados quer quanto aos factos não provados.
II) Os factos provados que dizem respeito à servidão de passagem constituída por destinação de anterior proprietário, que beneficia a prédio dos AA. e onera o prédio da primeira R. resultam sustentados na prova pericial realizada, ou seja, no laudo pericial e esclarecimentos prestados em audiência de julgamento pelo Sr. Perito, sendo que, a propósito dos mesmos não existiu por banda dos recorrentes qualquer reparo ou critica.
III) Por outro lado, a alteração pretendida que só se admite por mero exercício intelectual, tornaria contraditória os factos provados, que note-se, nos parece que não estão colocados em causa, apesar da alteração pretendida aos factos não provados.
IV) Donde a conclusão que a matéria de facto escrutinada está de acordo com a prova produzida e sem contradições ou incongruências.
V) Quanto ao montante indemnizatório atribuído aos AA. pelo Tribunal a quo o mesmo mostra-se justo e equilibrado.
VI) A humilhação e despeito pelo A. marido, que a conduta do 2º R. visualizada no vídeo junto aos autos demonstra, é suficientemente grave e justifica o montante arbitrado ao A. marido e em menor valor à A. esposa, pelo que deve manter-se os montantes fixados.
VII) É manifesto o abalo moral, que importou a prepotência do 2º R. nos AA., e o sofrimento que estes passaram. Termos em que, deve manter-se a decisão sobre a matéria de facto e consequentemente a decisão que resulta da sentença recorrida quanto ao direito de servidão de passagem de que goza o prédio dos AA. sobre o prédio da 1ª R. nos seus precisos termos. Deve igualmente manter-se a decisão quanto ao montante da indemnização arbitrada pelo Tribunal a quo aos AA., com o que se fará justiça.
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O recurso foi admitido, tendo-lhe sido fixado, correctamente, efeito devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Considerando que, sem prejuízo da apreciação por parte do tribunal ad quem de eventuais questões que se coloquem de conhecimento oficioso, bem como da não sujeição do tribunal à alegação das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (cf. artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código do Processo Civil), as questões a tratar no âmbito do presente recurso são as seguintes: A) da nulidade da sentença recorrida, por falta de fundamentação; B) da modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto; C) da constituição de servidão por destinação de pai de família; D) da indemnização por danos não patrimoniais.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
A) Da nulidade da sentença
Os recorrentes alegaram que a sentença recorrida é nula, por falta de fundamentação, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código do Processo Civil. Este vício, de acordo com a norma legal invocada, ocorre quando os fundamentos da sentença estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
O dever de fundamentação das decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo encontra-se consagrado de forma expressa no artigo 154.º do Código do Processo Civil, preceito legal onde se estabelece ainda que “[a] justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”. Nessa senda, também o artigo 607.º, n.º 4, do Código do Processo Civil, impõe que, na elaboração da sentença, se observem apertados cuidados de fundamentação, devendo para esse efeito o juiz declarar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção e, ainda, tomar em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência. Trata-se de uma exigência directamente relacionada com o direito fundamental de todos os cidadãos acederem ao direito e obterem uma tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (cf. artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa), o que postula que não lhes seja postergada a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial e a possibilidade de esta ser devidamente sindicada e reapreciada em sede de recurso, nos termos do quadro legal vigente.
O incumprimento do dever de fundamentação, de acordo com o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e c), do Código do Processo Civil, importa a nulidade da sentença, consequência que se verificará não só quando esta não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, como também quando os seus fundamentos estão em oposição com a decisão ou quando ocorre alguma ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível. É entendimento jurisprudencial consolidado, no entanto, que a nulidade por falta de fundamentação apenas abrange os casos de ausência total de fundamentação (ou seja, de falta de indicação da factualidade e/ou da motivação jurídica que suporta a decisão) – abrangidos pela previsão da al. b) do art. 615.º – ou de explanação dos fundamentos da decisão tão gravemente deficiente que impede a percepção das razões de facto e de direito que estão na sua base – abarcados pela al. c) do mesmo artigo. As demais situações de deficiência, por incompletude, mediocridade ou, até, erroneidade da fundamentação, não determinam já a nulidade da decisão, apenas configurando, sim, um erro de julgamento, o qual não afecta a validade formal da decisão, mas apenas o mérito desta [1].
Ora, no caso em apreço, é possível constatar a partir da simples leitura da sentença recorrida que o tribunal a quo indicou na mesma, de forma clara e sistematizada, quais os factos que julgou provados e aqueles que julgou não provados, mais procedendo, imediatamente após, à explicação do processo lógico-racional que presidiu à formação da sua convicção quanto a todo esse conjunto de factos. Para além disso, a sra. juíza que proferiu a sentença, subsequentemente, analisou a matéria de facto em causa e procedeu ao seu enquadramento jurídico de forma a justificar a decisão que, a final, verteu no dispositivo da sentença.
Assim, independentemente do juízo de concordância ou de discordância que se forme em relação ao conteúdo da sentença, considera-se indiscutível que esta peça processual encontra-se fundamentada tanto em termos factuais como em termos jurídicos e contém suficiente explicação sobre os motivos da decisão que foi proferida, tornando possível a apreensão da análise do caso que foi feita pela julgadora e do raciocínio lógico que suportou aquilo que foi decidido. Consequentemente, e dado que eventuais desacertos ao nível da fixação dos factos, da apreciação destes ou do raciocínio jurídico efectuado não são causa de nulidade, mas apenas, hipoteticamente, de erro de julgamento, pode-se concluir já, sem necessidade de mais desenvolvimentos, no sentido da improcedência da arguição da nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação.
B) Dos factos
Na sentença recorrida, foi julgada provada e não provada a seguinte matéria de facto:
Factos provados:
1- O prédio urbano composto de casa de dois pavimentos sito no lugar ..., atual avenida ..., ... da freguesia ... do concelho de Paredes, encontra-se descrito na C.R. P. de Paredes sob o nº ...-... e inscrito na respetiva matriz no artigo ..., a favor dos Autores.
2- O Autor marido comprou o prédio identificado no ponto 1 à sociedade “B..., Lda.”, através de escritura pública, datada de 15 de janeiro de 2015, exarada a folhas 37, do livro ...-A do cartório notarial a cargo da notária EE, sito na cidade de Paços de Ferreira, junta no procedimento cautelar apenso como documento 3 que aqui se dá por reproduzido.
3- O Autor marido registou a aludida aquisição a seu favor pela apresentação 2390º de 2015/01/15.
4- O prédio identificado no ponto 1 inicialmente tinha uma área de 480 m2 e passou a ter apenas 240 m2, tendo sido a restante área de 240 m2 destinada à execução do arruamento localizado do lado norte.
5- Os Autores, por si e antepossuidores, há mais de 15 ou 20 anos que do descrito prédio retiram todas as utilidades que o mesmo pode proporcionar, tais como habitar casa, permitir que outros a habitam, dar arrendamento o rés do chão, proceder a obras de restauro e ampliação, de forma pública ou a poder ser vistos por todos, sem oposição de quem quer que fosse e sempre na convicção do exercício de poderes sobre coisa que lhes pertence e ainda na convicção de não lesarem direito ou interesses alheios.
6- O prédio urbano sito na Rua ..., encontra-se descrito na Conservatória de Registo Predial de Paredes sob o n.º ... da freguesia ... e inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia no artigo ..., a favor da 1ª Ré.
7- O aludido prédio adveio à titularidade da 1ª Ré por compra datada de 13/05/2019, à sociedade “C..., S.A.”, que por sua vez o tinha adquirido, também por compra, à sociedade comercial denominada “D..., Lda.” e que, por seu turno, o adquiriu à massa insolvente de FF e Mulher, no processo que correu termos no Tribunal de Comércio da Comarca de Amarante, no processo n.º 2996/12.0TBPRD, juiz 2.
8- Há mais de 20 ou 30 anos, a 1ª Ré por si, e pelos seus antepossuidores, sempre estiveram na posse do referido imóvel, em toda a sua extensão, à vista de todos, publicamente, de boa-fé, sem oposição de ninguém, nele construiu vários prédios, limpou-o, na convicção de que se tratava de coisa sua.
9- O prédio identificado no ponto 1 confina, pelo menos, a sul com o imóvel descrito no ponto 6.
10- O prédio identificado no ponto 1 confina, a nascente, com a denominada avenida ....
11- Em 15 de julho de 1983, FF e mulher compraram o prédio identificado no ponto 1 a GG e mulher, por escritura outorgada no cartório notarial de Paços de Ferreira, junta no procedimento cautelar apenso como documento 6, que aqui se dá por reproduzido.
12- O referido FF comprou o terreno que pertencia a HH e nele e noutros que também veio a adquirir, edificou as instalações que integram hoje o prédio da 1ª Ré, o qual se situava enquanto prédio rústico a poente do prédio identificado no ponto 1.
13- O prédio dos Autores, identificado no ponto 1 e o prédio da 1ª Ré, identificado no ponto 6, pertenceram, em simultâneo, a FF e mulher.
14- O dito FF que já era dono do prédio identificado no ponto 1 e passou a ser dono do prédio situado a poente do mesmo, identificado no ponto 5, abriu dois caminhos, um a sul, e em momento posterior outro a norte destinados ao serviço de passagem, tendo edificado pavilhões destinados a indústria, onde ali instalou a sede da sociedade E... de que ele e mulher eram sócios.
15- As faixas de terreno destinadas a caminho foram ambas empedradas pelo referido FF.
16- A parcela de terreno, localizada a sul do prédio dos Autores, identificado no ponto 1, integra o caminho de acesso ao referido prédio dos Autores e é parte integrante do prédio identificado no ponto 6, tendo atualmente uma configuração geométrica próxima de um triangulo ratado, ou seja, sem vértice.
17- A base desse polígono tem a largura de cerca de 4 metros contados desde a casa implantada no prédio dos Autores e na parte mais estreita a largura de cerca de 1,5 metros contados do mesmo modo e o comprimento contado desde o limite poente da via pública que passa a nascente ao limite poente do prédio de pelo menos 27 metros.
18- Pelo menos em 1997, os antigos donos do prédio dos Autores na parte poente do edifício de casa de rés do chão e primeiro andar ampliaram o mesmo com uma construção de rés-do-chão destinada a garagem.
19- Pelo menos em agosto de 2012, já lá se encontrava um portão que permite o acesso a veículos automóveis e pessoas a pé, que após um espaço de rampa, deita directamente para essa faixa de terreno e desta para a via pública.
20- Ainda no edifício original ao nível do rés do chão na parede sul existe uma porta de entrada e saída de pessoas que deita para um pequeno espaço de jardim do prédio dos Autores e deste para a parcela de terreno que se identificou como triangulo ratado.
21- FF e mulher sempre usaram a dita parcela provenientes da via pública para acederem à dita garagem, com os veículos que ali recolhiam e guardavam, bem assim com as demais utilidades domésticas que ali depositavam e guardavam.
22- De igual modo sempre o dito FF e esposa, utilizaram a porta lateral existente no rés-do-chão da parede sul do edifício originário do prédio hoje dos Autores e acediam à mesma pela parcela já referida.
23- FF e mulher através de contrato de compra e venda celebrado em 1/08/2012, por escritura pública outorgada no cartório notarial a cargo da notária EE, junta como documento 8, que aqui se dá por integralmente reproduzida, transmitiram o prédio identificado no ponto 1 para a sociedade B....
24- Nesse preciso momento, os prédios identificados nos pontos 1 e 5 separam-se, passando o prédio identificado no ponto 1 a pertencer à sociedade B... e o prédio identificado no ponto 5 continuou na titularidade do casal constituído pelo dito FF e esposa.
25- Quando FF e mulher, venderam o prédio identificado no ponto 1 à sociedade B..., Lda., para se aceder à garagem e ao rés-do-chão pela porta existente na parede sul do edifício originário do referido prédio, utilizava-se a dita parcela de terreno configurada como triângulo sem vértice que já nessa data estava calcetada a paralelos.
26- A referida parcela de terreno constitui o único local de acesso à garagem.
27- A sociedade “B..., Lda.” vendeu o prédio identificado no ponto 1 aos Autores tal e qual o recebeu dos anteriores proprietários (FF e mulher), sendo constituído apenas por uma moradia com área não concretamente apurada, mas não superior a 1,5 m de terreno em volta da casa, aqui se incluindo o canteiro situado junto das escadas, situadas na parede sul da casa, nos termos constantes das figuras 4 e 5 das imagens do Google que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
28- Desde há mais de 20 anos que os Autores, por si e antepossuidores, passam pelo referido caminho de e para o seu prédio identificado no ponto 1, à vista de todas as pessoas, sem oposição de ninguém, nomeadamente dos Réus e/ou dos seus antepossuidores, de forma ininterrupta, a qualquer hora do dia ou da noite, a pé e com veículos, durante todo o ano, na convicção de que tinham o direito de passagem sobre o referido caminho.
29- A parcela de terreno do lado sul do prédio dos Autores já definida, encontrava-se empedrada e por ela circulava o trânsito de pessoas e veículos automóveis desde a via pública que passa nascente, para o prédio dos Autores.
30- Sempre os Réus e antepossuidores respeitaram a utilização dessa parcela pelos titulares do prédio hoje dos Autores que a utilizam para aceder à garagem e habitação da casa inserida no seu identificado prédio.
31- O Administrador da 1ª Ré, aqui 2º Réu, enviou aos Autores as cartas juntas na providência cautelar como documentos 10 e 11, que aqui se dão por reproduzidos.
32- Entre os dias 12 e 17 de janeiro de 2022, o 2º Réu enquanto administrador da 1ª Ré, avançou com obras no caminho do lado sul com o intuito de impedir a passagem dos Autores pelo referido caminho.
33- Através dessas obras, baixou parcialmente a cota do terreno destinado a caminho, com o que aumentou a altura do degrau de acesso ao quintal do prédio dos Autores através do portão que existe no local assim como aumentou o desnível de acesso à própria garagem que integra a casa dos Autores.
34- Ainda no âmbito das obras levadas a cabo, o 2º Réu enquanto administrador da 1ª Ré, ordenou aos trabalhadores que executavam a obra que construíssem um muro ao longo da margem norte da parcela destinada a caminho, de modo criar um obstáculo físico à passagem para o interior da casa dos Autores, em especial criar uma barreira à entrada e saída de veículo e pessoas da garagem ali existente.
35- Como o trabalhador a mando dos Réus, perante a oposição do Autor marido e familiares, a que a obra de construção do muro avançasse, se recusasse a levar por diante a execução da mesma, o 2º Réu tomou a seu cargo a execução da dita obra e ordenou a um funcionário que filmasse a sua conduta.
36- Para tanto muniu-se da colher de trolha e fazendo a vez do operário, passou ele próprio a espalhar o cimento para colocar os blocos do muro que pretendia construir.
37- Como o Autor marido e filhos com vista a obstar à construção se colocaram em cima da primeira fiada de blocos que já estava assente, o 2º Réu espalhou o cimento sob os pés do Autor marido.
38- Os 1ª e 2º Réus ao baixarem a cota do leito do caminho e pretenderem ainda construir o muro já referido ao longo da extrema norte da faixa de terreno destinada a caminho que margina pelo lado sul a casa dos Autores, pretendiam impedir o acesso destes ao seu prédio.
39- A conduta dos Réus causou preocupação e angústia aos Autores, que se sentem receosos de a qualquer momento ficarem impedidos de passar pela referida parcela de terreno e de através dela terem acesso à construção destinada à garagem e mesmo ao interior da sua casa pela porta existente no rés-do-chão da parede sul.
40- O constante estado de ansiedade, de receio e nervosismo torna os Autores preocupados, tensos, irritadiços.
41- O 2º Réu, com a sua conduta de deitar cimento sobre os pés do Autor marido, agiu com desrespeito pela pessoa deste, enquanto ser humano, humilhando-o.
42- O Autor marido sentiu-se despeitado, humilhado, inferiorizado, atingido na honra e consideração, pela conduta do 2º Réu que agiu com o propósito de ofender e de se vangloriar dessa ofensa ao ordenar ao seu funcionário que filmasse o ato de humilhação que levava a efeito.
Factos não provados com interesse para a decisão da causa:
a) Para além do referido no ponto 27 que o prédio identificado no ponto 1 tem jardim e anexos.
b) A parcela de terreno a que se alude nos pontos 16 e 17 pertence ao prédio dos Autores identificado no ponto 1, e constitui um caminho de passagem a favor do prédio da 1ª Ré, identificado no ponto 5.
c) A garagem a que se alude no ponto 18 foi construída após 2011, sem licença municipal, sendo o acesso à mesma pelo interior da moradia dos Autores, não tendo estes necessidade de passar por qualquer caminho.
d) Os Autores passam pelo referido caminho sem autorização, e contra a vontade dos Réus.
e) Os Autores passam pelo referido caminho por mera tolerância dos Réus.
f) A 1ª Ré sofreu prejuízos por ter sido forçada pelos Autores a interromper a obra que estavam a executar na referida parcela.
g) A viatura que os Autores colocaram no local de passagem da 1ª Ré impediu a normal fluidez do trânsito dos veículos da 1ª Ré que deixou de poder realizar a manobra de acesso dos pisos inferiores para o piso de rés-do-chão do seu imóvel.
h) Tendo para esse efeito de ter de contornar a moradia dos Autores pela parte nascente, vendo-se obrigada a passar com as suas viaturas de transporte de mercadorias pela via Pública.
i) Essa referida via, é uma estrada municipal, muito movimentada, tendo de esperar para entrar na via pública e voltar a entrar e aceder aos vários pisos do imóvel dos Réus.
Os recorrentes vieram impugnar a decisão que o tribunal a quo proferiu sobre a matéria plasmada nos factos não provados descritos nas alíneas c), d), e), f, g), h) e i), peticionando que a mesma seja julgada provada.
O artigo 640.º, n.º 1, do Código do Processo Civil impõe a obrigação de o recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto especificar, sob pena de rejeição dessa sua pretensão: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Como foi escrito no Ac. STJ 28-04-2016, proc. 1006/12.2TBPRD.P1.S1 [2], “[t]rata-se de um ónus multifacetado cujo cumprimento não se torna fácil, mas que encontra diversas justificações, entre as quais as seguintes:
- A Relação é um Tribunal de 2ª instância, a quem incumbe a reapreciação da decisão da matéria de facto proferida pela instância hierarquicamente inferior;
- A Relação não procede a um segundo julgamento da matéria de facto, reapreciando apenas os pontos de facto enunciados pelos interessados;
- O sistema não admite recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, cumprindo ao recorrente designar os pontos de facto que merecem uma resposta diversa e fazer a apreciação crítica dos meios de prova que determinam um resultado diverso;
- Importa que seja feito do sistema um uso sério, de forma evitar impugnações injustificadas e, com isso, os efeitos dilatórios que são potenciados pelo uso abusivo de instrumentos processuais”.
No caso sub judice, os recorrentes identificaram quais os concretos pontos de facto que consideram terem sido incorrectamente julgados em primeira instância, mais sendo perceptível, face ao teor das suas alegações, que, no seu entender, deve ser proferida decisão que julgue provada a matéria de facto constante desses pontos.
No que diz respeito, porém, à especificação dos meios probatórios, constantes do processo ou que neles tenham sido registados, que, à luz do seu entendimento, imporiam diferente uma decisão sobre os diversos pontos da matéria de facto impugnados, verifica-se que os recorrentes, nas conclusões das suas alegações, limitaram-se a invocar o seguinte: «(…) 11. As plantas topográficas, os documentos que comprovam a inexistência de licença pela câmara municipal, os registos fotográficos do google earth, bem como as declarações prestadas em sede de audiênciade julgamento pela testemunha Eng. DD, e ainda as declarações prestadas pelo Recorrente, impunham decisão diversa. 12. Sempre se deviam ter dado como PROVADOS os factos vertidos no ponto c), d), e) f), g), h) r i) dos factos dados como não provados, uma vez que, face ao depoimento prestado pelo recorrente e testemunha, Sr. Engenheiro DD, impunham decisão diversa!!»
Por sua vez, no corpo das alegações, limitaram-se a:
- referir, no ponto 28, que “… O meio de prova que implicaria a prolação de decisão em inverso sentido, e que aqui se deixa consignado nos termos e para os efeitos do preceituado pela alínea b) do n.º 1 e pelo n.º 2 do art. 640.º do Código de Processo Civil, são as declarações de parte do recorrente ea inquirição da testemunha DD, cuja transcrição segue infra, nos termos e para os efeitos do preceituado pela parte final da alínea a) do n.º 2 do referido artigo 640.º do Código de Processo Civil – e, essencialmente, os documentos juntos aos presentes autos, nomeadamente todasas plantas do imóvel e registos fotográficos do google earth.”;
- proceder, nos pontos 28 e 29, à transcrição de alguns excertos das declarações prestadas na audiência final pelo recorrente (2.º R.) e das declarações que, a título de esclarecimentos de perito, foram prestadas na audiência final pelo Sr. Eng. DD, subscritor do relatório de peritagem junto aos autos (não constituindo, pois, tais declarações prova testemunhal, conforme referido pelos recorrentes);
- invocar, nos pontos 30 a 33, que os anteriores elementos probatórios devem levar a que sejam dados como provados os factos vertidos nas alíneas c), d), e) f), g), h) e i) dos factos dados como não provados;
- invocarem, nos pontos 59 a 62, que a prova documental carreada para os autos foi bastante para demonstrar que «…os recorridos, só em 8 de janeiro de 2021 é que iniciaram o pedido de licenciamento da dita garagem (doc. 14 junto com a contestação), depois de uma queixa apresentada pela recorrente junto do Município ...» [3], mas que «… ainda assim se considerou como não provado o facto vertido na alínea c) dos artigos não provados, nomeadamente: “A garagem a que se alude no ponto 18 foi construída após 2011, sem licença municipal, sendo o acesso à mesma pelo interior da moradia dos Autores, não tendo estes necessidade de passar por qualquer caminho”».
Serão as alegações acima mencionadas suficientes para que se considere que os recorrentes cumpriram devidamente o ónus que sobre si incidia nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do Código do Processo Civil?
Julgamos que não, o que acontece porque, não obstante as evoluções legislativas que têm simplificado as tarefas impostas aos recorrentes que pretendam impugnar aquilo que foi decidido na primeira instância quanto à matéria de facto, continua a ser claro, face ao disposto no artigo 640.º do Código do Processo Civil, que a revisão da decisão sobre os factos apenas é possível quando os impugnantes, para além de indicarem os pontos a rever e especificarem a decisão alternativa que pretendem obter, manifestam e concretizam as divergências que, face aos meios de prova que devem referir, suportam a sua pretensão. É exigível, por isso, que os recorrentes não se fiquem apenas por generalizações e avancem com uma explicação mínima que permita ao tribunal ad quem saber, a propósito de cada ponto de facto impugnado, qual a razão pela qual, face à prova produzida, eles entendem que houve um incorrecto julgamento. Nesse sentido, vem sendo afirmado no nosso Supremo Tribunal de Justiça, não só que “[n]ão cumpre o ónus previsto no art, 640º do Código de Processo Civil o apelante que, nas suas alegações e nas conclusões, agrega a matéria de facto impugnada em blocos ou temas e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna” [4], como, principalmente, que “[l]imitando-se o impugnante a discorrer sobre os meios de prova carreados aos autos, sem a indicação/separação dos concretos meios de prova que, relativamente a cada um desses factos, impunham uma resposta diferente da proferida pelo tribunal recorrido, numa análise crítica dessa prova, não dá cumprimento ao ónus referido na al, b) do nº1 do art. 640º do Código do Processo Civil [5]”.
Ora, no caso dos autos, afigura-se-nos manifesto que os recorrentes, limitando-se a invocar, de forma genérica, o teor do conjunto dos documentos juntos aos autos, bem como o teor de algumas passagens das declarações prestadas por duas pessoas que foram ouvidas na audiência de julgamento (a título, num caso, de declarações de parte, e, no outro, de esclarecimentos de perito), para, logo de seguida, concluírem, sem qualquer outro enquadramento e com total falta de concretização dos motivos do seu diferente entendimento, que, devido a tais elementos probatórios, foram julgados incorrectamente sete pontos da matéria de facto (tecendo, após, considerações gerais sobre os motivos pelos quais discordam da decisão condenatória da qual vieram apelar), mais não fizeram do que remeter para o tribunal ad quem a tarefa de sindicar a decisão da primeira instância sobre a matéria de facto sem que, da sua parte, fosse feito qualquer esforço para especificar as divergências concretas que, quanto a cada facto, mantinham em relação àquilo que foi decidido na sentença recorrida.
Mesmo quando, a partir do ponto 59 das alegações, impugnaram de forma mais directa a alínea c) dos Factos Não Provados, os recorrentes invocaram genericamente “não ter sido valorada toda a prova documental carreada para os presentes autos e que impunham decisão diversa”, o que faz com que não seja possível saber quais os documentos que, para além do doc. 14 junto com a contestação (referido especificamente no ponto 59 das alegações), contêm elementos que, na sua óptica, contrariam a decisão da primeira instância que julgou aquele facto como não provado; de igual modo, a propósito da decisão vertida nessa mesma alínea, não se mostra possível alcançar se e em que medida, na perspectiva dos recorrentes, a prova resultante das declarações prestadas na audiência que foram por si transcritas contraria a decisão do tribunal a quo. Assim, juntando-se este factor ao anteriormente referido, é forçoso concluir que, também nesta parte, a impugnação da matéria de facto foi feita de forma demasiado genérica, não estando devidamente concretizados, conforme exige a al. b) do n.º 1 do artigo 640.º do Código do Processo Civil, os motivos pelos quais, com base em meios probatórios bem definidos, a decisão da primeira instância, no entender dos recorrentes, deve ser modificada.
Não se olvida que, por estar em causa o exercício do direito fundamental dos cidadãos ao recurso, o cumprimento dos requisitos formais previstos no artigo 640.º do Código do Processo Civil deve ser avaliado segundo princípios de proporcionalidade e razoabilidade. Todavia, para que seja respeitado o espírito da lei que veio permitir a consagração de um efectivo duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, não se pode prescindir também do princípio da auto-responsabilidade das partes, subjacente à criação dos ónus a cargo dos recorrentes, o que, como houve o cuidado de ser expresso logo no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15-02 (que, para impulsionar a intervenção das Relações na decisão da matéria de facto, veio prever e regulamentar a possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida), é fundamental para que seja assegurada a seriedade do próprio recurso intentado, impedindo-se “[q]ue o alargamento dos poderes cognitivos das relações (…) - e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1.ª instância - possa ser utilizado para fins puramente dilatórios…”. Devido a isso, é adequado, correcto e proporcional que se exija que o recorrente que se apresenta a impugnar a decisão da matéria de facto alegue, sob pena de rejeição do recurso, os motivos da sua discordância com a avaliação da prova que foi feita pelo tribunal a quo, ou seja, como se diz no recente Ac. RP 12-05-2025, proc. 776/21.1T8OBR.P1 [6], “[a]s razões pelas quais determinados meios de prova indicados e especificados contrariam ou infirmam as respostas do tribunal a quo, o que implica a realização de uma análise crítica da prova e concretamente dirigida à convicção factual formada na decisão recorrida”.
Pelos motivos expostos, e porque, em sede de impugnação da decisão relativa à matéria de facto, não há lugar à prolação de despacho de aperfeiçoamento [7], considera-se que in casu deve ser rejeitada a modificação da matéria de facto que foi peticionada pelos recorrentes.
Ademais, mesmo que assim não se entendesse, sempre se teria que considerar manifesta a insuficiência dos meios de prova indicados pelos recorrentes para contrariar aquilo que, quanto às questões de facto controvertidas, foi decidido pelo tribunal a quo.
Na verdade, tais questões dizem respeito, no essencial, à data da construção da garagem aludida no Facto Provado 18 [al. c)], ao facto de os AA. passarem ou não na faixa de terreno cuja propriedade é discutida nos autos com autorização, oposição ou tolerância dos RR. [als. d) e e)], aos prejuízos que possam ter sido causados aos RR. por terem interrompido os trabalhos que começaram a efectuar nesse local [al. f)] e ao facto de os RR. terem tido necessidade ou não de, por causa dos AA. ali terem parqueado uma viatura, acederem até ao seu imóvel através de um caminho alternativo [als. g), h) e i)]. Todavia, lidas as passagens das declarações prestadas na audiência pelo 2.º R. que foram transcritas nas alegações de recurso, verifica-se que o mesmo, aí, apenas se referiu ao facto de, quando iniciou obras junto ao local objecto do litígio, se ter confrontado com a oposição dos AA. e com a colocação no caminho de um veículo, jamais se pronunciando sobre quaisquer prejuízos concretos que essa situação possa ter causado, nem sobre se, devido a isso, passou ou não a ser necessário efectuar um percurso alternativo. Por outro lado, o 2.º R., na parte das suas declarações que foram transcritas, também nada disse sobre a utilização que, anteriormente, os AA. faziam da faixa de terreno situada a sul da sua casa, afirmando, é verdade, que essa faixa de terreno não pertence aos AA., mas nada esclarecendo sobre se estes por ali passavam anteriormente, nem em que situações ou sob que condições isso poderia acontecer.
Do mesmo modo, procedendo-se à audição das declarações prestadas na audiência pelo Sr. Eng. DD, verifica-se que o mesmo se limitou a prestar esclarecimentos sobre concretos pontos do relatório pericial datado de 17 de Abril de 2023 que por si foi elaborado, não resultando daquilo que disse, portanto, quaisquer elementos de prova adicionais com utilidade para dirimir as questões de facto concretamente colocadas em causa pelos recorrentes.
Por sua vez, no que diz respeito à prova documental, apesar de, efectivamente, resultar do doc. 14 junto com a contestação que o A. apresentou na Câmara Municipal ..., em 8-01-2021, um pedido de licenciamento de um projecto que inclui uma garagem, entende-se que daí não se pode extrair que a matéria de facto da alínea c) dos Factos Não Provados da sentença recorrida deva ser dado como provada, pois é absolutamente claro, face ao que se encontra expresso no relatório pericial, que a documentação disponível permite determinar que a garagem em causa já estava construída pelo menos no ano de 1997. Com efeito, a resposta ao quesito 4.º formulado pelos AA. é completamente esclarecedora: “(…) Com rigor não é possível determinar a data de construção da garagem. / Da pesquisa efectuada, constata-se que na imagem mais antiga do “Google Earth” reportada a Março de 2004, já consta a referida garagem. Nas plantas de localização da Câmara Municipal ..., elaboradas à escala 1/5000, reportadas respectivamente aos anos de 1997 e 2003, também se constata pela trama definida em planta que a garagem existia nessas datas. / Na planta da Câmara Municipal ... elaborada entre o ano de 1978 e 1980, que está à escala 1/2000, constata-se que a referida garagem não existia. / Pelo exposto, sabe-se que a garagem já existia a partir de 1997, mas com rigor, desconhece-se a data anterior em que foi construída.”.
Em suma, é manifesto que os recorrentes, para além de não terem cumprido devidamente o ónus de alegação previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 640.º do Código do Processo Civil, apresentaram-se a impugnar a decisão sobre a matéria de facto sem estribarem essa sua pretensão em quaisquer elementos probatórios dotados de um mínimo de consistência para abalar aquilo que foi decidido pelo tribunal a quo quanto aos pontos de facto impugnados. Por isso, e porque se constata que, na sentença recorrida, todo o raciocínio que presidiu à formação da convicção do tribunal quanto a essa matéria de facto se encontra expresso de forma coerente com os meios de prova analisados e aí referidos, nenhum fundamento há para que, nesta sede de recurso, se proceda a qualquer modificação dos factos julgados provados e não provados.
C) Do direito
1. Estabilizada a factualidade em que se deve basear a decisão sobre o mérito da causa, resta enquadrar os factos provados em termos jurídicos para aferir se a apelação deve proceder ou não.
Na acção judicial em curso, os AA., peticionaram, a título principal, que fosse reconhecida a sua propriedade sobre a parcela de terreno situada na parte do sul do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes com o nº. ... e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ... - freguesia ..., na qual está implantado um caminho que permite o acesso desde a via pública, situada a nascente, até à garagem e ao rés do chão do edifício existente nesse prédio. Essa pretensão foi julgada improcedente, por ter sido julgado procedente o pedido, formulado em reconvenção, para que fosse declarado que essa parcela de terreno pertence ao prédio da 1.ª Ré descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o n.º ... da freguesia ... e inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia no artigo .... Todavia, procedeu o pedido subsidiário formulado pelos AA., tendo os RR. sido condenados a reconhecerem que, nessa parcela de terreno, encontra-se constituída, por destinação de anterior proprietário, uma servidão de passagem em benefício do prédio dos AA. para acesso à garagem e ao rés do chão do edifício lá implantado. Mais foram os RR. condenados a absterem-se de praticar qualquer acto impeditivo do exercício desse direito de servidão sobre a parcela e a removerem toda e qualquer construção ali realizada que, de qualquer forma, limite ou impeça o exercício desse direito, bem como no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de € 2.000,00 por cada acto de infracção ou turbação dos Réus do direito de servidão de passagem de que goza o prédios dos Autores. Foram ainda os RR. condenados a pagar aos AA., a título de indemnização por danos morais infligidos, a quantia de € 4.000,00 (€ 1.000,00 para a A. mulher e € 3.000,00 para o A. marido) acrescida de juros.
Insurgindo-se contra estas condenações, vieram recorrer os RR., apelando, em primeira linha, que seja revogada a decisão que reconheceu a constituição, por destinação de pai de família, de uma servidão de passagem que onera a parcela de terreno do seu prédio e beneficia o prédio dos AA.
Como se sabe, a servidão predial é direito real de gozo sobre coisa alheia que, em termos gerais, se caracteriza, conforme referido no artigo 1543.º do Código Civil pela imposição de um encargo imposto num prédio (prédio serviente) em proveito exclusivo de outro prédio (prédio dominante) pertencente a dono diferente. De acordo com a nossa lei, a mesma pode ser constituída por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família (cf. artigo 1547.º, n.º 1, do Código Civil).
A constituição de servidões por destinação do pai de família verifica-se quando, conforme resulta do artigo 1549.º do Código Civil, ocorre a separação de dois prédios sob o domínio do mesmo dono, ou de duas fracções de um só prédio, e existem sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento. Pode-se dizer, pois, que, conforme já afirmado em recente acórdão do qual fomos relator [8], os requisitos para a constituição de servidão predial por destinação de pai de família são os seguintes:
i) a pertença de dois ou mais prédios, ou de mais do que uma fracção do mesmo prédio, ao mesmo dono [9];
ii) a existência de sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em algum ou alguns desses prédios ou fracções, reveladores de serventia de um deles para com algum ou alguns dos outros;
iii) a separação quanto ao domínio dos prédios ou das fracções dominante(s) e serviente(s) [10];
iv) a inexistência no acto translativo da propriedade de uma declaração, devidamente documentada, que afaste a relação de serventia/servidão.
No caso sub judice, resulta dos factos provados que, em 15 de Julho de 1983, FF e mulher, adquiriram o prédio que actualmente pertence aos AA. e, um pouco depois, também o prédio que actualmente pertence à 1.ª R., tendo sido proprietário dos dois imóveis até 1 de Agosto de 2012, data em que vendeu o primeiro dos mesmos à sociedade ‘B...’. Mais resulta dos factos provados que, enquanto foi dono dos dois prédios, FF edificou as instalações que integram hoje o prédio da 1.ª R., o qual se situava enquanto prédio rústico a poente do prédio actualmente pertencente aos AA. e abriu dois caminhos, um a sul, e, depois, outro a norte para permitir a passagem desde a estrada nacional situada a nascente até às referidas instalações, tendo calcetado os mesmos com paralelos. Resulta ainda da matéria de facto provada que, enquanto foi proprietário dos dois prédios, FF e esposa utilizaram o caminho situado a sul para acederem à garagem e ao rés-do-chão do edifício de habitação implantado no prédio que hoje pertence aos AA.. Face a esta factualidade, dúvidas não há de que se mostram reunidos os pressupostos necessários para a constituição das servidões prediais invocadas que acima foram referidos sob os pontos i) e iii).
Por outro lado, considera-se que in casu se mostra também preenchido o requisito enunciado no ponto iv), pois, em bom rigor, o facto (negativo) que aí se refere não é uma realidade constitutiva do direito de servidão, antes se apresentando, face à redacção do artigo 1549.º do Código Civil e à forma como se encontra formulado na parte final deste artigo (“salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento”), como um elemento de facto que impede a constituição do direito que emerge da verificação de todos os pressupostos necessários para o surgimento de uma servidão predial por destinação de pai de família. Por isso, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil, cumpriria aos RR. efectuarem a prova da eventual existência de uma qualquer declaração, lavrada aquando da venda, em 1-08-2012, do prédio que actualmente lhes pertence (altura em que os dois prédios deixaram de pertencer ao mesmo proprietário), que houvesse afastado a constituição da servidão de passagem cuja existência os AA. invocaram subsidiariamente. Tal, manifestamente, não aconteceu, pelo que, por esta via, nada impede também que a pretensão subsidiária dos AA. possa ser acolhida.
Finalmente, quanto ao requisito acima enunciado sob o ponto ii) – a existência de sinal ou sinais visíveis e permanentes reveladores da serventia invocada –, considera-se também inequívoco que, face aos factos provados, o mesmo se verifica, pois demonstrou-se que, aquando da separação dos prédios [11]:
- a parcela de terreno situada do lado sul do prédio dos AA. já se encontrava calcetada com paralelos possibilitando o trânsito de pessoas e veículos automóveis desde a via pública, que passa nascente, para a garagem desse prédio e para um pequeno espaço de jardim ali existente;
- na parede sul do edifício originário do prédio existia, ao nível do rés-do-chão, uma porta lateral a deitar para esse pequeno espaço de jardim e, deste, para a referida parcela de terreno
- já lá se encontrava um portão que, através de uma rampa que ligava com essa faixa de terreno, permitia o acesso à garagem de veículos automóveis e pessoas.
Desta forma, por ser indiscutível a existência de sinais visíveis e permanentes, anteriores à separação dominial, que assinalam a sujeição do prédio que actualmente pertence aos RR. ao trânsito de veículos e pessoas que, desde a via pública, pretendam aceder à garagem e ao rés do chão do prédio dos AA., através da faixa de terreno situada a sul do mesmo, está devidamente caracterizada uma situação estável de serventia predial que autoriza a constituição da servidão por destinação do pai de família que a sentença recorrida declarou beneficiar o prédio dos AA..
2. Os recorrentes, nas respectivas alegações, exprimiram ainda discordância em relação à decisão do tribunal a quo que os condenou a pagar uma indemnização aos AA., para ressarcimento de danos não patrimoniais, no valor global de 4.000,00 € (3.000,00 € para o A. marido e 1.000,00 € para a A. mulher), acrescida de juros.
Na sentença recorrida, a atribuição dessa indemnização foi justificada da seguinte forma: «(…) Relativamente à quantificação do montante indemnizatório devido pelos Réus aos Autores, por danos não patrimoniais sofridos por estes, por estarem impedidos de exercer o seu direito de passagem para acesso do seu prédio, provou-se que a conduta dos Réus descrita nos pontos 31 a 42 causou preocupação e angústia aos Autores, que se sentem receosos de a qualquer momento ficarem impedidos de passar pela referida parcela de terreno e de através dela terem acesso à construção destinada à garagem e mesmo ao interior da sua casa pela porta existente no rés-do-chão da parede sul. O constante estado de ansiedade, de receio e nervosismo torna os Autores preocupados, tensos, irritadiços. O 2º Réu, com a sua conduta de deitar cimento sobre os pés do Autor marido, agiu com desrespeito pela pessoa deste, enquanto ser humano, humilhando-o, constituindo tais atos um total desrespeito e humilhação, sendo ofensivos da honra e consideração, ferindo a sensibilidade do homem comum. O Autor marido sentiu-se despeitado, humilhado, inferiorizado, atingido na honra e consideração, pela conduta do 2º Réu que agiu com o propósito de ofender e de se vangloriar dessa ofensa ao ordenar ao seu funcionário que filmasse o ato de humilhação que levava a efeito. Assim, não restam dúvidas que estamos perante um dano não patrimonial relevante - merecedor da tutela do direito - quer se opte pela formulação negativa, que inclui nesta categoria todos aqueles que não atingem os bens materiais do sujeito passivo ou que, de qualquer modo, não alterem a sua situação patrimonial - cfr. De Cupis, II Danno, Teoria Generale della Responsabilitá Civile, I, 2ª ed., Milano, 1966, págs. 44 e ss. -, quer pela formulação positiva, segundo a qual, o dano não patrimonial ou dano moral, tem por objecto um bem ou interesse sem conteúdo patrimonial, insuscetível em rigor, de avaliação pecuniária. A indemnização não visa então propriamente ressarcir, tornar indemne o lesado, mas oferecer-lhe uma compensação que contrabalance o mal sofrido - cfr. A. Varela, Das Obrigações em Geral, 4ª ed., pg. 560 e Rui Alarcão, Direito das Obrigações, Coimbra, 1983, pg. 270. O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado, em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante ), segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado e do titular da indemnização – art. 494º, “ex vi” do art. 496º, nº 3 do C.Civil -, aos padrões de indemnização geralmente adotados na jurisprudência, às flutuações do valor da moeda etc., sendo fundamental que tal compensação seja significativa, e não meramente simbólica ou miserabilista. Aplicando as considerações expostas ao caso vertente, fixa-se a indemnização pelos danos morais sofridos pela Autora no montante de € 1.000,00 e pelos danos morais sofridos pelo Autor no montante € 3.000,00, acrescida de juros legais contados desde a presente data até integral pagamento.».
Os recorrentes alegam “…não se ter verificado nenhuma situação que infligisse sobre os recorridos quaisquer danos”. Sem razão, porém, pois, resulta dos factos provados 31 a 42, entre o mais, que:
- A conduta dos Réus causou preocupação e angústia aos Autores, que se sentem receosos de a qualquer momento ficarem impedidos de passar pela referida parcela de terreno e de através dela terem acesso à construção destinada à garagem e mesmo ao interior da sua casa pela porta existente no rés-do-chão da parede sul (FP 39).
- O constante estado de ansiedade, de receio e nervosismo torna os Autores preocupados, tensos, irritadiços (FP 40);
- O 2º Réu, com a sua conduta de deitar cimento sobre os pés do Autor marido, agiu com desrespeito pela pessoa deste, enquanto ser humano, humilhando-o (FP 41).
- O Autor marido sentiu-se despeitado, humilhado, inferiorizado, atingido na honra e consideração, pela conduta do 2º Réu que agiu com o propósito de ofender e de se vangloriar dessa ofensa ao ordenar ao seu funcionário que filmasse o acto de humilhação que levava a efeito (FP 42).
Ora, dado que o dano, enquanto pressuposto específico da obrigação de indemnizar por factos ilícitos prevista no artigo 483.º do nosso Código Civil, pode ser definido como “[a] perda in natura que o lesado sofreu, em consequência de certo facto, nos interesses (morais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar” [12] e tanto pode encerrar uma dimensão patrimonial (quando se reflecte sobre a situação patrimonial do lesado), como uma dimensão extrapatrimonial (quando a lesão incide sobre bens estranhos ao património do lesado, como a integridade física do mesmo, o seu bem-estar psicológico, a sua honra, a sua consideração social ou outros bens de natureza pessoal), afigura-se-nos claro que, efectivamente, os AA., devido a factos cometidos pelos RR., sofreram danos desta última natureza.
Por outro lado, uma vez que a indemnização dos danos não patrimoniais é, na nossa lei, limitada àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (cf. artigo 496.º do Código Civil), entende-se que a afectação do bem-estar psicológico dos AA. que acima se encontra caracterizada atingiu essa dimensão, pois emerge dos factos provados que tanto o A. marido como a A. mulher não se confrontaram com uma qualquer contrariedade momentânea ou com incómodos fugazes ou passageiros, mas, sim, com uma situação que, para si, constituiu um foco de continuada preocupação e angústia. Sabe-se que, como chama a atenção Antunes Varela, “[a] gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação dava ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada).” [13]; no caso em apreço, não se afigura que, atendendo à importância que o direito de acesso à sua habitação assume para qualquer cidadão, os estados de espírito dos AA. hajam sido resultado de um acerbo não justificado.
Concluindo-se, pelo exposto, que os AA. sofreram danos não patrimoniais com gravidade suficiente para que sejam tutelados juridicamente – e porque também não se suscitam dúvidas quanto à verificação in casu dos demais pressupostos de que, nos termos do disposto no artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil, depende o surgimento da obrigação de indemnização a cargo dos lesantes – impõe-se aferir agora da justeza do montante indemnizatório que foi fixado pelo tribunal a quo.
Uma vez que a quantificação dos danos não patrimoniais, por estes não terem uma expressão pecuniária directa, constitui uma operação extremamente delicada, o artigo 496.º, n.º 3 do Código Civil postula que se recorra a critérios de equidade, tendo em conta a expressão dos danos, o grau de culpa do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
No caso sub judice, não se apuraram elementos sobre a situação económica das partes que permitam estabelecer diferenças com reflexos nos montantes indemnizatórios a fixar. Os níveis da culpa subjacentes à conduta dos lesantes, por sua vez, não se afiguram elevados, ante o quando de conflitualidade existente e num contexto em que se apurou que, apesar de tudo, a faixa de terreno objecto do litígio, ainda que onerada com uma servidão de passagem, pertence realmente ao prédios da 1.ª R.. Face a tal, e considerando-se ainda que, sem prejuízo de se reconhecer dignidade indemnizatória aos danos sofridos pelos AA., a sua gravidade não deve ser exacerbada – tanto mais que nem sequer foi feita prova dos reflexos que a afectação do bem-estar psicológico dos AA. teve nos actos da vida quotidiana destes –, entende-se que, efectivamente, o valor indemnizatório global que fixado na sentença recorrido se encontra algo inflacionado. Não tanto na parte em que se fixou o montante da indemnização a atribuir à A. mulher em 1.000,00 €, pois, considerando-se que a compensação de danos de natureza não patrimonial deve garantir adequada satisfação moral ao lesado, esse valor pode ser considerado equitativo. Todavia, adoptando-se idêntica perspectiva quanto à indemnização a atribuir ao A. marido, temos que o valor de 3.000,00 € que foi fixado é, já, desproporcionado.
Com efeito, considerando-se ser equivalente o rebate psicológico do A. marido e da A. mulher decorrente do receio e das preocupações constantes que passaram a vivenciar por, a qualquer momento, ficarem impedidos de aceder com veículos até à garagem da sua casa e, mesmo, fazer uso da faixa de terreno existente a sul do seu prédio para aceder ao interior da sua casa, ter-se-á que concluir que o tribunal a quo atribuiu ao A. AA um valor indemnizatório de 2.000,00 euros devido ao sentimento de humilhação que ele experimentou pelo facto de o 2.º R, para o diminuir perante terceiros, deitou cimento sobre os seus pés. Ora, ainda que, por estar provado que o A. marido, por causa do sucedido, sentiu-se despeitado, humilhado, inferiorizado e atingido na honra e consideração, haja fundamento para se valorar em termos indemnizatórios a violação dos direitos de personalidade verificada, considera-se que essa valoração deve ser inferior àquela que adveio do facto, já considerado para efeitos de atribuição de uma parcela indemnizatória de 1.000,00 euros, de tanto ele como a sua esposa terem passado a vivenciar um quadro de nervosismo, ansiedade e preocupação devido ao receio de se verem impedidos de utilizar a faixa de terreno existente a sul do seu prédio para acederem à respectiva garagem e aos demais espaços da sua habitação adjacentes. Ademais, não podemos esquecer que a culpa inerente à conduta que o 2.º R. protagonizou perante o A. marido se encontra mitigada pelo facto de este último, em vez de recorrer a outras vias, ter-se colocado em cima da primeira fiada de blocos que havia sido assente para efeitos de construção de um muro no local do litígio. Ante todo esse contexto, entende-se que, em acréscimo ao valor de 1.000,00 euros que, vimos já, dever ser atribuído a cada um dos dois AA., é equilibrado e equitativo atribuir ao A. marido apenas uma verba de mais 500,00 euros.
No que diz respeito aos juros moratórios a pagar pelos RR., nenhuma observação há a efectuar quanto ao que foi decidido pelo tribunal a quo, pois, tendo sido fixado que os juros sobre o capital devido deviam ser contados desde a data da prolação da sentença (9-06-2024), foi respeitada a doutrina fixada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2002 do STJ, de 9-05-2002 [14]. Desta forma, porque o juízo que se efectuou sobre a justeza da atribuição de um valor indemnizatório para o A. marido de 1.500,00 € (e de 1.000,00 € para a A. mulher) foi, igualmente, efectuado tendo como referência aquela data, deve, nesta parte, manter-se aquilo que consta na sentença recorrida.
3. Finalmente, cumpre dizer que, apesar de, pelos motivos expostos, o valor da indemnização global a pagar pelos ora recorrentes aos AA. dever ser reduzido em 1.500,00 euros, o peso relativo dessa alteração – ante a valia económica, substancialmente maior, dos demais pedidos – é bastante diminuto face ao valor global da acção. Devido a isso, e porque se constata que na sentença recorrida a proporção do decaimento de cada uma das partes foi fixada, no que diz respeito à acção, em 30% para os AA. e 70% para os RR. (sendo-o, quanto à reconvenção, em 40% e 60%, respectivamente) – o que, até, se afigura ser algo penalizador dos AA. –, entende-se que essas proporções traduzem, ainda, adequadamente, o valor dos decaimentos verificados, pelo que não se justifica alterar as percentagens que, quanto a tal, foram definidas pelo tribunal a quo.
Não obstante, no que diz respeito às custas da apelação, em virtude de os recorrentes terem obtido algum vencimento, não pode esse facto deixar de se reflectir na responsabilização dos recorridos em função do respectivo decaimento (cf. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código do Processo Civil). O valor económico deste decaimento é, no entanto, baixo, pelo que, considerando-se que foi dada razão aos recorridos quanto a todas as demais questões suscitadas no recurso, fixar-se-á essa sua responsabilidade em 5%, suportando os recorrentes 95% do valor das custas da apelação.
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III – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso, alterando-se a decisão condenatória constante da alínea d) do dispositivo da sentença recorrida, a qual passará a ter o seguinte teor: d) Condenam-se os Réus a pagar aos Autores, a título de indemnização pelos danos morais que lhe infligiu, a quantia de € 2.500,00, sendo atribuído desse montante € 1.000,00 à Autora mulher e € 1.500,00 a favor do Autor marido, acrescida de juros legais contados desde 9-06-2024 até integral pagamento.
Em tudo o mais, confirma-se a sentença recorrida.
Custas da apelação a cargo de ambas as partes, segundo a proporção de 95% para os recorrentes e de 5% para os recorridos.
Notifique.
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SUMÁRIO (elaborado pelo relator nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do C.P.C.)
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Acórdão datado e assinado electronicamente (redigido pelo primeiro signatário segundo as normas ortográficas anteriores ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990)
Porto, 26/6/2025
José Nuno Duarte
Mendes Coelho
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
_______________ [1]Vide, entre muitos outros: Ac. STJ de 2-06-2016 (pr. 781/11.6TBMTJ.L1.S1, rel. Fernanda Isabel Pereira); Ac. RG 2-11-2017 (pr. 42/14.9TBMDB.G1, rel. António Barroca Penha); Ac. RP de 23-05-2024 (pr. 754/19.0T8VNG-C.P1, rel. Manuela Machado) <URL: http://www.dgsi.pt/>. [2] Rel. Abrantes Geraldes <URL: http://www.dgsi.pt/>. [3] Esclarecendo ainda o seguinte: “Processo de licenciamento que corre termos com o n.º 10/21LI nos serviços municipais do urbanismo do Município ..., encontrando-se suspenso o processo de licenciamento da referida garagem”. [4] Ac. STJ 16-12-2021, proc. 573/17.9T8MTS.P1.S1, Chamabel Mourisco <URL: http://www.dgsi.pt/>. [5] Ac. STJ de 14-07-2021, proc. 65/18.9T8EPS.G1.S1, rel. Fernando Baptista <URL: http://www.dgsi.pt/>. [6] Rel. Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo <URL: http://www.dgsi.pt/>. [7] Cf. A. Abrantes Geraldes, Cit., pp. 199-200; Ac. STJ 6-02-2024 (pr. 18321/21.7T8PRT.P1.S1, rel. Nélson Borges Carneiro) <URL: http://www.dgsi.pt/>. [8] Ac. RP 11-12-2024, proc. 288/22.6T8ESP.P1 <URL: http://www.dgsi.pt/>. [9] Relativamente a este requisito, Pires de Lima e Antunes Varela esclarecem que “[t]anto faz que os prédios sejam rústicos ou sejam urbanos, que um seja rústico e o outro urbano; e nenhum obstáculo constitui também à solução a diferente aplicação dada a cada um dos prédios (habitação, instalação dum estabelecimento comercial, etc.). / É também irrelevante que os prédios sejam contíguos ou que entre eles se situem outros prédios, uma via pública ou um terreno baldio… (Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, 1984, p. 632. [10] “A separação de domínios pode dar-se por qualquer título negocial (compra e venda, doação, troca, partilha, testamento, etc.) ou por outro título de transmissão (expropriação, usucapião, etc.)” - Pires de Lima e Antunes Varela, cit., p. 635. [11] É esse o momento relevante para a constituição da servidão por destinação do pai de família – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, cit., p. 634. [12] João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª ed., Coimbra: Almedina, 2000, p. 598. [13]Cit., p. 606. [14] Publicado no Diário da República, I.ª Série de 27-06-2002.