Não pode o Tribunal a quo determinar que a medida de acompanhamento anteriormente aplicada não seja sujeita a revisão oficiosa, pois que a tal obsta o anteriormente decidido e as normais legais aplicáveis.
(1.ª Secção)
Relator: Filipe Aveiro Marques
***
*
I. RELATÓRIO:
I.A.
O MINISTÉRIO PÚBLICO veio recorrer do despacho proferido em 12/04/2025 pelo Juízo Local Cível de Cidade 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, que terminou com o seguinte dispositivo:
“Destarte, face ao exposto e no que tange ao requerimento apresentado pelo Ministério Público, conclui-se pela inadmissibilidade legal do aludido requerimento, o que se decide.”
O requerente tinha vindo, por apenso ao processo em que foi decretado o acompanhamento do maior AA por BB e atribuída a esta os poderes de representação geral do primeiro, requerer a revisão da medida.
I.B.
O Ministério Público apresentou alegações onde termina com as seguintes conclusões:
“1. Os autos correm a favor de AA nascido a ........1970, filho de CC e DD, solteiro – Assento de nascimento junto aos autos principais e aqui sob o doc. 1.
2. AA foi declarado “maior acompanhado” conforme sentença proferida a 18.06.2019, transitada em julgado a 15.07.2019, no âmbito do Processo especial com o acima identificado, nº705/18.0..., a correr termos neste Juízo Local Cível de Cidade 1.
3. O Ministério Público apresentou a 25.03.25/refª 11539409, Requerimento de revisão da medida, formando-se este deste Apenso I.
4. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida a 12.04.25/refª 99482890 que recusou proceder à revisão da medida de acompanhamento de maior aplicada ao beneficiário EE, indeferindo o requerimento para revisão da medida, a tramitar por apenso nos termos do disposto no artigo 904.º, n.º 3, do CPC.
5. O artigo 155.º do Código Civil, sob a epígrafe “Revisão Periódica”, dispõe que “O Tribunal revê as medidas de acompanhamento em vigor de acordo com a periodicidade que constar da sentença e, no mínimo, de cinco em cinco anos”.
6. Deste último preceito resulta, como é pacificamente entendido, que as medidas são revistas no máximo com uma periodicidade de cinco anos, pos o trânsito em jugado da sentença que as fixou.
7. Salvo melhor entendimento, este Tribunal não se pronunciou ainda acerca da revisão obrigatória da medida e só pode, agora que lhe foi requerido, optar o fazer.
8. Termos em que viola o douto despacho recorrido o disposto nos artigos 155.º do Código Civil e 904.º, n.º 2, do CPC, negando a tutela da revisão da medida de acompanhamento.
9. Deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento do incidente, com tramitação por apenso aos autos principais, designando-se dia para audição do Beneficiário, aceitando-se a prova junta e determinando-se a prova tida por adequada.
Sempre com o mui douto suprimento de V. Exas. será feita Justiça.”
I.C.
Não houve resposta.
I.D.
O recurso foi devidamente recebido pelo tribunal a quo.
A simplicidade da causa consente que se profira decisão sumária, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 652.º, n.º 1, alínea c) e 656.º do Código de Processo Civil.
As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Assim, no caso, impõe-se, apenas, apreciar se deverá prosseguir a apreciação da revisão da medida de acompanhamento.
III.A. Fundamentação de facto:
III.A.1 Factos provados:
Deverá considerar-se a seguinte matéria que se retira do processo principal e deste apenso:
1. Em 14/09/2018 o Ministério Público deu entrada a petição inicial visando a interdição por anomalia psíquica de FF.
2. Após citação do requerido e de nomeação de curadora provisória, foi proferido o seguinte despacho a 20/02/2019:
“No dia 10/2/2019, entrou em vigor o regime do maior acompanhado, aprovado pela L 49/2018 de 14/8, por corresponder ao 180º dia subsequente à publicação do diploma legal (artº 25º nº 1 da L 49/2018), a qual introduziu alterações significativas no regime das incapacidades, tendo revogado os institutos da interdição e da inabilitação e criado o regime jurídico do maior acompanhado.
Com efeito, nos termos do artº 138º do C.C., na redacção da L 49/2018 de 14/8, o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente os seus direitos, ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas no Código Civil.
Actualmente, já não se trata de saber se uma determinada pessoa tem capacidade mental para exercer a sua capacidade jurídica, mas de saber quais são os tipos de apoio necessários para aquela pessoa exercer a sua capacidade jurídica, pretendendo-se proteger a pessoa, mas sem a incapacitar (neste sentido, Pinto Monteiro, «O Código Civil Português entre o elogio do passado e um olhar sobre o futuro» e Mafalda Miranda Barbosa «Maiores Acompanhados», p. 40).
Para além disso, as medidas de acompanhamento regem-se por uma ideia de subsidiariedade, isto é, só têm lugar quando as finalidades que, com elas se prosseguem, não sejam garantidas através dos deveres gerais de cooperação e de assistência (cfr. Mafalda Miranda Barbosa, ob. cit., p. 49).
Nos processos pendentes, o juiz utilizará os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias do processado dos anteriormente denominados processos de interdição e de inabilitação, ao novo processado do regime jurídico do maior acompanhado, uma vez que o mesmo se aplica imediatamente aos processos de interdição e de inabilitação que estejam pendentes (artº 26º nº 1 e 2 da L 49/2018 de 14/8).
No caso dos autos, foi solicitado o exame médico do requerido e encontramo-nos na fase da realização do mesmo e elaboração do respectivo relatório.
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Assim sendo, para adaptar a realização do exame e subsequente elaboração do relatório, ao regime jurídico do maior acompanhado, solicite, ao Sr. perito que se encontra a realizar o exame, que, no relatório pericial a enviar ao Tribunal, indique também se o requerido tem capacidade para, sem o auxílio de ninguém, cuidar se si próprio, nos actos da vida corrente (alimentação, vestuário, higiene, toma de medicamentação), para casar, ou para viver em união de facto, para procriar, para perfilhar ou para adoptar, para cuidar e educar os filhos ou os adoptados, para escolher profissão e para trabalhar, para se deslocar no país ou no estrangeiro, para fixar domicílio e residência, para estabelecer relações com quem entender e para testar, bem como se o requerido tem capacidade para, sem o auxílio de ninguém, celebrar negócios da sua vida corrente e para administrar total, ou parcialmente, os seus bens, tudo nos termos e para os efeitos do disposto no artº 147º nº 1 e 2 do C.C., na redacção da L 49/2018 de 14/8.
Notifique a entidade a que foi solicitada a realização do exame médico-legal, bem como o requerente (M.P.), a curadora provisória e o defensor oficioso.”
3. Após junção do relatório pericial, por despacho de 20/05/2019, foi designada data para audição do requerido.
4. Em 18/06/2019 foi proferida sentença que deu como provados os seguintes factos:
a. AA, nasceu em .../.../1970, na freguesia de S..., concelho de Local 1, sendo filho de CC e de GG.
b. O beneficiário é solteiro, não tem filhos, sendo que não tem contacto com o pai há vários anos e a mãe já faleceu.
c. O beneficiário reside com a irmã BB, sendo esta quem ajuda aquele na realização e supervisão de todos os actos referentes à sua vida pessoal, como seja a higiene, a alimentação, o vestuário e a toma da medicação.
d. O beneficiário não consegue andar sozinho da rua, pois perde-se, visto que não tem sentido de orientação.
e. Tudo isto sucede porque o beneficiário padece de «Debilidade Mental moderada», a que corresponde o Código F71 da Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10).
f. Esta doença verifica-se desde o nascimento do beneficiário, sendo irreversível.
g. Trata-se de uma doença que afecta todas as áreas da vida corrente, social, afectiva e económica do beneficiário.
h. Em consequência da doença de que padece, o beneficiário não tem capacidade para, apenas por si próprio, e sem o auxílio de ninguém, cuidar de si próprio, em todos os actos da vida corrente (como, por exemplo, a alimentação, o vestuário, a higiene e a toma da medicamentação).
i. Em consequência da doença de que padece, o beneficiário também não tem capacidade para casar, viver em união de facto, procriar, perfilhar, adoptar, cuidar e educar os filhos ou os adoptados, escolher profissão e trabalhar, deslocar-se no país ou no estrangeiro, fixar domicílio e residência, estabelecer relações com quem entender e testar.
j. Em consequência da doença de que padece, o beneficiário também não tem capacidade para, sem o auxílio de ninguém, celebrar negócios da sua vida corrente e administrar total, ou parcialmente, os seus bens.
k. O beneficiário não sabe o valor do dinheiro, nem é capaz de o usar.
5. E essa sentença terminou com o seguinte dispositivo:
“Por conseguinte e face ao exposto, delibero:
a)- o acompanhamento da maior AA, por BB, nos autos identificada;
b)- atribuir, à acompanhante, poderes de representação geral do beneficiário, bem como poderes de representação especial, concretamente os de, em substituição do beneficiário, realizar os actos necessários à gestão imediata dos
bens do beneficiário, proceder à abertura de contas bancárias em nome do beneficiário, receber a pensão de invalidez do beneficiário, por forma a poder custear as despesas diárias do beneficiário e exclusivamente para este fim;
c)- declarar que a medida de acompanhamento se tornou conveniente, a partir de .../.../1970, data do nascimento do beneficiário, uma vez que a doença de que o mesmo padece se verifica desde o nascimento (artº 900º nº 1 do C.P.C.);
d)- estabeleço o prazo de cinco anos para a revisão oficiosa da medida de acompanhamento (artº 155º do C.C.);
e)- Transitado, publicite em jornal e comunique, nos termos do disposto nos arts.
1920º-B do C.C., aplicável « ex vi » artº 902º nº 2 e 3 do C.P.C.;
f)- declarar que não existe testamento vital e procuração para cuidados de saúde
relativamente ao beneficiário (artº 900º nº 3 do C.P.C.);
g)- designar, como acompanhante substituta, HH, nos autos identificada ( artº 900º nº 2 do C.P.C. );
h)- nomear, para integrar o conselho de família, HH e II, nos autos identificadas, ( artº 900º nº 2, parte final do C.P.C.);
i)- consignar que, para os efeitos do disposto no artº 2189º, al. b) do C.C., o beneficiário é incapaz de testar;
j)- consignar que, para os efeitos do disposto no artº 1601º, al. b) do C.C., a presente decisão de declaração de situação de acompanhamento, constitui impedimento dirimente absoluto;
l)- consignar que, para os efeitos do disposto no artº 2º, al. b) da L 7/2001 de 11/5, a situação de acompanhamento de maior, ora declarada, impede a atribuição de direitos ou benefícios, em vida ou por morte, fundados na união de facto;
m)- consignar que, para os efeitos do disposto no artº 6º nº 2 da L 32/2006 de 26/7, a situação de acompanhamento de maior, ora declarada, veda o recurso a técnicas de procriação medicamente assistida;
n)- consignar que, para os efeitos do artº 4º nº 1 do DL 272/2001 de 13/10, o acompanhado não pode aceitar ou rejeitar liberalidades, a seu favor;
o)- consignar que a situação de acompanhamento ora declarada, não faculta o exercício directo de direitos pessoais, nos termos do artº 5º nº 3 da L.S.M.;
p)- consignar que, para os efeitos do artº 13º da L.S.M., ocorre restrição de direitos pessoais, com a presente declaração da situação de acompanhamento, pelo que a acompanhante tem legitimidade para requerer as providências previstas no referido diploma legal;
q)- sem custas (artº 4º nº 1, al. l) do R.C.P., na redacção da L 41/2018 de 14/8);
r)- Fixo, à presente causa, o valor de € 30.000,01 (artº 303º nº 1 do C.P.C.);
s)- Registe e notifique.”
6. Por requerimento de 12/03/2024 veio BB requerer a remoção, por escusa, de HH do conselho de família e do cargo de acompanhante substituta e a sua substituição por JJ.
7. O Ministério Público, a quem foi aberta vista por determinação judicial, promoveu a 8/04/2024 o indeferimento mas com base na seguinte argumentação:
“A revisão da medida deve ocorrer quando necessário e obrigatoriamente de cinco em cinco anos, conforme prevê o artigo 155º CC.
Vai completar-se o primeiro período de cinco anos após a sentença.
O artigo 26.º da Lei 49/2018 de 14 de Agosto, no seu nº8 estatui que "Os acompanhamentos resultantes dos números 4 a 6 são revistos a pedido do próprio, do acompanhante ou do Ministério Público, à luz do regime atual."
O Ministério Público averiguará na preparação da revisão, quanto às pessoais mais aptas a exercer como acompanhante do beneficiário, bem como da necessidade de se manter o Conselho de Família e quais os membros.
Na falta de elementos, pr. se indefira e se aguarde a revisão obrigatória.”
8. Foi, de seguida, proferido o despacho de 10/04/2024 com o seguinte teor:
“Concordando-se com a promoção da Digna Procuradora da República, indefere-se a requerida substituição por falta de fundamento legal, sendo que é entendimento deste Tribunal que a revisão das medidas, volvidos cinco anos após a sua aplicação, está depende de requerimento pelas partes legítimas e não oficiosamente pelo Tribunal, nos termos do disposto no Artº 904º, nº 3 e 892º, nº 1, todos do CPC.
Notifique.”
9. Por requerimento de 3/06/2024 veio, novamente, BB requerer a remoção, por escusa, de HH do conselho de família e do cargo de acompanhante substituta e a sua substituição por JJ.
10. O Ministério Público, em 5/06/2024, promoveu o seguinte:
“O Ministério Público tem em andamento a preparação de eventual revisão encontrando-se a ouvir os intervenientes. Todavia, atentos os motivos, nada a opor ao solicitado.”
11. Foi, então, proferido o seguinte despacho:
“Req. 03.06.2024:
Concordando-se na íntegra com a promoção da Digna Procuradora da República, defere-se o requerido.
Comunique à Conservatória do Registo Civil.
Oportunamente, arquive-se.”
12. Por requerimento de 25/03/2025, por apenso ao referido processo principal, veio o Ministério Público em que alega um conjunto de factos novos:
“8. AA, frequenta em regime de permanência a Unidade de M... e integra a resposta social de Lar Residencial e de CACI (Centro de Atividades e Capacitação para a Inclusão) do Centro de Recuperação
Integrada de Local 1, na Unidade de M..., sita na morada acima indicada – doc. 5 - NOVO
9. No Lar ... frequenta um conjunto de atividades nos domínios do Desenvolvimento Pessoal, bem-estar e Inclusão Social, designadamente as atividades Socioculturais, Atividades Ocupacionais, corno por exemplo AVDS Atividades de Vida Diária, que visam a manutenção da autonomia pessoal e social, atividades terapêuticas, interação com o meio e ASUS - Atividades Socialmente Úteis- doc. 5 NOVO.
10. No âmbito das ASUS previstas no artigo 12.2 da portaria n.2 70/2021, de 26 de março, o Utente desenvolve, durante 3 horas, dos dias úteis, na empresa, ..., S.A., na Zona Industrial De M..., atividades como (doc. 5 NOVO:
- Montagem de caixas de cartão;
- Picotagem;
- Embalar e desembalar artigos/produtos.
- Limpeza e manutenção dos espaços de trabalho
- Arrumação e organização de produto nas prateleiras
- Manutenção de arquivos
- Pequenas tarefas de manutenção do espaço/armazém
- Tarefas de manutenção do jardim (projeto em curso)
11. No seguimento das atividades desenvolvidas e como previsto no artigo 19.2 da Portaria n.2 70/2021, de 26 de março, recebe uma compensação monetária pelo desenvolvimento destas atividades de 10% do IAS, fixando-se no presente ano em 50.93 euros mensais – doc. 5/NOVO.
12. O dia a dia deste sujeito é acompanhado pela Instituição, onde beneficia de apoio em todas as suas atividades da vida diária, nomeadamente alimentação,
administração de medicamentos, higiene pessoal, cuidados de imagem e tratamento de roupa – cfr. doc. 5/NOVO”.
13. E termina com o seguinte pedido:
“Nestes termos supra expostos, deve a presente ação ser julgada procedente por provada, e em consequência ser revista a medida de acompanhamento decretada a favor de AA, por razões de saúde, com a fixação das seguintes medidas:
1. representação geral para todos os atos da vida corrente, sem prejuízo daqueles atos que careçam de autorização judicial (cfr. artigos 145º, nº2 e 147º, nº1 a contrario Código Civil, com- acompanhamento na administração total de bens;
- acompanhamento no tratamento dos seus assuntos pessoais que envolvam entidades públicas ou privadas, designadamente entidades bancárias, desde que não importem autorizações, assim como abertura e tratamento de toda a correspondência a estas entidades associadas.
2. Acompanhamento para tratamento clínico, designadamente a decisão na marcação de consultas, na sua comparência às mesmas, na adesão a terapêuticas prescritas, mormente na toma de medicação e no consentimento quanto a intervenções cirúrgicas - cfr. o artigo 145º, nº2, al. e) CC.
3. Nos termos do disposto no artigo 147.º, nºs. 1 e 2 do Código Civil, deve ser AA impedido do exercício dos direitos pessoais (cfr. o artigo 147º, nº2 CC), designadamente:
- ser tutor, vogal de Conselho de Família e administrador de bens de incapazes (cfr. os artigos 1933º, nº2 , 1953º, nº1 e 1970º todos do Código Civil;
- de testar (cfr. o artigo 2189º, al. b) do Código Civil;
- de desempenhar por si as funções de cabeça-de-casal (cfr. o artigo 2082º do Código Civil;
- de outros atos pessoais como sejam perfilhar ou adotar, cuidar e educar filhos ou adotados, contrair casamento, escolher profissão, de se deslocar para o estrangeiro, de fixar residência, ou de estabelecer relações com outros e os demais que se mostrem adequados em função das necessidades que vierem a ser apuradas após a realização das diligências decorrentes da instrução dos presentes autos.
Em consequência mais se requer a V. Ex.a:
- se mantenha a designação como acompanhante conforme previsto no artigo 143º, nº2, al. i) CC da sua irmã BB e se mantenham os membros designados Conselho de Família:
a. KK;
b. JJ.
- seja ordenada a citação do requerido mediante contacto pessoal, por se entender ser a mais eficaz - artigo 865º, nº1 CPC;
- seja designada data para audição do requerido, nos termos do disposto no artigo 898.º, n.º 1 CPC;”
14. Em 01/04/2025 foi proferido o seguinte despacho:
“Escalpelizados os autos, afere-se que por Sentença prolatada a 18.06.2029 foi AA declarado maior acompanhado, concluindo-se “atribuir, à acompanhante, poderes de representação geral do beneficiário, bem como poderes de representação especial, concretamente os de, em substituição do beneficiário, realizar os actos necessários à gestão imediata dos bens do beneficiário, proceder à abertura de contas bancárias em nome do beneficiário, receber a pensão de invalidez do beneficiário, por forma a poder custear as despesas diárias do beneficiário e exclusivamente para este fim; medida que se tornou conveniente a partir de 23.3.1970, data do nascimento do beneficiário, resultando que o Requerido padece de “Debilidade Mental moderada”.
Após um estudo maturado da Lei nº 49/2018, de 14 de Agosto que implementou o regime jurídico de Acompanhamento de Maior, entendemos que nestes casos os processos não devem ser reabertos oficiosamente pelo Tribunal, na medida em que não foram reportados aos autos factos supervenientes, acrescendo que não há alteração da situação clínica do requerido e não foi carreada nova informação médica para os autos pelo Ministério Público e o Ministério Público quando requer a revisão dispensa a realização de perícia, ao abrigo do disposto nos artº 904º, nºs 2 e 3 e 892º, nº 1, todos do Código de Processo Civil, pelo que não se afere a necessidade de proceder à revisão da medida do Maior Acompanhado, tendo em conta que a situação clínica permanece inalterável e se encontra acautelada pelas medidas já decretadas.
Pelo que, face ao exposto, antes de mais, de modo a evitar decisões-surpresa, determina-se seja aberta Vista ao Ministério Público para exercer o seu direito ao contraditório (cfr Artº 3º, nº 3 do CPC).”
15. Em 03/04/2025 o Ministério Público promoveu o seguinte:
“(…)
Em todos os casos, existe obrigatoriedade de revisão das medidas de acompanhamento pelo tribunal, isto é, o tribunal revê as medidas de acompanhamento em vigor de acordo com a periodicidade que constar da sentença e, no mínimo, de cinco em cinco anos. (cf. o artigo 155.º do C.C.).
Passaram cinco anos sobre a decisão, pelo que a revisão se impõe.
Quanto à instrução da causa, vigora o princípio da liberdade de investigação dos factos, previsto no n.º 2 do artigo 986.º do C.P.C. (cf. o artigo 891.º, n.º 1), pelo que o tribunal ordena as diligências probatórias que considere convenientes (cf. o n.º 1 do artigo 897.º), mormente a Perícia se o entender.
Isto porque a lei não a considera obrigatória a realização de perícia (cf. o n.º 1 do artigo 897.º e o n.º 1 do artigo 899.º do C.P.C.). Tanto mais que no caso concreto as alterações não se verificam ao nível da doença, irreversível, mas das limitações diárias.
Salvo melhor entendimento, este Tribunal deve admitir a revisão obrigatória da medida.”
16. Foi, então, proferido em 12/04/2025 o despacho recorrido com o seguinte teor:
“O Ministério Público veio requerer a revisão da medida aplicada ao Requerido, no entanto não alegou factos novos que alterem o quadro clínico do Maior Acompanhado, uma vez que os factos que o Ministério Público indica como alegados factos novos em nada relevam para a alteração do quadro clínico e, assim sendo, para a revisão da medida já decretada ao Maior Acompanhado no âmbito dos autos principais por sentença datada de 18.06.2019 e da qual ocorreu a convolação para o Regime do Maior acompanhado a 19.03.2019.
Ora, no caso concreto, e como o Ministério Público alega, o Maior Acompanhado padece de debilidade mental, num estado irreversível, pelo que, não é expectável que seja de rever a medida já decretada, a de representação geral, uma vez que a mesma acautela de forma concreta a atual situação de facto do Maior Acompanhado.
Nesta senda, não se vislumbra a necessidade de determinar as “limitações concretas do requerido em sede de medidas de acompanhamento”, nem “clarificar a atual situação do requerido em sede das suas capacidades e limitações”, conforme alegado pelo Ministério Público, porquanto a situação clínica do requerido mantém-se inalterável.
Pelo que, tendo sido decretada a medida de representação geral, estão acauteladas todas as limitações e capacidades deste, as quais são colmatadas pelo acompanhante nomeado.
Mais cumpre referir que este Tribunal a deferir a pretensão do Ministério Público, estaria em violação dos mais elementares princípios consagrados no Código de Processo Civil, como sejam, desde logo, o princípio da proibição da prática de atos inúteis, proibidos no art.º 130º do CPC, porquanto atenta a situação clínica do requerido, sem que tenham sido alegados factos novos que alterem o quadro clínico do Maior Acompanhado e tendo em conta que este quadro permanece inalterável, a deferir a revisão seria praticar um ato inútil, uma vez que o mesmo já beneficia da medida de representação geral, acautelando assim, a atual situação do Maior Acompanhado que padece de debilidade mental que é irreversível.
Para além do mais, verificar-se-ia a violação de outros princípios legais basilares, como o princípio da gestão processual e da adequação formal, ao abrigo dos arts. 6º e 547º ambos do CPC e ainda o princípio da celeridade processual.
Em conclusão, a deferir a pretensão ora deduzida, teria o Ministério Público que reiniciar também todos os processos de interdição/inabilitação, cujas pessoas estão vivas, para apurar concretamente a situação atual desses beneficiários, pois só assim se cumpriria o princípio da legalidade a que está sujeito.
Destarte, face ao exposto e no que tange ao requerimento apresentado pelo Ministério Público, conclui-se pela inadmissibilidade legal do aludido requerimento, o que se decide.
Notifique.
Dê baixa na estatística oficial.”
Não existem factos não provados.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência[1], no seu artigo 12.º, n.º 4, impõe que os Estados Partes assegurem que as medidas de acompanhamento se aplicarão “no período de tempo mais curto possível” e, para o caso que nos ocupa, devem estar “sujeitas a um controlo periódico por autoridade ou órgão judicial competente, independente e imparcial”.
Em cumprimento dessa obrigação legal, o Estado Português que é parte da referida Convenção, estabeleceu no artigo 155.º do Código Civil (com a alteração que lhe foi dada pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto) que: “O tribunal revê as medidas de acompanhamento em vigor de acordo com a periodicidade que constar da sentença e, no mínimo, de cinco em cinco anos”.
Ora, as convenções internacionais devidamente aprovadas e ratificadas vigoram na ordem jurídica interna, não carecendo de transposições, sendo que o Código Civil deve ser sempre interpretado e aplicado à luz da Constituição e das fontes superiores, entre as quais o Direito internacional.
A este propósito, defende Ana Luísa Santos Pinto[2] que “a instância relativa ao processo no qual tenha sido decretada a medida de acompanhamento também se renova (obrigatoriamente) para revisão periódica do acompanhamento” e que “enquanto estiver instaurado, o tribunal deve rever as medidas decretadas, periodicamente, em conformidade com o que constar da sentença, mas, no mínimo, de cinco em cinco anos (artigo 155.º do C.C.)”. Ainda nas palavras dessa autora, “está aqui em causa, mais uma vez, uma ideia de necessidade e proporcionalidade das medidas de acompanhamento, para salvaguarda da maior autonomia possível do beneficiário”.
Nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 5/04/2022 (processo n.º 389/20.5T8CDN.C1[3]), no âmbito do processo de acompanhamento de maiores, as medidas aplicadas estão sujeitas a um controlo periódico.
As novas regras deste processo especial terão por finalidade, nas palavras de Menezes Cordeiro[4], tratar o visado como um ser humano em parte inteira, com direito à solidariedade e ao apoio que se mostrem necessários. O acompanhamento visa a dignidade e a liberdade das pessoas, procurando salvaguardar e ampliar a sua autonomia e o âmbito da vida privada.
No caso concreto, o Ministério Público (requerente e recorrente) anunciou, em 8/04/2024, que estava a preparar a revisão oficiosa da medida.
Em cumprimento, de resto, da sentença proferida nos autos principais que determinou, na alínea d) do seu dispositivo, que a medida então decretada fosse revista oficiosamente em 5 anos.
Não pode o Tribunal a quo, por isso, determinar que a medida aplicada não seja sujeita a revisão oficiosa, pois que a tal obsta o anteriormente decidido e as normais legais aplicáveis.
O requerido tem direito a um controlo periódico da medida aplicada pelo Tribunal, que é o órgão independente e imparcial com competência para o efeito.
Como tal, deverá revogar-se o despacho recorrido.
Em face do exposto, decide-se julgar totalmente procedente a apelação e, em conformidade, revoga-se a decisão recorrida.
Sem custas.
Notifique.
Évora, 23 de Junho de 2025
Filipe Aveiro Marques
1. Concluída em Nova Iorque em 13/12/2006 e aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 30 de Julho e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/2009, de 30 de Julho.↩︎
2. O regime processual do acompanhamento de maior, Revista Julgar, n.º 41, Almedina, pág. 171, acessível em https://julgar.pt/wp-content/uploads/2020/05/JULGAR41-07-ALSP.pdf↩︎
3. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/cb956ddfe7186e678025883d00577043.↩︎
4. Da situação Jurídica do Maior Acompanhado, Revista de Direito Civil, 2018, n.º 3, Almedina, pág. 547 e 551, acessível em https://www.revistadedireitocivil.pt/articles/da-situacao-juridica-do-maior-acompanhado-estudo-de-politica-legislativa-relativo-a-um-novo-regime-↩︎