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PROVA PROIBIDA
GRAVAÇÃO DE CONVERSA TELEFÓNICA
CAUSA DE JUSTIFICAÇÃO
EMBRIAGUEZ
CULPA
Sumário
I - Em Processo Penal são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei. Não existindo no Processo Penal regulamentação quanto a provas obtidas por particulares na sua interação entre si, que ponham em causa a tutela da vida privada, a validade da prova fica dependente da sua não ilicitude à face da legislação penal. II - A gravação de uma conversa telefónica sem consentimento do declarante, quando tal declaração não é dirigida publicamente, pode cair na previsão do crime de Gravações e fotografias ilícitas. III - Porém, o direito à imagem e o direito à reserva da vida privada são direitos que, quando contrabalançados com outros direitos fundamentais e constitucionalmente consagrados, têm que ceder. Assim, se o ofendido de crimes de ameaça ou injuria gravar a conversa na qual são praticados tais crimes, será justificada a sua acção, ainda que sem o consentimento do autor daqueles ilícitos. IV - O Tribunal não constatou a necessidade de efectuar avaliação psiquiátrica para efeitos de ajuizar da imputabilidade, pois entendeu que o Arguido não se encontrava nesse patamar, antes concluindo em sentido contrário, com a segurança necessária para o fazer transparecer dos factos provados. V - A embriaguez voluntária não diminui a culpa e, consequentemente, a necessidade de punição. VI - Ainda que estivéssemos perante um caso de imputabilidade diminuída, daí não decorreria, necessariamente, uma diminuição da culpa que conduzisse à figura da atenuação especial da pena prevista no art.º 72.º do Código Penal, como tradução do princípio do nulla poena sine culpa.
Texto Integral
Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
No Juízo Central Criminal de Sintra – J2, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste foi proferido acórdão, com o seguinte dispositivo: «Em face do que se deixa exposto, o Tribunal julga a douta acusação procedente, por provada e, em consequência: 1. Condena o arguido AA pela prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de incêndio previsto e punível pelo artigo 272.º n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão (efetiva). (…)»
- do recurso -
Inconformado, recorreu o Arguido formulando as seguintes conclusões: «1ª AA tem, desde há 40 anos, hábitos de consumo de bebidas alcoólicas em excesso, nunca tendo sido submetido a tratamento; 2ª A inimputabilidade por consumo excessivo de álcool/alcoolismo crónico impõe-se-nos, como realidade paradigmática à compreensão do problema, determinar os contornos da noção de imputabilidade. Esta assenta na capacidade do agente, no momento da prática do facto, avaliar a ilicitude do mesmo e agir de acordo com essa avaliação; 3º O arguido sofre de uma patologia de alcoolismo (cf. ficou largamente provado, relatório social incluído) revelando frequentes estados de descontrolo, que lhe provocavam verdadeira instabilidade emocional, refletindo-se na sua capacidade de discernimento; 4ª Face ao quadro que o mesmo apresentou no longo período referido no relatório social e constante do douto Acórdão, o mesmo deverá ser considerado inimputável e ver excluída a sua culpa. 5ª Se assim não se entender, pelo menos, será óbvio que o arguido viu diminuídas as suas capacidades de autodeterminação e, a ser aplicada uma pena, deverá a mesma ser objeto de especial atenuação; 6ª Importa referir que no ponto 30 do douto acórdão se afirma que o arguido ainda iniciou acompanhamento no ... para reverter os seus hábitos etílicos, mas teve alta uma semana após ter sido internado; 7ª BB, testemunha, a dada altura diz que fez uma gravação de ameaças e é-lhe solicitado pelo tribunal que exibisse a gravação; 8º Foi reproduzido o ficheiro de imagem e som, ouvindo-se “o arguido com voz arrastada, alternando o volume de voz, com uma cadencia que se associa à voz dos ébrios” ….; 9ª Foi admitida prova nula, e por isso proibida, nos termos do art.º 340.º, 126.º e 167.º, n.º 1, todos do C.P.P. e art.º 199.º do C.P., correspondentes à admissão de registos áudio constantes do telemóvel da testemunha que não constavam dos autos e que “caíram” em plena sessão de julgamento; 10º A defesa pediu prazo para melhor analisar tal prova, mas tal não lhe foi concedido; 11ª: O arguido não tem qualquer condenação averbada no seu registo criminal; 12ª Não pode, pois, estar de acordo com a pena aplicada por não ser proporcional e não ter tido em conta o que podia e devia ter militado a favor do arguido em termos de a ter especialmente atenuado; 13ª A não aplicação da suspensão da pena de prisão, configura uma violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade, da igualdade e, ainda, o princípio ne bis idem, consagrados nos artigos 13º, 29 ° e 32° da CRP; 14ª O arguido não tem processos pendentes; Nestes termos e nos melhores de direito com que Vossas Excelências sempre suprirão, deverá ser revogada a sentença recorrida e a pena a que foi condenado o arguido ser reduzida e suspensa na sua execução com regime de prova e tratamento contra o alcoolismo. »
- da resposta -
Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo que «pelo acerto do douto acórdão recorrido e, concomitantemente, pela não violação de qualquer dispositivo legal, devendo o recurso improceder in totum»
Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito suspensivo.
Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido que «o recurso interposto pelo arguido deve ser julgado improcedente, mantendo-se na íntegra o acórdão recorrido».
Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta ao parecer.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995].
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
- Da valoração da prova, nomeadamente de prova nula;
- Da inimputabilidade do arguido;
- Subsidiariamente, da atenuação especial da pena e da suspensão da execução da pena.
DO ACORDÃO RECORRIDO
Do acórdão recorrido consta a seguinte matéria de facto provada: « 1. Em ..., AA residia na habitação localizada na ..., no ..., em ..., com o seu cônjuge BB e com os filhos de ambos CC e DD, maiores de idade. 2. A referida habitação encontrava-se, àquela data, arrendada, por CC, filha de AA, à empresa .... 3. AA tem, desde há 40 anos, hábitos de consumo de bebidas alcoólicas em excesso, nunca tendo sido submetido a tratamento, encontrando-se desempregado há 20 anos. 4. Desde data não concretamente apurada, mas desde o fim do mês de ... de 2024, os consumos de bebidas alcoólicas por AA intensificaram-se, assim como as frequentes discussões iniciadas por este com os membros do seu agregado familiar, tendo, nessas ocasiões, afirmado que deitava fogo à casa. 5. No dia ... de ... de 2024, pelas 21 horas, depois de ingerir bebidas alcoólicas, quando se encontrava sozinho na residência, AA pegou em 3 tochas de pirotecnia e colocou-as em cima da placa de vitrocerâmica da cozinha juntamente com um pacote de caldos de Knorr, com o propósito de, por ação do calor combinado com o cartão, conseguir que as tochas deflagrassem um fogo, o que sucedeu. 6. Não obstante, AA abandonou a residência indiferente ao resultado da sua ação. 7. Mercê da conduta de AA, as chamas propagaram-se para os utensílios colocados junto à placa de vitrocerâmica, nomeadamente um suporte de facas em madeira, pegas de tachos em tecido, bem como o próprio mobiliário de cozinha, carbonizando-os. 8. O fogo foi detetado pelas 22:42 por vizinhos do arguido, alertados pelo cheiro intenso a queimado, tendo avisado os bombeiros e as autoridades. 9. Nessa mesma ocasião, BB, alertada por uma vizinha sobre o fumo proveniente da sua habitação, dirigiu-se rapidamente àquele local, e confrontada com as chamas que consumiam utensílios e móvel da cozinha, encheu um jarro de água e atirou a água sobre as chamas, repetindo novamente a ação, momento em que surgiram os bombeiros, que assumiram o controlo. 10. O incêndio foi combatido por 7 elementos dos bombeiros e duas viaturas. 11. Não fosse a rápida intervenção da esposa de AA e dos bombeiros, os quais se deslocaram rapidamente ao local, as chamas ter-se-iam propagado ao restante mobiliário da cozinha, bem como às divisões do apartamento, e demais frações habitacionais do prédio, colocando, assim, em perigo, não só, tais bens materiais, os quais têm um valor bastante superior a € 5.100,00, como a integridade física e/ou vida das pessoas que se encontravam em tais imóveis. 12. Ao atuar nos moldes supra descritos, AA representou e quis atuar com o propósito de incendiar o apartamento acima identificado e destruir o interior do mesmo e seu recheio, o que logrou, em parte, conseguir, bem sabendo que, deste modo, criava, como criou, não só perigo para a integridade física e/ou vida das pessoas que pudessem estar no edifício, como também para os próprios edifícios e seus recheios, sabendo que tais bens eram de valor certamente superior a € 5.100,00. 13. O arguido agiu sempre de forma de forma voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida criminalmente por lei. 14. Mantendo-se desempregado há mais de 20 anos, o arguido não obtém qualquer rendimento regular. 15. Faz, no entanto, alguns trabalhos esporádicos na área da … e da …, pelo que subsistia com o apoio financeiro da mulher, integrada em mercado de trabalho, e dos filhos. 16. AA nasceu na ... onde viveu com os pais e com os quatro irmãos. 17. O pai era ... e ... e a mãe doméstica, ocupando-se da casa e dos filhos. 18. O arguido desenvolveu-se numa família simples, com dificuldades económicas, em que o pai era o único sustento da casa e do agregado familiar numeroso. 19. AA teve uma educação de acordo com as normas e regras da sociedade onde estava inserido e onde cresceu e se desenvolveu. 20. O arguido autonomizou-se do agregado de origem ainda jovem, tendo casado com BB, aos 22 anos de idade, após ter cumprido serviço militar. 21. Desta relação, nasceram quatro filhos, o mais velho com 39 anos que reside com a mãe, uma de 32 anos já autónoma, e duas gémeas de 25 anos, em que uma reside com a mãe e outra já vive autonomamente. 22. Aos 34/35 anos de idade, AA, veio viver para … com a família, tendo-se fixado no Concelho de ..., inicialmente na zona de .... 23. Mais tarde, a família mudou-se para uma casa em ..., onde viviam à data dos factos, na morada suprarreferida. 24. Desde que está preso, não mantém contacto com o seu cônjuge, que verbaliza a intenção de se divorciar. 25. A relação com o cônjuge e com os filhos que consigo habitavam era conflituosa, prejudicada pelos hábitos etílicos do arguido. 26. Este concluiu o 4º ano do ensino básico, tendo abandonado a escola ainda menor, por necessidade de começar a trabalhar para ganhar dinheiro e ajudar os pais. 27. Verbaliza que, por sua vontade, teria continuado os estudos, mas viu-se obrigado a ajudar os pais e a contribuir para as despesas da família. 28. Iniciou o seu primeiro trabalho aos 12 anos de idade, a limpar terrenos. 29. A partir daqui, AA foi tendo trabalhos diversificados, até à altura em que foi trabalhar para o estrangeiro, na área da …, onde esteve durante quatro estações. 30. O arguido ainda iniciou acompanhamento no ... para reverter os seus hábitos etílicos, mas teve alta uma semana após ter sido internado. 31. E recaiu novamente no consumo alcoólico. 32. O arguido verbaliza a intenção viver com uma das filhas mais novas, EE, que vê como o seu grande apoio. 33. AA encontra-se preso preventivamente desde ... de 2024 no Estabelecimento Prisional ... 34. Trabalha, ali, na faxina do piso há um mês e meio e tem mantido um comportamento de acordo com as regras institucionais, não registando medidas disciplinares. 35. O arguido recebe visitas de uma filha, quando os seus horários de trabalho o permitem. 36. O arguido não tem qualquer condenação averbada no seu registo criminal.»
FUNDAMENTAÇÃO
- da valoração da prova, nomeadamente de prova nula
Suscita o Recorrente que o Tribunal a quo valorou prova proibida, inquinando a sua decisão com o vício de nulidade. Para tanto, invoca a circunstância da testemunha BB ter mencionado no seu depoimento que fez uma gravação de ameaças que lhe foram dirigidas pelo Arguido e que foi o próprio Tribunal quem lhe solicitou que fosse exibida tal gravação.
Consequentemente, foi reproduzido o ficheiro de imagem e som no qual foi o arguido escutado. No seu entender, foi admitida prova nula, e por isso proibida, nos termos dos art.º 340.º, 126.º e 167.º/1, do Código de Processo Penal e art.º 199.º do Código Penal.
Mais invoca que pediu prazo para melhor analisar tal prova, mas tal não lhe foi concedido, sem daí nada concluir nem acrescentar em sede de motivação.
Antes de prosseguir, importa verificar qual o relevo da gravação em causa para a decisão, conferindo o Juízo do Tribunal. «No seguimento do depoimento, a testemunha declarou que fez uma gravação dessas ameaças. E, solicitado que exibisse a gravação, foi reproduzido o ficheiro de imagem e som. A imagem não mostra relevância, correspondendo ao lugar de trabalho da depoente onde esta se encontrava, quando recebeu o telefonema. Assim, percebe-se que o filme foi produzido pelas 14 h e 23 m do dia ... de ... de 2024, ouvindo-se o arguido, com a voz arrastada, alternando o volume de voz, com uma cadência que se associa à voz dos ébrios. O arguido, escuta-se, ameaça que não tem problemas de fazer “louquíces em casa” e que se sentiria melhor na prisão, dizendo que “quer que os polícias se fodam”. (…) Ora, dos depoimentos das testemunhas BB, CC e DD, permite-se concluir pela intensidade e insistência das ameaças proferidas pelo arguido. O visionamento do vídeo em que o arguido ameaça o seu cônjuge é revelador da seriedade dessas ameaças, que acabam por ser concretizadas. »
Assim, da fundamentação retira-se que o Tribunal valorou a gravação feita pela testemunha, acolhendo-a enquanto prova determinante para a decisão da causa.
Determina o art.º 340.º/1 do Código de Processo Penal que «O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.». Se considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação «dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da acta». Foi, precisamente, o que ocorreu no julgamento. Durante o depoimento de uma testemunha, e enquanto esta se pronunciava sobre os eventos do dia dos factos, revelou dispor de uma gravação registando uma ameaça do Arguido.
Decidindo que tal gravação poderia ser relevante para a boa decisão da causa, ordenou que fosse ouvida. A questão que se coloca é a de saber se o poderia fazer.
Segundo o entendimento do Recorrente, a resposta é negativa porquanto tal prova é proibida.
Nos termos do art.º 125.º do Código de Processo Penal, são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei. No artigo seguinte do mesmo código são estabelecidos os métodos proibidos de prova, dos quais cumpre destacar, para o caso que nos ocupa, a proibição «Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular».
Porém, (n.º4) «Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo».
Não existindo no Código de Processo Penal regulamentação quanto a provas obtidas por particulares na sua interação entre si, que ponham em causa a tutela da vida privada, a validade da prova fica dependente da sua não ilicitude à face da legislação penal.
Conforme aponta o Recorrente, a gravação de uma conversa telefónica sem consentimento do declarante, quando tal declaração não é dirigida publicamente, pode cair na previsão do art.º 199.º do Código Penal, no qual se tipifica o crime de Gravações e fotografias ilícitas.
Contudo, desde já se adianta que o bem jurídico aqui tutelado, o direito à imagem, não é pleno. Assim como o não é o direito à reserva da vida privada. São direitos que, quando contrabalançados com outros direitos fundamentais e constitucionalmente consagrados, têm que ceder.
Entendemos que poderá ser considerada valida a gravação de palavras efectuada por particulares sem o consentimento do declarante e, consequentemente, ser julgada valida a prova recolhida por esse meio. Para tanto, deverá ser a gravação documentação da comunicação telefónica da iniciativa do arguido enquanto autor de ilícitos cujo destinatário foi a pessoa que resolveu proceder à gravação.
Assim, se o ofendido de crimes de ameaça ou injuria gravar a conversa na qual são praticados tais crimes, será justificada a sua acção, ainda que sem o consentimento do autor daqueles ilícitos [neste sentido, Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 23.05.2023, Desmbargador Jorge Gonçalves, - ECLI:PT:TRL:2023:924.20.9PBCSC.L1.5.45; Ac. Tribunal da Relação do Porto de 27.01.2016, Desembargadora Maria dos Prazeres Silva - ECLI:PT:TRP:2016:1548.12.0TDPRT.P1.D4].
Tal como abordado no Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 28.09.2011, Conselheiro Santos Cabral [ECLI:PT:STJ:2011:22.09.6YGLSB.S2.54], aí com relevo para os direitos de personalidade prejudicados por gravações ilícitas, nomeadamente por sistemas de vídeo-vigilância, e que ficou plasmado no seu sumário, «É criminalmente atípica a obtenção de fotografias ou de filmagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa nesse procedimento, designadamente quando as mesmas estejam enquadradas em lugares públicos, visem a realização de interesses públicos ou hajam ocorrido publicamente, constituindo único limite a esta justa causa a inadmissibilidade de atentados intoleráveis à liberdade, dignidade e integridade moral do visado. Assim, os fotogramas obtidos através do sistema de videovigilância existentes num local de acesso público, para protecção dos bens e da integridade física de quem aí se encontre, mesmo que se desconheça se esse sistema foi comunicado à Comissão Nacional de Protecção de Dados ou tenha sido objecto de deliberação favorável da Assembleia de Condóminos do respectivo prédio constituído em propriedade horizontal, não correspondem a qualquer método proibido de prova, desde que exista uma justa causa para a sua obtenção, como é o caso de documentarem a prática de uma infracção criminal, e não digam respeito ao «núcleo duro da vida privada» da pessoa visionada (onde se inclui a sua intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita, que se pretende reservada e fora do conhecimento das outras pessoas). Deste modo, deve entender-se que age no exercício de um direito e, portanto, vê excluída a ilicitude do seu comportamento, o agente cuja conduta é autorizada por uma qualquer disposição de qualquer ramo do direito, nisso consistindo o chamado «princípio da unidade da ordem jurídica». Na verdade, quando os valores jurídicos protegidos pela estatuição do art. 199.º do CP – relativos à imagem ou à palavra – estão a ser instrumentalizados na defesa de outros direitos, ou quando a não protecção concreta do direito à imagem ou à palavra é condição de eficácia da actuação do Estado na protecção de outros valores, eventualmente situados num patamar qualitativo superior, não se vislumbrando a possibilidade de afirmação da prevalência daquela protecção contra tudo e contra todos. A protecção da palavra que consubstancia práticas criminosas ou da imagem que as retrata têm de ceder perante o interesse de protecção da vítima e a eficiência da justiça penal: a protecção acaba quando aquilo que se protege constitui um crime.» (negrito nosso).
Nessa media, e considerando que o Arguido verbalizou ameaça contra a testemunha ouvida em julgamento, e que tal ameaça veio a concretizar-se nos actos correspondentes ao objecto do processo, não se verifica a proibição de prova invocada pelo Recorrente, pelo que não padece de vício o acórdão ao ponderá-la para efeitos de decisão.
Quanto à questão igualmente invocada pelo Recorrente de não ter sido conferido prazo para a defesa se pronunciar sobre tal meio de prova, essa versa não sobre o acórdão mas sobre o despacho em audiência que assim decidiu. Sobre essa decisão não foi apresentado recurso e o vício invocado não cabe na previsão das nulidades absolutas, insanáveis, consagradas no art.º 119.º do Código Penal.
Como tal, não cabe agora ao Tribunal da Relação de Lisboa, nesta sede, pronunciar-se sobre tal decisão da primeira instância.
- da inimputabilidade do arguido
Suscita o Recorrente a questão da sua inimputabilidade, argumentando que com base nos factos dados como provados teria que se ter suscitado a questão. E que o Tribunal ignorou algo que era notório: que, pelo menos durante aquele período, «a patologia alcoólica provocou no agente uma visível incapacidade de avaliação/determinação perante os ilícitos cometidos. logo, deverá o mesmo ser considerado inimputável».
A inimputabilidade é um juízo que deverá ser alcançado mediante avaliação da condição psicológica do agente, relativamente à data da prática do facto, para se decidir se encontra incapaz de avaliar a ilicitude deste e de se determinar de acordo com essa avaliação, tal como previsto no art.º 20.º do Código Penal.
O Tribunal não constatou a necessidade de ordenar tal avaliação psiquiátrica pois entendeu que o Arguido não se encontrava nesse patamar, antes concluindo em sentido contrário, com a segurança necessária para o fazer transparecer dos factos provados (cfr. factos 12 e 13).
Como bem aponta o Ministério Público na sua resposta, «Da matéria de facto provada, que não se mostra impugnada pelo recorrente, não resultam quaisquer factos que sejam suscetíveis de permitir as conclusões de que, por um lado, o arguido padecesse à data da prática dos factos de qualquer anomalia psíquica e de que, por outro, estivesse, nesse momento, incapaz, de avaliar a ilicitude da sua conduta ou de se determinar de acordo com essa avaliação. »
Não invocando o Recorrente qualquer vício da decisão de facto, e inexistindo outro cujo conhecimento se imponha de forma oficiosa, a solução emerge da cristalina formulação dos factos provados. Consequentemente, falece a pretensão recursiva.
- da atenuação especial da pena e da suspensão da execução da pena
De forma subsidiária, invoca o Recorrente que, a partir dos factos provados, «será óbvio que o arguido viu diminuídas as suas capacidades de autodeterminação e, a ser aplicada uma pena, deverá a mesma ser objeto de especial atenuação».
É o art.º 72.º do Código Penal que impõe que o «tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. »
No número 2 do mesmo artigo, de forma descritiva e não exaustiva («entre outras») enunciam-se algumas dessas circunstâncias.
Atentemos nos factos provados e naquilo que o Recorrente invoca como demonstrativo da diminuição acentuada da ilicitude do facto, da sua culpa ou da necessidade da pena.
A embriaguez voluntária não é desculpa. Mais rigorosamente, não diminui a culpa e, consequentemente, a necessidade de punição. Ainda que estivéssemos perante um caso de imputabilidade diminuída, e já vimos que não estamos, daí não decorreria, necessariamente, uma diminuição da culpa que conduzisse à figura da atenuação especial da pena prevista no art.º 72.º do Código Penal, como tradução do princípio do nulla poena sine culpa. – [vd. Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 03.07.2014, Conselheiro Maia Costa, ECLI:PT:STJ:2014:354.12.6GASXL.L1.S1.64].
Como tal, aqui chegados, e atento o acervo de factos provados, não se afigura pertinente lançar mão da figura da atenuação especial da pena, como o não fez o Tribunal a quo.
Mas o Recorrente ainda vai mais longe e apela à figura da suspensão da execução da pena de prisão na qual foi condenado.
De acordo com o art.º 50.º do Código Penal, o Tribunal deverá suspender a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Para tanto deverá ponderar a personalidade do agente, as suas condições de vida, a conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste, daí retirando a necessidade da execução do encarceramento ou julgar que a ameaça de um período concreto de prisão bastará para alcançar a satisfação das necessidades de prevenção geral e de prevenção especial. O período de suspensão terá duração a fixar entre 1 e 5 anos.
No caso concreto, o Arguido mostra-se condenado na pena de 5 anos de prisão.
A pedra de toque desta decisão será a avaliação e conclusão, pelo Tribunal, de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, no que toca às necessidades de prevenção especial.
Para chegar a tal conclusão, ponderará ainda o decisor as diversas formas que a suspensão da execução poderá assumir. Assim, para assegurar que será alcançado tal desiderato, poderá a suspensão ser subordinada ao cumprimento de deveres, à observância de regras de conduta, ou ainda acompanhada de regime de prova.
Tais deveres impostos ao condenado deverão ser vocacionados à reparação do mal do crime, nomeadamente, «pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado» - (art.º 51.º /1 al. a) do Código Penal).
Já quanto ao regime de prova, deverá ser determinado se o mesmo se afigurar conveniente e adequado para promover a reintegração do condenado na sociedade, assentando num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social. Necessariamente, nos casos em que o condenado não tiver ainda completado, ao tempo do crime, 21 anos de idade o regime de prova é ordenado (art.º 53.º do Código Penal).
Vejamos a fundamentação do acórdão recorrido sobre esta questão: «O arguido não expressa arrependimento e não colabora para a descoberta da verdade material. O relatório social assinala fatores de risco, com a dependência do álcool à cabeça, condição que o arguido despreza. A postura do arguido em relação aos factos e aos seus familiares, permite concluir que o arguido tem uma personalidade dificilmente ressocializada para o direito, sobretudo através de pena não privativa da liberdade. O arguido goza apenas do apoio parcial de uma das filhas – que mesmo assim mostra disponibilidade reduzida para o visitar e acompanhar. Atento o que fica dito e a imagem social da conduta do arguido, entende-se não ser possível elaborar um juízo de prognose favorável de reintegração social. Pelo que entendemos que é de se suspender a pena aplicada ao arguido pelo tempo correspondente à medida da respetiva pena. Pelo que, apesar de se mostrarem preenchidos os requisitos formais de suspensão da execução da pena de prisão, se entende que não estão preenchidos os requisitos substanciais. Entendendo-se, deste modo, ser necessário o cumprimento efetivo da pena de prisão ora aplicada.»
A decisão desta questão resultará da ponderação das circunstâncias da prática do crime e das condições pessoais do Arguido. Assim, quanto às primeiras, importa ter presente que o Arguido praticou o crime na casa de morada da família, pondo em risco não só a habitação de mulher e dois filhos, maiores, como pondo em risco a totalidade do prédio, o que não ocorreu devido à pronta intervenção de terceiros.
Lida a factualidade, conclui-se que a sua motivação foi mesquinha, desprezível. Se alguma motivação para tal acto pudesse, alguma vez, revestir-se de qualquer laivo de nobreza.
Já no que toca às suas condições pessoais, como bem aponta a decisão recorrida, há que valorizar que a falta de investimento no próprio, na sua relação com terceiros e com a família, bem como a necessária auto-crítica para caminhar no sentido da reinserção.
Em suma, nada abona em favor do Arguido, excepto o Certificado de Registo Criminal em branco. Contudo, este não é um critério objectivo e automático que garanta ao condenado um pena suspensa.
A suspensão da execução da pena não é uma faculdade, um arbítrio do julgador, uma decisão meramente opinativa. Impõe-se sempre que se verifiquem as condições definidas e acima elencadas pelo que o Tribunal tem que ponderar da viabilidade da suspensão. O acórdão recorrido fez esse juízo e concluiu pela impossibilidade de suspensão da execução da pena de prisão que aplicou.
A formulação do prognóstico terá que ser feita no momento da decisão, olhando para o Arguido tal como se encontra então, e perspectivar a sua evolução para o futuro
Ao olhar para os factos provados, percebe-se que a situação do Arguido exige o cumprimento da pena e desaconselha o regime da suspensão, ainda que com condicionantes.
Diferente é o entendimento do Recorrente, para quem tal solução é desproporcional e viola os princípios constitucionais da proporcionalidade, da igualdade e, ainda, o princípio ne bis idem, consagrados nos artigos 13º, 29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Não se vislumbra como.
A pena fixada respeita os princípios da determinação concreta da pena e não excede a medida da culpa acima aferida. A possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão foi afastada mediante juízo fundamentado e agora validado.
A conduta é criminosa, culposa e a medida concreta da pena está firmada dentro da moldura abstracta. O Arguido, tendo cometido o crime, à pena terá que se sujeitar.
Improcede, pois, o seu recurso.
DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedente o recurso mantendo inalterada a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente, fixando-se em 3 UC a respectiva taxa de justiça.
Lisboa, 01.Julho.2025
Rui Coelho
Paulo Barreto (com declaração de voto)
Ester Pacheco dos Santos
Declaração de voto:
"A gravação do telefonema integra o tipo do crime do art.º 199.º, n.º 1, al. a), do CPP (gravações ilícitas).
Há aqui uma protecção do direito à palavra (26.º, n.º 1, da CRP) e da inviolabilidade da comunicação (34.º, n.º 1, CRP).
Ilicitude que, no entanto, pode ser excluído por legítima defesa ou direito de necessidade.
No momento do telefonema não havia incêndio, o que afasta a agressão actual e, com isso, a legítima defesa. A gravação ilícita não foi em legítima defesa.
Mas podemos estar perante o direito de necessidade, outra causa de exclusão da ilicitude, ao abrigo da al. b), do art.º 34.º, do CP: haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado.
Só que para haver direito de necessidade, o facto tem que ser praticado como meio adequado para afastar um perigo actual. Este perigo seria o de o arguido incendiar a casa. Enquanto que na legítima defesa há uma agressão actual, no direito de necessidade a actualidade é relativa ao perigo. E este perigo existia, é inquestionável, tanto que nessa noite o arguido incendiou a casa.
Mas a mulher do arguido não gravou para prevenir o tal perigo actual. Se assim fosse, teria ido de imediato às autoridades para obstar a concretização do perigo.
O que fez foi guardar a gravação para apresentá-la, como meio de prova, em julgamento.
E aqui há que ponderar o seguinte: as autoridades, que têm o poder legal de investigação, para efectuar gravações têm que respeitar uma série de procedimentos, com o controlo do JIC, tudo para salvaguarda do 18.º, n.º 2, da CRP; daí que seja indefensável que um particular possa violar direitos fundamentais de terceiros com fins investigatórios, com o único objectivo de carrear um meio de prova para julgamento.
Em síntese, a mulher do arguido até podia gravar o telefonema do marido. Mas só o poderia fazer no âmbito de uma causa de exclusão de ilicitude: legítima defesa se a agressão fosse actual; ou estado de necessidade se o perigo fosse concreto. In casu, o perigo de incêndio era concreto, mas só se age em estado de necessidade se se agir em conformidade, ou seja, não basta gravar, é também preciso agir para prevenir o perigo concreto, o que significaria ir de imediato às autoridades mostrar a gravação. Se ela tivesse assim agido, não tenho dúvidas que a gravação podia ser utilizada como prova.
Mas não pode beneficiar da exclusão da ilicitude, por estado de necessidade, quando nada fez para prevenir o perigo concreto. Guardou a gravação até ao julgamento. Não agiu ao abrigo do estado de necessidade, mas com fins exclusivamente investigatórios. E isso está vedado aos particulares, desde logo pela exigência do art.º 18.º, n.º 2, da CRP.
Considero esta prova proibida e nula ao abrigo do art.º 32.º, n.º 8, da CRP, que o art.º 126.º, n.º 3, do CPP, se limita a reproduzir.
Todavia, aqui chegados, do conjunto da prova produzida em julgamento há prova bastante, conjugada com as regras da experiência, para condenar o arguido sem a utilização da gravação.
Temos a parcial confissão do arguido e o depoimento da sua mulher.
Tudo como consta da motivação do Tribunal a quo para além da gravação, que se acolhe, por concordância.
Daí que vote o sentido da decisão.
Paulo Barreto"