INDÍCIOS SUFICIENTES
DECISÃO INSTRUTÓRIA
CRIME DE ACESSO ILEGÍTIMO
Sumário

I - O critério de que depende a introdução de uma causa em juízo é o da suficiência de indícios quanto à prática de crime.
II – A circunstância de a decisão instrutória fazer intervir outro ou outros ramos do direito com vista à verificação da existência/inexistência de indícios da prática de crime, in casu questões de natureza laboral, não integra qualquer nulidade insanável, designadamente, a prevista no art. 119.º, al. e) do CPP, pois que tal se mostra contextualizado e é devido à verificação da existência de indícios suficientes quanto à falta de autorização do arguido em aceder aos sistemas da assistente, elemento do tipo do crime de acesso ilegítimo em análise.
III – Estando em causa a indiciada prática pelo arguido de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo artigo 6.º, n.º 5, alínea a), da Lei n.º 109/2009, de 15-09, mostra-se em crise o segredo comercial ou industrial ou de dados confidenciais, cuja divulgação não interessa à assistente (entidade patronal) em nenhuma circunstância, quando é certo ter o arguido ido trabalhar para a concorrência.
IV – É nesse contexto que deve ser interpretada a posição da assistente, a saber, que o arguido não se encontrava previamente autorizado a aceder à caixa de correio profissional e que tal só ocorreu por conta de um incidente informático nos sistemas daquela.
V - Ao realizar esse acesso não poderia o arguido ignorar, pelo menos de forma indiciária, que estava a atuar contra a vontade da assistente relativamente à qual passou a funcionar como “concorrente”.

Texto Integral

Em conferência, acordam os Juízes na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No Juízo de Instrução Criminal de Loures – Juiz 1, foi proferido despacho a não pronunciar o arguido AA pela prática de 1 (um) crime de acesso ilegítimo, p. e p. pelo art. 6.º, n.º 4. al. A) da Lei do Cibercrime.
2. Inconformada, a assistente BB, veio recorrer deste despacho, pugnando pela revogação da decisão instrutória de não pronúncia e sua substituição por outra, que pronuncie o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de acesso ilegítimo, p. e p. pelo art. 6.º, n.º 5, al. a) da Lei do Cibercrime, a fim de o mesmo ser submetido a julgamento.
Formulou as seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem por objecto a decisão instrutória proferida a 28 de Fevereiro de 2025, no âmbito dos presentes autos, nos termos da qual a Mm.ª Juíza de Instrução decidiu não pronunciar o Arguido AA, pela prática, em autoria material, do crime de acesso ilegítimo, p. e p. pelo art.° 6.°, n.° 5, al. a) da Lei do Cibercrime, pelo qual vinha acusado pelo Ministério Público.
2. A ora Recorrente não pode, de forma alguma, conformar-se com tal decisão, que reputa de infundada e injusta, pugnando, consequentemente, pela sua revogação e substituição.
3. Vinha o ora Recorrido acusado da prática do crime de acesso ilegítimo, porquanto, em data posterior à da cessação das funções que então exercia na Recorrente - ... de ... de 2021 - terá acedido, sem autorização desta, à sua caixa de correio electrónico profissional, utilizando-a até ... de ... de 2021, ocasião em que a Recorrente tomou conhecimento do incidente informático que ocorreu no interface entre os sistemas internos da Recorrente, de autenticação de utilizadores e a cloud da ..., que terá propiciado tais acessos e utilização ilegítimos por parte do Recorrido.
4. Tal imputação encontra amplo suporte na prova produzida em fase de inquérito, designadamente no Relatório pericial, de fls. 439 e ss. dos autos, na prova documental carreada para os autos pela Recorrente, de fls. 24 a 129 dos autos e na prova testemunhal produzida, designadamente as testemunhas CC e DD e pelas declarações da legal representante, EE.
5. Resultam dos autos indícios fortes da prática do aludido crime por parte do ora Recorrido, os quais se mostraram sobejamente corroborados em sede de instrução.
6. A Mm.a Juíza de Instrução Criminal, ao decidir não submeter o Recorrido a julgamento pela prática do crime de acesso ilegítimo, menosprezou, por completo, a prova e os indícios fortemente reunidos da prática daquele ilícito penal, sustentando-se, única e exclusivamente, na versão aventada pelo Recorrido em sede de instrução, ultrapassando as regras da competência dos tribunais e os limiares razoáveis da natureza indiciária, caracterizadora da fase de instrução.
7. Da análise da decisão instrutória não resulta evidente a natureza do procedimento judicial a que a mesma diz respeito, sendo que o teor desta mais se assemelha ao de uma decisão proferida no âmbito de um processo de natureza laboral.
8. Ali se fazendo extensas asserções a respeito da matéria laboral, as quais são espúrias aos autos e cabem, de resto, aos tribunais de trabalho apreciar, nos termos do art.° 126.° da Lei n.° 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ).
9. Constata-se, de igual modo, da leitura rápida da decisão de não pronúncia, que a competência legalmente atribuída ao juiz de instrução criminal a quo foi manifestamente excedida, tendo-se este substituído ao juiz de julgamento, a quem competiria decidir a causa, designadamente quanto à procedência dos pontos 8, 9, 12 e 13 da acusação.
10. Na medida em que a decisão instrutória viola o objecto do processo, ao analisar e julgar questões de natureza laboral que extravasam o thema decidendum e em virtude de ultrapassar a natureza meramente indiciária da fase de instrução, resulta forçoso concluir que a decisão recorrida se encontra ferida de nulidade insanável, nos termos do disposto nos arts. 17.°, 286.°, 290.°, 308.°, do CPP, 119.°, al. e), 122.°, todos do CPP e nos arts. 32.°, nrs. 4 e 5 e 211.° da Constituição da República Portuguesa (CRP), nulidade que aqui se argui para todos os efeitos legais.
11. Em sentido inverso, a interpretação de que o juiz de instrução criminal pode substituir-se ao juiz de julgamento e proferir despacho de não pronúncia na presença de indícios fortes da prática de um crime, é materialmente inconstitucional, por violar o princípio da legalidade, previsto no art.° 29.°, n.° 1 da CRP, o princípio da livre apreciação da prova, e as regras de competência dos tribunais e da função jurisdicional, vertidos, respectivamente, nos arts. 32.°, nrs. 4 e 5, 202.°, 203.° e 211.°, todos da CRP, inconstitucionalidade que, para todos os efeitos legais, se deixa expressamente invocada.
12. O Tribunal a quo socorreu-se exclusivamente da versão do Recorrido, apresentada em sede de instrução, contrariando olimpicamente a ampla prova produzida e as mais elementares regras da experiência comum.
13. O Tribunal recorrido não se quedou pela apreciação dos indícios suficientes da prática do crime de acesso ilegítimo pelo Recorrido, tendo ido mais além e efectuado, em fase imprópria e precoce, a valoração racional e crítica da prova e dos indícios reunidos no processo, tecendo erradamente juízos de valor acerca dos factos e da bondade da denúncia apresentada pela Recorrente, inferindo, inclusivamente, que esta faltou à verdade, presunção que não tem qualquer lógica nem suporte probatório.
14. A favor da tese da Recorrente, de que o Recorrido não se encontrava previamente autorizado a aceder à caixa de correio profissional e que tal só ocorreu por conta de um incidente informático nos sistemas da Recorrente, encontram-se vários indícios/elementos probatórios, reunidos quer em sede de inquérito quer de instrução.
15. Dos quais se enunciam os seguintes: (i) a circunstância de a Recorrente ter apresentado denúncia criminal contra o Recorrido; (ii) o teor da denúncia apresentada, ali se referindo, desde cedo, que o Recorrido acedeu à caixa de correio electrónico profissional em data posterior a ... de ... de 2021, acesso que apenas cessou mediante o bloqueio manual da conta deste; (iii) o Relatório de Auditoria Interna (fls. 185 dos autos); (iv) Emails de fls. 562 e 563 dos autos, que evidenciam, por um lado, que os acessos foram efectivamente bloqueados a ... de ... de 2021, e por outro, que apenas a ... de ... de 2021, foi possível à BB bloquear manualmente o acesso do Recorrido à caixa de correio electrónico profissional; (v) o Relatório Pericial de eliminação de dados, de fls. 439449 dos autos; (vi) as declarações do legal representante da Recorrente (EE) e inquirições das testemunhas CC e DD, tendo os três corroborado, oportunamente, que o Recorrido não detinha autorização da Recorrente para aceder à caixa de correio electrónico; (vii) documentação junta pelo Recorrido, em sede de requerimento para abertura da instrução, que atesta, desde logo, que o Recorrido acedeu e utilizou o seu endereço de correio electrónico profissional em data posterior à da sua saída da Recorrente.
16. Sem prejuízo dos indícios fortes da prática, pelo Recorrido, do crime de acesso ilegítimo que resultam directa e necessariamente de elementos probatórios constantes dos autos, sempre se diga que as regras da experiência comum levam também a concluir que o Recorrido não estava autorizado a aceder à sua caixa de correio electrónico profissional, correspondendo, aliás, à prática habitual nas saídas de colaboradores da Recorrente.
17. Afigura-se bizarra e descabida a tese do Tribunal a quo, que assenta exclusivamente nas declarações prestadas pelo Recorrido - as quais contêm fragilidades e contradições clamorosas - que resulta, essencialmente, no seguinte: a Recorrente premeditou a conduta do Recorrido, permitindo-o aceder à sua caixa de correio profissional, para contra este mover procedimento criminal, apenas porque ficou melindrada com a circunstância de o Recorrido ter ido trabalhar para empresa sua concorrente.
18. Tal tese é facilmente infirmada pelos elementos probatórios que constam dos autos, pela rerum natura e pelas regras de experiência comum.
19. Na presença de dúvida acerca destes factos, impor-se-ia a produção de prova, em sede própria, a fim de convencer o julgador acerca da autorização putativamente concedida, pela Recorrente ao Recorrido, para este aceder e utilizar a sua caixa de correio electrónico profissional, o que foi liminarmente coarctado pelo Tribunal a quo.
20. Não se vislumbra a motivação do Tribunal a quo ao aderir, sem mais e in totum, às declarações do Recorrido, prestadas em sede de instrução, não se alcançando, de igual modo, a condenação da Recorrente no pagamento da taxa sancionatória excepcional, nos termos dos arts. 277.°, n.° 5 e 521.° do CPP, porquanto a Recorrente apenas denunciou ao Ministério Público, de boa-fé e convencida da veracidade dos factos, condutas perpetradas pelo Recorrido, susceptíveis de configurar - no seu entendimento - a prática de ilícito penal.
21. Entendimento também sufragado pelo Ministério Público, que acusou o Recorrido, imputando-lhe a prática de um crime de acesso ilegítimo.
22. Lamentando-se, pois, que a Mm.a Juíza de Instrução Criminal, ao arrepio das normas legais e constitucionais aplicáveis, tenha menosprezado os indícios e os elementos de prova que constam do processo e que impunham - salvo melhor entendimento - a prolação de despacho de pronúncia do ora Recorrido.
3. A Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância apresentou resposta ao recurso interposto pela assistente, pugnando pela respetiva procedência e rematando com as seguintes conclusões:
1. A Recorrente BB, interpôs recurso da decisão instrutória de não pronúncia, nos autos identificados em epígrafe - e constante de fls. 807 a 825 (4.° vol.) -, relativamente ao arguido AA, pela prática de um crime de acesso ilegítimo, p. e p. pelo artigo 6.°, n.° 1, a) da Lei do Cibercrime, nos termos constantes do respectivo recurso e, designadamente, nas conclusões do mesmo (cfr. 4.° vol. e motivações de recurso de 0204-2025, ref.ª citius 16512177);
2. Sendo que, nos presentes autos e finda a fase de inquérito e atenta a prova recolhida, o Ministério Público deduziu acusação pelo crime indicado, a qual consta de fls. 532 a 535 - 2.° Vol. -, tendo sido requerida a abertura da fase de instrução pelo arguido, nos termos constantes de fls. 559 a 578 (2.° vol.);
3. Em sede de instrução, foi ouvido o arguido, que pretendeu prestar declarações e, a final, no debate instrutório, pronunciou-se o Ministério Público sobre as questões suscitadas no requerimento de abertura de instrução, bem como sobre os indícios suficientes da prática do crime pelo qual foi o arguido acusado, concluindo pela existência dos mesmos, devendo a decisão judicial ser de pronúncia pelos factos e crime indiciado no despacho de acusação.
4. Sucede que, a final da fase de instrução foi proferido despacho de não pronúncia, com o qual (e de acordo com o sustentado nas conclusões do Ministério Público em debate instrutório), não se concorda também, cumprindo assinalar que se concorda e subscreve “in totum” com o teor do recurso da Recorrente, ao qual aderimos e damos aqui por reproduzido (mormente nas suas conclusões, acima transcritas), por razões de economia processual.
5. Em sede de instrução, requereu o arguido a prestação de declarações, das quais resulta apenas que o mesmo fez um arrazoado de considerações (mormente, desde o minuto 22) sobre o acesso que efectuou - e que admitiu - ao e-mail da empresa da assistente, considerando sempre razoável que aceder ao e-mail na mesma durante um período de 30 (trinta) dias após a sua saída profissional, mas sem nunca justificar, de forma razoável ou atendível, a razão pela qual o fez, e apenas tentando sustentar que a “prática” não era incorrecta.
6. Pelo que, tal como alegou a recorrente, nesta fase, consideramos igualmente que o teor do despacho de não pronúncia, consubstancia um autêntico (pré)julgamento, como bem referiu, posto que a (quase exclusiva) credibilidade dada às declarações do arguido (cfr. designadamente, declarações desde 39m a 45m 27s das declarações do arguido e acta a fls. 801), viola também, neste caso concreto, os princípios da concentração e imediação da prova, em processo penal.
7. Pelo exposto, e acompanhando igualmente o teor do recurso da assistente, entendemos assistir razão à mesma, pois que o despacho de não pronúncia violou o disposto nos artigos 286.°, n.° 1 e 308.°, n.° 1 do Código de Processo Penal, pelo que deverá o mesmo ser revogado e substituído por despacho de pronúncia.
4. De igual modo o arguido respondeu ao recurso interposto pela assistente, concluindo nos seguintes termos:
1. A Decisão Instrutória proferida pelo Ilustre Tribunal a quo não merece qualquer censura, quer ao nível da matéria de facto, quer de Direito; tese que é corroborada pelo facto de o Ministério Público, tendo-se conformado com o teor da decisão, não ter interposto recurso da mesma.
2. Bem vistos os termos do Recurso apresentado, o Recorrido é obrigado a concluir que a Recorrente se encontra, s.d.r., desalinhada, do ponto de vista dos axiomas jurisprudenciais e doutrinários (e dos princípios constitucionais do processo penal), no que concerne aos conceitos de indícios suficientes, livre apreciação da prova, livre formação da convicção do Tribunal e poderes de cognição e sindicância pelos Tribunais superiores;
3. Com a ressalva de corretamente se ter alcançado o desiderato do Recurso, os vários vícios apontados pela Recorrente à sentença são um reflexo vitrificado de si própria, porquanto, se se tivesse adotado as aceções e análise à prova que propõe, o Tribunal a quo teria, aí sim, prestado reflexões jurídicas artificiais e “fragmentárias” da prova.
4. O juízo de prognose que subjaz ao conceito de indícios suficientes não tem a dimensão ou contornos processuais que são propostos pela Recorrente - de facto, e tanto quanto se vê, as limitações congénitas à análise indiciária materializa-se, acima de tudo, na produção de prova que se pode produzir durante esta fase, e não propriamente sobre as ilações que o Tribunal retira da prova que consta nos autos, mormente, sobre a convicção que o Tribunal forma quando as aprecia;
5. Os Tribunais são livres de apreciar a prova que lhe é apresentada e de livremente firmar as suas convicções, desde que esta esteja cartografada na decisão; o processo cognitivo que subjaz à sobredita formação da vontade, o qual se pressupõe fluído e natural, não conhece limitações artificiais, sendo certo e líquido que a natureza indiciária da fase de instrução não tem qualquer dimensão em que se consubstancie num entrave ao processo decisório;
6. Assim, não se pode aderir a uma interpretação dos vários conceitos mencionados retro que resulta na ideia de que o Tribunal de Instrução Criminal, quando convencido, em face da prova que consta nos autos, de que não houve prática de crime, teria de dar um passo atrás e, desconhecendo-se com que fundamentação, afirmar a existência de indícios suficientes, enquanto juízo antecipatório de maior probabilidade de ser aplicada uma pena ou medida de segurança do que uma absolvição;
7. Ademais, os entendimentos da Assistente Recorrente sobre o princípio da suficiência do processo penal e sobre os poderes de cognição dos Tribunais de Instrução Criminal (e até desta Veneranda Relação) é totalmente desconchavado dos centenariamente cunhados pela Jurisprudência, pela Doutrina e até pelos princípios fundamentais de um processo penal justo consagrados na Constituição da República.
8. Nestes termos, o Tribunal muitíssimo bem cumpriu as suas incumbências constitucionais, sem excessos ou violações de competências, ao procurar encontrar referências para a existência de indícios da prática de crime ao explorar as peculiaridades laborais na relação contratual entre Recorrente e Recorrido, porquanto as mesmas oferecem uma luz (muitíssimo) diferente aos factos apresentados por aquela e apresentam-se quase como uma Pedra de Roseta para deslindar as suas intenções;
9. Resulta da análise, em concreto, dos elementos probatórios indicados pela Recorrente no seu Recurso: (i) que os mesmos foram, todos eles, exaustivamente analisados pela Mma. Sra. Juiz de Instrução, que os analisou dentro dos poderes que lhe são conferidos por lei; e (ii) ainda assim, dos mesmos não é possível retirar a existência de indícios suficientes da prática de um qualquer crime por parte do Recorrido.
10. Por fim, não pode o Recorrido (como não pôde o TIC, nem o MP em Instrução) subscrever o entendimento da Recorrente no sentido de que a prova carreada é suficiente para se concluir pela existência de indícios suficientes;
11. Julgam-se totalmente acertadas as considerações que foram realizadas pelo Tribunal de Instrução Criminal, o qual foi capaz, como se disse, de relacionar prova coligida e indiciária com as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer;
12. Em concreto, e sem prejuízo de todas as ilações que teve a oportunidade de apresentar nos seus articulados e exposições orais, a Recorrente nunca conseguiu comprovar em que se consubstanciou o tal “erro informático inesperado”, algo que se revela absolutamente indispensável às suas pretensões - tal como não revelou nunca a sucessão histórica de correspondência que deu origem ao seu documento pièce de résitence;
13. Termos em que deverá o recurso interposto pela Assistente Recorrente ser julgado totalmente improcedente, por não provado, e em consequência ser mantida a decisão recorrida, nos seus exatos termos.
5. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no sentido de o recurso ser julgado procedente, acompanhando a resposta apresentada pelo Ministério Público junto da 1ª instância, “e anotando que em despacho exarado a 12.09.2024 o Ministério Público procedeu a correcção de lapso de escrita constante da acusação no que respeita a caracterização jurídica dos factos imputados ao arguido, de molde a passar a ler-se na mesma “- Um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo artigo 6.º, n.º 5, alínea a), da Lei n.º 109/2009, de 15-09, por referência aos artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º, 41.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, todos do Código Penal”.
6. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante designado CPP), foi apresentada resposta pelo arguido, sendo tanto nos seguintes termos:
“(…)
Em primeiro lugar, e por não se ter apresentado qualquer argumentário novo, dá a Recorrente por integralmente reproduzida a Resposta ao Recurso apresentado (com a referência Citius n.° 52279186).
Em segundo lugar, s. d. r., objectivamente não corresponde à realidade que o despacho de Não Pronúncia tenha sido fundado exclusivamente na versão do arguido dos factos.
Com efeito, resulta da análise da decisão de Não Pronúncia (objecto do presente recurso), conforme resulta do exercício que já foi feito pelo Recorrida na sua Resposta, que todos os elementos probatórios constantes dos autos foram exaustivamente analisados pela Mma. Sra. Juiz de Instrução Criminal, que os analisou dentro dos poderes que lhe são conferidos por lei, incluindo aqueles indicados pela Recorrente no seu Recurso. E, dessa análise, dos mesmos não é possível retirar a existência de indícios suficientes da prática de um qualquer crime por parte do Recorrido.
Esta análise exaustiva dos meios de todos os meios de prova, onde se incluem os depoimentos das testemunhas prestados durante a fase de inquérito, bem como do teor de todos os documentos juntos ao processo durante a fase de instrução, é incompatível com a afirmação de que a Mma. Juiz de Instrução Criminal fundou o despacho de não pronúncia com base na “(quase exclusiva) credibilidade dada às declarações do arguido”.
Em terceiro lugar, no que diz respeito à invocada violação dos princípios da concentração e da imediação da prova, devido ao facto de a Mma. Juiz de Instrução ter proferido Decisão de Não Pronúncia com base em todos os elementos probatórios constantes dos autos - a qual não o foi exclusivamente com base nas declarações do Arguido, como já vimos supra -, cumpre referir que tal decisão não merece qualquer censura, porquanto se verifica que, simplesmente, foram cumpridas as finalidades da instrução.
Com efeito, e conforme também já ficou dito em sede de Resposta ao Recurso, tendo a Instrução a finalidade de comprovar judicialmente a decisão de submeter (ou não) o Arguido a julgamento, necessariamente tem o Juiz de Instrução Criminal verificar se, em face da prova constantes dos autos, resultam indícios suficientes (ou não) da prática do crime por parte do Arguido que justifiquem a sua submissão a julgamento.
Termos em que, bem andou o Tribunal a quo ao proceder a tal análise, perfeitamente dentro do escopo dos poderes que lhe são atribuídos, não existindo, assim, qualquer extravasar dos poderes que lhe são atribuídos por lei.
Feita esta análise, concluiu o Tribunal a quo pela inexistência, nos autos, de indícios suficientes da prática do crime do qual o Arguido vinha acusado - conclusão que está dentro dos poderes de imediação conferidos ao Juiz de Instrução de Criminal - e da qual não poderia resultar outra decisão que não a decisão de não pronúncia.
Salvo devido respeito, se mesmo quando do juízo de prognose resulte a inexistência de quaisquer indícios, tivesse o JIC de decidir pela pronúncia do arguido, esvaziar-se-ia por completo a função própria da fase de Instrução.”
7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
***
II – Fundamentação
1. Objeto do recurso
De acordo com o estatuído no art. 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no art. 410.º n.º 2 do CPP.
No caso concreto, conforme as conclusões da respetiva motivação, cumpre apreciar as seguintes questões:
• Da nulidade insanável, decorrente de o tribunal a quo ter excedido a competência legalmente atribuída, nos termos do disposto nos arts. 17.º, 286.º, 290.º, 308.º, do CPP, 119.º, al. e), e 122.º, todos do CPP, entendimento que a assistente considera também ser materialmente inconstitucional, por violação dos arts. 32.º, n.ºs 4 e 5 e 211.º da Constituição da República Portuguesa;
• Da suficiência de indícios relativos à prática pelo arguido de um crime de acesso ilegítimo, p. e p. pelo artigo 6.º, n.º 5, al. a) da Lei do Cibercrime, nos termos em que foi acusado pelo Ministério Público.
2. É do seguinte teor a decisão instrutória sob recurso:
(…)
I – Relatório
Nos presentes autos o arguido AA, requereu a abertura de instrução, na sequência da prolação do despacho final de acusação que lhe imputou, a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime acesso ilegítimo, p e p pelo art. 6º, nº 4, al. A) da Lei 109/2009, de 15-09.
Como fundamentos, em síntese, invocou a nulidade por insuficiência de inquérito, nos termos do disposto no art. 120°, n° 2, al. D) do CPP, arguida tempestivamente ao abrigo nos termos do disposto no art. 120°, n° 3, al. c) do CPP, por “omissão do interrogatório do arguido”. Alega o arguido que aquando da realização do seu interrogatório, declarou que pretendia consultar os autos para estar ciente de todos os factos que lhe estavam a ser imputados, e só depois prestaria declarações.
A autorização da consulta do processo foi deferida no próprio despacho que deduziu acusação contra o arguido, pelo que a acusação foi deduzida sem a realização do interrogatório do arguido, omitindo-se a prática de acto legalmente obrigatório, ou seja, a realização do interrogatório do arguido, que tem como consequência a nulidade prevista no art. 120°, n° 2, al. D) do CPP.
Entende, por isso, que o referido constitui uma violação dos direitos de defesa do arguido, constitucionalmente consagrados. O arguido tece ainda considerações criticas acerca da ultrapassagem dos prazos máximos de inquérito, que no caso se verificou.
Invoca ainda a nulidade por falta de indicação das disposições legais aplicáveis, na medida em que a acusação não cumpre a exigência decorrente do disposto na al. A), do n° 3 do art. 283° do CPP, já que na imputação formal (pois que inexistem factos concretos imputados ao arguido), a acusação atira com uma qualificação jurídica sem qualquer factualidade que suporte a invocação do art. 6°, n° 4 da Lei do Cibercrime, o que impede o arguido de se defender. Tal omissão, na óptica do arguido, é insusceptível de ser suprida, o que levará a que seja proferido despacho de não pronúncia.
O arguido impugna ainda a factualidade de que vem acusado, questiona em toda a linha, o “incidente informático inesperado” alegado pela assistente como circunstância que permitiu que o arguido, contra a vontade da assistente, tivesse ilegitimamente acedido ao seu endereço profissional de correio electrónico. Tal incidente não ocorreu, não foi investigado pelo M°P° a cargo de quem recaia a obrigação de procurar a verdade material, daí que ninguém (investigação e M°P°), tivesse descrito, explicado e fundamentado de que incidente informático inesperado se tratou. Mais alega que traduz uma grande coincidência, o facto de a resolução do “incidente informático”, ocorrer exactamente um mês depois, da data da em que o arguido deixou de ser trabalhador da assistente.
Conclui que o acesso do arguido ao seu endereço electrónico aqui em causa, foi consentido e autorizado pela própria assistente.
Mais alega que no momento em que o computador de serviço do arguido, que a assistente autorizou que o arguido o mantivesse para si após a cessação do vínculo laboral que este mantinha com a assistente, foi “reiniciado” para bloquear o acesso do arguido ao sistema informático da assistente, tendo ficado assente que o e mail do arguido continuaria a estar disponível para uso do arguido, durante um período de tempo considerado razoável, que seria de um mês, tendo tal acesso ao e mail aqui em causa, sido bloqueado no dia ...-...-2021.
Mais alega que no seu último da de trabalho, em ...-...-2021, o arguido dirigiu uma carta de despedida (através do seu endereço electronico profissional), a todos os colaboradores da assistente, na qual indicou o seu e-mail pessoal “….com”, para quem futuramente o quisesse contactar. Contudo, o arguido continuou a receber mails para o seu e-mail profissional.
Desde essa data (...-...-2021), até ao dia ...-...-2021, o arguido utilizou de forma quase diária, o e- mail profissional por si utilizado enquanto trabalhador da assistente para contactar com quadros superiores da assistente, designadamente com o director geral de operações em ..., o que desde logo refuta a acusação que lhe é feita pela assistente, de acesso ilegítimo, já que actuou sempre com o conhecimento, autorização e com o acesso disponibilizado pela assistente, o que permite concluir pelo não preenchimento da tipicidade subjectiva do crime de acesso ilegítimo de que vem acusado.
Conclui que inexiste, por banda do arguido, a prática do crime de acesso ilegítimo de que vem acusado, e assinala que a assistente actuou com má fé, em claro abuso de direito, nos termos do disposto no art. 334° do Código Civil, na modalidade de venire contra factum proprium.
Pugnou pela prolação de despacho de não pronúncia.
Juntou nove documentos e arrolou quatro testemunhas.
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Por despacho proferido a fls. 755, e pelos fundamento aí aduzidos, indeferiu-se a inquirição das testemunhas arroladas pelo arguido e notificou-se a assistente para juntar aos autos:
1 - Cópia do recibo de vencimento do arguido, respeitante a ... de 2021;
2 - Comunicação feita à Segurança Social da cessação do contrato de trabalho celebrado entre assistente e arguido;
3 - Cópia do aviso prévio feito pelo arguido, nos termos do disposto no art. 400°, n° 1 do Código do Trabalho;
4 - Documento comprovativo da recepção dos instrumentos de trabalho devolvidos pelo arguido, de onde conste que o arguido podia manter para si, o computador e o telemóvel;
5 - Cópia de eventual pacto de não concorrência, que haja celebrado com o arguido, nos termos do disposto no art. 136° do Código do Trabalho.
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A tal solicitação a assistente respondeu mediante requerimento cotado a fls. 529 dos autos, procedendo à junção dos documentos supra aludidos em 1 (cfr. fls. 531) e 2 (cfr. fls. 531), alegando a inexistência dos demais documentos solicitados.
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Em sede de instrução, o arguido declarou pretender prestar declarações, pelo que se procedeu ao seu interrogatório.
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Não tendo sido requerida, nem determinada a realização de quaisquer actos de instrução/diligências de prova, procedeu-se a debate instrutório com observância das formalidades legais, conforme melhor se alcança da respectiva acta.
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II - Saneamento
O Tribunal é competente.
O Ministério Público tem legitimidade para acusar e nada obsta a que o arguido seja demandado criminalmente.
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Sobre a invocada nulidade por insuficiência do inquérito, nos termos do art. 120°, n° 2, al. D) do CPP. Alega o arguido que houve omissão da realização do seu interrogatório, na fase de inquérito. Aquando da realização do seu interrogatório, o arguido disse que pretendia consultar os autos para ficar ciente de todos os factos. Solicitou a consulta do processo. Tal pedido foi deferido no próprio despacho em que foi deduzida acusação, o que traduz violação dos direitos de defesa do arguido, constitucionalmente consagrados.
Cumpre apreciar e decidir:
Em primeiro lugar, cumpre lembrar que em 27-6-2024 (cfr. fls. 491), realizou-se o interrogatório do arguido, no qual este disse que pretendia consultar o processo para ficar melhor habilitado a prestar declarações.
Como se sabe, não estando os autos sujeitos a segredo de justiça, o seu mandatário pode proceder à sua consulta sem necessidade de o requerer (art. 86°, n° 1 do CPP). Aliás, nem se compreende por que razão não consultou os autos no referido dia 27-6-2024.
De todo o modo, uma vez que a acusação foi deduzida em 10-7-2024, o arguido poderia ter consultado o processo nesse lapso de tempo e requerido a realização do seu interrogatório, o que optou por não fazer. Assim sendo, a formalidade exigida pelo art. 120°, n° 2, al. D) do CPP, mostra-se cumprida em 27-6-2024.
Não tem cabimento que, ao invés de deduzir acusação, após o arguido ter dito não pretender prestar declarações, o M°P° tivesse de ficar à espera do momento certo em que o arguido eventualmente viesse informar que afinal já pretendia prestar declarações.
Assim sendo, e uma vez que o arguido e o seu mandatário poderiam ter consultado o processo no dia 27-6-2024, mas não o fizeram, nem nos dias seguintes, não se verifica qualquer nulidade, nem a aludida no art. 120°, n° 2, al. D) do CPP, porquanto o interrogatório do arguido foi realizado em 27-6-2024, no qual o arguido disse não pretender prestar declarações, sendo certo que o poderá fazer a qualquer momento. Nessa sequência, nada obstava a que tivesse sido deduzida acusação em 10-7-2024, como se verificou, o que em nada belisca os direitos de defesa do arguido, como se extrai do RAI que apresentou, improcedendo a invocada nulidade.
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Alega ainda o arguido, a nulidade da acusação, nos termos do disposto no art. 283°, n° 3, al. D) do CPP, por falta de indicação das disposições legais aplicáveis, certamente quererá referir-se à al. C). defende o arguido que a qualificação jurídica constante da acusação não é suportada por qualquer factualidade.
Cumpre apreciar e decidir:
O arguido insurge-se contra a qualificação jurídica que lhe é imputada na acusação, por entender que a mesma não é sustentada por qualquer suporte factual. Ora tal alegação, prende-se com o mérito da decisão a proferir, e não com a nulidade prevista na al. C) do n° 3 do art. 283° do CPP, na medida em que a imputação é a que consta da acusação - crime de acesso ilegítimo, p e p pelo art. 6°, n° 4, al. A) da Lei do Cibercrime.
Se existem ou não factos que suportem tal imputação, é uma decisão decorrente da finalidade da instrução, como resulta do art. 286°, n° 1 do CPP.
Face ao exposto, uma vez que a acusação faz a devida imputação do crime, não se verifica a nulidade invocada que sucede quando na acusação não é feita qualquer imputação, o que no caso não se verifica, ela existe e o arguido discorda da mesma. Assim sendo, se o arguido discorda da qualificação jurídica dos factos que lhe são imputados na acusação, é porque a mesma não é inexistente, pelo que improcede a invocada nulidade da acusação nos termos do art. 283°, n° 3, al. C) do CPP.
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Inexistem quaisquer questões prévias ou outras excepções de que cumpra conhecer e que impeçam a prolação de decisão instrutória.
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III - Fundamentação jurídica e factual
De harmonia acordo com o disposto no art. 286.°, n.°1 do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão final proferida em sede de inquérito (acusação ou arquivamento do inquérito), em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Nesta fase processual, tem-se em vista a formulação de um juízo seguro acerca da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, juízo esse que será de pronúncia ou de não pronúncia, consoante se conclua, respectivamente, pela existência da suficiência ou insuficiência de indícios da prática de factos subsumíveis a um ou mais tipos de ilícito criminal (cfr. art. 308.°, n.° 1 do Código de Processo Penal).
No juízo que sustente a decisão de não pronúncia, para além da supra referida insuficiência de indícios factuais que suportem a prática de determinado tipo de ilícito criminal, poderão estar igualmente na base motivações de ordem processual que impeçam a prossecução do processo até à fase do julgamento, v.g., a inadmissibilidade legal do procedimento criminal ou vício de acto processual com a virtualidade de obstar prosseguimento do conhecimento do mérito da acção penal.
No que respeita ao despacho de pronúncia, muito embora não se dê por demonstrada a realidade dos factos, terá forçosamente de existir a convicção de que é mais provável que determinado agente tenha cometido um ou mais crimes e de que, submetido a julgamento, exista maior probabilidade de condenação, ao invés, da sua absolvição. Destarte, o juízo de pronúncia não se consubstancia na certeza judiciária da verificação dos factos, com a consequente condenação de determinado agente, mas antes num juízo de prognose favorável de que tal condenação virá, muito provavelmente, a ocorrer após a realização de julgamento.
Tal juízo de prognose altamente favorável à existência de uma condenação, terá sempre de integrar o núcleo irredutível da decisão instrutória, sem o qual, a submissão de determinada pessoa a julgamento seria atentatória da sua dignidade (cfr. art. 27.° da Constituição da República Portuguesa), uma vez que tal submissão não se apresenta, de todo em todo, como um acto inócuo na esfera jurídica do sujeito processual visado.
Fixadas as orientações que, de acordo com Constituição e a Lei, deverão estar na base da prolação da decisão instrutória, importa neste momento apurar, se em face de todos os elementos constantes dos autos, os quais se consubstanciam na prova concretamente recolhida na fase de inquérito (discriminada no libelo acusatório), e nas declarações prestadas pelo arguido em sede de instrução, se indicia suficientemente a prática pelo arguido dos factos que lhe são imputados na acusação.
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Atente-se na prova produzida em sede de inquérito:
» Relatório pericial de fls. 439-449, onde em termos gerais, se apurou as datas e horas, em que o arguido acedeu ao seu endereço electrónico profissional, e quais as “operações” efectuadas em cada um dos acessos. (Aliás, acessos que o arguido não nega), resultando do referido relatório, entre o mais - cfr. fls. 448, 2° paragrafo - que “...os resumos digitais são também utilizados para armazenar palavras-chave cifradas. Em vez de se armazenar uma senha em 1“plaintex”, o sistema armazena o resumo digital da entrada e compara com o resumo digital armazenado. Se os resumos digitais correspondem, a senha é considerada correcta. Esse processo impede, então, que as senhas sejam armazenadas em texto simples, o que as tornaria vulneráveis a ataques informáticos…”.
Assim sendo, daqui retira-se, como aliás já resultava dos autos, que o arguido acedeu ao seu endereço electrónico profissional, após o dia ...-...-2021, utilizando uma palavra passe que o sistema informático da assistente reconheceu como correcta, permitindo-lhe tal acesso.
Alias, é cristalino que no dia ...-...-2021, último dia em que o arguido trabalhou na assistente, a relação entre ambos não podia ser melhor, não só porque o arguido não comunicou à assistente, por escrito, que pretendia denunciar o seu contrato de trabalho, nem cumpriu o aviso prévio a que alude o art. 400°, n° 1 do Código do Trabalho, formalidade legal que a assistente o dispensou de cumprir, sendo certo que a exigência de forma escrita previsto no artigo 400.°, número 1, do Código do Trabalho respeita ao aviso prévio e não à denúncia propriamente dita. (tendo sido referido pela testemunha CC, directora financeira da assistente, que em ... de 2021, o arguido avisou que iria deixar de trabalhar para a assistente). Assim, se avisou em ... e saiu em ..., é evidente que não cumpriu o prazo de 60 dias de aviso prévio que no caso se encontrava obrigado. Ilustra também a excelente relação entre ambos, o facto de a assistente ainda ter pago ao arguido a quantia de € 33.621,15 (trinta e três mil, seiscentos e vinte e um euros e quinze cêntimos), pela cessação do contrato de trabalho (cfr. recibo de fls. 531 e acordo de fls, 533-534), pagamento que não tem qualquer respaldo legal atendendo a que, como se sabe, a denúncia do contrato de trabalho não dá direito a qualquer indemnização ao trabalhador pela cessação do contrato de trabalho, sendo certo que questionado o arguido sobre o referido pagamento, o arguido explicou que se tratou de um pagamento de um prémio que lhe era devido desde 2018, explicação que não coincide com o que consta do seu recibo de vencimento de ...de 2021.
Ainda a este propósito cita-se o Acórdão do STJ de 13-2-2008, processo n° 07S4007, Relator Sousa Grandão, com o seguinte sumário:
“I -A resolução do contrato de trabalho pressupõe a verificação de uma “justa causa” que frusta as legítimas expectativas da parte que a invoca para fundamentar a cessação do contrato de trabalho.
II - Ao invés, a denúncia do contrato de trabalho, porque é livre, exige a necessária observância de um aviso prévio legal, diferindo os seus efeitos para o termo do prazo correspondente.
III - Deve qualificar-se como denúncia do contrato de trabalho, o acto extintivo do trabalhador que, depois de comunicada pelo empregador a intenção de pôr termo à prestação de trabalho em comissão de serviço, nos termos do art. 246.° do CT e com a antecedência legal, vem “resolver o contrato com efeitos imediatos”, ainda na vigência da comissão de serviço, pondo fim imediato ao contrato de trabalho pré-existente (e destinado a retomar o seu pleno vigor após a cessação da comissão de serviço), e à própria comissão, que ainda não havia cessado.
IV - À referida denúncia aplica-se a regra constante do n.° 2 do art. 247.° do CT, pelo que não assiste ao trabalhador o direito à indemnização prevista na alínea c) do n.° 1 do mesmo preceito legal.”
Analisando o extracto de remunerações da Segurança Social, respeitante ao arguido, constante de fls. 474-481v, e o recibo de vencimento de fls. 531, resulta que não foi efectuado qualquer pagamento a título de contribuição para a Segurança Social, e que apenas foi retida a quantia de € 248,00 a título de IRS (cfr. ainda fls. 532-537), o que desde já suscita dúvidas quanto à sua legalidade.
Por outro lado, o arguido foi agraciado pela assistente com um almoço de homenagem e despedida, onde recebeu “lembranças” e rasgados elogios pelo seu desempenho profissional. Não sendo de desvalorizar, o facto de a assistente ter “doado” ao arguido o computador que o mesmo utilizava ao seu serviço, assim como o telemóvel, apesar de não existir, como é habitual nestas ocasiões, um documento onde são identificados os bens que o trabalhador devolve ao empregador, (e os bens que pode manter para seu uso pessoal após a cessação do vínculo laboral, que apesar de raros, as vezes acontecem). A inexistência de tal documento, reforça a existência de uma excelente relação entre arguido e assistente, inclusive de grande confiança, que levou a assistente a dispensar mais uma formalidade.
O arguido explicou nas declarações que prestou em sede de instrução, que a assistente permitiu que ficasse com o computador e com o telemóvel de serviço, e que o informático da assistente, DD, no seu último dia de trabalho “fez uma limpeza” ao seu computador, e eliminou o acesso ao sistema informático da assistente através daquele computador, o que se verificou, deixando incólume o acesso ao ..., ou seja, ao seu endereço electrónico profissional, tal como acordado com a assistente, na pessoa da sua directora geral, e como era do conhecimento do referido informático, que formatou o computador do arguido nos termos descritos, deixando incólume o acesso do arguido ao seu e mail profissional.
Após o dia ...-...-2021, o arguido referiu que continuou a receber e mails no aludido endereço profissional, incluindo de altos quadros da assistente, como da directora geral, GG, pelo que não pode a assistente alegar que não o autorizou a aceder ao seu mail profissional e que desconhecia que o arguido o fizesse após o dia ...-...-2021. Mais disse o arguido que depois do dia ...-...-2021, por solicitação da assistente, esteve presente em reuniões de trabalho da assistente, respeitantes a projectos iniciados pelo arguido, o que confirma que a assistente autorizou e tinha conhecimento que o arguido utilizava o mail profissional.
Inquirido a fls. 469-470, HH, engenheiro informático, responsável pelo departamento informático da assistente, explicou que aquando da saída do arguido da assistente, foi despoletado o processo de saída a nível informático, ou seja, a desactivação das contas que estão inseridas no grupo BB. Ao proceder à desactivação local da conta do arguido, o processo de desactivação é transmitido aos servidores do grupo, e apesar de o mesmo ter sido bloqueado localmente, o processo não foi terminado com sucesso, o que permitiu que o arguido continuasse a aceder aos servidores do grupo, que estão sediados no estrangeiro, permitindo-lhe o acesso ao ... , ou seja, à caixa de correio eletrónico.
Na sequência de solicitação dirigida pelo tribunal à assistente, por despacho de fls. 546, para que informasse qual a entidade provedora do seu sistema informático e juntasse aos autos o respectivo mail da comunicação à entidade provedora, do aludido incidente informático, veio a mesma a fls. 560-563, informar que as entidades fornecedoras dos seus sistemas informáticos são o ...(sistema em cloud ...), e ..., parametrizado internamente pela assistente, explicando que foi o ... que falhou, já que o seu bloqueio não foi replicado aos sistemas em cloud da Microsoft, permitindo indevidamente a continuidade do acesso ao mail através dos dispositivos móveis. Mais esclareceu no aludido requerimento que o bloqueio foi concretizado no final do dia ... de ... de 2021, conforme mail que juntou que consta de fls. 562 e 563, sendo que o arguido deixou de ter acesso ao seu mail profissional em ... de ... de 2021.
Analisado o e mail de fls. 562-563, resulta que o mesmo foi enviado por II a DD, responsável pelo departamento informático na assistente, no dia ...-...-2021, pelas 17:56 horas, (sendo certo que o mail que DD enviou a II, que motivou a resposta constante do referido mail de fls. 562-563, curiosamente não se mostra junta aos autos), nesse mail, II explica a DD, que a conta da ... continuava activa, e que já a desactivou, e foi isso que permitiu que o arguido tivesse acedido ao seu mail profissional.
Do depoimento do responsável informático DD, e da informação supra, resulta que, ao contrário do referido por DD, não é possível proceder à desactivação local das contas que estão inseridas no BB. Ou seja, não é possível efectuar tal desactivação localmente, isto é, sem acesso à internet, mas sim na Cloud, na aplicação da ..., onde os servidores se encontram. A ... é que gera toda a informação em Cloud.
Não sendo despiciendo a elevada importância que assume este tipo de actos numa empresa com a dimensão da assistente - activação e desactivação de acessos de trabalhadores e ex trabalhadores, e a existência de computadores formatados e parametrizados de acordo com os sistemas informáticos internos da empresa, seguramente com Qualidade certificada. Para aceder ao sistema informático da empresa, (que tem registo de domínio), é necessário inserir credenciais de acesso, pelo que não é crível que a assistente tivesse deixado ao acaso e sem controlo, o acesso do arguido ao mail profissional.
Assim, no caso de desactivação de contas e acessos, operação realizada na Cloud e não localmente, o ... comunica à ... a pretendida desactivação. Quando a mesma, hipoteticamente, não se concretiza por algum motivo, é criada uma mensagem automática de “erro”, sendo pois facilmente detectavel que a operação não foi realizada com sucesso, porque tal informação é automática e imediata ao final da operação de desactivação do acesso (não tem como não reparar).
Ora sendo assim, é por demais evidente que o informático da assistente, não podia esperar que a desacativação que disse ter efectuado localmente, tivesse sucesso, porque não a efectuou na Cloud, aliás nem se vislumbra que tipo de desactivação é possível efectuar localmente como referido pela testemunha. Sendo certo que do mail de ...-...-2021, II verificou que a conta ... se encontrava activa e de imediato a desactivou, fazendo cessar de imediato o acesso do arguido ao e mail profissional. Sendo este mail de ...-...-2021, a única evidencia de comunicação do problema, ou seja, da comunicação do incidente informático invocado pela assistente (pese embora se desconheça o teor da comunicação que DD enviou a II, e que motivou a resposta que consta do aludido mail de ...-...-2021).
Forçosamente terá de se concluir, que foi por inaptidão da assistente, mormente do responsável pelo departamento informático, que o arguido continuou a aceder ao seu e mail profissional. Por outro lado, tendo em conta a excelente relação existente entre assistente e arguido em ...-...-2021, é perfeitamente crível que a assistente tenha permitido que o arguido continuasse a aceder e utilizar o seu mail profissional, face à notória elevada confiança que a assistente depositava no arguido, que o dispensou de cumprir a formalidade do aviso prévio e ainda lhe pagou uma considerável quantia financeira pela cessação do seu contrato de trabalho que nem sequer tem respaldo legal. Ainda assim, e não obstante a assistente reconhecer que o arguido enquanto seu director institucional, operacional e património, tinha acesso a informação priveligiada sobre negócios, propostas e procedimentos de concursos públicos da assistente, permitiu que o arguido se desvinculasse das suas funções, deixasse de ser seu trabalhador e nem sequer lhe exigiu que assinasse um pacto de não concorrência (nos termos do disposto no art. 136° do Código do Trabalho). Seguramente que a assistente teria algum tipo de expectativas de que o arguido futuramente lhe viesse a prestar algum tipo de serviços no âmbito do anunciado projecto pessoal que o arguido disse que iria dedicar-se, totalmente diferente do objecto social da assistente, só assim se explica tal actuação passiva da assistente. Acresce que a assistente ainda ofereceu ao arguido o computador e telemóvel que este utilizava enquanto seu funcionário, o que permite concluir que a assistente se conformou com as consequências que pudessem resultar dessa utilização, nomeadamente a possibilidade de acessos, pelo menos ao mail profissional, como sucedeu.
Acresce que é bastante crível a possibilidade de, como referido pelo arguido, o computador ter sido formatado pelo informático no seu último dia de trabalho, antes de lhe ter sido oferecido para seu uso pessoal, pese embora DD tenha sido totalmente omisso sobre esse assunto no seu depoimento. Considerando o tribunal que dadas as circunstâncias, o informático e, necessariamente, a assistente, teriam forçosamente de saber que através do computador (e telemóvel), o arguido estava habilitado a aceder ao seu e mail profissional, como sucedeu, utilizando as suas credenciais de acesso. O que aliás era do conhecimento da assistente, como se extrai dos mails juntos a fls. 673, de ...-...-2021, enviado pelo arguido para JJ. Assim como o mail de fls. 682, enviado em ...-...-2021, para diversos trabalhadores da assistente, entre os quais, EE e para o mail profissional do arguido), e o mail constante de fls. 682, enviado em ...-...-2021, com conhecimento ao arguido através do seu mail profissional, e a KK (gerente da assistente desde ...-...22020), pelo que dificilmente convence a tese da assistente, atendendo a que o aludido gerente teria de ter noção que em ...-...-2021, o arguido já não era trabalhador da assistente e estava a receber mails no seu mail profissional, ao qual tinha acesso.
Se o arguido estivesse efectivamente proibido pela assistente de utilizar o seu mail profissional, a carta de despedida enviada pelo arguido a todos os trabalhadores da BB: ..., certamente que seria uma chamada de atenção para todos os seus destinatários sobre a questão dos acessos do arguido ao seu mail profissional, incluindo o informático DD que “formatou” o computador do arguido antes de lho entregar para seu uso pessoal.
Se a assistente e o arguido tinham “agendas” desconhecidas nos autos, o que justifica a forma inusitada e tão invulgarmente amistosa como a assistente aceitou que o arguido deixasse de ser seu trabalhador (cfr art. 101° do RAI), pese embora o arguido tivesse agido com uma reserva mental altamente censurável atendendo a que, apesar de ter justificado perante a assistente que o que motivava a sua saída da BB, foi a vontade de se dedicar a um projecto pessoal totalmente diferente do objecto social da assistente, (na área da auditoria, segundo o arguido disse em declarações), mas o certo é que o arguido deixou de trabalhar para a assistente em ...-...-2021, e pelo menos em ... de ... de 2021, o arguido já se encontrava a trabalhar para a concorrência como se extrai da noticia de fls. 178, datada de ...-...-2021, precisamente a mesma data em que a assistente “cortou” os acessos do arguido ao seu mail profissional.
Na aludida noticia de fls. 178, em ...-...-2021, em jeito de entrevista, o arguido (que deixou de trabalhar na assistente oficialmente, em ...-...-2021), explica que aceitou o convite inesperado da “...”, nova unidade do Grupo. Nessa noticia o arguido refere que o convite surgiu depois de ter comunicado no inicio do ano, a vontade de sair da BB. A quem terá o arguido feito tal comunicação? Em declarações o arguido disse que comunicou à assistente que pretendia deixar a empresa, em finais do ano anterior e que ficou até ... de 2021 a pedido da assistente, o que foi infirmado pela testemunha CC que disse que o arguido comunicou em ...de 2021, de forma inesperada, que iria sair da empresa. Resulta das regras da experiência comum, atendendo ao descrito contexto, que o arguido quis sair da assistente, para ir trabalhar para a empresa concorrente da assistente referida na noticia.
Assim sendo, atinge-se qual foi a motivação que terá levado a assistente a mover o presente processo contra o arguido.
EE, (cfr. fls. 464), que foi substituir o arguido nas funções que este desempenhava na assistente, referiu que o arguido, aquando da sua saída recebeu um prémio avultado de reconhecimento e que mais tarde soube através da comunicação social, que afinal o arguido foi trabalhar para a concorrência.
Resulta dos autos que o arguido deixou de auferir o vencimento base mensal de € 7.775,54 que ganhava na assistente e passou a auferir o vencimento mensal de € 3.500,00 na “...”, empresa concorrente da assistente onde passou a trabalhar a partir de … de 2021. Ora, também não resulta das regras da experiência comum, que alguém decida sair, repentinamente, quase que por impulso, de uma empresa onde auferia o vencimento base mensal de € 7.775,54, e que o tivesse feito de ânimo leve e sem planeamento. Repare-se que o arguido trabalhava para a assistente há cerca de 15 anos, quando decidiu desvincular-se da empresa, não sendo crível que o arguido o tenha feito sem assegurar a continuidade do seu meio de subsistência. Ou seja, o arguido deixou de trabalhar para a assistente, para ir trabalhar para a “...”, empresa concorrente da assistente, o que sucedeu no mês seguinte a ter deixado de trabalhar para a assistente. No entanto, fica por explicar, para já, que o arguido tenha abdicado de metade do valor do vencimento que anteriormente auferia na assistente. A astucia do arguido não é compatível com uma perda considerável do seu rendimento mensal.
Não obstante as verdadeiras intenções do arguido serem desconhecidas pela assistente na data do fim do vínculo laboral que existia entre ambos, o contexto de excelentes relações pelo menos por parte da assistente em relação ao arguido, e a permissividade demonstrada pela assistente ao aceitar da forma como fez, e todo o contexto que caracterizou a saída do arguido da empresa (almoço de homenagem, manifestações de apreço, pagamento de bónus), permite concluir que certamente existiam “agendas” e motivações desconhecidas nos autos, por parte do arguido e da assistente, que funcionariam como uma simbiose, pois só assim se explica que o arguido não tenha assinado um pacto de não concorrência, nos termos do disposto no art. 136° do Código do Trabalho.
Sopesando toda a prova carreada para os autos, não se conclui que o arguido tivesse acedido ilegitimamente ao seu endereço profissional, resultando antes que a assistente permitiu que o arguido continuasse a aceder e a fazer uso do mesmo, não só pelos fundamentos acima expendidos sobre a actuação do informático da empresa, da directora comercial e do conteúdo dos e mails supra referidos, mas também porque a relação entre arguido e assistente era excelente em ...-...-2021, como se viu, já que a assistente pagou ao arguido um bónus € 33.621,15 que não lhe era legalmente devido; homenageou-o com um almoço de despedida onde lhe foram dirigidas calorosas manifestações de apreço e entregues “lembranças”; ofereceu-lhe o telemóvel e o computador que o arguido utilizava enquanto trabalhador da assistente, o que permite concluir que a assistente também autorizou e sabia, o que desde logo resulta dos e mail acima referidos, que o arguido após o dia ...-...-2021, continuou a utilizar e a aceder ao seu mail profissional, o que sucedeu até à data em que a assistente tomou conhecimento que o arguido foi trabalhar para uma empresa concorrente, ou seja, em ...-...-2021, data em que foi eliminado o acesso em causa.
Da prova carreada para os autos, conclui-se sem sombra de dúvida, que a assistente sabia e autorizou que o arguido acedesse ao seu mail profissional, o que a assistente não sabia, era que o arguido deixou de ser seu trabalhador porque planeava ir trabalhar para uma empresa concorrente. Quando disso tomou conhecimento, provavelmente pela comunicação social - cfr. noticia de fls. 178, de ...-...-2021, e nesse mesmo dia, é que a assistente reagiu e vedou o acesso do arguido ao e mail profissional, e não por coincidir com o período de um mês após a cessação do contrato de trabalho (ocorrido em ...-...-2021), como referido pelo arguido que o disse titubeando quando questionado sobre qual era o lapso de tempo considerado razoável para que continuasse a aceder ao mail profissional que utilizava na assistente, e o que motivava esse lapso de tempo.
CC, directora financeira da assistente referiu que o arguido em ... de 2021, avisou que ia sair da assistente e que foi uma noticia inesperada, (ao contrário do que disse o arguido, que em 2020 informou a assistente que ia sair da empresa, o que não mereceu credibilidade, porque não corroborado por qualquer elemento de prova, e nem resulta do teor da noticia de fls. 178-179, em que o arguido refere que comunicou no inicio do ano, a vontade de sair da BB).
Mais disse a testemunha que após a saída do arguido, foi feita uma auditoria interna para avaliar se a sua saída ocorreu de forma correcta e foi nessa auditoria que se verificou que a caixa de correio do arguido não tinha sido desactivada, o que lhe permitiu o acesso mesmo depois de ter saído da assistente. Ora, se não foi desactivada, como referido pela testemunha, foi por permissão da assistente, ou em última análise, por incúria da assistente (o que é pouco crível), motivos a que o arguido é alheio.
O relatório de auditoria de fls. 185 dos autos, não é fiável, desde logo porque o arguido deixou de trabalhar na assistente em ...-...-2021, e a data que consta da realização da dita auditoria é de ...-...-2020, ou seja, antes do arguido sair da assistente. A falta de rigor do documento impede que o mesmo seja considerado fiável, sendo certo que o mesmo nada esclarece. A necessidade da realização da dita auditoria, poderá estar relacionada com a certificação de Qualidade da assistente (todas as acções têm de estar parametrizadas sob pena de não conformidade), o que mais uma vez faz cair por terra a tese da existência de um incidente informático. Sendo certo que não se compreende que a dita auditoria tenha tido lugar, como mencionado na rubrica “plano da auditoria: em ... de ... de 2021, verificação processos de fecho colaboradores”, um mês depois de o arguido ter deixado de ser seu trabalhador e precisamente na mesma data em que foi noticiado que o arguido se encontrava a trabalhar para uma empresa concorrente da assistente.
Em conclusão, concordamos com a defesa do arguido quando invoca que não foi investigado em que se traduziu o incidente informático alegado pela assistente, dando a investigação e o M°P° como assente a sua verificação, sem apurar os seus contornos, o que não é aceitável.
Do que supra se expôs, resulta da prova carreada para os autos, que não ocorreu nenhum incidente informático como alegado pela assistente e que a mesma sabia e permitiu que o arguido, após o dia ...-...-2021, continuasse a aceder ao seu mail profissional. A excelente relação que a assistente tinha com o arguido e que levou a que lhe tivesse concedido várias benesses, incluindo o acesso ao mail profissional, alterou-se no momento em que percebeu que foi enganada pelo arguido, e foi nesse momento que, contrariamente ao que anteriormente tinha autorizado/permitido que o arguido mantivesse acesso ao seu mail profissional após ...-...-2020, o que era do seu conhecimento, veio apresentar a queixa crime que deu origem aos presentes autos, sabendo que alegou factos que não correspondiam à realidade. O que fez motivada por desforço pelo facto de o arguido, contrariamente ao motivo que lhe explicou para deixar de ser seu trabalhador, ter ido trabalhar, logo no mês seguinte, para uma empresa sua concorrente.
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Face a tudo o que supra se expôs, dos documentos juntos aos autos pela assistente com a queixa crime, nomeadamente contratos de trabalho; “Acordo”; descrição das funções desempenhadas pelo arguido na assistente, constante de fls. 43, resultaram indiciariamente demonstrados os factos 1 a 7; 10 e 11 da acusação, estes dois últimos, admitidos pelo arguido e resultam dos emails juntos aos autos, de onde se extrai que o arguido reencaminhou do seu mail profissional, para o seu mail pessoal, os documentos aí discriminados.
Não tendo resultado indiciariamente demonstrados os factos descritos em 8 e 9 do despacho de acusação, já que tal como supra expendido, resulta da prova acima analisada, que a assistente autorizou que o arguido continuasse a aceder ao seu mail profissional após o dia ...-...-2021, o que era do conhecimento da sua directora geral, do gerente KK e do responsável pelo departamento informático. Consequentemente, não resultou demonstrado o vertido em 12 e 13 da acusação, pelo que o arguido não será pronunciado, de harmonia com o disposto no art. 308.° n.° 1, in fine do Código de Processo Penal, pela prática do crime de acesso ilegítimo, p e p pelo art. 6°, n° 4, al. A) da Lei do Cibercrime, de que vem acusado.
Forçosamente terá de se concluir que a assistente fez um uso abusivo do processo, sabendo que autorizou e permitiu que o arguido continuasse a aceder ao seu mail profissional após ter cessado o vínculo laboral que os unia, face à já sobejamente ilustrada excelente relação que mantinha com o arguido. Contudo, a assistente veio alegar o contrário com a queixa crime que apresentou, motivada por ter tomado conhecimento, pelo menos em ...-...021 (cfr. noticia de fls. 178-179 e depoimento de EE - fls. 464, sendo essa a data em que a assistente bloqueou o acesso do arguido ao mail profissional), que o arguido foi trabalhar para uma empesa sua concorrente, e não porque o arguido acedeu ao seu mail profissional depois de ...-...-2021, contra a sua vontade e com o seu desconhecimento, o que, como se viu, não aconteceu.
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IV – Decisão
Em face de tudo o supra exposto, de harmonia com o disposto no art. 308.° n.° 1, in fine do Código de Processo Penal, decido, NÃO PRONUNCIAR o arguido AA, pela prática de 1 (um) crime de acesso ilegítimo, p e p pelo art. 6°, n° 4. Al. A) da Lei do Cibercrime.
É devida taxa de justiça pelo Assistente, que se fixa em 3 UCs (artigos 515.°, n.° 1, alínea a) do Código de Processo Penal, e 8.°, n.° 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa).
Por entender que a assistente fez um uso abusivo do processo, na medida em que alegou factos que sabia não corresponderem à verdade, conforme supra expendido, vai ainda condenada, nos termos do disposto no art. 277°, n° 5 e 521° do CPP, no pagamento da taxa sancionatória excepcional, no valor de 3 UCs.
(…)”
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3. Apreciando
3.1. Da nulidade insanável
Considera a recorrente que a decisão instrutória viola o objecto do processo, por manifesto desvio do mesmo, concretamente, porque analisou e julgou questões de natureza laboral e porque ultrapassou a natureza meramente indiciária da fase de instrução.
Com isso aponta-lhe aquilo que classifica de nulidade insanável, decorrente de o tribunal a quo ter, na sua ótica, excedido manifestamente a competência legalmente atribuída, nos termos do disposto nos arts. 17.º, 286.º, 290.º, 308.º, do CPP, 119.º, al. e), e 122.º, todos do CPP, entendimento que também considera ser materialmente inconstitucional, por violação dos arts. 32.º, n.ºs 4 e 5 e 211.º da Constituição da República Portuguesa.
Ora, embora se reconheça que a decisão recorrida se debruça em muito sobre questões de índole laboral, não se subscreve o entendimento de que com isso se tivesse afastado do objeto do processo, pois que essa discussão foi potenciada pelo próprio requerimento de abertura de instrução, ao chamar à colação a alegada circunstância de que o acesso do arguido ao seu endereço eletrónico corporativo foi consentido e autorizado pela assistente pelo período de um mês, na sequência da cessação do seu contrato de trabalho por mútuo acordo. Melhor dizendo, a análise das questões de natureza laboral deveu-se à verificação, que era devida, da existência de indícios suficientes quanto à falta de autorização do arguido em aceder aos sistemas da assistente, elemento do tipo do crime de acesso ilegítimo em análise.
Nessa medida, essa discussão mostra-se contextualizada, sendo por nós também entendida como relevante, à semelhança de qualquer outra que, se necessária, fizesse intervir outro ou outros ramos do direito com vista àquilo que efetivamente importa, a saber, a verificação da existência/inexistência de indícios da prática de crime.
Na mesma senda, não se nos afigura que de algum modo tivesse o tribunal a quo ultrapassado a natureza meramente indiciária da fase de instrução, pois que não se substituiu ao tribunal de julgamento, mas antes prolatou uma decisão de não pronúncia com base numa ponderação que entendeu dever ser equivalente a inexistência de indícios suficientes.
Assim considerando, não identificamos na atuação do tribunal a quo um qualquer extravasar dos poderes que lhe são atribuídos por lei, o que equivale a não vermos verificada qualquer nulidade ou inconstitucionalidade.
Em suma, falece esse segmento do recurso.
3.2. Da suficiência versus insuficiência de indícios
Já quanto ao juízo a que o tribunal a quo chegou relativamente à inexistência de indícios suficientes, outras considerações se impõem, sempre tendo presente que o critério de que depende a introdução de uma causa em juízo é o da suficiência de indícios quanto à prática de crime.
Assim, em primeira linha não considerou a decisão recorrida que, em despacho exarado nos autos a 12.09.2024, o Ministério Público procedeu a correção de lapso de escrita constante da acusação no que respeita a caracterização jurídica dos factos imputados ao arguido, de molde a passar a ler-se na mesma “- Um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo artigo 6.º, n.º 5, alínea a), da Lei n.º 109/2009, de 15-09, por referência aos artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º, 41.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, todos do Código Penal”.
Por conseguinte, nunca a decisão recorrida poderia ter concluído pela não pronúncia do arguido pela prática de 1 (um) crime de acesso ilegítimo, p. e p. pelo art. 6.°, n.° 4. al. a) da Lei do Cibercrime sem que antes tivesse procedido a uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação.
Ou seja, aquilo que efetivamente se mostra em crise é o segredo comercial ou industrial ou de dados confidenciais, cuja divulgação, naturalmente, não interessa à assistente em nenhuma circunstância, e ainda mais quando é certo ter o arguido ido trabalhar para a concorrência.
É nesse contexto que deve ser interpretada a tese da assistente, a saber, que o arguido não se encontrava previamente autorizado a aceder à caixa de correio profissional e que tal só ocorreu por conta de um incidente informático nos sistemas da recorrente.
Assim se compreende a denúncia que deu origem aos presentes autos que, longe de se prender com a violação ou não de regras de segurança, antes assenta nessa preocupação absolutamente legítima.
Visto nesta perspetiva, afigura-se-nos que desde logo assiste razão à assistente quando “acusa” a decisão recorrida de fundamentalmente ter tido em conta as declarações do arguido, embarcando na tese de que “a Recorrente premeditou a conduta do Recorrido, permitindo-o aceder à sua caixa de correio profissional, para contra este mover procedimento criminal, apenas porque ficou melindrada com a circunstância de o Recorrido ter ido trabalhar para empresa sua concorrente”.
Por certo, não se ignora que a Mma. Sra. Juiz de Instrução Criminal procedeu à análise de todos os elementos probatórios constantes dos autos. Porém, decidiu essencialmente com base nas declarações do arguido prestadas em sede de instrução, quando a favor da tese da assistente foram recolhidos vários indícios/elementos probatórios, designadamente os referidos pela recorrente na sua motivação de recurso, sintetizados na conclusão 15, ao contrário das declarações do arguido que valem por si só e, principalmente, contrariam as regras da experiência comum.
É que independentemente das melhores ou piores relações existentes entre o arguido e a sua entidade patronal à data da sua saída, é regra de ouro em qualquer empresa digna de fazer parte do mundo empresarial proteger a sua confidencialidade, o que passa também por deixar de permitir o acesso autorizado à caixa de correio eletrónico profissional em casos de cessação, seja em que termos, de um vínculo profissional que anteriormente permitisse esse acesso.
E isso não deixa de ser consentâneo com a circunstância de a assistente ter “doado” ao arguido o computador que o mesmo utilizava ao seu serviço, assim como o telemóvel, pois que esse computador, conforme assumido pelo próprio nas suas declarações, não deixou de ser formatado no seu último dia de trabalho pelo informático da assistente.
O que não se compreende é o porquê de não se dar relevância ao depoimento do responsável pelo departamento informático da assistente, nos termos salientados na decisão recorrida, que “explicou que aquando da saída do arguido da assistente, foi despoletado o processo de saída a nível informático, ou seja, a desactivação das contas que estão inseridas no grupo BB. Ao proceder à desactivação local da conta do arguido, o processo de desactivação é transmitido aos servidores do grupo, e apesar de o mesmo ter sido bloqueado localmente, o processo não foi terminado com sucesso, o que permitiu que o arguido continuasse a aceder aos servidores do grupo, que estão sediados no estrangeiro, permitindo-lhe o acesso ao ... , ou seja, à caixa de correio eletrónico”.
É que o mail de ...-...-2021 é uma evidência válida da comunicação do problema, ou seja, da comunicação do incidente informático invocado pela assistente (“Sendo certo que do mail de ...-...-2021, II verificou que a conta ... se encontrava activa e de imediato a desactivou, fazendo cessar de imediato o acesso do arguido ao e mail profissional”).
Ou seja, ao exigir-se uma melhor comprovação daquilo em que efetivamente se consubstanciou o referido incidente informático, como parece ser o pretendido pela defesa, a mesma terá necessariamente de ser relegada para julgamento, pois que na presente fase processual são suficientes os indícios da sua verificação.
Por outro lado, mas ainda sob esta mesma perspetiva, aquilo que também é suficiente é a certeza que o arguido acedeu ao seu endereço eletrónico profissional, após o dia ...-...-2021, utilizando uma palavra passe que o sistema informático da assistente reconheceu como correta, permitindo-lhe tal acesso, o que é de facto anómalo quando é certo e sabido que aquele foi trabalhar para a concorrência, não sendo por isso expectável que sequer procurasse esse acesso.
Melhor dizendo, não é razoável aceder ao e-mail da assistente após a sua saída profissional, pois que essa “prática” é incorreta.
Na verdade, ao realizar esse acesso não poderia o arguido ignorar, pelo menos de forma indiciária, que estava a atuar contra a vontade da assistente relativamente à qual passou a funcionar como “concorrente”.
Tudo visto, e porque, mesmo que em termos meramente indiciários, mostram-se preenchidos quer o elemento objetivo quer o elemento subjetivo do crime em discussão nos presentes autos - um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo artigo 6.º, n.º 5, alínea a), da Lei n.º 109/2009, de 15-09, por referência aos artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º, 41.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, todos do Código Penal - , deve o arguido ser pronunciado em conformidade, concretamente, nos termos da acusação pública contra si proferida pelo Ministério Público.
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III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o presente recurso, revogando-se a decisão de não pronúncia do tribunal a quo, a qual deverá ser substituída por uma decisão de pronúncia do arguido AA, pela prática de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo artigo 6.º, n.º 5, alínea a), da Lei n.º 109/2009, de 15-09, por referência aos artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º, 41.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, todos do Código Penal, devendo os autos voltar ao tribunal recorrido para o efeito.
Sem custas.
Notifique.
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Lisboa, 1 de julho de 2025
(certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94.º n.º 2 do CPP, que o presente texto foi processado e integralmente revisto pela relatora)
Ester Pacheco dos Santos
Rui Poças
João Grilo Amaral
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1. Texto que não foi criptografado e pode ser lido com facilidade.