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COMBATE À VIOLÊNCIA NOS ESPECTÁCULOS DESPORTIVOS
UTILIZAÇÃO DE ARTIGO DE PIROTECNIA
ADMOESTAÇÃO
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA COIMA
INTERDIÇÃO DE ACESSO A RECINTOS DESPORTIVOS
Sumário
I. Num espectáculo desportivo, detendo o arguido um artigo pirotécnico a produzir efeito fumígeno e luminoso, a falta de prova de que tenha sido ele a deflagrá-lo, não sendo elemento objectivo da contra-ordenação do art. 39.º, n.º 1, g), da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho, não diminui a sua culpa. II. Tendo tal detenção ocorrido por duas vezes no mesmo evento, a gravidade da sua conduta é maior. III. Face à previsão do art. 40.º da mesma Lei, sendo esta contra-ordenação do terceiro patamar de gravidade aí prevista, e uma das sete que podem determinar a aplicação de sanção acessória, também não é possível concluir pela reduzida gravidade da actuação do arguido, pelo que não é caso de aplicação de admoestação nem de atenuação especial da coima. IV. A sanção acessória de interdição de acesso a recintos desportivos não pode ser restringida no seu âmbito, por exemplo apenas a jogos de futebol. V. A aplicação desta sanção não é inconstitucional por violação do direito ao trabalho, uma vez que se traduz numa restrição de direitos do arguido absolutamente proporcional à violação do direito à segurança de todos (também ele de ordem constitucional – art. 27.º, n.º 1), no âmbito dos espectáculos desportivos. VI. O grau de violação dos deveres impostos ao recorrente, como treinador, inclusive de crianças e jovens entre os 7 e os 17 anos, e director de uma secção de um clube desportivo, é particularmente intenso, uma vez que lhe cabia dar bons exemplos, e não fazer exactamente o contrário, justificando-se inteiramente a aplicação daquela sanção acessória pelo período de 18 meses.
Texto Integral
Neste processo n.º 4292/24.1T9BRG.G1, acordam em conferência os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I - RELATÓRIO
Em processo contra-ordenacional movido pela Autoridade para a Prevenção e Combate à Violência no Desporto a AA, residente na Rua ..., Braga, foi decidido condenar o arguido, pela prática de uma contra-ordenação prevista e punida pelos arts. 39.º, n.º 1, g), e 40.º, n.º 3, da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho, na coima de € 1.000,00 e na sanção acessória de interdição de acesso a recintos desportivos pelo período de 18 meses.
No recurso de contra-ordenação n.º 4292/24.1T9BRG, a correr termos no Juízo Local Criminal (J2) de Braga, nessa Comarca, interposto pelo arguido, foi proferida sentença que confirmou integralmente a decisão recorrida.
Inconformado com essa decisão judicial, da mesma recorreu o arguido, apresentando as seguintes conclusões[1]:
«1. A sentença é reflexamente nula, por violação do art. 379º nº 1 ali. a) do CPP, ao não ter considerado nula a decisão proferida pela entidade administrativa por falta de fundamentação, quando esta não cuidou de aferir a atual situação económica, conduta anterior e posterior do agente e as exigências de prevenção. 2. Reza o disposto no art. 18º do RGCO que a determinação da coima faz-se em função da gravidade da contraordenação, da culpa do agente, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contraordenação. 3. Pela análise feita ao libelo decisório constata-se que ela é omissa quanto a esses postulados, motivo pelo qual a decisão é nula por violação do dever de fundamentação, nos termos dos art. 18º e 58º do RGCO e art. 379º nº 1 ali. a) do CP, este aplicável por força do definido no art. 41º daquele RGCO. 4. Ainda que assim não se entenda, o que por mera hipótese académica se admite, sempre merecia o arguido ser apenas objeto de uma admoestação – art. 51º do RGCO –. 5. Isto porque, mau grado o Tribunal a quo ter dado como provado que o arguido não tem qualquer antecedente contraordenacional, e como não provado que foi o Arguido a deflagrar os ditos engenhos, e ainda de não resultar da prova produzida que a sua atuação tenha por qualquer forma causado algum perigo para os presentes no local foi este condenado pela forma que agora se recorre. 6. Estes pormenores podem, in casu, ser uns por maiores, porque retiram gravidade à contraordenação e à própria culpa do agente, tornam possível e razoável o proferimento da admoestação, nos termos do art. 51º do RGCO. 7. Caso, assim não se entenda, estamos em crer que o arguido deveria ver a coima especialmente atenuada, porque o art. 72º do CP está precisamente pensado para casos como este, em que, o arguido confessou o ilícito (ainda que o contextualizando tal como decorre do próprio auto de noticia, e que em última instância retira gravidade ao ilícito). 8. Analisando os princípios constitucionais da Proporcionalidade previsto no artigo 18 nº2 da Constituição da República Portuguesa e o do Direito ao Trabalho vertido no artigo 58.º nº2 do mesmo diploma em conjunto resulta, para o que agora interessa, 9. que a restrição de direitos e liberdades e garantias do Arguido – no caso em concreto a sanção acessória aplicada – deve limitar-se ao essencial não colocando em causa outros direitos constitucionalmente protegidos nomeadamente o do seu direito ao trabalho. 10. Pelo que mesmo tendo em conta os perigos para a segurança das outras pessoas que a sanção acessória aplicada visa prevenir deve-se concluir que esta tendo em conta as consequências que trará na esfera do Arguido é desproporcional, desadequada e desnecessária. Concretizando, 11. tal como resulta dos factos provados nºs 11 e 12 o Arguido é treinador e diretor da secção de Kikcboxing, box e Muay Thai do ... sendo esta atividade o único meio de subsistência 12. No âmbito deste processo foi aplicada ao Arguido a sanção acessória de 18 meses de interdição de acesso a todos os recintos desportivos. 13. Quer isto por dizer que esta sanção impede o Arguido de exercer a sua atividade de forma plena colocando em risco o seu vinculo laboral uma vez que no âmbito do seu contrato uma das funções essenciais é o de acompanhar todos os seus atletas nas competições que integram tendo por esse motivo que se deslocar aos repetitivos recintos desportivos. 14. Pelo que tendo anda os factos dados como não provados de que foi o Arguido a deflagrar os engenhos, bem como dos fatos provados que este não tem qualquer antecedente contraordenacional, 15. e de que da sua actuação não resultou qualquer perigo efetivo para os presentes é forçoso concluir que a sanção acessória aplicada in casu é manifestamente excessiva quer pelo hiato temporal quer pela sua amplitude devendo a mesma ser revogada. 16. Contudo, e sem prescindir, mesmo que se entenda aplicar uma media acessória ao Recorrente por tudo o supra exposto deve obrigatoriamente ser apenas aplicada a recintos desportivos de futebol, pelo mínimo legal e nunca por injusta, ilegal, e desproporcional pelo período de 18 meses.»
Pugna o recorrente pela revogação da sentença.
O recurso foi admitido.
O Ministério Público na 1.ª instância apresentou resposta, na qual defende a improcedência do recurso; para tanto, alega que, apesar de notificado para tal antes da prolação da decisão administrativa, não juntou elementos que permitissem aferir a sua situação económica, sendo que a ausência destes não foi valorada contra ele, a coima aplicada é já a mínima legal (não podendo ser reduzida nem substituída por admoestação, por não estarem preenchidos os requisitos desta) e que a sanção acessória é adequada.
Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto remeteu para esta resposta, emitindo parecer no sentido do não provimento do recurso.
Cumprido o contraditório, não foi dada resposta ao parecer.
Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A. Delimitação do objecto do recurso
Nos termos do art. 412.º do Código de Processo Penal[2], e face às conclusões do recurso, são quatro as questões a resolver:
- se a sentença sofre de nulidade;
- se a coima deve ser substituída por uma admoestação;
- em caso negativo, se a coima deve ser especialmente atenuada;
- se a sanção acessória deve ser revogada ou reduzida no tempo e no espaço de aplicação.
1. Questão prévia
«Da nulidade da decisão administrativa por não ter logrado apurar a situação económica do arguido Quanto à situação em análise, fazendo apelo ao acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 11.01.2016 e disponível no sítio da internet www.dgsi.pt, também nós entendemos que “no âmbito do processo contra-ordenacional a jurisprudência tem sido unânime em considerar que a decisão administrativa, embora apresente alguma homologia com a sentença condenatória penal, tem uma estrutura semelhante a esta última, se bem que mais concisa, possui um nível de exigência e de compreensão inferior, devido à sua menor incidência na liberdade das pessoas. Por isso que, no caso dos autos, a omissão de elementos concretos e pormenorizados referentes à real situação económica do arguido e ao benefício retirado da prática da infracção, não afecta as garantias de defesa nem dificulta o exercício do direito de impugnação judicial. É que, sem qualquer inversão do ónus ou violação do direito ao contraditório, a arguida pode apresentar os elementos de facto e de direito susceptíveis de permitirem ao tribunal a apreciação quer da situação económica, quer do benefício retirado da prática da infracção, por forma a alcançar a aplicação de uma medida e a fixação de uma coima justa e equitativa”. In casu, decorre de forma expressa, por um lado, que o recorrente foi notificado, antes da prolação da decisão administrativa, para proceder à junção de elementos que permitissem aferir da sua situação económica, convite a que não acedeu e, por outro, que o facto de não ter sido apurada a sua concreta situação económica em nada o prejudicou, porque não foi valorada em seu desfavor. Em consequência do exposto, não se verifica a nulidade arguida pelo recorrente quanto à decisão administrativa.»
2. Factos provados
«1. No dia ../../2024, na Praça ..., foi criada uma Fanzone, zona especial para acolher adeptos de futebol e transmitir o primeiro jogo da selecção nacional de Portugal contra a ..., na fase de grupos do Euro2024, que decorria na .... 2. A PSP efectuou o policiamento desta concentração de adeptos. 3. Aquando do 1.º golo da Selecção de Portugal, ao minuto ..., no momento do festejo dos adeptos, o recorrente AA, quando se encontrava posicionado em cima do balcão de uma tenda de bebidas, segurava, na mão direita, um artigo pirotécnico que, na altura, produzia um efeito fumígeno e luminoso de cor vermelha. 4. Sensivelmente ao minuto ..., aquando da celebração de um golo marcado pela Selecção Portuguesa e que viria a ser anulado, o recorrente AA utilizou e segurou na mão direita mais um artigo pirotécnico que produzia um efeito fumígeno e luminoso de cor vermelha. 5. Dado o grande aglomerado de pessoas no evento – cerca de 3 mil – foi o arguido monitorizado, pelos agentes da PSP que naquele local se encontravam, até ao final e quando se preparada para abandonar o recinto, foi o mesmo abordado e identificado. 6. Posteriormente à quase total evacuação das pessoas do recinto, foi possível localizar e recolher, junto do bar onde o arguido foi avistado com os artigos pirotécnicos, os sobrantes dos mesmos, a saber: dois tubos cilindros em cartão, com designação comercial RED FLARE, os quais forma submetidos a exame. 7. Da análise aos mesmos, resultou estarmos perante “Fogo de artificio”, que se enquadra na categoria F2, de tipo Chama de Bengala, e face à morfologia das suas características, considerado artigo de pirotecnia, que contém substancias explosivas ou uma mistura explosiva de substancias concebido para produzir efeitos calorífico, luminoso, sonoroso, gasosos ou fumígeno ou uma combinação destes efeitos, devido a reacções químicas exotérmicas auto-sustentadas. 8. Ao actuar da forma descrita, o recorrente agiu com o propósito de utilizar e segurar na mão direita os referidos artefactos pirotécnicos naquele local, bem sabendo que ao actuar desse modo estava a praticar um ilícito contra-ordenacional e mesmo assim, decidiu agir nos termos descritos. 9. O recorrente agiu de forma voluntária, livre e consciente, conhecendo o carácter proibido e punido da sua conduta. Mais se provou que: 10. O recorrente foi fundador e líder da denominada “...”. 11. É treinador certificado da modalidade de Boxe. 12. É director da secção de ..., desempenhando funções de treinador profissional na modalidade de boxe, lidando inclusivamente com crianças e jovens entre os 7 e os 17 anos de idade. 13. Atenta a sua ligação ao ... o recorrente assiste aos jogos de futebol que se realizam no Estádio ... no camarote adstricto às modalidades desportivas. 14. Aufere vencimento de valor equivalente ao salário mínimo nacional. 15. Reside sozinho, em casa arrendada, suportando, a título de renda, o montante mensal de € 463,30. 16. Não tem empréstimos. 17. Não tem filhos. 18. Não tem antecedentes contra-ordenacionais junto da Autoridade para Prevenção e Combate à Violência no Desporto. 19. Não denotou arrependimento quanto à prática dos factos que lhe são imputados nos autos.»
3. Factos não provados
«Não se provaram quaisquer outros factos. Designadamente não se provou que: a) O recorrente tenha deflagrado os artigos pirotécnicos descritos em 3. e 4. b) O recorrente tenha agido sem consciência da sua ilicitude.»
4. Enquadramento jurídico
«(…) Lê-se no artigo 39.º, n.º 1 al. g) que constituiu contra-ordenação a introdução ou utilização de substâncias ou engenhos explosivos, artigos de pirotecnia ou fumígenos, ou objetos que produzam efeitos similares, sem prejuízo de outras sanções aplicáveis, nos locais mencionado supra, punida com coima que oscila entre os € 1.000,00 e os € 10.000,00, nos termos do artigo 40.º, n.º 3 da mesma lei e, ainda, a sanção acessória de interdição de acesso a recintos desportivos por um período até três anos, de acordo com o plasmado no artigo 42.º, n.º 1. (…) Do manancial fáctico tido por provado resultou que o recorrente com a sua conduta preencheu os elementos objectivos e subjectivos da contra-ordenação que lhe foi imputada nos presentes autos, inexistindo qualquer causa de exclusão da culpa ou da ilicitude. Repare-se que a lei não impõe que seja o próprio a deflagrar o artigo de pirotecnia ou fumígeno, bastando-se com a mera utilização do mesmo, o que de forma inequívoca, ocorreu no caso em apreço.»
5. Medida da coima e sanção acessória
«O recorrente foi condenado na coima pelo montante de €1.000 (correspondente ao mínimo da moldura), deve manter-se o valor da coima aplicada, em obediência do princípio da proibição da reformatio in pejus. Relativamente à sanção acessória prevista no artigo 42.º, n.º1, da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho atenta a gravidade e perigosidade da conduta – lendo-se na decisão recorrida que a mesma é susceptível de provocar, em abstracto, queimaduras, salientando-se os efeitos crónicos associados à inalação dos fumos, eventual impacto na cabeça, olhos e ouvidos, impacto directo na visão e pânico –, a culpa elevada, a ausência de arrependimento, as elevadas necessidades de prevenção geral e a muito elevada censurabilidade da conduta adoptada pelo recorrente, que deveria ser um exemplo no âmbito desportivo, desde logo e principalmente, por ser treinador certificado da modalidade de Boxe e director da secção de Kickboxing, Boxe e Muay Thai do ..., desempenhando funções de treinador profissional na modalidade de boxe e lidando com crianças e jovens entre os 7 e os 17 anos de idade, entendemos que a aplicação da sanção acessória de interdição de acesso a recintos desportivos pelo período de 18 (dezoito) meses se mostra adequada e proporcional, não merecendo a decisão administrativa qualquer reparo. Entendemos, igualmente, não ser de aplicar a admoestação por a contra-ordenação em apreço não ser leve, e assim não se mostrarem observados os pressupostos do artigo 51º, do R.G.C.C. e a jurisprudência obrigatória, fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão n° 6/2018, de 14-11. Por fim, alega o recorrente que a aplicação da sanção acessória nos termos expostos coloca em risco a sua actividade profissional e “belisca” com o direito ao trabalho, constitucionalmente previsto. Sem prejuízo de o juízo de inconstitucionalidade ou não inconstitucionalidade se reportar a normas, e não a decisões concretas, urge salientar o seguinte. Os custos, de ordem profissional e/ou familiar, que poderão advir para o arguido do facto de sanção acessória afectar o seu emprego, são próprios das sanções contra-ordenacionais, que só o são se representarem para o condenado um verdadeiro e justo sacrifício, com vista a encontrarem integral realização as finalidades gerais, sendo que tais custos nada têm de desproporcionados em face dos perigos para a segurança das outras pessoas e que a aplicação da sanção pretende prevenir. Com efeito, a aplicação ao recorrente da mencionada sanção acessória em nada afronta os direitos fundamentais ao exercício de profissão ou actividade e ao trabalho, já que o exercício de profissão ou actividade económica não constituem um valor constitucional absoluto, tendo de ser contabilizados ou articulados com outros interesses constitucionalmente relevantes. Mais se diga que não resultou minimamente provado que o recorrente tenha sofrido qualquer constrangimento aquando do cumprimento da medida cautelar de interdição de acesso ou permanência em recinto desportivo até à decisão final proferida pela entidade administrativa, mas mesmo que tal tivesse sucedido, sibit imputet. Seguindo o raciocínio aduzido na impugnação judicial, os tribunais também não poderiam aplicar penas acessórias de proibição de conduzir veículos motorizados ou confirmar a aplicação de sanções acessórias de inibição de conduzir veículos relativamente a motoristas profissionais, porque tal colidiria frontalmente com o seu direito ao trabalho. A manifestação de tal direito não pode, como facilmente se vê, implicar a inexistência de regras ou impunidade das suas infracções e muito menos beneficiar um agente que se coloca, aparentemente, na impossibilidade de cumprir com esse mesmo direito-dever.»
C. Apreciação do recurso
1. Da nulidade da sentença
No entender do recorrente, está em causa a violação do art. 379.º, n.º 1, a), porque a sentença não considerou nula a decisão administrativa por falta de fundamentação, no que toca à situação económica do arguido, à sua conduta anterior e posterior e às exigências de prevenção, circunstâncias relevantes para a determinação da coima (conclusões 1 a 3).
Verdadeiramente, o que o recorrente questiona é a legalidade da decisão administrativa; a esta, na ausência de especificidades da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho, é aplicável, como direito subsidiário (cf. art. 45.º), o D.L. n.º 433/82, de 27 de Outubro (ou RGCO, Regime Geral das Contra-Ordenações).
Prevê o respectivo art. 58.º:
“1 - A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: a) A identificação dos arguidos; b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas; c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; d) A coima e as sanções acessórias. 2 - Da decisão deve ainda constar a informação de que: a) A condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos do artigo 59.º; b) Em caso de impugnação judicial, o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso o arguido e o Ministério Público não se oponham, mediante simples despacho. 3 - A decisão conterá ainda: a) A ordem de pagamento da coima no prazo máximo de 10 dias após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão; b) A indicação de que em caso de impossibilidade de pagamento tempestivo deve comunicar o facto por escrito à autoridade que aplicou a coima.”
Lida a decisão administrativa (págs. 36 a 43 do terceiro documento com a ref.ª ...36)[4], facilmente se conclui que todos estes requisitos legais foram observados: o arguido está identificado, é feita uma descrição detalhada dos factos provados que lhe são imputados (incluindo os relativos ao tipo subjectivo), com rigor e sem prolixidade, indicados os meios de prova e a forma como foram valorados, citadas as normas relevantes para a punição, terminando com a aplicação da coima (não sem antes explicar porque se afasta a admoestação) e da sanção acessória.
Note-se que, ao contrário do que vem invocado pelo recorrente, a decisão administrativa não olvidou a sua falta de antecedentes contra-ordenacionais, refere expressamente a necessidade de prevenção geral «face à frequência com que condutas desta natureza são levadas a cabo nos recintos desportivos», bem como a circunstância de não ter sido possível «apurar qual o benefício económico retirado pelo arguido» com a prática da infracção; quanto à situação económica do arguido, na mesma decisão se escreveu ser desconhecida «por nada ter sido junto aos autos, apesar de ter sido notificado para esse efeito» (pág. 42 da citada ref.ª).
Não há, por isso, qualquer dúvida que, desde logo à luz das citadas regras legais, a decisão administrativa é clara e precisa; acresce que “a decisão condenatória em matéria contra-ordenacional, apresentando alguma homologia com a sentença condenatória em processo penal, tem uma estrutura semelhante a esta última, se bem que mais concisa, por menos exigente devido à sua menor incidência na liberdade das pessoas, devendo conter a identificação dos arguidos, a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas, a indicação das normas aplicáveis e a fundamentação da decisão”[5]. Pode até ser fundamentada de modo sumário, mas da decisão tem de se poder concluir: “a) que quem decidiu não agiu discricionariamente; b) que a decisão tem virtualidade para convencer os interessados e os cidadãos em geral da sua correcção e justiça; e c) que o controlo da legalidade do decidido, nomeadamente, por via de recurso, não é prejudicado ou inviabilizado pela forma que tomou.”[6]
Como se escreveu num recente acórdão deste Tribunal, “o que verdadeiramente importa para que a fundamentação da decisão administrativa cumpra cabalmente a sua função é que da mesma se possam apreender as razões de facto e de direito que, no entendimento do decisor, conferem arrimo à condenação, de modo a que seja possibilitado ao arguido formular um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e, uma vez na fase judicial do processo, permitir ao tribunal conhecer o processo lógico da formação da decisão administrativa.”[7]
Ou seja, valendo depois em caso de impugnação judicial como uma acusação (art. 62.º, n.º 1, do RGCO), à decisão da autoridade administrativa não se podem aplicar as regras estritas de uma sentença penal; aliás, precisamente por isso é que fica reservado aos cidadãos e às pessoas colectivas a possibilidade de recurso para este foro, para que haja maiores garantias de defesa e de natureza estritamente jurisdicional, como a de recurso posterior para a 2.ª instância.
Refira-se, ainda, que só a prova da obtenção de benefício económico seria susceptível de prejudicar o recorrente (já em sede de fixação da coima, nos termos do art. 18.º do RGCO), sendo inócua a ausência dessa prova.
Quanto à situação económica do agente, recuperam-se aqui os argumentos usados de forma absolutamente pertinente na sentença recorrida, escorados em jurisprudência, e renovados na resposta ao recurso: do teor da notificação do recorrente para exercer o seu direito de audição e defesa, datado de 12 de Julho de 2024 e de que o arguido teve conhecimento pessoal, através de notificação da GNR de Braga, a 18 do mesmo mês (pág. 38 do segundo documento da ref.ª ...36), além dos factos que lhe eram imputados pela autoridade administrativa, constava o seguinte: «A determinação da medida da coima que eventualmente seja aplicável é variável entre os limites constantes do auto de contraordenação e será determinada de acordo com o artigo 41.º da Lei 39/2009 de 30 de julho, na sua redação em vigor, em função da culpa, da gravidade da contra-ordenação, do benefício económico que retirou do seu cometimento e da situação económica. Deverá assim, pronunciar-se e, querendo, juntar fotocópia da nota de liquidação relativa à última declaração fiscal apresentada.» (pág. 10 do mesmo documento, negrito nosso).
Perante isto, o que fez o recorrente? Nada, uma vez que não apresentou qualquer defesa junto da autoridade administrativa, o que é expressamente referido por esta na decisão final (pág. 37 do terceiro documento com a ref.ª ...36). Ora, a autoridade administrativa está longe de ter os mesmos poderes ou meios dos Tribunais para apurar a situação económica dos arguidos, pelo que cumpre a sua função, nesta matéria, dando-lhes oportunidade para dela fazerem prova.
Acresce que em momento algum da decisão administrativa o arguido foi prejudicado pelo desconhecimento da sua situação económica: pois se até lhe foi aplicada a coima mínima prevista no art. 40.º, n.º 3, da Lei n.º 39/2009…
Tem, por isso, de se concluir que a decisão administrativa cumpriu os requisitos legais que lhe eram exigidos, não estando ferida de qualquer nulidade, o mesmo acontecendo com a sentença recorrida, uma vez que, no respeito pelo art. 379.º, n.º 1, a), contém todas as menções do art. 374.º, n.º 2 e n.º 3, b): relatório, factos provados (metade deles resultando já da discussão da causa, incluindo os relativos à situação económica do recorrente) e não provados, exame crítico da prova e fundamentação de direito, terminando com a decisão.
Está, assim, este segmento do recurso destinado ao insucesso.
2.Da aplicação de admoestação
Pretende o recorrente que a coima seja substituída por uma admoestação, pela ausência de antecedentes contra-ordenacionais, bem como pela falta de prova de que tenha sido ele a deflagrar os engenhos e da verificação de perigo para os presentes, o que diminui a sua culpa (conclusões 4 a 6).
A contra-ordenação praticada pelo recorrente está prevista no art. 39.º, n.º 1, g), da Lei n.º 39/2009 – diploma que estabelece o regime jurídico da segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espectáculos desportivos, ou actos com eles relacionados (art. 1.º) – e consiste na “introdução ou utilização de substâncias ou engenhos explosivos, artigos de pirotecnia ou fumígenos, ou objetos que produzam efeitos similares”.
Como resulta desta definição, e se refere na sentença recorrida, para consumar a infracção basta que o arguido detenha o engenho explosivo, não sendo elemento do tipo objectivo que também o tenha utilizado. Portanto, a falta de prova de que tenha sido o recorrente a deflagrar os artigos pirotécnicos não diminui a sua culpa (que, evidentemente, seria maior se à introdução do engenho explosivo acrescesse a utilização).
O mesmo acontece com a alegada (porque não demonstrada, nem positiva nem negativamente) falta de verificação de perigo para as pessoas aglomeradas no local: face ao tipo de efeitos que podem ser desencadeados pelos artigos pirotécnicos – cuja deflagração tantas vezes causa mortes e ferimentos graves, além de poder semear o pânico quando se junta muita gente (no caso, eram cerca de 3 mil pessoas na “Fanzone”) –, a contra-ordenação em causa consubstancia-se no perigo da detenção desses artigos, nenhuma influência exercendo no grau de culpa outras circunstâncias externas.
O art. 51.º, n.º 1, do RGCO prevê: “Quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação.”
É certo que o recorrente não tem antecedentes contra-ordenacionais neste âmbito, mas nem a infracção em causa é de gravidade reduzida nem o é a sua culpa.
Atenta o teor do art. 40.º da Lei n.º 39/2009, que estabelece as coimas, verifica-se que, face aos valores mínimos e máximos destas, a praticada pelo recorrente se enquadra no terceiro patamar de gravidade, entre os seis possíveis (daqui se excluindo as normas especiais dos nºs. 7 e 8, que consagram agravantes relacionadas com o agente ou a vítima): o n.º 1 fixa coimas entre os € 250,00 e os € 3.740,00 e o n.º 2 entre € 750,00 e € 5.000,00, enquanto o n.º 3 as eleva já para o mínimo de € 1.000,00 e o máximo de € 10.000,00.
Com esta sistemática legal, não é possível considerar que a infracção é de gravidade reduzida, conclusão que sai reforçada pela circunstância de esta ser uma das sete contra-ordenações (entre as quinze) previstas no art. 39.º, n.º 1, que podem determinar a aplicação de sanção acessória: outro sinal de que o legislador a considera uma conduta de tal forma merecedora de censura que a coima pode não ser suficiente para a punir.
Por outro lado, há que atentar à circunstância de, naquele dia, o recorrente ter segurado na mão dois diferentes artigos pirotécnicos: um ao minuto ... do jogo (facto provado 3) e outro ao minuto ... (facto provado 4). Ou seja, não se bastou com um único acto de detenção de um engenho explosivo, aumentando a gravidade da conduta ao repeti-la.
Mais: em ambas as ocasiões, os engenhos tinham sido accionados (porque produziam «um efeito fumígeno e luminoso de cor vermelha») e, na primeira vez, o recorrente estava em cima do balcão de uma tenda de bebidas, o que necessariamente significa encontrar-se perto de outras pessoas, ao menos as que estavam no respectivo serviço.
Tendo agido com dolo directo – «com o propósito de utilizar e segurar na mão direita os referidos artefactos pirotécnicos naquele local, bem sabendo que ao actuar desse modo estava a praticar um ilícito contra-ordenacional» (facto provado 8) – e, como se disse, repetindo a sua conduta, é evidente que também não pode concluir pela culpa reduzida do recorrente: o dolo directo é a forma mais grave de culpa…
Portanto, não estão preenchidos os requisitos do art. 51.º, n.º 1, do RGCO, ficando afastada a pretendida substituição da coima por admoestação.
3.Da atenuação especial da coima
Mantendo-se a coima, pugna o recorrente pela sua atenuação especial, alegando para tal que confessou os factos (conclusão 7).
Inexistindo norma relativa à atenuação especial na Lei n.º 39/2009, rege-se esta pelo art. 72.º do Código Penal, fruto da citada remissão daquele para o RGCO e, por sua vez, do art. 32.º deste, no que respeita ao regime substantivo, para “as normas do Código Penal.”
O art. 18.º, n.º 3, do RGCO determina que, havendo lugar à atenuação especial, “os limites máximo e mínimo da coima são reduzidos para metade.”
Nos termos do art. 72.º, n.º 1, do Código Penal, pode o tribunal atenuar especialmente a pena “quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.” Especifica o n.º 2 deste artigo que, para essa atenuação, “são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes: a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência; b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida; c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados; d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.”
Não só pelos requisitos legais como pela própria epígrafe do art. 72.º (“atenuação especial”), é evidente que apenas em situações contadas este instituto se pode aplicar: “Sendo sua matriz a acentuada diminuição da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena, a atenuação especial da pena só deverá ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, em situação em que seja de concluir que a adequação à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial não é possível dentro da moldura penal abstracta prevista para o tipo legal em causa.”[8] A não ser assim, poderia perder-se o efeito dissuasor necessário “para evitar a repetição da conduta infratora e impedir que a norma violada fique desprovida da sua eficácia jurídica”.[9]
Por outro lado, não bastam as circunstâncias: “as situações a que se referem as diversas alíneas do nº 2 [do art. 72.º] não têm, por si só, na sua existência objectiva, um valor atenuativo especial, tendo de ser relacionadas com um determinado efeito que terão de produzir: a diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena”.[10]
Ora, analisando cada uma das alíneas do art. 72.º, n.º 2, à luz da matéria dos autos, não se vislumbra como é possível concluir pela verificação de alguma delas:
- não há rasto de qualquer ameaça grave sobre o recorrente para o determinar à prática dos factos, ou haver alguém de quem dependesse ou devesse obediência que a tal o tenha obrigado – alínea a);
- também não está em causa qualquer motivo honroso, solicitação de vítima ou provocação/ofensa de terceiro – alínea b);
- da matéria provada resulta exactamente o contrário do previsto na alínea c) – o arguido «não denotou arrependimento quanto à prática dos factos que lhe são imputados nos autos» (facto provado 19);
- finalmente, entre a prática dos factos e a sentença recorrida decorreram pouco mais de sete meses, o que está longe de configurar o conceito de “muito tempo”, também não resultando dos autos se o agente nesse período manteve (ou não) boa conduta – alínea d).
Não se constata, portanto, nenhum fundamento subsumível ao art. 72.º, carecendo a confissão por ele invocada de qualquer pertinência nesta sede, tanto mais que resulta dos factos que, pelo menos desde o minuto ..., o recorrente estava a ser monitorizado pela PSP: portanto, com confissão ou sem ela, a imputação dos factos ao recorrente era certa.
Inexiste, por isso, qualquer motivo para atenuar especialmente a coima aplicada ao recorrente (já fixada no mínimo legal), estando este segmento do recurso destinado a improceder.
4. Da sanção acessória
Finalmente, na visão do recorrente houve violação do princípio da proporcionalidade na fixação da sanção acessória, porquanto coloca em causa o seu direito ao trabalho, na qualidade de treinador e director da secção de kickboxing, boxe e muay thai do ..., donde provém o seu sustento; pretende, por isso, a sua revogação ou, assim não se entendendo, a redução ao mínimo legal ou a aplicação apenas a recintos desportivos de futebol (conclusões 8 a 14).
Estabelece o art. 42.º, n.º 1, da Lei n.º 39/2009 que a condenação pela contra-ordenação em causa (além de outras) “pode determinar, em função da gravidade da infracção e da culpa do agente, a aplicação da sanção acessória de interdição de acesso a recintos desportivos por um período de até 3 anos.”
Com esta redacção da Lei, é evidente que sempre estaria vedado ao Tribunal limitar a aplicação da sanção a jogos de futebol, como pretende o recorrente: o legislador não restringe o âmbito da sanção, pelo que não o pode fazer o aplicador da lei. E bem se compreende a ratio legis: além da lei se reportar a todos os espectáculos desportivos, o seu art. 3.º, n), define recinto desportivo como “o local destinado à prática do desporto ou onde este tenha lugar, com perímetro delimitado e, em regra, com acesso controlado e condicionado, incluindo espaços de domínio público ou privado, permanentes ou temporários, que sejam destinados ou associados à realização de espectáculos desportivos”. No desporto – em qualquer um –, há certos comportamentos que não podem e não devem ter lugar, sendo irrelevante a modalidade em causa.
Quanto à invocada violação do princípio da proporcionalidade, prevê o art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, na parte dedicada aos princípios gerais dos direitos e deveres fundamentais: “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”
Já nos direitos e deveres económicos, o art. 58.º, n.º 1, da Lei Fundamental consagra: “Todos têm direito ao trabalho.”.
Da própria inserção sistemática de ambas as normas, resulta que, enquanto o Estado está obrigado a proteger os cidadãos de restrições ilegítimas dos direitos, liberdades e garantias, não está vinculado a fornecer trabalho a todos os cidadãos. Portanto, e face aos valores em presença, o direito ao trabalho não prevalece sobre sanções legitimamente aplicadas pela prática de factos ilícitos, quer penais quer no âmbito das contra-ordenações: “O direitoao trabalho, com o conteúdo positivo de verdadeiro direito social e que consiste no direito de exercer uma determinada actividade profissional, se confere ao trabalhador, por um lado, determinadas dimensões de garantia e, por outro, se impõe ao e constitui o Estado no cumprimento de determinadas obrigações, não é um direito que, à partida, se possa configurar como não podendo sofrer, pontualmente, quer numa, quer noutra perspectiva, determinadas limitações no seu âmbito, quando for restringido ou sacrificado por mor de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”[11]
Ora, é precisamente o que acontece com a aplicação de sanções acessórias no domínio das contra-ordenações (e das penas acessórias no Direito Penal): tal como já se escreveu a propósito destas, também aquelas têm “uma natureza e função em que predomina o elemento de prevenção especial, pois a conduta arriscada do agente impõe um período de reflexão, com afastamento efectivo da actividade que gerou o perigo, a título cautelar”.[12]
A violência no âmbito do desporto, além de constituir uma contradição – porque, embora possa envolver competição, o desporto é sobretudo uma forma de praticar exercício físico, de conviver e de ocupar tempos de lazer e divertimento –, tem vindo a alastrar de forma preocupante, e por isso também em Portugal houve necessidade de a reprimir, nos termos da Lei n.º 39/2009, criminalizando as condutas mais graves e enquadrando outras no ilícito de mera ordenação social.
Muitas vezes, os espectáculos desportivos degeneram em batalhas campais e distúrbios vários, com riscos de segurança e de perturbação da ordem pública, no decurso da qual podem os seus intervenientes causar danos materiais e pessoais.
Na época desportiva de 2023/2024, e mantendo-se a tendência da anterior, houve uma “forte subida dos incidentes relacionados com a posse e utilização de pirotecnia, com um peso determinante no número global de incidentes registados (64%). Apesar de sinais positivos em outros indicadores, o aumento do uso de artefactos pirotécnicos nos recintos desportivos destacou-se como uma preocupação crescente, refletindo uma tendência europeia no período pós-pandemia. Este fenómeno foi enfatizado em recentes reuniões recentes da UEFA e do Conselho da Europa, onde ficou patente a apreensão das entidades com este aumento registado em toda a Europa, intensificado pelo fácil acesso a materiais pirotécnicos (…) e um dos dois incidentes cuja recorrência tem sido ‘alimentada pelas redes sociais’”[13].
Nessa mesma fonte, pode ler-se que a tipologia de incidentes com maior número foi precisamente a posse/uso de artefactos pirotécnicos (5673), bem longe da segunda (dano, com 738), e que, ao longo da citada época, entraram em vigor “583 interdições de acesso a recinto desportivo (…), o que constitui um aumento de 21,1% comparativamente à época 2022/23 (…),número mais elevado de sempre de medidas de interdição que entraram em vigor numa só época desportiva em Portugal (…) esta abordagem está em linha com a implementação dos desígnios da Convenção de Saint-Denis, do Conselho da Europa, relativamente à exclusão de comportamentos e, por conseguinte, de adeptos responsáveis por comportamentos de risco, dos diversos espetáculos desportivos.”[14] Note-se que “71,4% dos adeptos sujeitos a medidas de interdição determinadas pela APCVD são membros de Grupos Organizados de Adeptos”, e o principal ilícito contra-ordenacional que serviu de base à aplicação de tais medidas foi precisamente a “‘introdução ou utilização de pirotecnia em recintos desportivos’ (76,8%)”[15].
De tudo isto resulta, tendo em conta os valores conflituantes, que o art. 42.º da Lei n.º 39/2009, ao permitir a aplicação de sanção acessória de interdição de acesso a recintos desportivos, não é inconstitucional, uma vez que se traduz numa restrição de direitos do recorrente absolutamente proporcional à violação, no caso, do direito à segurança de todos (também ele de ordem constitucional – art. 27.º, n.º 1), no âmbito dos espectáculos desportivos.
Aliás, nesta matéria já se tinha adequadamente pronunciado a Mm.ª Juiz a quo, lembrando o recorrente que as consequências da sanção acessória no seu trabalho apenas ao seu comportamento se deviam, constituindo aquela um sacrifício que todas as penas comportam.
Acresce que, das circunstâncias invocadas pelo recorrente a seu favor, uma é irrelevante, como já se referiu (a falta de prova de que tenha sido ele a deflagrar os engenhos), outra tem reduzido peso (a falta de antecedentes contra-ordenacionais), perante toda a conduta assumida, e a terceira – a sua ligação profissional ao meio desportivo – não pode deixar de operar contra ele: o grau de violação de deveres impostos ao recorrente (art. 71.º, n.º 2, a), do Código Penal), como treinador (inclusive de crianças e jovens entre os 7 e os 17 anos!) e director de uma secção desportiva do ..., é particularmente intenso; cabia-lhe dar bons exemplos de comportamento desportivo, e não fazer exactamente o contrário…
Afigura-se que o recorrente não foi capaz de deixar para trás a circunstância de ter sido fundador e líder de uma claque (ou Grupo Organizado de Adeptos, como se designa no relatório citado) e, já quase com 40 anos, assume comportamentos mais comuns nesse tipo de grupo do que seria de esperar de um orientador de jovens no desporto.
Assim, no sentido do que foi entendido pela Mm.ª Juiz a quo, é de concluir que a perigosidade da conduta do recorrente (que, lembre-se, deteve dois engenhos pirotécnicos no mesmo evento), as características destes, o dolo directo, a circunstância de não denotar arrependimento, aliado à sua profissão na data dos factos, que lhe atribuía especiais obrigações, justifica amplamente não só a aplicação da sanção acessória em causa, como também a sua duração, de metade do máximo legal: é imperioso, em termos de prevenção especial, que o recorrente perceba e interiorize a gravidade dos seus actos, e que reflicta no seu comportamento futuro, com o consequente juízo de auto-censura.
Assim, entende-se não haver fundamento para a redução da sanção acessória, também aqui não se acolhendo a pretensão do recorrente.
III - DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se integralmente a sentença recorrida.
Custas a cargo do arguido, com 3 UC de taxa de justiça.
Guimarães, 27 de Maio de 2025
(Processado em computador e revisto pela relatora)
Os Juízes Desembargadores
Cristina Xavier da Fonseca Pedro Freitas Pinto Pedro Cunha Lopes