EXCEPCIONAL COMPLEXIDADE
CRITÉRIOS
Sumário


I - Não existe nenhuma norma que defina expressamente o conceito legal de “excecional complexidade”, fornecendo o legislador apenas critérios meramente exemplificativos como seja o número de arguidos ou de ofendidos ou o carácter altamente organizado do crime, para enquadrar tal noção.
II – É a apreciação em concreto das especiais dificuldades que se deparam à investigação e não a natureza do tipo de crime investigado, que justifica a qualificação de “excecional complexidade”, a qual pode levar à elevação do prazo máximo de duração do inquérito e bem assim do prazo máximo de prisão preventiva.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I - Relatório

Decisão recorrida
No âmbito do Processo de Inquérito nº 1581/24.9JABRG, no Juízo de Instrução Criminal de Guimarães, Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi proferido o seguinte despacho, no dia 12 de março de 2025, que se transcreve:
“Fls. 3227, requerimento do arguido AA e dos arguidos BB e CC (cf. fls. 3260):
Obviamente que o prazo poderá ser encurtado tratando-se de arguidos presos, o que é determinado a favor dos mesmos atento o tempo de reclusão.
Além do mais, não se vislumbra de que forma é que o arguido foi prejudicado já que apresentou a resposta em tempo, pelo que, se indefere à invocada irregularidade.

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Requerimento de fls. 3220:
Ao MP para que se pronunciar.
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Do pedido de atribuição de excepcional complexidade aos autos pelo MP:

Foi conferido prazo aos arguidos para se pronunciarem, tendo respondido da seguinte forma:
- o arguido AA alega que o MP na sua promoção evidencia de forma precisa como as funções logísticas a si atribuídas têm relevo para a permanência da prisão preventiva em moldes de especial complexidade. Sendo que este arguido é acusado de desempenhar funções acessórias e não de comando e a prorrogação dos prazos exige que o papel do arguido na estrutura seja relevante e insubstituível. Termos em que requer que deve ser recusado o pedido de atribuição da excepcional complexidade (cf. fls. 3226 e ss);
- O arguido DD (cf. requerimento de fls. 3291 e ss) alega que o número de arguidos tem aumentado devido à apensação de processos promovido pelo MP, desconhecendo o arguido as razões da apensação, sendo que teve como único efeito afectar a posição do arguido de forma grave e desproporcional. Mais, defende que a complexidade alegada resulta unicamente da opção processual de apensar os autos, devendo assim, o promovido ser indeferido.
- O arguido EE (cf. requerimento de fls. 3253 e ss) defende que 9 arguidos não é um número transcendente e também não se vislumbra onde estão os factos concretos que permitem argumentar e sustentar que este processo tem um carácter internacional. Não se pode esquecer que a declaração de especial complexidade tem consequências penosas para os ora arguidos, com a elevação dos prazos da prisão preventiva. Opõe-se assim, que seja atribuída especial complexidade aos presentes autos.
- o arguido FF (requerimento de fls. 3266 e ss) opõe-se á atribuição de especial complexidade ao processo uma vez que na sua opinião os exames informáticos podiam ter sido feitos há 5 meses e a indagação de contas bancárias pode ser efectuada em 60 dias após a dedução da acusação, sendo que não foram relatados factos supervenientes à detenção dos arguidos que justifiquem a prorrogação dos prazos. Requer assim, seja indeferido o pedido. Caso não se decida nesse sentido, requer a alteração da sua medida de coação para OPH, por questão de igualdade com outro arguido com funções similares (função descrita pelo MP). 
Cumpre, pois, decidir.

Dispõe o art. 107.º, n.º 6 do Código de Processo Penal que “quando o procedimento se revelar de excepcional complexidade, nos termos da parte final do n.º 3 do artigo 215.º, os prazos previstos nos artigos 78.º, 284.º, n.º 1, 287.º, 311.º-A, 411.º, n.os 1 e 3, e 413.º, n.º 1, são aumentados em 30 dias, sendo que, quando a excepcional complexidade o justifique, o juiz, a requerimento, pode fixar prazo superior”.
Por sua vez, refere o art. 215.º, n.º 3 do Código de Processo Penal que “os prazos referidos no n.º 1 são elevados (…) quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime”.
Pois bem.
Os prazos estabelecidos na lei estão sujeitos à regra da improrrogabilidade. No entanto, porque são pensados com base em critérios de normalidade e casos há em que, por apresentarem contornos sensivelmente diferentes da mediania, o prazo normal não se mostra congruente com as exigências inerentes à prática de determinados actos, o legislador logo previu excepções de forma a ajustar os prazos às especificidades das hipóteses em que se enquadrem, admitindo a sua prorrogação.
Uma dessas excepções é precisamente a “excecional complexidade do processo”.
Sucede que a lei não processual penal não definiu o que deve ser considerado “excepcional complexidade”, dando apenas como exemplo algumas circunstâncias que podem ser consideradas como tal, nomeadamente o número de arguido ou de ofendidos ou o carácter altamente organizado do crime.
Ora, compulsados os autos, constato que existem nove arguidos constituídos, encontrando-se todos em prisão preventiva. Com excepção de um, por razões de saúde viu a sua medida alterada.
Não podemos esquecer que esta investigação tem por base os crimes de tráfico de estupefacientes agravado, branqueamento de capitais e associação criminosa.

Conforme resulta dos autos e da actividade instrutória realizada, o carácter internacional desta organização, destinada a traficar estupefacientes com a sua anterior transformação em laboratórios fixados em território nacional onde foram apreendidos milhares de litros de substâncias destinadas a esta actividade, e que há ainda que identificar cabalmente e inquirir, formalmente, os diferentes destinatários de produtos químicos, que os recebiam em diversas moradas e faziam chegar à organização, dissimulando, desta forma a origem de tais produtos e o seu controlo, nunca levantando suspeitas, porque efectuavam compras de quantidades pequenas, tentando-se perceber, dessa forma, o seu real grau de intervenção nos factos investigados, não sendo de descartar a possibilidade de constituição de novos arguidos.
Isto é, ao contrário do que defendem os arguidos, continua a decorrer, havendo ainda que proceder ao tratamento de 50 gigas de informação que foi recolhida em todo o material que foi apreendido aos arguidos.
A ordenada apensação dos processos faz todo o sentido, atendendo a que se trata da mesma organização/associação a atuar em diferentes pontos do país.
Encontra-se ainda a decorrer a conclusão de perícia aos restantes equipamentos (os que ainda não foram desbloqueados, já que os arguidos se recusaram a colaborar), alguns dos quais pertencentes ao EE e, por isso, com importância acrescida para a descoberta da verdade material; aguardar o recebimento de informação bancária relativa a quase 50 contas bancárias (cfr ofícios de fls 3063 a 3089) para posterior perícia contabilística financeira.
Constata-se que  dada a extensão dos autos, o número elevado de arguidos (sujeitos à medida de coacção de prisão preventiva) e testemunhas, a organização e o papel de cada um dos arguidos, a vastíssima extensão de ficheiros a analisar e seleccionar para efeitos probatórios, a necessidade de ter de se accionar meios de cooperação judiciária internacional, análise de contas bancárias e aplicações financeiras, de modo a lograr-se apurar da real dimensão do negócio e de todos os seus intervenientes e relações hierárquicas estabelecidas entre si e, ainda, rendimentos obtidos com tal negócio, justifica-se que os prazos de prisão preventiva, a que, nos presentes autos, se encontram sujeitos os arguidos EE, GG, AA, HH e II, JJ, BB, CC e DD, sejam alargados – sem prejuízo da reapreciação dos pressupostos daquela e da sua alteração, caso a respectiva manutenção, em concreto, se venha a considerar como desnecessária, conforme disposto nos artigos 212.º e 213.º do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, considerando os fundamentos invocados, a natureza dos crimes em questão, o número de arguidos, as diligências já realizadas e por realizar, as quais se revelam necessárias para a investigação, declaro os presentes autos de excepcional complexidade, nos termos do artigo 215.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal.
Notifique”.
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Recurso apresentado

Inconformado com tal decisão, o arguido FF veio interpor o presente recurso e após o motivar, apresentou as seguintes conclusões e petitório, que se reproduzem:

“1- O arguido FF não se conformando com o teor dos despachos com referência ...16 e ...26 vem interpor Recurso da decisão/despacho que decretou a excecional complexidade.
2- S.M.O. os fundamentos utilizados quer na promoção do M.P. quer no despacho que decretou a EC não justificam a necessidade de decretamento da mesma
3- A análise de conteúdos é uma diligência rápida, que pode ser efetuada com recurso a meios técnicos próprios como é do conhecimento do OPC que se socorre das empresas que efetuam esse tipo de análise e conseguem muitas vezes em menos de 24horas a apresentação desses dados para serem apreciados pelo JIC antes da apresentação do detido a primeiro interrogatório judicial
4- É contrário às regras da experiência comum e do normal acontecer que não fosse possível efetuar essa análise pericial aos equipamentos apreendidos no período de 6 meses...
5- A diligência de apreensão da parafernália utilizada para a atividade delituosa não belisca em nada a possibilidade de conclusão da investigação... em nenhum momento se justifica a necessidade e impossibilidade objetiva de conclusão de diligência de inquérito...
6- Indica-se atividade internacional sem que um único facto objetivo ou meio de prova influa nesse sentido.
7- Salienta-se que este grupo de pessoas é investigado no presente há 2 anos e 2 meses (desde janeiro de 2023 e não de 2024), é necessário mais 6 meses para se concluir algo mais? Crê-se que é apenas um mecanismo para alargar os prazos da prisão preventiva
8- A análise das contas bancárias e eventual dedução do GRA não pode servir como fundamento na medida em que pode ser requerido/obtido após a dedução da acusação
9- O número de arguidos não é expressivo, sendo que o facto de se encontrarem todos privados da liberdade só “aumenta” a responsabilidade e necessidade do encerramento célere do inquérito pela lesão dos interesses dos arguidos que a delonga da EC provoca!
10- A eventual constituição de novos arguidos é algo impossível de contraditar pelo arguido e não pode ter-se em conta para a fundamentação da decisão da EC, na medida em que viola o disposto no artigo 18º nº2 da C.R.P. pois o arguido apenas se pode pronunciar relativo a factos concretos e não a meras possibilidades abstratas.
11- Nos presentes autos estão reunidos os elementos de prova constantes do despacho ...19
12- Nada se alterou desde então, pois as análises a equipamentos são referentes a objetos apreendidos aquando a sujeição dos arguidos a primeiro interrogatório judicial
13- Não ocorreram factos supervenientes que justifiquem a decretação da EC, não é necessário o recurso a qualquer DEI que pudesse alongar a necessidade de resposta de algo a que o OPC seja alheio e que seja previsível a necessidade de alargamento dos prazos processuais da PP.
14- Não resulta objetivado e muito menos fundamentado a necessidade de sobreposição dos interesses da investigação à penosidade que acarreta aos arguidos com o prolongamento dos prazos máximos de prisão preventiva.
15- Ocorre nulidade de fundamentação por violação do disposto no artigo 374º nº2 do C.P.P. na medida em que não são mencionados factos objetivos que justifiquem o prolongamento dos prazos máximos de inquérito com as consequências daí decorrentes para o arguido.
16- Termos em que se considera violado o disposto no artigo 215º do C.P.P. na medida em que não se encontram verificados e preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos que podem em abstrato determinar a EC com as consequências legais daí decorrentes.
17- Normas jurídicas violadas, 215º nº3 e 374º nº2 ambos do C.P.P., 32º da C.R.P.
18- Nestes termos e nos melhores de direito, deve o despacho que decretou a excecional complexidade ser revogado e substituído por outro que não determine a aplicação de excecional complexidade aos presentes autos”.
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Resposta ao recurso por parte do Ministério Público.

Na primeira instância, o Ministério Público, apresentou resposta ao recurso pugnando pela improcedência do mesmo.

Apresenta as seguintes conclusões, que também se reproduzem:
“1. A investigação em curso nos autos apresenta-se efetivamente complexa atentas as concretas ramificações e o cariz internacional da mesma.
2. O número dos arguidos constituídos nos autos, a concreta actuação verdadeiramente organizada e numa lógica empresarial, estando em causa a necessidade de levar a cabo várias diligências, a criminalidade altamente organizada, plenamente justifica que seja declarada, como foi a especial complexidade do processo.
3. Inexistindo qualquer violação legal, desde logo as invocadas pelo recorrente, e não suscitando a decisão proferida nos autos qualquer reparo ou observação, não merece provimento o recurso, devendo ser mantida a especial complexidade declarada nos autos”.
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Tramitação subsequente

Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o processo foi com vista ao Ministério Público, tendo o Exmº. Senhor Procurador-Geral Adjunto, emitido douto parecer no sentido de o recurso não merecer provimento, devendo confirmar-se na íntegra o despacho recorrido.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº2 do Código de Processo Penal (em diante também referido por CPP) não tendo sido apresentada resposta.
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Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
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II – Fundamentação.

Cumpre apreciar o objeto do recurso.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas essas questões, as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.

As questões que se colocam à apreciação deste tribunal são as seguintes:

I - saber se o despacho recorrido enferma de nulidade por falta de fundamentação, nos termos previstos no artigo 374º nº2 do CPP.
II – saber se é justificada a declaração de excecional complexidade dos autos.
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Da alegada falta de fundamentação do despacho recorrido.

Considera o arguido que o despacho recorrido enferma de nulidade por falta de fundamentação, violando assim o disposto no artigo 374º nº2 do CPP, na medida em que não são mencionados factos objetivos que justifiquem o prolongamento dos prazos máximos de inquérito.
Essa omissão não se reconduz, como defende o arguido, a uma situação de nulidade prevista no artigo 379º do CPP, porquanto este normativo só é aplicável às situações de nulidade da sentença, o que não é o caso pois que se trata de uma decisão traduzida num despacho.
Em consonância com o princípio da legalidade que vigora no regime geral das nulidades em processo penal, só são nulos os actos que, sendo praticados com violação ou inobservância da lei, esta expressamente comine essa consequência (Artº 118º, nº 1 do CPP), sendo que, nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular (nº 2 do mesmo preceito legal).
Como elucida João Conde Correia [1] “O princípio da taxatividade das nulidades abrange apenas os vícios que o legislador submete a esse tratamento; excluindo aqueles que, embora substancialmente sejam causa de nulidade, são, por ele, rotulados irregularidades” adiantando também que pelo menos algumas “irregularidades” determinam a invalidade do acto a que se referem e dos termos subsequentes que aquele possa afetar, produzindo os mesmos efeitos das nulidades”.
Refere por sua vez Maia Gonçalves [2] apesar de as irregularidades serem consideradas em geral vícios de menor gravidade do que as nulidades, a grande variedade de casos que na prática se podem deparar impõe que se não exclua a priori a possibilidade de ao julgador se apresentarem irregularidades de muita gravidade, mesmo suscetíveis de afetar direitos fundamentais dos sujeitos processuais.
Daí a grande margem de apreciação que se dá ao julgador, nos n.ºs 1 e 2 do art. 123º, que vai desde considerar a irregularidade inócua e inoperante, até à invalidade do ato inquinado pela irregularidade e dos atos subsequentes que possa afetar, passando pela reparação oficiosa da irregularidade. Trata-se de questões a decidir pontualmente pelo julgador, com muita ponderação pelos interesses em equação, máxime as premências de celeridade e de economia processual e os direitos dos interessados.
Face ao disposto no artigo 97º, nºs 1, alínea b) e nº 5, do CPP, os despachos judiciais decisórios que não sendo despachos de mero expediente, devem ser sempre fundamentados, devendo para tanto ser especificado os motivos de facto e de direito da decisão.
Tal dever de fundamentação é reiterado no nº 4 do artigo 215º do CPP ao dispor que a excecional complexidade apenas pode ser declarada durante a 1ª instância, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente.
Trata-se do corolário do disposto no artigo 205º, nº1, da Constituição da República Portuguesa, que consagra expressamente o dever de fundamentação dos atos decisórios dos tribunais.
Esse dever de fundamentação impõe que se explicite, ainda que não de uma forma exaustiva, os motivos factuais e jurídicos que levaram à tomada dessa decisão.
Estamos assim perante uma alegada irregularidade que, a existir, afetaria o valor do acto praticado, determinando a invalidade do despacho recorrido, sendo a mesma aliás de conhecimento oficioso, nos termos do preceituado no nº 2 do artigo 123.º do CPP.

O recorrente alega a falta de fundamentação do despacho recorrido.
Mas não tem razão.
O artigo 276.º do CPP é relativo aos prazos de duração máxima do inquérito, prazos esses que serão elevados quando o procedimento criminal se revelar de excecional complexidade, nos termos da parte final do n.º 3 do artigo 215.º do mesmo Código.
Por sua vez, o artigo 215º do CPP relativo aos prazos de duração máxima de prevenção preventiva, preceitua no seu nº 3 que os prazos referidos no n.º 1 são elevados quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excecional complexidade, devido, nomeadamente [3], ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.
A Mmª JIC fundamentou de uma forma cabal e completa a sua decisão de declarar os presentes autos de excecional complexidade, nos termos do artigo 215.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, considerando para tanto o número de arguidos já constituídos, à natureza dos crimes investigados: crimes de tráfico de estupefacientes agravado, branqueamento de capitais e associação criminosa, ao caracter internacional dessa organização que se dedicava ao tráfico de estupefacientes com transformação em laboratórios fixados em território nacional, referindo ainda a necessidade que há ainda que identificar cabalmente e inquirir, formalmente, os diferentes destinatários de produtos químicos, que os recebiam em diversas moradas e faziam chegar à organização, não sendo de descartar a possibilidade de constituição de novos arguidos, à necessidade de proceder ainda ao tratamento de 50 gigas de informação que foi recolhida em todo o material que foi apreendido aos arguidos, aguardar o recebimento de informação bancária relativa a quase 50 contas bancárias para posterior perícia contabilística financeira e também a necessidade de acionar meios de cooperação judiciária internacional, análise de contas bancárias e aplicações financeiras, de modo a apurar a real dimensão do negócio e de todos os seus intervenientes e relações hierárquicas estabelecidas entre si.
Está assim devidamente fundamentada e é perfeitamente percetível para os seus destinatários, e também para este tribunal de recurso, o motivo pelo qual o Mmº Juiz “a quo” decidiu proferir o despacho ora sindicado, nos termos em que o fez.
Se foi acertada ou não tal decisão, é questão que trataremos em seguida, mas que não se prende com a existência de qualquer vício.
Não enferma assim a decisão recorrida de qualquer nulidade ou mesmo irregularidade por falta de fundamentação, improcedendo deste modo este segmento recursório.
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Da especial complexidade do processo.

Dispõe o artigo 215.º do CPP, sob a epígrafe “Prazos de duração máxima da prisão preventiva”:

“1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:
a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;
b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;
c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância;
d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.
2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou por crime:
a) Previsto no artigo 299.º, no n.º 1 do artigo 318.º, nos artigos 319.º, 326.º, 331.º ou no n.º 1 do artigo 333.º do Código Penal e nos artigos 30.º, 79.º e 80.º do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 15 de Novembro;
b) De furto de veículos ou de falsificação de documentos a eles respeitantes ou de elementos identificadores de veículos;
c) De falsificação de moeda, títulos de crédito, valores selados, selos e equipamentos ou da respetiva passagem, e de contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento e uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, previstos nos artigos 3.º-A e 3.º-B da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro;
d) De burla, insolvência dolosa, administração danosa do sector público ou cooperativo, falsificação, corrupção, peculato ou de participação económica em negócio;
e) De branqueamento de vantagens de proveniência ilícita;
f) De fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito;
g) Abrangido por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.
3 - Os prazos referidos no n.º 1 são elevados, respectivamente, para um ano, um ano e quatro meses, dois anos e seis meses e três anos e quatro meses, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.
4 - A excepcional complexidade a que se refere o presente artigo apenas pode ser declarada durante a 1.ª instância, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente.
5 - Os prazos referidos nas alíneas c) e d) do n.º 1, bem como os correspondentemente referidos nos nºs 2 e 3, são acrescentados de seis meses se tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional ou se o processo penal tiver sido suspenso para julgamento em outro tribunal de questão prejudicial.
6 - No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada.
7 - A existência de vários processos contra o arguido por crimes praticados antes de lhe ter sido aplicada a prisão preventiva não permite exceder os prazos previstos nos números anteriores.
8 - Na contagem dos prazos de duração máxima da prisão preventiva são incluídos os períodos em que o arguido tiver estado sujeito a obrigação de permanência na habitação”.
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Não existe nenhuma norma que defina expressamente o conceito legal de “excecional complexidade”, fornecendo o legislador apenas critérios meramente exemplificativos como seja o número de arguidos ou de ofendidos ou o carácter altamente organizado do crime, para enquadrar tal noção.
Conforme bem se refere no Ac. do STJ de 26/01/2005 [4] “A noção está, pois, em larga medida referenciada a espaços de indeterminação pressupondo uma integração densificada pela análise e ponderação de todos os elementos do procedimento; a integração da noção exige, assim, uma intensa e exclusiva ponderação sobre os elementos da concreta configuração processual, que se traduz, no essencial, em uma avaliação prudencial sobre factos.
A especial complexidade constitui, no rigor, uma noção que apenas assume sentido quanto avaliada na perspectiva do processo, considerado não nas incidências estritamente jurídico-processuais, mas na dimensão factual de procedimento enquanto sequência e conjunto de actos e revelação externa e interna de acrescidas dificuldades de investigação, composição e sequência com refracção nos termos e nos tempos do procedimento”.
No mesmo sentido, Maia Costa ao escrever [5]: “A lei não estabelece um conceito preciso de "excecional complexidade". Ela poderá derivar de diversos fatores, entre os quais a lei indica, exemplificativamente, o número de arguidos, de ofendidos ou o caráter altamente organizado do crime, fatores esses que não são obviamente cumulativos. O que importa é a ocorrência de um ou mais fatores que determinem, pela vastidão, dificuldade ou demora das diligências a efetuar, uma complexidade anormal do processo, determinando um arrastamento excecional dos termos processuais.
É, pois, a apreciação em concreto das dificuldades e obstáculos opostos à investigação e não a natureza do tipo de crime investigado, que deve determinar a qualificação do procedimento como de excecional complexidade”.  
A elevação do prazo por excecional complexidade do processo prevista nesse nº 3 do artigo 215º, só é admissível se o procedimento for por um dos crimes incluídos no nº 2, o que sucede no caso em apreço, porquanto está nomeadamente em causa, a prática do crime de associação criminosa, p. e p. pelo artigo 28.º, n.º 1  do D. L. nº 15/93, de 22/01; do crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. nos artigos 21º, nº 1, e 24º, alíneas b), c) e f) do D. L. nº 15/93, de 22/01 e do crime branqueamento de capitais, p. e p. pelo artigo 368.º-A, alíneas d) e f), do Código Penal, criminalidade esta legalmente definida como “altamente organizada” nos termos do preceituado no artigo 1º, alínea m), do Código de Processo Penal.
Vejamos então se deve manter-se a decisão recorrida que qualificou os autos como de excecional complexidade.
E a resposta só pode ser positiva.
São nove os suspeitos que já foram constituídos arguidos, o que é um número bastante considerável.
Mostra-se indiciado que o recorrente integrava uma organização que procedia à aquisição de elevadas quantidades de pasta de coca, introduzindo-a em Portugal, para já no nosso País, com o recurso a laboratórios montados para o efeito, a transformavam em cloridrato de cocaína, para posterior comercialização.
Tal organização instalada em diversas localidades em Portugal, com armazéns nomeadamente em ... – ... e em ..., que eram utilizados como lugar de recuo, transformação e/ou esconderijo do produto estupefaciente.
Essa organização de cariz internacional implicava elevados contactos nacionais e internacionais para obtenção do produto final.
Na prossecução desse objetivo eram utilizadas diversas empresas entre as quais a “EMP01...”, “EMP02...”, “EMP03...”, “EMP04...” e “EMP05...”.
Empresas que visavam a aquisição de elevadas quantidades de produtos químicos destinados à referida cristalização da pasta de cocaína.
Como muito sagazmente realça o Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu douto Parecer: “olhando para o caso que nos ocupa, a primeira nota a retirar reporta-se à nova realidade criminal que traduz, de inovação na actividade de tráfico de estupefacientes, que não se cinge já à mera importação da cocaína enquanto produto acabado, mas desloca para o local de destino e consumo, nomeadamente para Portugal, o próprio fabrico do produto estupefaciente final, a partir de pasta de coca importada sobre esta realidade, que tem merecido o interesse da sociedade, cfr. reportagem da revista Visão, de 14.12.2024
Ora, esta nova realidade coloca muito relevantes dificuldades acrescidas à investigação.
Em primeiro lugar, desde logo, por ser nova, extravasando os quadros da tradicional actividade de tráfico, novidade que pode perfeitamente ser valorada para o efeito da caracterização do procedimento como de excepcional complexidade, uma vez que esta caracterização resulta de análise casuística.
Em segundo lugar, este quadro novo em que se moveu a actividade delituosa faz luz sobre os argumentos usados para fundar a excepcional complexidade e justifica-os.
Assim, por exemplo, diversamente do que sucede na actividade de tráfico de estupefacientes tradicional, no caso presente está em causa a aquisição e o uso de matérias-primas necessárias ao processo transformador da pasta de coca, os químicos, os quais, conforme se explicita no despacho recorrido, foram adquiridos a diversas empresas através de múltiplos destinatários, que os recebiam em diversas moradas e faziam chegar à organização, importando definir e sedimentar este circuito, com diligências junto das empresas e dos compradores, sendo quanto a estes que há, ainda, que recolher depoimento formal”.
Considerando o carater internacional desta organização, a dimensão desta, com células espalhadas quer a norte, quer a sul do País, utilizando diversas empresas para encobrir essa sua atividade, é perfeitamente natural que ainda existam variadas diligências probatórias que urjam serem ainda efetuadas.
Como se refere na decisão recorrida, há ainda que melhor identificar e inquirir, formalmente, os diferentes destinatários de produtos químicos, que os recebiam em diversas moradas e faziam chegar à organização.
Do mesmo modo, como também aí referido, torna-se necessário proceder ao tratamento de 50 gigas de informação que foi recolhida em todo o material que foi apreendido aos arguidos, o qual será certamente um trabalho moroso, para além de estar a decorrer a conclusão da perícia aos equipamentos apreendidos, sendo muito considerável o número de telemóveis apreendidos.
O inquérito aguarda ainda o recebimento de informação bancária relativa a quase 50 contas bancárias, para posterior perícia contabilística financeira, não se concordando com o recorrente quando defende que tal informação seria obtida após a dedução da acusação.
A análise dessa informação bancária e aplicações financeiras, que ainda não pôde  ser terminada é naturalmente muito relevante, tendo em especial consideração estar em causa a prática do crime de branqueamento de capitais e o crime de tráfico de estupefacientes agravado.
O tratamento de tal informação bem como dos demais dados, obtidos dos ficheiros apreendidos e seleção dos mesmos, torna-se necessária para sustentar o despacho final que irá ser proferido aquando do encerramento do inquérito.
Estando também em causa a prática de um crime de associação criminosa torna-se necessário reunir prova para aferir com especial cuidado qual o concreto papel de cada um dos arguidos no seio dessa associação.
Atenta a natureza internacional é natural que haja também a necessidade de ter de se acionar meios de cooperação judiciária internacional, para melhor identificar quem procedia à venda da pasta de coca oxidada, que chegava a Portugal por via marítima, oriunda da América do Sul e para onde se destinava após a referida transformação nos laboratórios situados no nosso País.
Por último, e no que concerne à possibilidade de serem constituídos novos arguidos, aventada no despacho recorrido, com a qual o recorrente se insurge, não existe, como por este alegado, qualquer violação do disposto no artigo 18º nº2 ou 32º da Constituição da República Portuguesa, pois que não é posto em causa qualquer direito à defesa por parte do recorrente. 
O processo de inquérito é um processo dinâmico e é natural que no decurso da investigação possam surgir novos suspeitos que venham a ser constituídos arguidos, sem que naturalmente os demais arguidos tenham de ser previamente avisados de tal.
A elevação do prazo do inquérito suprareferido por força dessa declaração de excecional complexidade, tem precisamente a ver com o facto das diligências probatórias nesta fase processual ainda não estarem concluídas.
Por outro lado, como se salientou, não existe um número mínimo de arguidos para que o processo possa ser qualificado de excecional complexidade, pelo que a manutenção ou o aumento do número de arguidos em nada prejudica o recorrente na qualificação do processo como sendo de excecional complexidade. 
Conclui-se assim que se mostram preenchidos os requisitos para, como bem o fez o tribunal “a quo”, declarar a excecional complexidade dos autos.
Diga-se que se há processo em que não devem existir dúvidas que essa classificação se justifica é precisamente aquele em causa nos autos.
Improcede assim o recurso do arguido.   
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III – Decisão.

Face ao exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido e em consequência, mantêm na íntegra o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça devida - artigos 513.º, n.ºs. 1 e 3, do CPP e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III a este anexa.
Notifique.
                                                                         
Guimarães, 11 de junho de 2025.
(Decisão elaborada pelo relator com recurso a meios informáticos e integralmente revista pelos subscritores, que assinam digitalmente).

Os Juízes Desembargadores,
Pedro Freitas Pinto (Relator)
Isilda Correia de Pinho (1ª Adjunta)
Paula Albuquerque (2ª Adjunta)        



[1] In “Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais penais”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, STVDIA IVRIDICA 44, Coimbra Editora, pág. 146.
[2] Código de Processo Penal Anotado, 9ª Edição Revista e Atualizada, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 312.
[3] Sublinhado nosso.
[4] Procº nº 05P3114, Relator: Henriques Gaspar, consultável em www.dgsi.pt.
[5] Código de Processo Penal Comentado. Almedina, 3ª ed. A. Henriques Gaspar et ale pág.836.