OBJECTO DO PROCESSO
ACUSAÇÃO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
AMNISTIA
LEGITIMIDADE
ASSISTENTE
Sumário

I - O objecto do processo foi definido pelos termos da acusação, peça que incide sobre o facto humano do qual que depende a aplicação ao Arguido de uma pena ou de uma medida de segurança criminais.
II - Sendo o julgamento a fase do processo na qual se conhece da acusação ou pronúncia, bem como dos argumentos da defesa, não adianta, nomeadamente para aferir da aplicabilidade da amnistia, questionar a qualificação jurídica desses factos tal como exibida pelo acusador.
III - Se nenhum dos crimes imputados ao Arguido pela Assistente tem natureza particular, não tem a mesma legitimidade para acusar desacompanhada do Ministério Público.

Texto Integral

Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

No Juízo Local Criminal do Seixal – J2 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa foi proferido despacho, com o seguinte teor:
« a) Da aplicabilidade da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08:
Nos presentes autos, foi deduzida acusação contra o arguido AA, nascido a ........1997, entre outros, pela prática no dia ........2021, em autoria material e em concurso efectivo, de dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, p. e p., pelo artigo 148.º, n.º 1 e artigo 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal.
Acontece que, em 01.09.2023, entrou em vigor a Lei n.º 38.º-A/2023, de 02.08, a qual veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, abrangendo as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º da referida Lei.
Prevê, designadamente, o artigo 4.º da referida Lei que são amnistiadas as infracções penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.
Ora, o crime de ofensa à integridade física por negligência, pelo qual o arguido vem acusado nos autos é punível, em abstracto, com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias (artigo 148.º, n.º 1 do Código Penal).
Assim, tendo presente a idade do condenado à data dos factos [24 anos], o tipo de crime que não está abrangido pelas excepções previstas no artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, bem como a moldura abstracta do referido crime, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1 e 4.º da referida Lei, e bem assim nos artigos 127.º, n.º 1 e 128.º, n.º 2 do Código Penal, declaro extinto, por amnistia, o procedimento criminal instaurado contra o arguido AA, pela prática, em autoria material e em concurso efectivo, de dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, p. e p., pelo artigo 148.º, n.º 1 e artigo 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal.
Notifique.
b) Da legitimidade da assistente para deduzir acusação:
A fls. 432-438 dos autos, veio a assistente BB deduzir acusação contra o arguido, imputando-lhe a prática dos seguintes crimes:
- um crime de exposição ou abandono, p. e p. pelo artigo 138.º do Código Penal;
- um crime de homicídio na forma tentada e sob a forma de dolo eventual, p. e p. pelo artigo 131.º e 22 do Código Penal;
E, caso assim não se entenda, o que por mera hipótese se admite sem conceder,
- dois crimes de exposição ou abandono, p. e p. pelo artigo 138.º do Código Penal; e
- um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelo artigo 144.º do Código Penal.
Ora, os crimes acima enumerados, os quais são imputados na acusação particular pela assistente ao arguido, revestem todos eles natureza pública.
Têm, ademais, por base factualidade que extravasa o objecto da acusação pública deduzida pelo Ministério Público, consubstanciando uma alteração substancial de factos, o que não é permitido nos termos do artigo 284.º, n.º 1, parte final, a contrario, do Código Penal.
Assim, em face da natureza pública destes crimes, a assistente não possui legitimidade para, por si e desacompanhado do Ministério Público, deduzir acusação particular quanto a tais crimes, motivo pelo qual deve a acusação particular ser rejeitada, nesta parte, por falta de legitimidade processual.
Em face do exposto, e ao abrigo do artigo 311.º, n.º 1 e 2, als. a) e b), do Código de Processo Penal, rejeita-se a acusação particular deduzida pelo assistente, por falta de legitimidade para o exercício da acção penal, nos termos do disposto nos artigos 48.º, 49.º e 285.º, n.º 1, a contrario, todos do Código de Processo Penal.»
- do recurso -
Inconformada, recorreu a Assistente formulando as seguintes conclusões:
« A. Vem o presente recurso porque no caso em apreço não se pode ignorar a prova já produzida nos autos e há uma pessoa que esta a confiar na ação da justiça e a justiça está a falhar. O despacho recorrido é uma falta de humanidade extrema ao ignorar que a Assistente sofreu agressões de uma gravidade extrema, as quais não podem, de maneira nenhuma, ter o tratamento que se dá a quem leva uma bofetada na cara.
B. Apesar da gravidade extrema das agressões, o Tribunal a quo decidiu declarar extinto, por amnistia, o procedimento criminal instaurado contra o arguido, pela prática, em autoria material e em concurso efetivo, de dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, p. e p., pelo artigo 148.º, n.º 1 e artigo 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, e, por outro lado, rejeitar a alegada “acusação particular” deduzida pela assistente, por falta de legitimidade para o exercício da ação penal, nos termos do disposto nos artigos 48.º, 49.º e 285.º, n.º 1, a contrário, todos do Código de Processo Penal.
C. As infrações penais praticadas não são subsumíveis nos termos do artigo 4.º da referida Lei.
D. A conduta do arguido descrita na acusação pública nunca poderia ser enquadrada nos termos do n.º 1 do artigo 148.º do cód. pen..
E. O legislador criou o tipo agravado previsto no n.º 3 do artigo 148.º do cód. pen. porque entendeu que ofensas à integridade física com consequências maiores, merecem um tratamento judicial diferente do que pode resultar para simples ofensa à integridade física negligente.
F. As condutas do arguido cabem no n.º 3 do artigo 148.º conjugado com o artigo 144.º do cód. pen., pois a conduta ilícita do arguido desfigurou grave e permanentemente a assistente, uma vez que, provocou alterações ósseas, vasculares, musculares, nervosas e dos tecidos moles, irreversíveis nos membros inferiores, com lesões permanentes mais significativas ao nível do membro inferior direito, dor crónica na face interna do joelho com limitação dos movimentos, assim como da articulação tíbio társica e do pé direito e ainda hipostesia da face interna da coxa e da face lateral da perna.
G. Da própria acusação deduzida pelo Ministério Público resulta que: “Como consequência direta e necessária do embate, a assistente BB sofreu escoriações múltiplas, ferida na perna direita, fratura bimaleolar esquerda, fratura da diáfise da tíbia e perónio da perna direitas.” (cfr. acusação pública).
H. A conduta do arguido provocou perigo para a vida da assistente porque após o atropelamento, o
arguido colocou-se em fuga e devido às consequências que a sua conduta teve na saúde da assistente, sendo que a mesma teve um período de 545 dias de doença.
I. Durante o período de internamento, a assistente foi submetida a múltiplas intervenções médicas invasivas, nomeadamente, a três cirurgias, uma cirurgia ortopédica major e duas cirurgias realizadas pela cirurgia plástica com risco moderado de infeção, hemorragia, trombose e rejeição do material cirúrgico e por indicação médica, foi ainda necessária a imobilização dos membros inferiores no decorrer do internamento do qual decorreu acentuada atrofia e fraqueza muscular.
J. A assistente teve acompanhamento médico, tendo tido seguimento em 3 especialidades médicas, designadamente, Ortopedia, Cirurgia Plástica e Fisiatria, tendo, ainda, necessitado de acompanhamento intensivo pela Fisioterapia e realizado sessões três vezes por semana entre ... de 2021 e ... de 2022.
K. A conduta do arguido desfigurou grave e permanentemente a Assistente e provocou-lhe perigo para a vida, pelo que dúvidas não restam que, se em causa está um crime de ofensa à integridade física por negligência, o que por mera hipótese se admite, sem conceder, o mesmo só pode ser enquadrável nos termos conjugados do n.º 1 e n.º 3, ambos do artigo 148.º e al. a) e d) do artigo 144.º, todos do cód. pen..
L. O crime pelo qual o arguido vem acusado é punível, em abstrato, com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, encontrando-se, assim, afastada a possibilidade de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 agosto, ao caso dos autos.
M. Ainda que o Ministério Público pudesse ter entendido que o Arguido não agiu com dolo, para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 14.º do cód. pen. porque não atuou com a intenção de realizar o crime sempre se enquadraria as condutas do arguido no n.º 3 da mesma disposição, encontrando-se preenchido o dolo como eventual.
N. Considerando que resulta da acusação pública que o arguido imprimiu maior velocidade ao veículo, perdeu o controlo da viatura e foi embater na assistente BB e mais tarde fez marcha atrás atingindo novamente a assistente que se encontrava caída no solo, o que bem descreve uma intenção de realizar um crime, entendendo-se como tal a prática de uma ação típica, ilícita, culposa e punível, é suficiente para concluir que o arguido agiu com dolo direto e se assim não se entendesse, no mínimo, sempre se diria que o agente representou a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência possível da conduta, tendo se conformado com aquela realização e, por isso, agiu com dolo eventual.
O. Não se pode ignorar que, sabendo que havia atropelado a Assistente e que em consequência de tal a mesma ficou imobilizada no chão, o arguido fez marcha atrás, e atingiu, uma vez mais, a assistente, o que significa que se conformou com a possibilidade de voltar a atropelar a Assistente.
P. Não se sabe se a intenção do arguido era efetivamente consumar o homicídio, mas a verdade é que o mesmo colocou-se em fuga, bem ciente das consequências do embate, o que afasta qualquer imputação de toda a atuação do arguido a título de negligência.
Q. Em qualquer dos casos, nunca estaríamos perante um crime que, em abstrato, a pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa, para efeitos do disposto no artigo 4.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, pelo que errou o Tribunal a quo ao ter amnistiado o arguido, o que não se concede, nem se aceita.
R. Depois, o Tribunal a quo errou na decisão que tomou quanto à acusação deduzida pela assistente, desde logo quando decidiu, no ponto b) do despacho recorrido, enquadrar a peça processual da Assistente enquanto acusação particular deduzida ao abrigo do disposto no artigo 285.º do cód. proc. pen..
S. Tal enquadramento da acusação deduzida pela Assistente é errado e só assim se explica a semelhante errada conclusão de que a Assistente não tem legitimidade para deduzir acusação ao abrigo das normas legais invocadas pelo Tribunal a quo, a saber, artigos 48.º, 49.º e 285.º, n.º 1, à contrário, todos do Código de Processo Penal (cfr. fls. 3 do despacho recorrido).
T. A Assistente deduziu Acusação pelo Assistente, a qual se encontra legitimada ao abrigo do disposto no artigo 284.º do cód. proc. pen., pois deduziu acusação pelos mesmos factos acusados pelo Ministério Público, contudo, discordou da qualificação jurídica que lhes foi dada na acusação pública.
U. Para resolver o problema do diferente entendimento quanto à qualificação jurídica dos factos, tem, assim, a Assistente o mecanismo apropriado, que é a dedução de acusação subordinada, nos termos do art. 284.º do cód. proc. pen., o que efetivamente foi o que sucedeu no caso em apreço.
V. Nem se venha dizer que a Assistente deveria ter requerido a abertura de instrução, pois, a abertura da instrução é requerida relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
W. Os factos pelos quais a Assistente deduziu a acusação são os mesmos dos factos acusados pelo Ministério Público, pelo que não havia qualquer sentido em requerer a intervenção hierárquica ou requerimento de abertura de instrução porque não há que dar mais trabalho aos operadores judiciários quando a factualidade é toda aquela que consta do processo e vai ser objeto de julgamento.
X. Como resulta da comparação dos factos da Acusação Pública e dos factos da Acusação Subordinada, os factos são integralmente os mesmos.
Y. O Tribunal a quo fundou a sua decisão no facto dos crimes pelos quais a Assistente deduziu acusação revestirem todos eles natureza pública, contudo, o artigo 284.º do cód. proc. pen. estabelece que o Assistente pode deduzir acusação pelos factos acusados pelo Ministério Público, não fazendo qualquer limitação quanto à natureza dos crimes, mas apenas quanto aos factos.
Z. O Tribunal a quo errou ao entender que a mera alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação implica extravasamento do objeto da acusação pública, violando, assim, normas legais imperativas e retirando à Assistente a possibilidade de fazer valer os seus direitos, contrariamente ao direito que a Lei expressamente lhe confere nos termos do artigo 284.º do cód. proc. pen..
AA. A Assistente não podia acompanhar a qualificação jurídica que foi dada pelo Ministério Público aos factos descritos na acusação quando este decide imputar ao arguido o crime de ofensa à integridade física, ainda para mais, imputados a título de negligência, o que é atentatório às mais elementares normas penais vigentes.
BB. Atendendo aos factos descritos na acusação pública, a Assistente entendeu que o arguido incorreu na prática, como autor material, de um crime de exposição ou abandono, p. e p. pelo artigo 138.º do Código Penal e, ainda, conformando-se com a possibilidade de da sua conduta advir o resultado morte, incorreu igualmente no crime de homicídio na forma tentada e sob a forma de dolo eventual, nos termos conjugados no artigo 131.º e artigo 22º do Cód. Pen.. Se assim não se entendesse, o que por mera hipótese se admitiu, sem conceder, a Assistente imputou ao arguido a prática um crime de exposição ou abandono, p. e p. pelo artigo 138.º do cód. pen. e um crime de ofensa à integridade física grave p. e p. pelo artigo 144.º do cód. pen..
CC. Existe total coincidência entre a matéria de facto constante da acusação pública e da acusação da assistente, apenas havendo discordância da qualificação jurídica desses factos.
DD. A diferente qualificação jurídica dos factos descritos na acusação confere à assistente legitimidade para deduzir acusação nos termos do disposto no artigo 284.º do cód. proc. pen., pelo que errou o Tribunal a quo ao rejeitar a acusação da assistente.
EE. Errou ainda o Tribunal a quo ao entender que: “a assistente não possui legitimidade para, por si e desacompanhado do Ministério Público, deduzir acusação particular quanto a tais crimes, motivo pela qual deve a acusação particular ser rejeitada, nesta parte, por falta de legitimidade processual” porque nenhuma acusação particular foi deduzida – na aceção do artigo 285.º do cód. proc. pen. – e porque se o Ministério Público deduzir acusação, o assistente tem igualmente tal faculdade, no prazo e nos termos do artigo 284º do cód. proc. pen..
FF. A assistente não estava, assim, por si e desacompanhada do Ministério Público, conforme foi erradamente afirmado pelo Tribunal a quo, pois o mesmo, enquanto titular do poder/dever de promoção processual, deduziu a respetiva acusação.
GG. Errou o Tribunal a quo ao ter rejeitado a acusação deduzida pela assistente, a qual foi deduzida no prazo e nos termos do disposto do artigo 284.º do cód. proc. pen..
Termos em que, com o douto suprimento de Vossas Excelências a quanto alegado, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido in totum e ordenando-se o prosseguimento do processo por todos os crimes constantes da acusação, admitindo-se integralmente a acusação subordinada da assistente.»
- da resposta -
Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo nos seguintes termos:
«1ª – A Recorrente entendeu que o Tribunal a quo, ao amnistiar os dois crimes de ofensa à integridade física por negligência (p.p. pelo art. 148º, nº1 e art. 69º, nº1, al. a) do C.P.), incorreu num erro grave, atendendo a que as infrações penais por ele praticadas não são subsumíveis, nos termos do art. 4º da referida lei.
2ª - Considerou a Recorrente que a infração penal que deveria ter sido imputada ao arguido deveria ser ofensa à integridade física por negligência, mas enquadrável nos termos do art. 148º, nºs 1 e 3 e al. a) e e) do art. 144º do C.P., que, ao estipular uma moldura abstrata de pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, afastaria a aplicação da amnistia regulada na Lei nº38-A/2023 de agosto.
3ª – Devido a tal discordância, a Recorrente/Assistente deduziu acusação, acusação essa que caracterizou como sendo subordinada à acusação pública, nos termos do disposto no art. 284º do C.P.P., atendendo a que, no seu entendimento, os factos pelos quais acusou o arguido são, exatamente, os mesmos factos ínsitos no despacho de acusação e que a única coisa que difere é o enquadramento jurídico.
4ª - Contudo, ao contrário do invocado pela recorrente, a acusação apresentada pela Assistente não contem os mesmos factos imputados na acusação pública, uma vez que todos os factos a que respeitam o elemento subjetivo da referida peça processual são completamente diferentes dos elementos subjetivos que se encontram ínsitos na acusação pública, até porquanto consubstanciam a prática de um crime cuja moldura penal abstrata é mais gravosa do que o crime imputado na acusação pública.
5ª - A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, só tem essa dimensão quando abarque a totalidade dos seus elementos constitutivos. A valoração especifica, consonante com um tipo de ilícito, só se alcança com a imputação do facto ao agente, fazendo apelo à representação do facto típico, na totalidade das suas circunstâncias, à sua liberdade de decisão, como pressuposto de toda a culpa, e, envolvendo a consciência ética ou dos valores, à posição que tomou, do ponto de vista da sua determinação pelo facto.
6ª- Olvidou a recorrente que o elemento subjetivo de uma acusação integra, igualmente, matéria de facto, pelo que, assim, a mesma acusou por factos diferentes dos que se encontram plasmados na acusação pública, não se encontrando, desta feita, legitimada para deduzir acusação, tal como foi bem mencionado pela Mmª Juiz a quo.
7ª - Com efeito, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça estabelece que o apuramento da intenção do agente, a fixação dos elementos subjetivos do dolo nos crimes em que este é elemento essencial, constituem matérias de facto.
8ª- Se a Assistente não concordasse com toda a factualidade ínsita na acusação pública, na qual se incluem os factos referentes ao elemento subjetivo e o respetivo enquadramento jurídico (cuja moldura penal abstrata é mais gravosa do que a da acusação pública), sempre poderia ter requerido a abertura de instrução, o que não sucedeu.
9ª – Pelo exposto, a Mmª Juiz a quo não violou qualquer norma jurídica ao não considerar que a Assistente tivesse legitimidade para apresentar acusação particular no âmbito do art. 285º do C.P.P., sendo que não se verificam os pressupostos de aplicação de acusação subordinada nos termos do disposto no art. 284º do mesmo diploma legal.
10º - Assim sendo, foi com a dedução de acusação pública que foi fixado o objeto factual e o enquadramento jurídico a apreciar em sede de audiência de julgamento.
11º - Pelo que a aplicação da Lei nº38-A/2023 de agosto ao caso em concreto, efetuada pela Mmª Juiz a quo, que amnistiou os dois crimes de ofensa à integridade física por negligência (p.p. pelo art. 148º, nº1 e art. 69º, nº1, al. a) do C.P.) imputados na acusação pública, encontra-se correta, porquanto de acordo com os requisitos legais.»
Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, em separado e com efeito suspensivo.
Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido de que «afigurando-se que deve o recurso improceder no que tange a decretada rejeição da acusação formulada pela Assistente, coloca-se à douta consideração deste Tribunal Superior a questão que vem de suscitar-se, estrito plano em que se entende que caberia receber a integralidade da acusação pública, prosseguindo o processo para julgamento do objecto factual ali definido.»
Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer.
Já neste Tribunal da Relação de Lisboa foi notado que o Arguido, interessado no recurso, não tinha sido notificado para responder ao mesmo.
Ordenada a reparação da falta de notificação veio o Arguido aderir à resposta do Ministério Público.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995].
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
- foi incorrectamente aplicada a amnistia, devendo tal decisão ser revogada e o julgamento prosseguir pelos crimes imputados?
- deverá ser recebida a acusação particular, tal como se encontra formulada?
FUNDAMENTAÇÃO
- da aplicação da amnistia
A amnistia aplicada, aprovada pela Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, destinou-se a ser aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tivessem entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto.
A amnistia só abrangeu as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa, salvaguardando no art.º 7.º da referida lei um leque, extenso, de excepções.
Nos presentes autos, não obstante as considerações da Assistente, o objecto do processo foi definido pelos termos da acusação, peça que incide sobre o facto humano do qual que depende a aplicação ao Arguido de uma pena ou de uma medida de segurança criminais. Ou seja, partindo da definição dada pelo art.º 1.º/1, al. a) do Código de Processo Penal, e sendo o julgamento a fase do processo na qual se conhece da acusação ou pronúncia, bem como dos argumentos da defesa, não adianta, aquando do seu recebimento, questionar a qualificação jurídica desses factos tal como exibida pelo acusador.
Discordando a Assistente da acusação deduzida, deveria ter lançado mão das soluções processuais que lhe permitiriam apresentar a julgamento um diferente objecto do processo. Não o tendo feito, queda-se o Tribunal, em sede de recebimento, pela análise daquilo que da acusação resulta.
Ora, no caso que nos ocupa, a acusação pública termina com a seguinte imputação, relativamente aos factos descritos:
« Pelo exposto, constituiu-se o arguido AA, como autor material, em concurso real e efetivo, de:
- Dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, p. e p., pelo artº148 nº1 e artº69 nº1 a), ambos do Código Penal;
- Dois crimes de omissão de auxílio, p. e p., pelo artº200 nº1 e 2 do Código Penal;
- Um crime de condução sem habilitação legal, p. e p., pelos artº121 nº1 e 122 nº1 do Código da Estrada e artº3 nº2 (nº1) do DL nº2/98 de 3/1. »
Nessa medida, em nada se mostra incorrecta a decisão do Tribunal a quo, ao aplicar a citada amnistia ao caso dos autos e ao objecto do processo, razão pela qual naufraga a pretensão recursiva.
- do recebimento da acusação particular
Diferente questão é a colocada com a acusação particular.
Segundo o art.º 285.º do Código de Processo Penal o Assistente deduzirá acusação particular «quando o procedimento depender de acusação particular». Tal norma é a consequência do princípio ínsito ao art.º 50.º do Código de Processo Penal que determina a legitimidade para acusar nos casos de procedimento dependente desse acto.
Assim, será à medida de cada crime que se verificará da legitimidade processual.
Se o preceito incriminador nada disser, será o crime público, pois essa é a regra decorrente do art.º 48.º do Código Penal que define o Ministério Público como sendo o legítimo promotor do processo penal.
Nos casos em que faça depender o procedimento criminal de queixa, assumirá este natureza semi-pública.
Nos demais, a própria lei indicará que o procedimento criminal ficará dependente de acusação particular. Veja-se, a título de exemplo, o art.º 188.º do Código Penal.
Concluiu a Assistente a sua acusação particular da seguinte forma: «a assistente acusa o arguido da prática dos crimes de exposição ou abandono, p. e p. pelo artigo 138.º do Código Penal e de homicídio na forma tentada e sob a forma de dolo eventual, nos termos conjugados no artigo 131.º e artigo 222.º do Código Penal e, caso assim não entenda, o que por mera hipótese se admite sem conceder, acusa o arguido da prática dos crimes de exposição ou abandono, p. e p. pelo artigo 138.º do Código Penal e de ofensa à integridade física grave p. e p. pelo artigo 144.º do Código Penal».
Para além do mais, atendendo à descrição da acção apresentada nesta acusação particular, registam-se outros factos, diferentes dos imputados na acusação pública, nomeadamente no que toca ao elemento subjetivo do Arguido na acção.
Mas, para além disso, nenhum dos crimes imputados ao Arguido pela Assistente tem natureza particular.
Assim, também quanto a esta questão nenhuma censura merece o despacho recorrido que correctamente apreciou a falta de legitimidade da Assistente para acusar.

DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar o recurso improcedente mantendo inalterado o despacho recorrido.
Custas pela Recorrente, fixando-se em 4 UC a respectiva taxa de justiça.

Lisboa, 01.Julho.2025
Rui Coelho
Ester Pacheco dos Santos
Paulo Barreto