BUSCA
SERVIÇOS MÉDICOS
CÔNSUL HONORÁRIO
FRAUDE NA OBTENÇÃO DE SUBSÍDIO
Sumário

I. A busca como meio de obtenção de prova deve ser adequada à finalidade legal daquele meio, ou seja, possibilitar o acesso a objetos relacionados com um crime, ou que possam servir para a prova do mesmo, pressuposta que seja a existência de meros indícios da prática de um crime e de que os objetos ou pessoas a procurar se encontram no local visado pela diligência.
II. Nos crimes económico financeiros, designadamente de fraude na obtenção de subsídio, a prova documental pode ter relevo determinante, designadamente faturas e transferências financeiras trocadas entre sociedades com objetos sociais díspares que podem indiciar movimentações ou faturação sem documento de suporte, comumente designadas por faturas falsas ou movimentos aparentes.
III. Pelo que este meio de obtenção de prova não só é idóneo como adequado e imprescindível à sua finalidade legal.

Texto Integral

Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

1.Relatório:
No Processo nº 922/18.2TELSB, do Tribunal Central de Instrução Criminal- Juiz 9 - da Comarca de Lisboa foi proferido despacho, com o seguinte teor:
«Veio o M.P. requerer mandado de busca a instalações de empresa de serviços médicos e instalações identificadas. Para tanto alega que “das diligências de investigação realizadas” há suspeita de a empresa “ser interveniente no circuito de facturação fictícia com as entidades controladas pelos arguidos, nomeadamente a arguida AA e as sociedades ..., ..., ..., ..., para efeitos de justificação dos fluxos financeiros decorrentes do esquema de fraude na obtenção de subsídio investigado nos autos, sendo que, ademais, as respectivas instalações encontram-se convenientemente sediadas em instalações oficiais de um Consulado Honorário sito no ... (e infra identificado) e o beneficiário efectivo da referida empresa é, simultaneamente o respectivo Cônsul Honorário”.
“Das diligências de investigação realizadas” não resulta em nenhum momento as suspeitas invocadas pelo M.P. sendo que das inúmeras diligências de prova já realizadas e que constam devidamente assinaladas nos autos nomeadamente declarações de arguidos, depoimentos de testemunhas e documentação entretanto recolhida não é feita qualquer alusão à mencionada sociedade e muito menos indícios/participação no alegado esquema pelo que não se verificam os pressupostos dos artigos 176º e 177º, ambos do Código de Processo Penal e, consequentemente, indefere-se a requerida busca. »
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Não se conformando com o despacho proferido, veio o Ministério Publico recorrer formulando as seguintes conclusões:
1. Por despacho judicial proferido no dia 12.02.2025 foi indeferida a promoção do MP para a autorização de busca às instalações da sede da sociedade de serviços médicos ..., local também identificado como instalações do Consulado Honorário da ....
2. Para tal considerou a Mma JIC a quo, em síntese, que das diligências efectuadas e da documentação entretanto recolhida não resultava alusão à mencionada sociedade, nem indícios da sua participação no alegado esquema fraudulento, pelo que não se verificavam os pressupostos dos artigos 176° e 177°, ambos do Código de Processo Penal.
3. Inconformado com tal decisão vem o MP interpor o presente recurso.
4. No inquérito investigam-se factos susceptíveis de integrar, entre outros, os crimes de fraude na obtenção de subsídio, p. e p. pelo disposto nos artigos 21.º e 36.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), n.º 2, n.º 5, alínea a) e c) n.º 8, alíneas a) e b) do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro; associação criminosa, p. e p. pelo artigo 299.º, n.º 1, 2, 3 e 5, do Código Penal; branqueamento de capitais, p. e p. pelo artigo 368.º-A, n.º 1, alínea k), n.º 2 e n.º 3 do Código Penal; fraude fiscal, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), n.º 2 (a contrario) e n.º 3 e 104.º, n.º 1, alíneas d) e n.º 2, alínea a), ambos da Lei nº 15/2001, de 5 de Junho; recebimento ou oferta indevidos de vantagem, p. e p. pelo artigo 372.º, n.º 2, do Código Penal,
5. Ademais, em sede de interrogatório judicial dos arguidos considerou a Mma. Juiz de Instrução fortemente indiciada a prática, por todos os arguidos, da factualidade aos mesmos imputada e susceptível de integrar os mencionados ilícitos criminais.
6. Por outro lado, da análise conjugada da diversa documentação junta os autos, resultante de anteriores diligências de buscas e informação bancária e fiscal solicitada nos autos, resultaram identificadas novas entidades suspeitas de intervirem, de forma fraudulenta, nos circuitos de facturação e nos fluxos de pagamentos, entre elas, a entidade ...
7. A ... É uma sociedade que tem por objecto, entre outras, actividades práticas médicas de clínica geral e especializada em ambulatório e outras actividades de consultoria e aconselhamento para fins médicos, que se relaciona com a arguida AA, a ... E com as demais sociedades da esfera dos arguidos, e que, embora não sendo fornecedora dos projectos, suscita-se a suspeita fundada de intervir no esquema de facturação fictícia com as sociedades da esfera dos arguidos, de modo a justificar os fluxos financeiros.
8. Ou seja, indicia-se que os fundos que possam ter sido ilicitamente apropriados pelos arguidos, o tenham sido também mediante a utilização da mencionada sociedade ..., enquanto sociedade veículo, utilizada para a facturação às demais sociedades, num sistema de triangulação.
9. Concretamente, analisados os documentos bancários reunidos nos autos, foram identificadas operações financeiras (transferências a crédito e a débito) entre a ... e a AA, mas também com as sociedades ..., ..., ... e com o próprio arguido BB, suscitando-se pois a suspeita de que a ... possa ter sido utilizada para ocultação e dissipação de fundos provenientes da prática dos ilícitos em investigação.
10. Resulta ainda da informação fiscal coligida nos autos, a existência de facturação emitida entre a sociedade visada ... E a arguida AA e demais sociedades da esfera dos arguidos, suscitando-se a suspeita de que a emissão de tais faturas não tenha correspondência com a realidade e que os bens e serviços sejam fictícios.
11. Atendendo ao objecto social da ..., nomeadamente actividades práticas médicas de clínica geral e especializada que em nada se relaciona com o objecto social das diversas sociedades da esfera do arguido BB, o qual é amigo pessoal do beneficiário efectivo da ..., impõe-se concluir pela ausência de racional económico da respectiva relação subjacente entre tais entidades, indiciando-se tratar-se de facturação fictícia e por isso atendida no âmbito da promoção do MP para a autorização de busca à sede da sociedade ... LDA.
12. A ponderação conjunta dos referidos elementos constantes dos autos e referidos na promoção de busca, impõe a conclusão de que, contrariamente ao alegado pela Mma. JIC no despacho a quo, da que resulta devidamente sustentada a suspeita avançada pelo Ministério Público quanto ao envolvimento da entidade .... No esquema criminoso investigado nos autos.
13. Para o apuramento das relações contratuais e económicas, reais e concretas, estabelecidas entre as entidades visadas na investigação e a entidade entretanto identificada, a ..., é indispensável a apreensão de documentação através da realização de diligências de busca à sede e instalações desta.
14. O Ministério Público não tem possibilidade de obter prova relativamente aos elementos contabilísticos da ..., quanto à existência de contratos celebrados com esta ou quanto às evidências dos serviços facturados por esta, sem a realização da requerida busca.
15. Pelo que, consideramos que no presente caso se mostram devidamente preenchidos os pressupostos legais para a realização da busca às instalações da ..., nos termos do disposto nos arts. 174º, 176º e 177º do Código de Processo Penal.
16. Assim é nosso entendimento que perante a exigência que, no caso, se faz sentir da necessidade da investigação, da recolha de prova e face à força dos indícios existentes, apenas se poderá decidir pela realização da diligência requerida pelo Ministério Público, inexistindo fundamento legal para que a Mma. Juiz de Instrução indeferisse a emissão dos mandados de busca à sede da sociedade ...
17. Face ao exposto, a decisão recorrida deve ser revogada por ter violado as normas conjugadas dos artigos 174.º, n.º 2 e 3, 177.º, n.º 5, 180.º, 262.º, n.º 1 e 268.º n.º 1, alínea c) e n.º 2, todos do Código de Processo Penal,
18. Em consequência, deverá ser substituída por outra que determine a realização de busca às instalações da sede registal da sociedade ..., sociedade que tem por objecto a prática de serviços médicos e onde poderão encontra-se documentos abrangidos por segredo profissional médico, nos exactos termos promovidos pelo Ministério Público.
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Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido Douto parecer no sentido da procedência do recurso, tal como consta das alegações do Ministério Público junto da primeira instância sendo de sublinhar que assiste inteira razão ao Ministério Público, tendo em conta o princípio da necessidade, uma vez que a diligência requerida se mostra absolutamente necessária e indispensável para a realização e prossecução do inquérito.
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Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
OBJETO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, é a seguinte a questão a decidir: se devia ou não ter sido deferida a busca.
2.Fundamentação:
O Ministério Público no âmbito da investigação em curso promoveu a realização da busca indeferida pelo despacho recorrido, nos seguintes termos:
«…resultou apurado que a sociedade ..., empresa cujo objecto social abrange, entre outras, atividades práticas médicas de clínica geral e especializada em ambulatório" (cfr. certidão permanente de fls. 11376 e segs.) é suspeita de ser interveniente no circuito de facturação fictícia com as entidades controladas pelos arguidos, nomeadamente a arguida AA e as sociedades ..., ..., ..., ..., para efeitos de justificação dos fluxos financeiros decorrentes do esquema de fraude na obtenção de subsídio investigado nos autos, sendo que, ademais, as respectivas 'instalações encontram-se convenientemente sediadas em Instalações oficiais de um Consulado Honorário. sito no ... (e infra identificado) e o beneficiário efectivo da referida empresa é, simultaneamente o respectivo Cônsul Honorário.
Pelo que, é legítimo concluir que no referido local, correspondente à sede da referida sociedade, se fará arquivo de documentos e de demais informação relacionada com a documentação fiscal, contabilística e outra referente à prática dos crimes investigados e alheia quer ao exercício da actividade relacionada com o objecto social de práticas médicas da empresa quer ao exercício de eventuais funções consulares ali existentes, não obstante a proibição legal de "utilização de instalações consulares de maneira incompatível com o exercício das funções consulares" [art. 55º, nº2 e nº3 (aplicável aos postos consulares honorários ex vi art. 58º do DL nº 183/72 - Convenção sobre Relações Consulares, concluída em Viena em 24.04.1963].
Mostra-se assim crucial a realização de buscas àquelas instalações, enquanto sede registal da mencionada sociedade ..., não obstante corresponder a endereço oficial de posto consular honorário no ..., e a subsequente apreensão da documentação contratual, fiscal, contabilística e outra, bem como de eventual correspondência entre os visados, relacionada com a prática dos ilícitos em causa, sem prejuízo da salvaguarda de eventual "arquivo e documentação consular oficial, ali detectada e identificada como tal, bem como correspondência oficial do Consulados Honorário" que ali se possa encontrar e cuja apreensão não interessa à matéria em causa (cfr. art. 35º, ex vi art. 58º, nº1, e 61º do D.L nº 183/72 - Convenção de Viena sobre Relações Consulares) bem como demais documentação ali arquivada relacionada com a actividade lícita da referida empresa referente a práticas médicas e actividades conexas.
Ora, atendendo à legislação interna no que tange ao regime legal aplicável a buscas a locais sujeitos a sigilo profissional (concretamente, busca· a escritório de advogados ou consultórios médicos) determina o código de processo penal a autorização e participação judicial na busca com vista a criar condições de efectiva preservação do sigilo profissional em causa e de garantia de êxito na realização da diligência em causa e, concreta apreensão da documentação visada.
Na prática e conforme resulta da experiência decorrente da realização desse tipo de buscas, a presença de Juiz de Instrução Criminal (a par de representante de ordem profissional) poderá permitir dirimir no local alguma questão levantada quanto à eventual natureza sigilosa de documentação localizada e decidir da respectiva apreensão e/ou selagem para posterior análise; permitindo ainda imediata decisão quanto a uma eventual (i)legítima recusa de apresentação de documentos (arts. 177º, nº5, 182º e 135° do CPP).
É sabido que no processo penal o Juiz de Instrução Criminal intervém como verdadeiro garante dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos; sendo que para além dos casos especificadamente previstos na lei (cfr. arts. 268º e 269º do CPP), tem o Juiz competência para se pronunciar e decidir sobre a generalidade das matérias que contendam com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, directa ou indirectamente envolvidos no processo, que é exactamente o caso de buscas a instalações em que se verifique necessidade de especiais cautelas na realização de buscas atentas as prerrogativas de sigilo como é o caso das instalações em que se encontrem instalados consulados honorários e correspondam a empresas com actividade relacionada com práticas médicas abrangidas pelo segredo médico profissional, nos termos do disposto no art 139º do Estatuto da Ordem dos Médicos (DL nº 282/77 de 5 de Julho).
Face ao regime legal relativo às facilidades, privilégios e imunidades legalmente previstas para os postos consulares, geridos por funcionários consulares honorários bem como relativo a instalações com -atividades médicas (equivalente à actividade exercida em "consultório médico"} promove-se à ma.Juiz de Instrução Criminal a autorização de BUSCA, a presidir por JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL ao local abaixo indicado - identificado como consulado honorário, no qual se encontra domiciliada a sede de empresa (com actividade médica} envolvida nos factos investigados, com extensão a todos os espaços fechados anexos e dependências aí encontrados, incluindo garagens. arrecadações, parqueamentos, caixas de correio, cofres e veículos bem como a outros locais encontrados nos espaços a buscar onde seja previsível albergar-se prova relevante para o presente inquérito, com vista à sua custódia e validação para utilização nos presentes autos, com os limites fixados pelo seu objecto, ao abrigo do disposto nos arts. 174.º, 175.º 176.º, 177.º, nºS, 178.º. 180º e 269.º, n.º1, ai. c). todos do CP.Penal, em conjugação com os art.s 1º, nº2, 58º, 61º, 63° do DL 183/72 - Convenção de Viena sobre Relações Consulares.
A promoção de emissão de mandado de busca, a presidir por JUIZ de INSTRUÇÃO CRIMINAL visa permitir a imediata decisão judicial sobre a eventual invocação do disposto no art. 35° (inviolabilidade da correspondência oficial do posto consular) e/ou art. 61º (inviolabilidade dos arquivos e documentos consulares) bem como do disposto no art. 139º do Estatuto da Ordem dos Médicos (Segredo Médico Profissional) dificultando ou até impedindo a realização da busca e imediata apreensão de documentação alheia a qualquer actividade consular ou médica, que se possa encontrar acondicionada conjuntamente mas comprovativa da actuação criminosa em investigação, sob o pretexto de se tratar de documentação/correspondência oficial do Consulado ou de se tratar de arquivo de documentação sujeita a segredo médico profissional (art. 139º do Estatuto da Ordem dos Médicos - DL n.º 282177 de 5 de Julho).
Assim, atento o objecto social da empresa em causa (domicílio profissional de profissionais de saúde) e eventual existência de arquivo de documentação médica, nos termos das disposições combinadas dos arts. 177º, nº 5, 180º e 182º do CPP e art. 139º do Estatuto da Ordem dos Médicos - DL nº 282/77 de 5 de Julho, a realização de busca em instalações utilizadas por profissionais de saúde, é autorizada e presidida por juiz de Instrução Criminal.
Em face das mencionadas disposições legais e ao abrigo do disposto nos artigos 268.º n.º 1 als. e), d), e f) e nº 2 e 2;69º nº 1 ais. d) e f) do Código de Processo Penal e, ainda, do disposto nos artºs 16º nºs 1, 3, 5 e 7 ais. a) e b) e 17º da Lei 109/2009 de 15 de Setembro, o Ministério Público promove à mª JIC que autorize e presida às buscas infra identificadas, com a presença de representante da Ordem dos Médicos a convocar previamente, para apreensão de todos os objectos e documentação em suporte físico ou digital incluindo correspondência, em papel ou electrónica, relacionados com o objeto dos autos e ali localizados. Visando o sucesso das diligências de busca e apreensão pretendidas mais se promove autorização, caso seja necessário, para a neutralização de animais através da administração de substâncias tranquilizantes cuja utilização deverá ser feita de forma adequada a não prejudicar a sua saúde e a não colocar em risco a sua vida; a desactivação, por qualquer meio, de sistemas de vigilância electrónica eventualmente em funcionamento nos locais a buscar; o recurso ao escalamento e/ou arrombamento de portas e janelas; e o uso da força contra quem quer que se oponha à realização das diligências ora ordenadas, sempre com respeito pelos princípios da adequação e da proporcionalidade e pelos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados.
Ao abrigo do disposto no art. 175.º do Código Processo Penal, promove-se, igualmente, a realização de revista pessoal a toda e qualquer pessoa encontrada nos locais a buscar ou nas suas proximidades, desde que se suspeite, fundadamente, poder encontrar-se na posse de documentos e /ou objectos que se revelem necessários à investigação, ao seu sucesso e à descoberta da verdade material, sempre com referência ao objecto da investigação em curso.
- Local a buscar - Instalações de EMPRESA DE SERVIÇOS MÉDICOS E CONSULADO HONORÁRIO:
Instalações da sociedade denominada ..., sitas na ..., local identificado como instalações do CONSULADO HONORÁRIO DA ... - CONSULADO EM PORTUGAL (com o endereço oficial sito na morada indicada), com identificação oficial de CC como Cônsul Honorário da ... no ....
Com vista a agilizar o respectivo transporte por parte da PJ, desde já se requer que o representante da Ordem dos Médicos a convocar, indicado para acompanhar a referida diligência de busca, seja convocado em data a comunicar mediante prévio contacto telefónico com as signatárias.»
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2.Fundamentação:
«As buscas não domiciliárias, como meio de obtenção de prova, encontram a sua previsão no artigo 174º do CPP, que deve ser lido em conjugação com o artigo 176º do mesmo Código. Referimos como meio de obtenção de prova, pois as buscas não domiciliárias podem também surgir como medidas cautelares e de polícia, nos termos do artigo 251º do CPP.
Fazendo a comparação com as buscas domiciliárias, pode-se afirmar que as buscas não domiciliárias não estão sujeitas “aos limites de tempo consagrados para as domiciliárias, nem à rigidez dos pressupostos para a sua efetivação, apesar de quem a efetuar ter de seguir mutatis mutandis as formalidades consignadas para as buscas domiciliárias”
As buscas não domiciliárias devem ser autorizadas ou ordenadas por despacho da autoridade judiciária competente, que lhes deve presidir sempre que possível, tal como decorre do nº 3 do artigo 174º do CPP. Saliente-se, a este propósito, que, de uma leitura conjugada dos artigos 268.º, 269.º a contrario sensu e 174.º, n.º 3, todos do CPP, resulta que nas buscas não domiciliárias, a competência originária para autorização e validação das mesmas caberá ao MP, já que este tipo de buscas não faz parte do elenco de atos que competem ao juiz de instrução autorizar ou validar, em sede de inquérito. Referimo-nos ao inquérito porque, na maioria das vezes, é nesta fase que a busca decorre. Isto altera-se se estivermos na fase de instrução, pois aqui a responsabilidade de ordenação das buscas é do JIC, como resulta do nº 1 do artigo 288º e nº 2 do artigo 290º, ambos do CPP. O despacho de autorização tem um prazo de validade máxima de 30 dias, como exige o nº 4 do artigo 174º do CPP.
O legislador, a exemplo do que estabeleceu para as revistas, consagrou para as buscas um regime especial em que dispensa a autorização judicial prévia previsto no nº 5 do artigo 174º do CPP. Assim, nos casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa, de consentimento documentado do visado e de detenção em flagrante por crime punível com pena de prisão, os OPC podem efetuar busca sem necessidade de aguardarem o mandado judicial de autorização. Refira-se que, nos casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, a realização da diligência deve ser imediatamente comunicada ao JIC para por ele ser apreciada em ordem à sua validação, tal como prevê o nº 6 do artigo 174º do CPP.
Para além destes casos, o legislador, na al. a) do nº 1 do artigo 251º do CPP, legitimou a atuação dos OPC, sem necessidade de prévia autorização da AJ, na realização de buscas como medidas cautelares e de polícia, no caso de existir fundada razão para crer que no local onde se encontram os suspeitos se ocultam objetos relacionados com o crime, suscetíveis de servirem de prova e que de outra forma poderiam perder-se, desde que os suspeitos se encontrem em fuga iminente ou detidos e não se trate de busca domiciliária.
Estes pressupostos diferem dos da al. c) do nº 5 do artigo 174º do CPP, pois nestes “o periculum in mora só é aceitável se existir uma detenção em flagrante delito, exigência que não se verifica no artigo 251º do CPP, uma vez que pode ser efetuada mesmo fora do flagrante delito”
Contudo, a realização destas buscas não domiciliárias devem ser imediatamente comunicadas ao JIC e por este apreciadas em ordem à sua validação, sob pena de nulidade, conforme nº 6 do artigo 174º ex vi nº 2 do artigo 251º, ambos do CPP. Sobre a apreciação, Marques Ferreira afirma que “a competência para apreciação e validação deve caber ao MP, uma vez que tem competência para as autorizar (artigo 174º, nº 3) e tal ato não consta do elenco dos que competem exclusivamente ao JIC em sede de inquérito (artigos 268º e 269º) ”64.
Guedes Valente refere que “existe uma diferença entre as buscas realizadas no âmbito do nº 5 do art.º 174º e as que se realizam no âmbito do art.º 251º, ambos do CPP”. As primeiras, enquadradas no regime geral das buscas (artigos 174º, 175º e 176º do CPP), “representam uma exceção ao regime das buscas não só não domiciliárias, mas também às domiciliárias, que se justifica pelos valores jurídicos a defender (a vida, a integridade física) que são superiores ao valor da inviolabilidade do domicílio”. Já as segundas, previstas na al. a) do nº 1 do artigo 251º do CPP, “são as que os OPC efetuam sem autorização ou ordem prévia da AJ e que decorrem dos atos de polícia, que apenas serão atos processuais após a sua validação pela autoridade judicial competente”65.
Na mesma linha de pensamento, Simas Santos e Leal-Henriques consideram as buscas como medidas cautelares e de polícia, como sendo “medidas de exceção, sujeitas a um rigoroso e apertado condicionalismo (…), ditadas pela urgência na aquisição, recolha e preservação de provas em risco de perda, interessando, pois, pô-las em resguardo, ou pela necessidade de acautelar a prática de ações criminosas durante a realização de atos processuais” No mesmo sentido, Maia Gonçalves afirma que se trata “de casos em que os OPC podem ir além dos poderes já conferidos por outras disposições, realizando (…) buscas não domiciliárias mesmo sem prévia autorização judiciária, desde que a demora na obtenção dessa autorização faça perder a utilidade da diligência ou a ponha em grave risco de perder-se”
Facto claro é que a realização desta medida cautelar e de polícia redunda na “existência de um conflito entre a descoberta da verdade material e a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos”. O legislador, atento a isto, por um lado, “permite que os OPC realizem as buscas não domiciliárias e como medida cautelar segundo os critérios da al. a) do nº 1 do art.º 251º do CPP, limitando-a à homologação da AJ, conforme o mesmo preceito – realizando-se a justiça e promovendo-se a descoberta da verdade material. E por outro lado, ao estipular critérios rigorosos, cujo ónus probatório da existência daqueles cabe ao OPC, e ao limitá-los à homologação pela AJ, salvaguarda e protege os direitos fundamentais” - As Buscas e a sua admissibilidade: Problemas Emergentes, Rafael Fernando de Sousa Cardoso, Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra no âmbito do 2º Ciclo de Estudos em Direito (conducente ao grau de Mestre), na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Forenses, Coimbra, 2016, pag 24 e ss.).
Nesta conformidade, a busca tem que ser:
Idónea ou adequada à finalidade legal daquele meio de obtenção de prova, ou seja, possibilitar o acesso a objetos relacionados com um crime ou que possam servir para a prova do mesmo ou a detenção de arguido ou outra pessoa que deva ser detida, pressuposta que seja a existência de indícios da prática de um crime e de que os objetos ou pessoas a procurar se encontram no local visado pela diligência.
Dado que o legislador ordinário não qualifica especialmente os indícios (v.g. fortes, suficientes), a que alude o art. 174º nºs 1 e 2 do CPP, a jurisprudência tem entendido ser bastante a existência de meros indícios (independentemente do seu índice ou grau de relevância e da sua eventual corroboração), que tanto podem resultar do teor ou conteúdo de meios de prova ou de obtenção de prova que versem diretamente sobre a factualidade típica e a presença das coisas ou pessoas no local visado, como da alegação de factos, minimamente fundamentada, de onde se infiram logicamente estes mesmos dados, com recurso às regras da experiência.
Torna-se necessário que estejamos perante verdadeiros indícios (assim Ana Luísa Pinto, Aspetos problemáticos do regime das buscas domiciliárias, RPCC 15 (2005) p. 422, (art. 174º nºs 1 e 2)
Ora, sendo sabido que não cabe ao juiz definir a estratégia da investigação, não é menos certo, porém, que a ele cabe a avaliação da possibilidade de empreendimento de outras medidas menos lesivas, o que não decorre do despacho da Srª Juíza.
O caso que nos ocupa tem apenas duas especificidades: 1ª as respetivas instalações encontram-se sediadas em instalações oficiais de um Consulado Honorário sito no ... (e infra identificado) e o beneficiário efetivo da referida empresa é, simultaneamente o respetivo Cônsul Honorário; 2º a empresa tem atividade relacionada com práticas médicas abrangidas pelo segredo médico profissional, nos termos do disposto no art.º 139º do Estatuto da Ordem dos Médicos (DL nº 282/77 de 5 de Julho).
1ª Nos termos do Decreto-Lei n.º 183/72 de 30 de maio é o seguinte o regime aplicável aos funcionários consulares honorários e aos postos consulares por eles geridos:
«ARTIGO 58.º
Disposições gerais relativas às facilidades, privilégios e imunidades:
1. Os artigos 28.º, 29.º, 30.º, 34.º, 35.º, 36.º, 37.º, 38.º e 39.º, o parágrafo 3 do artigo 54.º e os parágrafos 2 e 3 do artigo 55.º aplicam-se aos postos consulares geridos por funcionários consulares honorários. Além disso, as facilidades, privilégios e imunidades destes postos consulares serão regulados pelos artigos 59.º, 60.º, 61.º e 62.º
2. Os artigos 42.º e 43.º, o parágrafo 3 do artigo 44.º, os artigos 45.º e 53.º e o parágrafo 1 do artigo 55.º aplicam-se aos funcionários consulares honorários. Além disso, as facilidades, privilégios e imunidades destes funcionários consulares serão regulados pelos artigos 63.º, 64.º, 65.º, 66.º e 67.º
3. Os privilégios e imunidades previstos na presente Convenção não serão concedidos aos membros da família de um funcionário consular honorário ou de um empregado consular de um posto consular gerido por um funcionário consular honorário.
4. O intercâmbio de malas consulares entre dois postos consulares situados em países diferentes e dirigidos por funcionários honorários só será admitido com o consentimento dos dois Estados receptores.
ARTIGO 59.º
Protecção das instalações consulares
O Estado receptor adoptará todas as medidas apropriadas para proteger as instalações consulares de um posto consular gerido por um funcionário consular honorário contra qualquer intrusão ou dano e para evitar perturbações à tranquilidade do posto consular ou ofensas à sua dignidade.
ARTIGO 61.º
Inviolabilidade dos arquivos e documentos consulares
Os arquivos e documentos consulares de um posto consular gerido por um funcionário consular honorário serão sempre invioláveis onde quer que se encontrem, desde que estejam separados de outros papéis e documentos e, em particular, da correspondência pessoal do chefe de posto consular e de qualquer pessoa que com ele trabalhe, assim como dos objectos, livros e documentos relacionados com a sua profissão ou os seus negócios.
ARTIGO 62.º
Isenção de direitos aduaneiros
De acordo com as leis e regulamentos que adoptar, o Estado receptor permitirá a entrada, com isenção de todos os direitos aduaneiros, taxas e despesas conexas, com excepção das de depósito, transporte e serviços análogos, dos objectos seguintes, desde que sejam destinados exclusivamente ao uso oficial de um posto consular gerido por um funcionário honorário: escudos, bandeiras, letreiros, sinetes e selos, livros, impressos oficiais, mobiliário de escritório, material e equipamento de escritório e artigos similares fornecidos ao posto consular pelo Estado que envia ou por solicitação deste.
ARTIGO 63.º
Processo penal
Quando um processo penal for instaurado contra um funcionário consular honorário, este é obrigado a comparecer perante as autoridades competentes. Todavia, o processo deverá ser conduzido com as deferências devidas ao funcionário consular honorário em virtude da sua posição oficial e, salvo se o interessado estiver preso ou detido, de forma a perturbar o menos possível o exercício das funções consulares. Quando for necessário deter preventivamente o funcionário consular honorário, o processo correspondente deverá iniciar-se o mais breve possível.»
Assim mostra-se necessária a salvaguarda de eventual "arquivo e documentação consular oficial, ali detectada e identificada como tal, bem como, correspondência oficial do Consulados Honorário" que ali se possa encontrar e cuja apreensão o Ministério não interessa à matéria em causa (cfr. art. 35º, ex vi art. 58º, nº1, e 61º do D.L nº 183/72 - Convenção de Viena sobre Relações Consulares) bem como demais documentação ali arquivada
Atenta a atividade da empresa (objeto), podem estar, também em causa documentos sigilosos, abrangidos pelo segredo médico - artº 139º do DL n.º 282/77, de 05 de julho.
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Indícios reportados pelo Ministério Público e adequação da diligência requerida:
Analisados os documentos bancários reunidos nos autos, foram identificadas operações financeiras (transferências a crédito e a débito) entre a ... e a AA, mas também com as sociedades ..., ..., ... e com o próprio arguido BB, suscitando-se pois a suspeita de que a ... possa ter sido utilizada para ocultação e dissipação de fundos provenientes da prática dos ilícitos em investigação – cfr. designadamente, apensos bancários 1D, 4 E 4C.
Resulta, ainda, da informação fiscal coligida nos autos, a existência de facturação emitida entre a sociedade visada ... E a arguida AA e demais sociedades da esfera dos arguidos, suscitando-se a suspeita de que a emissão de tais faturas não tenha correspondência com a realidade e que os bens e serviços sejam fictícios cfr- Apenso E FACTURA – …
No inquérito investigam-se factos suscetíveis de integrarem, entre outros, os crimes de fraude na obtenção de subsídio, p. e p. pelo disposto nos artigos 21.º e 36.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), n.º 2, n.º 5, alínea a) e c) n.º 8, alíneas a) e b) do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro; associação criminosa, p. e p. pelo artigo 299.º, n.º 1, 2, 3 e 5, do Código Penal; branqueamento de capitais, p. e p. pelo artigo 368.º-A, n.º 1, alínea k), n.º 2 e n.º 3 do Código Penal; fraude fiscal, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), n.º 2 (a contrario) e n.º 3 e 104.º, n.º 1, alíneas d) e n.º 2, alínea a), ambos da Lei nº 15/2001, de 5 de Junho; recebimento ou oferta indevidos de vantagem, p. e p. pelo artigo 372.º, n.º 2, do Código Penal, no qual, também, são arguidos BB e AA.
Como resulta das regras da experiência comum nestes casos a prova documental pode ter relevo determinante, designadamente as indicadas faturas e transferências entre sociedades com objetos sociais tão díspares. Pelo que este meio de obtenção de prova é idóneo e adequado à sua finalidade legal.
Os indícios apresentados pelo Ministério Publico - a existência de faturação emitida cf.- Apenso E FACTURA – … e as operações financeiras Apenso E FACTURA – … – preenchem a definição indiciária suprarreferida
Nesta conformidade, a busca e revista, nos termos requeridos deveria ter sido autorizada, com a salvaguarda do sigilo assinalado.
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3.Decisão:
Nestes termos, julga-se procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência, determina-se a busca e revista à ... nos precisos termos requeridos pelo Ministério Publico, devendo ser tomadas pelo tribunal a quo as demais diligências necessárias, designadamente, para a salvaguarda do sigilo consular e médico.
Comunique de imediato ao tribunal recorrido, independentemente do trânsito em julgado. da decisão.
Sem custas.
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Lisboa, 1 de julho de 2025.
Alexandra Veiga
Pedro José Esteves de Brito
Rui Poças