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DECISÃO ADMINISTRATIVA
CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO
RECURSO
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
Sumário
I - A decisão administrativa de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações II - Na falta de qualquer norma especial no Código da Estrada, será no Regime-Geral das Contra-Ordenações e Coimas que encontraremos as regras que definem o recurso para os Tribunais da Relação, nomeadamente no art.º 73.º. III - O acto administrativo de cassação não corresponde à previsão da al. b) do n.º 1 do art.º 73.º do Regime-Geral das Contra-Ordenações e Coimas, ou seja, não é uma sanção acessória complementar à punição principal pela prática de uma contra-ordenação. IV - A decisão que, em primeira instância, conheceu da validade da decisão administrativa de cassação de carta de condução por acumulação de pontos perdidos na sequência de condenações prévias não é susceptível de recurso para o Tribunal da Relação. V - O direito de conduzir viaturas automóveis em vias públicas não é um direito inato e absoluto, razão pela qual está regulamentado e só pode ser exercido por quem se encontra habilitado para o efeito
Texto Integral
Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
Nos autos foi proferida decisão sumária no sentido de rejeitar recurso por inadmissível. Entendeu o Tribunal em tal decisão que a decisão que, em primeira instância, conheceu da validade da decisão administrativa de cassação de carta de condução por acumulação de pontos perdidos na sequência de condenações prévias não é susceptível de recurso para o Tribunal da Relação à luz do art.º 73.º do Regime-Geral das Contra-Ordenações e Coimas ex vi art.º 148.º/13 do Código da Estrada.
DA RECLAMAÇÃO
Não se conformando com a mesma, veio o Arguido dela reclamar para a conferência, apresentando as seguintes conclusões: «A. Porém, o Exmo. Senhor Juiz Desembargador julgou que o recurso não seria admissível por não se inscrever no âmbito do art. 73.º, n.º 1, do RGCO, sendo a sentença proferida na 1.ª instância irrecorrível (a não ser para os efeitos de um eventual recurso de amparo, previsto no art. 73.º, n.º 2, do RGCO, o que não está em causa). B. Ressalvado o devido respeito, que muito é, a decisão reclamada assenta numa interpretação errónea – e até inconstitucional – do art. 73.º, n.º 1, do RGCO. C. Com efeito, a decisão de cassação do título de condução do Arguido, ora Reclamante, proferida pelo Presidente da autoridade administrativa é, para os efeitos do Código da Estrada e do RGCO, uma sanção acessória ou, pelo menos, uma sanção equiparável a sanção acessória para os efeitos previstos no art. 73.º, n.º 1, do RGCO. D. À luz do princípio de um processo equitativo, seria incompreensível – e até quase absurdo, e seguramente iníquo – que a sentença proferida sobre a impugnação de uma decisão de cassação não fosse recorrível, enquanto, estando em causa uma coima de €250 ou uma sanção acessória de inibição de condução por 30 dias, já haveria recurso. E. Entendemos que a decisão de cassação do título de condução é, para os efeitos do Código da Estrada e do RGCO, uma sanção acessória, uma vez que é uma medida punitiva adicional a outras sanções. F. Porém, mesmo que se entenda que, do ponto de vista estritamente técnico, a medida de cassação não é uma sanção acessória nos termos do CE e do RGCO – quando tais diplomas legais se referem ao conceito de sanção acessória –, julgamos que é incontornável que a sanção de cassação do título de condução tem de ser, pelo menos, equiparada a uma sanção acessória para os efeitos do art. 73.º, n.º 1, al. b), do RGCO, que, nesse caso, deve ser interpretado extensivamente, de forma a abranger tais decisões. G. O entendimento normativo dado ao art. 73.º, n.º 1, al. b), do RGCO, no sentido de que a decisão de cassação do título de condução prevista no art. 148.º do Código da Estrada não deve ser considerada sanção acessória ou a ela equiparável, por força da interpretação extensiva daquele preceito legal, é inconstitucional, por violação do direito a uma tutela jurisdicional efetiva e a um processo equitativo, como consagrado no art. 20.º da CRP, bem como por violação das garantias de defesa, incluindo o recurso, tal como previstas no art. 32.º, n.os 1 e 10 da CRP. H. Na avaliação destes princípios constitucionais, deve ainda ter-se em conta o princípio da proporcionalidade previsto no art. 18.º da CROP, considerando que a decisão de cassação do título de condução constitui uma restrição ao direito fundamental de livre circulação e deslocação, consagrado no art. 44.º da CRP, razão pela qual a garantia decorrente do direito ao recurso não deve ter um regime menos favorável do que aquele que beneficiam as decisões que apliquem coimas ou sanções acessórias (no seu sentido estrito). »
Não respondeu o Ministério Público.
DA DECISÃO SUMÁRIA
Transcreve-se a fundamentação da decisão sumária: «Os autos chegaram ao Tribunal da primeira instância na sequência da decisão do Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária de 11.12.2023, no âmbito do processo de cassação n.º 373/2023, pela qual foi determinada a cassação da carta de condução do ora Recorrente. Como reproduzido no relatório supra, o Tribunal confirmou a decisão administrativa. - Da admissibilidade do recurso Antes de entrar na substância da alegação recursiva, coloca-se, antes de mais, a questão de saber se é o presente recurso admissível. Estando em apreço a matéria da cassação de carta de condução por perda de pontos na sequência de diversos procedimentos de contra-ordenação, nos quais foi garantido um duplo grau de jurisdição, navegamos agora nas águas de um procedimento administrativo especificamente concebido para este fim. Assim, nos termos do art.º 148.º do Código da Estrada, «(…) 10 - A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução. 11 - A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação. 12 - A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação. 13 - A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações.». Centremo-nos, pois, neste último número, que remete para o regime geral das contra-ordenações a impugnação judicial das decisões administrativas relativas a cassação do título de habilitação para conduzir veículos a motor. Diz-nos o art.º 59.º do Regime-Geral das Contra-Ordenações e Coimas que «A decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial». Não tem esta norma aplicação no caso concreto, pois nenhuma coima foi aplicada ao ora Recorrente. Porém, a previsão especial do número acima citado garante esse recurso que se destinará aos Tribunais de primeira instância. Na falta de qualquer norma especial desenhada no Código da Estrada, será naquele Regime-Geral das Contra-Ordenações e Coimas que encontraremos, então, as regras que definem o recurso para os Tribunais da Relação. Ora, no art.º 73.º prevê-se que: « 1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando: a) For aplicada ao arguido uma coima superior a (euro) 249,40; b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias; c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a (euro) 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público; d) A impugnação judicial for rejeitada; e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal. 2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência. 3 - Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infracções ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infracções ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso subirá com esses limites. » É manifesto que o caso que nos ocupa não preenche nenhuma das alíneas acima reproduzidas. Apenas a al. b) do número 1 poderá gerar alguma hesitação. Qual é a natureza da cassação? A medida surge como penalização mais grave resultante de um sistema assente na atribuição de pontos ao titular de carta de condução. Inicialmente este beneficia de um acervo pontual (doze - art.º 121.º-A/1 do Código da Estrada) correspondente à aptidão para o exercício da condução reconhecida com a atribuição de um título habilitante, também ele o culminar de todo um procedimento administrativo. A partir de então pode o acervo pontual elevar-se ou diminuir de acordo com as diversas situações previstas no art.º 148.º do mesmo código. «Em suma, o sistema de pontos assenta, todo ele, na articulação de fatores positivos e negativos funcionamento imediato, associando imediatamente a verificação do facto à respetiva consequência, não deixando margem para a mediação de um juízo da autoridade administrativa sobre a idoneidade da condenação para a perda de pontos, por só assim, se atingir plena e eficazmente a vocação pedagógica e contra motivadora assumida pela medida legislativa, bem como a transparência e fácil compreensão do sistema normativo. 12. O instituto da cassação atua a jusante do funcionamento do sistema de pontos que se vem de descrever, com o qual não se confunde, ainda que entre ambos interceda uma relação de instrumentalidade, pois tem como pressuposto o saldo da contabilização dos pontos, maxime, o esgotamento do capital de pontos, reduzido a zero por atuação das causas de subtração de pontos tipificadas na lei. A autonomia da figura decorre de a cassação, como modalidade de extinção do ato administrativo, se relacionar primacialmente com esse ato, o qual, embora legítimo na sua origem e formação, se torna ilegal na sua execução. Para a medida administrativa são indiferentes as circunstâncias da perda de pontos ou considerações de culpa, dependendo apenas da verificação do efeito automático que as condenações comportam no saldo de pontos, comprovando a preparação ou a impreparação do sujeito para o exercício de uma atividade relativamente proibida.» [Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 22.02.2022, Desembargador Fernado Ventura - ECLI:PT:TRL:2022:947.21.0T9CLD.L1.5.96]. No mesmo acórdão conclui-se, então que «trata-se antes, como se disse, do funcionamento de uma verdadeira condição resolutiva da validade do título de condução de veículos automóveis.» Com efeito, «Como tem vindo a ser afirmado pela jurisprudência, o direito de conduzir viaturas automóveis em vias públicas não é um direito inato e absoluto, e por isso, carece de regulamentação e só pode ser exercido por quem se encontra habilitado para o efeito.» [ ]. E mais se escreve neste Acórdão: «a cassação da carta de condução prevista no artigo 148.º do Código da Estrada não é uma pena acessória ou medida de segurança, mas antes uma consequência, legalmente prevista, da aplicação de penas (e sanções) de inibição de conduzir. O título de condução constitui a autorização administrativa para o exercício da condução, que tem como pressuposto a aptidão do condutor para esse exercício, sendo razoável e proporcional que a lei estabeleça mecanismos de verificação, ao longo do tempo, da manutenção ou não daquela aptidão, visando acautelar os interesses públicos que uma condução inapta e/ou perigosa pode afectar.» No fundo, como tem vindo a ser entendido, a introdução do sistema de pontos limitou o direito a conduzir veículos motorizados titulado pela respectiva carta de condução, tornando-o para sempre provisório por força de uma condição negativa que impões acrescidos deveres ao titular. «A cassação da carta pelo presidente da ANSR tem uma natureza administrativa e funda-se na perda de pontos resultantes da prática das infracções que lhe estão subjacentes. É uma decisão administrativa automática. Nada tem a ver com a cassação a que se refere o art.º 101.º, do Código Penal, essa sim aplicada pelo tribunal no âmbito de um processo crime e que constitui uma medida de segurança. Não é automática, requer ponderação e dever fundamentação.» [Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 16.03.2021, Desembargador Paulo Barreto - ECLI:PT:TRL:2021:3523.19.4T9AMD.L1.5.70]. Serve o exposto, que já vai longo, para concluir que o acto administrativo de cassação não corresponde à previsão da al. b) do n.º 1 do art.º 73.º do Regime-Geral das Contra-Ordenações e Coimas, ou seja, não é uma sanção acessória complementar à punição principal pela prática de uma contra-ordenação. Por isso se impõe concluir que a decisão que, em primeira instância, conheceu da validade da decisão administrativa de cassação de carta de condução por acumulação de pontos perdidos na sequência de condenações prévias não é susceptível de recurso para o Tribunal da Relação à luz do art.º 73.º do Regime-Geral das Contra-Ordenações e Coimas ex vi art.º 148.º/13 do Código da Estrada [neste sentido, Ac. Tribunal da Relação de Lisboa 10.10.2024, Desembargadora Ana Marisa Arnêdo, ECLI:PT:TRL:2024:9366.22.0T8LRS.L1.9.6C] Como nos presentes autos não foi feito apelo ao disposto no art.º 73.º/2 do Regime-Geral das Contra-Ordenações e Coimas, requerendo o Recorrente a intervenção deste Tribunal da Relação de Lisboa em sede de recurso de amparo, não cabe conhecer dessa possibilidade. »
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995].
Desta forma, aplicando tal entendimento à presente reclamação, e tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
- a decisão de cassação do título de condução proferida pelo Presidente da autoridade administrativa é, para os efeitos do Código da Estrada e do Regime-Geral das Contra-Ordenações e Coimas, uma sanção acessória ou, pelo menos, uma sanção equiparável a sanção acessória para os efeitos previstos no art.º 73.º/1?
- O entendimento seguido assenta numa interpretação inconstitucional do art.º 73.º do Regime-Geral das Contra-Ordenações e Coimas?
FUNDAMENTAÇÃO
Proferida decisão sumária que conheceu do recurso, reclamou o Arguido para a conferência.
Na decisão sumária foi determinado as seguintes as questões a decidir seriam: « - a decisão de cassação impugnada é manifestamente desproporcional, sendo por isso ilegal, por errónea aplicação do regime previsto do art.º 148.º do Código da Estrada? - bastará, para tanto, a mera comunicação para pagamento voluntário da multa? - da inconstitucionalidade do entendimento normativo de que a cassação do título de condução pode ser determinada pela mera ocorrência de infrações que, em abstrato, impliquem a perda de pontos, mesmo que o infrator não tenha sido advertido, em prazo razoável, das decisões contraordenacionais condenatórias e subsequente perda de pontos, cujo somatório determina tal efeito.»
Contudo, não conheceu o Tribunal tais questões porquanto, a título de apreciação de uma questão prévia, se decidiu que o recurso não era admissível, sendo a decisão do Tribunal de Primeira Instância irrecorrível.
Sendo a reclamação para a conferência destinada a apreciar a decisão sumária, e não a questão por ela julgada, não terá sustentação a reclamação que se limite a desprezar aquela decisão, devidamente fundamentada, por dela discordar, procurando uma reapreciação da sua argumentação, agora por três Juízes.
Logrou o Recorrente colocar em causa a fundamentação da decisão sumária, defendendo não ser a mesma admissível, impondo-se o conhecimento das questões suscitadas pelo recurso.
A única argumentação do Reclamante que questiona a fundamentação da decisão assenta na interpretação de que a decisão de cassação do título de condução proferida pelo Presidente Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária em 11.12.2023 é, para os efeitos do Código da Estrada e do Regime-Geral das Contra-Ordenações e Coimas, uma sanção acessória ou, pelo menos, uma sanção equiparável a sanção acessória para os efeitos previstos no art.º 73.º/1 do Regime-Geral das Contra-Ordenações e Coimas.
A fundamentação da decisão sumária é clara e vai em sentido diverso. A única sustentação do entendimento do ora Reclamante passaria por concluir que a cassação constitui uma medida punitiva adicional a outras sanções. Porém, atente-se naquilo que já fundamenta a decisão sumária acima transcrito.
Entendeu-se que a matéria da cassação de carta de condução por perda de pontos surge como um procedimento autónomo, ainda que assente na decisão de diversos procedimentos de contra-ordenação. Em cada um destes foi garantido um duplo grau de jurisdição. Mas, nesta última situação, já não está em causa a apreciação factual de um evento no tempo que caiba questionar, seja de facto, seja de aplicação do direito a tal facto.
Agora, o que está em causa é um procedimento administrativo especificamente concebido para aferir dos pressupostos objectivos dos quais resulta a decisão de cassação do título de condução, nos termos do art.º 148.º do Código da Estrada.
Conforme se referiu, citando decisões anteriores, o procedimento em causa não corresponde a um procedimento para aplicação de coima na sequência da prática de uma contra-ordenação, mas apenas na concretização do funcionamento de uma verdadeira condição resolutiva da validade do título de condução de veículos automóveis.
Nunca o direito de conduzir viaturas automóveis em vias públicas foi percebido como um direito inato e absoluto, razão pela qual está regulamentado e só pode ser exercido por quem se encontra habilitado para o efeito.
As cartas de condução têm validade limitada, pelo tempo, pela idade dos condutores, e pela introdução do sistema de pontos limitou o direito a conduzir veículos motorizados. Como supra citado, ficou tal título para sempre provisório por força de uma condição negativa que impões acrescidos deveres ao titular.
Pretende ainda o Reclamante que, pelo menos, o art.º 73.º, n.º 1, al. b), do Regime-Geral das Contra-Ordenações e Coimas deverá ser interpretado extensivamente, de forma a abranger tais decisões.
A figura da interpretação extensiva, prevista no art.º 11.º do Código Civil apresenta-se como um mecanismo de resolução de situações nas quais não exista regulação de acordo com as normas aplicáveis. Parte de uma norma que tenha carácter excepcional e alarga o seu âmbito de aplicação a situações que sejam equiparáveis e se mostrem desreguladas.
Não é esse o cenário que constatamos no caso que nos ocupa.
A norma cuja interpretação se pretende extensiva assenta na existência de um procedimento contra-ordenacional desencadeado após a autuação pela prática de factos passíveis de serem qualificados como contra-ordenação e, por isso, sujeitos à aplicação de sanções principais e acessórias.
Como já referido, o presente procedimento não é de condenação e sanção pela prática de uma contra-ordenação, pelo que a intervenção judicial não ocorre em sede de recurso de contra-ordenação.
Ademais, há uma norma ezspecífica para o caso concreto, como explanado na decisão reclamada, essa sim criadora de um regime específico, excepcional e que não pode ser derrogado pela pretensão de tratar a situação em causa como outras de natureza distinta.
Assim, concluímos igualmente que o acto administrativo de cassação não corresponde à previsão da al. b) do n.º 1 do art.º 73.º do Regime-Geral das Contra-Ordenações e Coimas, ou seja, não é uma sanção acessória complementar à punição principal pela prática de uma contra-ordenação, não sendo admissível recurso para o Tribunal da Relação da decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância.
Defende ainda o Reclamante que o entendimento seguido assenta numa interpretação inconstitucional do art.º 73.º do Regime-Geral das Contra-Ordenações e Coimas.
Quanto à invocação de que, tal como interpretada a norma, se incorrerá numa violação do direito a uma tutela jurisdicional efetiva e a um processo equitativo, como consagrado no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa, e à violação das garantias de defesa, incluindo o recurso, tal como previstas no art.º 32.º/1 e 10 da lei fundamental, sempre se dirá que tal entendimento assenta no errado pressuposto de que estamos perante um procedimento de natureza penal (ou equiparado, contraordenacional) o que, como vimos, não é o caso.
Chegados a este momento da aplicação do direito e ao conhecimento das causas, objectivas, da cassação da carta de condução por perda de pontos, para trás ficaram os procedimentos contraordenacionais que determinam tal perda de pontos. E nesses, em cada um deles, seguindo as normas do recurso de contra-ordenação, houve recurso jurisdicional de duplo grau.
Neste momento, no qual nem se discutem factos, o recurso garantido é apenas para o Tribunal da Primeira Instância e tal não viola os princípios constitucionais como pretende o Reclamante, partindo de uma errada interpretação quanto à natureza do procedimento.
Finalmente, não se vislumbra como poderá ser afectado o princípio da proporcionalidade uma vez que, como acima foi tratado, não está em causa um direito fundamental, nomeadamente o de livre circulação e deslocação, consagrado no art. 44.º da Constituição da República Portuguesa, já que o exercício da condução não é pleno, está condicionado, regulado e sujeito a cláusulas de validade. Por isso, não é válido o entendimento de que, de acordo com o princípio da proporcionalidade, deverá ser garantido um duplo grau de recurso às decisões administrativas de cassação do título de condução, quando comparadas com o regime do qual beneficiam as decisões que apliquem coimas ou sanções acessórias.
DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar a presente reclamação para a conferência improcedente mantendo-se inalterada a decisão sumária reclamada.
Custas pelo Recorrente, fixando-se em 5 UC a respectiva taxa de justiça.
Lisboa, 01.Julho.2025
Rui Coelho
Ester Pacheco dos Santos
Paulo Barreto