VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
SANÇÃO ACESSÓRIA
PROIBIÇÃO DE CONTACTOS
CONDIÇÃO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
REGIME DE PROVA
Sumário

I. No crime violência doméstica, os comportamentos do arguido que se traduziram em tentativas de agressão física, com arremesso de objetos, em constantes importunações com mensagens e chamadas telefónicas, em injúrias, rebaixamento e a tentativa de controlar os movimentos da ofendida, com perguntas incessantes para saber onde está e com quem está, não podem ser desvalorizados ao ponto de lhe ser aplicada uma pena no seu limite mínimo.
II. O Tribunal para a determinação da medida da pena tinha de atender às consequências que o comportamento do arguido teve na vida da ofendida, nomeadamente as faltas ao trabalho, a baixa médica, o nervosismo, a ansiedade e o facto de se encontrar acolhida numa Casa Abrigo com o seu filho menor.
III. A aplicação da proibição de contactos com a vítima como condição de suspensão da pena e a obrigação de frequência do programa para agressores de violência doméstica no âmbito do regime de prova podem esvaziar o conteúdo das sanções acessórias previstas no artigo 152.º, n.º 4 do Código Penal.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes da 5.º Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
No processo comum singular 481/23.4PISNT, que corre termos no Juízo Local Criminal de Sintra, J3, foi proferida sentença, datada de 30.01.2025, nos termos da qual foi decidido, entre o demais:
a) Condenar o arguido AA na pena de 2 (dois) anos de prisão, pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c) e n.º 2 alínea a) do Código Penal.
b) Suspender a execução da pena de prisão pelo período de 2 (dois) anos a contar do trânsito em julgado da presente decisão, sujeitando tal suspensão a regime de prova, assente em plano individual a elaborar pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, cujo cumprimento será vigiado e apoiado por esta entidade e que inclua, pelo menos, a obrigação de frequência de um programa para agressores de violência doméstica, ao abrigo do disposto nos artigos 50.º do Código Penal e 34.º-B da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro;
c) Subordinar a suspensão da execução da pena de prisão à proibição de contactos com a assistente BB, por todo e qualquer meio de comunicação presencial ou à distância, digital ou não, tudo ao abrigo do disposto nos artigos 51.º do Código Penal e 34.º-B da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro.
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Inconformado com esta decisão, veio o Ministério Público interpor o presente recurso, apresentando motivações e concluindo do seguinte modo (transcrição):
“1.ª - Nos presentes autos, foi proferida sentença a qual, após submissão a julgamento do arguido AA, julgou procedente a acusação pública contra ele deduzida e, em consequência, decidiu condená-lo na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, subordinando tal suspensão a regime de prova, que inclua a frequência de programa vocacionado para agressores de violência doméstica e à proibição de contactos com a assistente.
2.ª - Não pode o Ministério Público conformar-se com tal decisão, porquanto considera que a medida da pena aplicada ao arguido se mostra desajustada aos factos apurados, às circunstâncias do caso concreto e às necessidades de punição que se fazem sentir, porquanto fixada no limite mínimo.
3.ª – De igual modo se defende que deveria o arguido ter sido também condenado nas penas acessórias, previstas nos n.ºs 4 e 5, do artigo 152.º, do Código Penal, tal como vinha peticionado na acusação pública.
4.ª - Para a aplicação de uma pena, como consequência do cometimento de um crime, a punição em concreto terá sempre como limite máximo inultrapassável a culpa do agente e como limite mínimo, irrenunciável, a pena que se manifesta, no caso concreto imprescindível para se poder dizer que o bem jurídico violado foi, a final, efectivamente protegido e que as expectativas da comunidade nas normas de protecção estão, enfim, restauradas.
5.ª - Acresce que, dentro dos mencionados limites mínimos e máximos, o julgador há-de encontrar no caso concreto, a pena ideal, ponderando todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente, as elencadas no n.º 2, do artigo 71.º, do Código Penal.
6.ª – O crime de violência doméstica praticado pelo arguido, agravado pela circunstância de os factos terem sido praticados no domicílio da vítima e em presença do filho menor de ambos, é punido, nos termos do disposto no artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, com pena de prisão de dois a cinco anos.
6.ª – No caso dos autos, deveria o Tribunal ter considerado que as exigências de prevenção geral são elevadíssimas, considerando o número de cometimento de crimes de violência doméstica e as consequências dramáticas, no nosso país, estando a merecer cada vez mais atenção pela sociedade, havendo um sentido generalizado de preocupação, temor e alarme social; por outra via, também as exigências de prevenção especial se mostram acentuadas, pois que, não obstante a inserção do arguido e a ausência de antecedentes criminais, há que levar em conta a postura assumida em julgamento pelo arguido, que apenas admitiu parcialmente os factos imputados, desvalorizando-os e imputando à assistente comportamentos para justificar as suas condutas, assumindo ainda uma postura de vitimização perante o Tribunal, sendo patente que o mesmo não demonstra qualquer juízo de autocensura relativamente aos factos praticados e ao desvalor das suas condutas, que claramente não interioriza.
7.ª – Muito elevada é também a culpa do arguido, tendo agido com dolo directo e intenso, de modo reiterado e com o único intuito de rebaixar, humilhar e maltratar a assistente, denegrindo a sua imagem perante si própria e terceiros, colocando em causa a sua dignidade enquanto mulher e mãe, não se coibindo de o fazer, não obstante bem saber que lhe devia um especial dever de respeito, por a mesma ter sido sua companheira e mãe do seu filho.
8.ª – Já a ilicitude tem-se por mediana, considerando as concretas condutas levadas a cabo pelo arguido, traduzindo-se, essencialmente, em ofensas psíquicas, mas que são censuráveis e que provocaram os danos dados como assentes na factualidade plasmada na sentença em crise, agindo com ascendente físico e, sobretudo, psicológico sobre a assistente, estando em causa condutas que não podem deixar de se considerar humilhantes e de rebaixamento.
9.ª – Pelo que, tendo em consideração todas as circunstâncias enunciadas, a favor e a desfavor do arguido, deverá este Venerando Tribunal alterar a medida da pena em que o arguido foi condenado, fixando-a em pena de prisão, nunca inferior a dois anos e nove meses de prisão, medida que se mostra justa e adequada aos factos que supra se elencaram, não se mostrando ultrapassada a culpa do arguido, mantendo-se a suspensão da execução de tal pena, nos termos definidos na sentença em crise.
10.ª – Deve ainda o arguido ser condenado na pena acessória de proibição de contactos com a assistente, pelo período de dois anos e nove meses, a fiscalizar por meios técnicos de controlo à distância;
11.ª – E, bem assim, na pena acessória de frequência de programa vocacionado para agressores de violência doméstica.
12.ª – De facto, ao contrário do que se entendeu na sentença recorrida, a aplicação de tais penas acessórias, que se traduzem numa adjuvante da pena principal, se mostram necessárias e imprescindíveis para a segurança de não frustração da fundada esperança de que, no futuro, o arguido não reincida nas condutas que justificaram a presente condenação e, bem assim, correspondem à melhor forma de compatibilizar os desígnios de reinserção social do arguido com os de defesa e protecção da vítima, sem prejuízo da respectiva previsão como condições de suspensão da execução da pena de prisão aplicada nos autos ao arguido.
13.ª – De tudo o que se vem de dizer, resulta que o Tribunal a quo, violou, entre o mais, o disposto nos artigos 40.º, 71.º, 152.º, n.ºs 4 e 5 do Código Penal.
14.ª – Pelo que deve a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por douto acórdão que condene o arguido AA, pela prática de um crime de violência doméstica, agravado, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c), n.º 2, alínea a), n.ºs 4 e 5, do Código Penal, em pena não inferior a dois anos e oito meses de prisão, ainda que suspensa na sua execução, nos termos determinados na sentença condenatória e ainda nas penas acessórias de proibição de contactos com a assistente BB, por período não inferior a dois anos e oito meses, fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância e de obrigação de frequência de programa para agressores de violência doméstica.
15.ª – Com o que, só assim, farão Vossas Excelências, a habitual e melhor JUSTIÇA”
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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O arguido não respondeu ao recurso.
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Remetido o processo a este Tribunal, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer (parcialmente transcrito):
“Concordamos com os fundamentos do recurso, com a argumentação utilizada pela nossa Colega na 1.ª instância, que subscrevemos e, por isso, aderimos ao recurso nos seus precisos termos.
Sublinhamos, no entanto, que a assistente, a vítima, tal como se deu como provado no facto 18., desde .../.../2023 que se encontra acolhida, com o filho, que também o é do arguido, numa Casa Abrigo devido ao medo e pavor que os comportamentos do arguido lhe incutiram, temendo a reiteração sobre si ou sobre pessoas de si próximas.
Sublinhamos igualmente que a assistente esteve na situação de baixa de ... a .../.../2023 devido aos comportamentos do arguido - facto provado 25.
Também, devido ao efeito dos comportamentos do arguido sobre o seu bem-estar, geradores de ansiedade, a assistente cometeu faltas ao trabalho, que não lhe foram relevadas, com perda de retribuição – facto provado 24..
Assim, a conduta maltratante do arguido sobre a assistente não só corroeu a saúde dela como a prejudicou no trabalho e alterou o respetivo modo de vida e também o do filho de ambos.
Queremos com isto dizer que a pena de 2 anos de prisão que foi aplicada ao arguido, correspondente ao mínimo abstrato da pena, não satisfaz as exigências de prevenção geral nem especial, nem corresponde à gravidade das consequências da ação do arguido sobre a assistente e à culpa do arguido.
E o mesmo diremos quanto à não aplicação das penas acessórias.
Consideramos, pois, que o Tribunal a quo não fez a adequada ponderação das circunstâncias que considerou na escolha e determinação da medida da pena, atento o disposto nos arts. 40.º e 71.º, do CP, nem o fez quanto à aplicação das penas acessórias, nos termos do art. 152.º, n.ºs 4 e 5, do CP.
Pelo exposto, somos de parecer que o recurso merece provimento”.
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Notificado do parecer do Ministério Público junto deste Tribunal, o arguido respondeu, formulando as seguintes conclusões (transcrição parcial):
“(…) 4 - Não pode o ora Recorrido concordar com tal Douto Parecer, por não assistir razão ao Recorrente, não merecendo Douta Sentença recorrida qualquer censura.
5 - Estabelece o nº 1 do art.º 40.º do Código Penal como finalidades da aplicação das penas a protecção de bens jurídicos, que se reconduz, essencialmente, à prevenção geral e especial da prática de crimes, e a reintegração do agente na sociedade, dispondo o nº 2 do mesmo artigo que a pena não pode exceder a medida da culpa.
6 - O art.º 71.º do CP, sob a epígrafe «Determinação da medida da pena», estatui que: dentro dos limites definidos pela lei, tal determinação é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo o tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do arguido ou contra ele.
7 - Conforme se escreve nos Ac. do STJ de 15/09/93, Col Jur – Acórdãos do STJ, I, III, 197 e segs, onde se escreve que “a individualização da pena pressupõe proporcionalidade entre aquela e a culpabilidade (…), isto sem desprezo, por imperativo legal, da gravidade da ilicitude objectiva”).
8 - Mas também é a medida necessária à reintegração do indivíduo / agente na sociedade, causando-lhe só o mal necessário.
9 - Dirige-se ao próprio condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes da sociedade.
10 - Da motivação da matéria de facto, só pode concluir-se que a fundamentação da mesma na sentença recorrida, deixa claramente explicitado o iter da decisão, onde foram tidas em conta as razões da valoração efectuada, obviamente estruturada em todos os elementos de prova careados para os autos e prova testemunhal produzida, os quais foram analisados de forma lógica e crítica, a que acresce as regras de experiência e a formação da convicção do tribunal e a consequente aplicação ao arguido / recorrido da medida da pena de dois anos de prisão.
11 - Conforme resulta da “Motivação do julgamento da matéria de facto”, o arguido prestou declarações, tendo confessado parcialmente a prática de quase todos os factos que lhe foram imputados.
12 - O que de alguma forma, demonstra que o arguido interiorizou que andou mal ao praticar tais factos, bem como arrependimento pelo cometimento dos mesmos.
13 - Decorre igualmente da Douta sentença recorrida não haver notícias de novos factos criminais praticados posteriormente pelo arguido.
4 – Conforme resulta da Douta Sentença recorrida quanto às finalidades de prevenção especial “as mesmas são medianas, tendo em conta a ilicitude mediana dos factos atendendo ao amplo espetro de condutas típicas, subsumíveis ao crime em questão e à complexidade dos bens jurídicos tutelado pela incriminação e ao facto do Arguido não possuir antecedentes criminais”.
15 – Há ainda a considerar que o arguido não tem antecedentes criminais, está familiar, social e profissionalmente inserido.
16 – A aplicação das penas acessórias previstas nos artºs 4 e 5 do artº 152º do Código Penal mostra-se injustificada atenta a sujeição do arguido a um regime de prova, como condição de suspensão da pena de prisão em que foi condenado.
Nesta conformidade, negando-se provimento ao recurso e mantendo-se a douta sentença recorrida, será feita justiça”.
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Colhidos os vistos, o processo foi presente a conferência, por o recurso dever ser aí decidido, de harmonia com o disposto no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do Código de Processo Penal.
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II. Questões a decidir:

Como é pacificamente entendido tanto na doutrina como na jusrisprudência, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso1.
Atentas as conclusões apresentadas, no caso em análise são as seguintes as questões a decidir por ordem de procedência lógica:
• Se a pena imposta deve ser alterada para 2 anos e 8 meses de prisão;
• Se devem ser aplicadas ao arguido as sanções acessórias de proibição de contactos com a ofendida, pelo período de 2 anos e 8 meses, fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância e obrigação de frequência de programa para agressores de violência doméstica.
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III. Com vista à apreciação das questões suscitada, importa ter presente o seguinte teor da sentença proferida (transcrição):
“Da discussão da causa e com relevância para a decisão resultaram provados os seguintes factos:
1. O Arguido e BB (doravante designada por BB) viveram em comunhão de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, entre o mês de ... de 2020 e o mês de ... de 2021.
2. Da referida relação nasceu um filho: CC, no dia ...-...-2021.
3. Durante o relacionamento, o arguido mantinha comportamentos de ciúmes e controlo para com BB.
4. Por várias vezes, quando ela estava grávida do filho menor comum, no interior da residência comum, na sequência de discussões, o Arguido arremessou na direção de BB vários objetos, nomeadamente panelas, frigideiras, e latas de comida.
5. Após o final da relação, o Arguido, sem motivo, passou a contactar constantemente BB, quer por mensagens, quer por chamadas telefónicas, perguntando-lhe onde ela estava, o que estava a fazer, com quem, dizendo- lhe que ela não prestava, que não servia para nada, que não era boa pessoa, que nunca ia ser, que ia ensinar o filho a não gostar de pessoas como ela.
6. Em muitas dessas chamadas telefónicas, o Arguido dirigia-se a BB e dizia-lhe também: “És uma porca. Não sabes ser mãe! Eu vou-te tirar o miúdo!”.
7. E em muitas dessas mensagens escritas, o Arguido escrevia, nomeadamente: -“Andas vestida como uma prostituta”; - “Não é preciso andares de barriga à mostra, uma mãe não anda assim vestida”; - “Vou-te tirar o miúdo!”; - “És má mãe!”; -“Badalhoca!”; - “Cuidas mal do miúdo!”.
8. Também após a relação, o Arguido passou a deslocar-se amiúde ao local de trabalho de BB, abordando-a e questionando-a, nomeadamente para onde ela ia e com quem ela ia sair, causando-lhe nervosismo e ansiedade.
9. Em data não concretamente apurada, mas situada no mês de ... de 2023, numa ocasião em que BB estava a jantar em casa da mãe dela, o Arguido telefonou-lhe mais de dez vezes, questionando-a por ter ido jantar fora e perguntando-lhe com quem estava, deixando-a nervosa e ansiosa.
10. No dia ...-...-2023, numa ocasião em que BB foi jantar fora com a sua mãe e com a sua irmã, para comemorar o “Dia da Mulher”, o Arguido começou a telefonar-lhe de forma insistente e a perguntar-lhe onde estava e com quem.
11. Saturada desses comportamentos constantes do Arguido, BB passou o jantar a chorar desesperada.
12. No dia ...-...-2023, cerca das 18h32, quando BB se encontrava no seu local de trabalho, sito no supermercado “...”, em ..., o Arguido telefonou-lhe e iniciou uma discussão com ela.
13. Na sequência dessa discussão, o Arguido disse a BB, “és uma maluca, estás maluca, não tens juízo, és mãe de um filho, devias ter juízo, não tens cabeça nenhuma”.
14. Porque ele não parava de proferir tais expressões e porque ela estava no seu local de trabalho, BB desligou a chamada.
15. No dia ...-...-2023, durante o período da manhã, depois de ter tomado conhecimento que BB tinha apresentado queixa contra ele, a qual originou o presente processo crime, o Arguido remeteu várias mensagens a BB, em que escreveu que era o pai do filho dela, que ela lhe estava a estragar a vida e perguntou-lhe se ela ia retirar a queixa contra ele.
16. No mesmo dia, cerca das 12h45m, o Arguido envolveu-se num confronto físico com DD, padrasto de BB.
17. Ainda no mesmo dia, durante a tarde, o Arguido remeteu várias mensagens a BB, em que lhe pedia insistentemente para retirar a queixa e que não sabia que mal lhe tinha feito.
18. Com medo e pavor de todos os comportamentos que o Arguido tem vindo a adotar para com ela e para com pessoas próximas dela, desde o dia ...-...-2023 que BB se encontra acolhida em Casa Abrigo juntamente com o filho menor.
19. Com as condutas acima descritas o Arguido quis e conseguiu ofender BB na sua honra e dignidade, e na sua liberdade pessoal, para que esta se sentisse lesada na sua dignidade, bem sabendo que praticando parte desses atos no interior da residência comum a privava de qualquer possibilidade de reação, causando-lhe um profundo sentimento de insegurança.
20. O Arguido atuou com o propósito alcançado de atingir e lesar o corpo e saúde de BB, sabendo que dessa forma lhe poderia causar dores e lesões.
21. Sabia o Arguido que as expressões dirigidas a BB eram insultuosas e que a ofendiam na sua honra e consideração, o que logrou conseguir.
22. O Arguido atuou com intenção de a maltratar BB, o que de facto veio a conseguir.
23. O Arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
Mais se provou ainda que:
24. Devido ao estado de grande ansiedade que os comportamentos do Arguido lhe causavam, nomeadamente os telefonemas que lhe fazia para o telemóvel durante o seu horário laboral, tal impulsionou que a mesma cometesse faltas ao trabalho, não tendo logrado justificar as mesmas, tendo resultado na correspondente perda de vencimento.
25. Em virtude dos comportamentos do Arguido, a Vítima esteve de baixa médica desde ... de ... de 2023, até, pelo menos, ... de ... de 2023, com a correspondente perda de rendimentos, considerando que à data dos factos, auferia um vencimento base de €770,00 mensais.
26. O Arguido reside em casa da mãe da sua companheira.
27. O Arguido não possuiu antecedentes criminais.
28. O Arguido aufere o ordenado mínimo e tem o 12.º ano de escolaridade”.
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IV. Do Mérito do Recurso
IVa) Da adequação da pena aplicada
O crime de violência doméstica pelo qual o arguido foi condenado é sancionado com pena de prisão 2 a 5 anos de prisão – cf. artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c) n.º 2 alínea a) do Código Penal, tendo-lhe sido aplicada uma pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, com condições.
De acordo com o recorrente, a pena imposta mostra-se desajustada, devendo ser aplicada uma pena de 2 anos e 8 meses de prisão, mantendo-se a suspensão e as condições.
Analisemos.
Preceitua o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.”
Culpa e prevenção constituem o binómio com auxílio do qual há de ser construído o modelo da medida da pena.
De acordo com a lição de Figueiredo Dias, “através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária de punição do facto concretamente praticado pelo agente e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena; com a consideração da culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime - ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente - limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.”2
A culpa constitui, pois, o pressuposto-fundamento da validade da pena e tem, ainda, por função estabelecer o limite máximo da pena concreta. Forçoso é, assim, concluir que não há pena sem culpa, não podendo a medida da pena ultrapassar a da culpa, tal como dispõe o n.º 2 do artigo 40.º do Código Penal.
Estabelece, ainda, o artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal que, na determinação da medida concreta da pena, o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as que aí resultam especificadas nas alíneas a) a f).
Na decisão recorrida ficou consignado (transcrição):
“Relativamente ao crime de violência doméstica, as necessidades de prevenção geral consideram-se particularmente elevadas, atenta a frequência com que esse ilícito criminal vem sendo praticado no nosso país, entre pessoas das mais variadas idades e nos contextos socioculturais mais diversificados, o que agudiza a necessidade de reafirmação da vigência do quadro legal de proteção das vítimas deste crime, para salvaguarda e pacificação da consciência comunitária quanto à capacidade de resposta do sistema jurídico-penal ante a violação dos bens jurídicos tutelados pela incriminação.
Já quanto às finalidades de prevenção especial, as mesmas são medianas, tendo em conta a ilicitude mediana dos factos atendendo ao amplo espetro de condutas típicas, subsumíveis ao crime em questão e à complexidade dos bens jurídicos tutelados pela incriminação e ao facto do Arguido não possuir antecedentes criminais.
Por conseguinte, tendo presente o quanto se referiu acerca das exigências de prevenção geral e especial do presente caso, há ainda a considerar que, a favor do Arguido, concorrem os seguintes fatores:
- A inexistência de antecedentes criminais;
- Estar familiar, social e profissional inserido;
- A ilicitude mediana dos factos, atendendo ao amplo espetro de condutas típicas, subsumíveis ao crime em questão e à complexidade dos bens jurídicos tutelados pela incriminação;
Já contra o Arguido, divisam-se as seguintes circunstâncias:
- A intensidade do dolo, porquanto o arguido atuou com plena consciência e vontade de realização do tipo objetivo do ilícito criminal preenchido com a sua apurada conduta, tendo, por isso, atuado na modalidade mais intensa de dolo, que é o direto
Tudo ponderado, entende-se como adequada, necessária e proporcional a aplicação da pena de 2 anos de prisão pelo crime de violência doméstica”.
Concordamos com o Tribunal a quo na argumentação relativa às exigências de prevenção geral, que, evidentemente, se mostram elevadas. Este tipo de criminalidade, não raras vezes, tem nefastas consequências na vida das vítimas, basta atentarmos ao número de mortes que ocorrem todos os anos em vítimas de violência doméstica e sem esquecer os graves problemas da saúde psíquica que amiúde lhe anda associado. A sociedade reclama grande rigor punitivo para este tipo de comportamentos.
Também concordamos que as exigências de prevenção especial são medianas, como se explicou a sentença recorrida. A ausência de antecedentes criminais e a inserção familiar do arguido abonam a seu favor.
É certo que há condutas muito mais graves que podem integrar o crime de violência doméstica, como refere a decisão recorrida, mas também é verdade que os factos apurados revelam alguma gravidade. A tentativa de agredir fisicamente a ofendida, com o arremesso de objetos, a constante importunação com mensagens e chamadas telefónicas, as injúrias, o rebaixamento e a tentativa de controlar os movimentos da ofendida, com perguntas para saber onde está e com quem está, não são comportamentos de desvalorizar, têm gravidade e perturbaram fortemente a vida da ofendida. A decisão recorrida não atendeu às consequências que o comportamento do arguido teve na vida da ofendida, nomeadamente as faltas ao trabalho (onde era constantemente importunada pelo arguido), a baixa médica, o nervosismo, a ansiedade e o facto de se encontrar acolhida numa Casa Abrigo com o seu filho menor.
Ora, atendendo a este a todos estes fatores, a pena imposta ao arguido peca por defeito, sendo antes adequada uma pena superior como aquela que é pedida em recurso, ou seja, 2 anos e 8 meses de prisão. “Isto porque como expressivamente se referiu no Ac. STJ de 1.4.98, in CJ, S, II, 175, “as expectativas da comunidade saem goradas, a confiança na validade das normas jurídicas esvai-se, o elemento dissuasor não passa de uma miragem, quando a medida concreta da pena não possui o vigor adequado à protecção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, respeitando o limite da culpa. Se uma pena de medida superior à culpa é injusta, uma pena insuficiente para satisfazer os fins da prevenção constitui um desperdício” – Cf. Ac. STJ. de 23.04.2025, in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e24d53f2bd0a02db80258c91004cb8b7?OpenDocument.
Em relação à suspensão da pena, regime de prova e condições de suspensão, o Ministério Público não pediu a sua alteração, pelo que se mantêm inalteradas.
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IVb) Das sanções acessórias
Peticiona o Ministério Público no recurso em apreciação que “deve a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por douto acórdão que condene o arguido AA, pela prática de um crime de violência doméstica, agravado, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c), n.º 2, alínea a), n.ºs 4 e 5, do Código Penal, em pena não inferior a dois anos e oito meses de prisão, ainda que suspensa na sua execução, nos termos determinados na sentença condenatória e ainda nas penas acessórias de proibição de contactos com a assistente BB, por período não inferior a dois anos e oito meses, fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância e de obrigação de frequência de programa para agressores de violência doméstica”.
A proibição de contactos com a vítima e a obrigação de frequentar programas específicos de prevenção da violência doméstica estão hoje expressamente previsto para os crimes de violência doméstica como sanções acessórias, embora não sejam de aplicação obrigatória.
Com efeito, estabelece o n.º 4 do artigo 152.º do Código Penal que “nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica”.
Complementarmente, dispõe o n.º 1 do artigo 35.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que “o tribunal, com vista à aplicação das medidas e penas previstas nos artigos 52.º e 152.º do Código Penal, no artigo 281.º do Código de Processo Penal e no artigo 31.º da presente lei, deve, sempre que tal se mostre imprescindível para a proteção da vítima, determinar que o cumprimento daquelas medidas seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância”. Por seu lado, o n.º 1 do artigo 36.º do mesmo diploma legal preceitua que “a utilização dos meios técnicos de controlo à distância depende do consentimento do arguido ou do agente e, nos casos em que a sua utilização abranja a participação da vítima, depende igualmente do consentimento desta”.
No caso dos autos, tendo o arguido sido condenado pela prática de um crime de violência doméstica, optou-se por uma pena suspensa, com regime de prova que inclua, pelo menos, a obrigação de frequência de um programa para agressores de violência doméstica, tendo ainda sido aplicada a proibição de contactos com a assistente, por todo e qualquer meio de comunicação presencial ou à distância, digital ou não, tudo ao abrigo do disposto nos artigos 51.º do Código Penal e 34.º-B da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro.
Importa lembrar que a decisão recorrida transitou em julgado relativamente a esta matéria, pois o recurso apresentado não versa sobre estas questões.
E quanto às sanções acessórias escreveu-se na decisão recorrida “Sucede, contudo, que, nos termos expostos em 2.1., a pena de prisão aplicada ao Arguido foi suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova, impondo regras e proibições nos termos previstos na lei penal e no regime jurídico da violência doméstica. Se bem se observar, as regras que ali se impuseram ao Arguido esgotam o conteúdo das penas acessórias. Atentos os motivos supra expostos, e renovando a ideia de que se mostra injustificada a aplicação das penas acessórias por as mesmas se encontrarem esvaziadas em função da sujeição do Arguido a um regime de prova, julga-se desnecessária e desadequada a aplicação de qualquer pena acessória ao Arguido”.
Concordamos com a posição assumida pelo Tribunal a quo, a aplicação da proibição de contactos como condição de suspensão da pena e a frequência do programa para agressores de violência doméstica no âmbito do regime de prova esvaziam o conteúdo das sanções acessórias previstas no artigo 152.º, n.º 4 do Código Penal.
Sabemos que o regime de prova - previsto nos artigos 53.º e 54.º do Código Penal - tem sentido educativo e também corretivo, devendo ser imposto quando a execução da prisão ainda se não mostra necessária, mas a sua mera suspensão não é suficiente. Ora, a aplicação da sanção acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de violência doméstica também tem estas finalidades – educativas e corretivas – pelo que não compreendemos a utilidade da sua duplicação.
A proibição de contactos com a vítima visa a proteção desta, o que tanto é acautelado com a aplicação da medida como condição de suspensão da pena como com a sua aplicação enquanto sanção acessória, pelo que também não se vislumbra qualquer fundamento válido para a sua aplicação em ambos os regimes.
Embora as consequências para a violação das sanções acessórias e a falta de cumprimento das condições de suspensão da pena sejam diferentes – na primeira situação incorre o infrator num crime de violação de proibições, pp. no artigo 353.º do Código Penal, e na segunda pode ver a pena suspensa revogada, nos termos do artigo 56.º do Código Penal -, não descortinamos que a situação dos autos seja de uma gravidade tal que justifique a duplicação das mesmas medidas.
É certo que na condição de suspensão da pena de proibição de contactos com a vítima não foi aplicada a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância. Porém, a decisão transitou em julgado neste particular, não podendo ser alterada, e não se justificando a aplicação da sanção acessória de proibição de contactos (por já estar acautelada a proteção da vítima no regime de suspensão da pena) ficará por aplicar a fiscalização desta proibição por meios técnicos.
Assim, neste particular, terá o recurso de improceder.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência, altera-se a decisão recorrida relativamente à pena imposta, mantendo-se o demais inalterado, nos seguintes termos:
a) Condenar o arguido AA na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, pp. pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c) e n.º 2 alínea a) do Código Penal.
b) Suspender a execução da pena de prisão pelo período de 2 (dois) anos a contar do trânsito em julgado da presente decisão, sujeitando tal suspensão a regime de prova, assente em plano individual a elaborar pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, cujo cumprimento será vigiado e apoiado por esta entidade e que inclua, pelo menos, a obrigação de frequência de um programa para agressores de violência doméstica, ao abrigo do disposto nos artigos 50.º do Código Penal e 34.º-B da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro;
c) Subordinar a suspensão da execução da pena de prisão à proibição de contactos com a assistente BB, por todo e qualquer meio de comunicação presencial ou à distância, digital ou não, tudo ao abrigo do disposto nos artigos 51.º do Código Penal e 34.º-B da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro.
Notifique.

Ana Lúcia Gordinho
Alexandra Veiga
Ana Cristina Cardoso
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1. De acordo com o estatuído no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995. Cf. também Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, e Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª ed., pág. 89.
2. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português - Parte Geral – As consequências jurídicas do crime, II, Coimbra, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, §281.