Sumário – No caso concreto debate-se uma diversidade de versões sobre certos factos ou a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, se tratar de uma actuação em litigância de má fé dolosa ou com negligência grave.
Apelação n.º 1307/22.1T8EVR.E1
(1.ª Secção Cível)
Relator: Filipe César Osório
1.º Adjunto: Ana Pessoa
2.º Adjunto: Sónia Moura
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ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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I. RELATÓRIO
Ação Declarativa, Processo Comum
1. As partes
Autora – AA
Réu – BB
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2. Objecto do litígio: Declaração de dissolução de união de facto entre a Autora e o Réu em Outubro de 2012, a condenação do réu a pagar à autora a quantia de €19.648,50, acrescida de juros moratórios à taxa legal em vigor, desde a citação e até integral pagamento, bem assim como a pagar metade do valor de €708,27 a título correspondente das quotas de condomínio (acção) e condenação da Autora no pagamento ao Réu da quantia de €19.400,00 a título de compensação pela privação do uso do imóvel adquirido em compropriedade, entre Outubro de 2012 e Outubro de 2020, acrescida de juros de mora à taxa legal civil desde o vencimento até ao efectivo e integral pagamento (reconvenção).
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3. Sentença em Primeira Instância:
Realizada audiência final foi proferido sentença com o seguinte dispositivo:
«Nos termos e fundamentos enunciados, o Tribunal julga a presente acção parcialmente procedente por provada e, em consequência, decide:
a) Declarar dissolvida, em Outubro de 2012, a relação de união de facto mantida entre a autora AA e o réu BB;
b) Absolver o réu BB dos pedidos condenatórios formulados pela autora AA;
c) Absolver a autora AA dos pedidos reconvencionais formulado pelo réu BB;
d) Julgar improcedente por não provado o incidente de litigância de má fé deduzido contra o réu BB, sendo este absolvido do mesmo;
e) Julgar procedente por provado o incidente de litigância de ma fé deduzido contra a autora AA e, em consequência, condenar a autora no pagamento de multa processual que se fixa em 2,75 UC’s;
f) Condenar a autora AA e o réu BB no pagamento das custas processuais da acção na proporção do respectivo decaimento, o qual se fixa em 50% para cada um;
g) Condenar a autora AA no pagamento das custas processuais referentes os incidentes de litigância de má fé, fixando-se a taxa de justiça em 1UC a respeito de cada um, no total de 2 UC’s.».
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4. Recurso de apelação da Ré (Requerimento de 13/12/2023):
A Recorrente/Autora interpôs recurso de apelação da sentença com as seguintes conclusões:
«A) A Sentença deu como provado o facto de que Recorrente e Recorrido viveram uma união de facto entre o ano 2008 até Outubro de 2012.
B) O Tribunal “a quo” também deu como provado que o imóvel foi adquirido em compropriedade pela Recorrente e Recorrido pelo preço de 125.000,00 Euros,
C) Vejamos, tal facto não poderia ser considerado provado porquanto, apesar de na escritura de compra evenda constar essevalor, para alémdesse montantefoipago desinal20.000,00 Euros, tal como comprova o Doc. 1 junto com a Réplica (transferência bancária para o construtor.
D) Sabendo-se que havia e há práticas de pagamentos não declarados para “fugir” ao “fisco”, portanto, não sendo prática, infelizmente, incomum, o imóvel foi adquirido por 145.000,00 Euros,
E) Pelo que deveria ter sido dado como provado que o imóvel foi escriturado por 125.000,00 Euros, com um sinal de 20.000,00 Euros, transferidos para o construtor a título de sinal, para tanto, pago através de crédito multiopções.
F) Isto porque, dando como provado o crédito de 20.000,00 Euros, e bem, contraído por Recorrente e Recorrido, conforme o ponto 8 dos factos provados, cumpria dar como provado o destino desse valor.
G) Destino esse provado pelo documento acima referido e pelo depoimento de parte da Recorrente, já expressamente incluído acima nas Alegações;
H) Portanto, na conjugação do documento, bem como dos créditos contraídos e no depoimento de parte da Recorrente, deveria ter sido dado como provado que a totalidade dos mesmos foram entregues ao construtor/vendedor do imóvel, mas mais, atente-se o depoimento de parte do Recorrido (incluídas nas Alegações);
I) Então o valor da dívida era 145.000,00 Euros, que o Recorrido admitiu, sendo aqui também em conjugação dos documentos acima mencionados, o seu destino foi integralmente para o vendedor/construtor.
J) No ponto 16 foi dado como provado o valor das transferências do Recorrido, sendo que no ponto 17 é dado como provado que tais quantias destinavam-se a fazer face às responsabilidades por si assumidas nos créditos,
K) Mas, se nunca houve incumprimento contratual, sendo que a quantia mensal dos créditos rondava os 415,00 Euros, a que título é que Recorrido efetuou a transferência de valores muito acima das suas responsabilidades, designadamente conforme a tabela do ponto 12 dos factos provados?
L) A que título o Recorrido efetuou tais pagamentos no valor de 4.704,67 Euros entre Outubro de 2012 e Dezembro de 2013, conforme dado como provado no ponto 16?
M) Então, se o Recorrido fazia depósitos acima do valor necessário, só pode ser entendido como liberalidades na parte que excedia a sua responsabilidade no pagamento dos créditos,
N) O Tribunal pode e deve ter convicções mas perante a prova cabal não pode ser só subjetivo, tem que ser objetivo face às provas e à prova rainha, que é a documental.
O) No ponto 21 dos factos provados, o Tribunal “a quo” entendeu que houve um acordo entre Recorrente e Recorrido, sendo que aquela ficaria a pagar a mensalidade dos créditos enquanto usufruísse do imóvel,
P) Mal esteve o Tribunal “a quo”, pois apenas gerou a sua convicção tão só no depoimento do Recorrido, sem data de início desse tal suposto acordo, ou seja, sem sequer existir uma prova documental do acordo e quando tal pseudo acordo foi celebrado.
Q) Isto porque no depoimento da Recorrente ela afirmou ter estado apenas cerca de 6 meses após a separação, ora o Recorrido pagou até fim de 2013,
R) Ou seja, a palavra de um contra ou outro quanto a um pseudo acordo, tendo o Recorrido todo o interesseem afirmar que efetuou talacordo, umavezquenão cumpriu comassuasobrigações noscréditos, tendo interesseno desfecho da causa enão pagar àRecorrenteo valor peticionado.
S) Não podendo valorar-se mais as declarações do Recorrido do que as da Recorrente, até porque aquele admitiu não ter pago a parte que lhe cabia nos créditos,
T) E até porque ambos tinham a chave do imóvel, nunca o Recorrido foi impedido de aceder ao imóvel. Ambas as partes declararam nunca o Recorrido ter sido impedido de entrar no imóvel, se não o fez foi por vontade própria.
U) Será que é de tanta a importância se a Recorrente viveu ou não viveu e até que data?! Esta discorda em absoluto, o cerne é que o Recorrido não pagou a parte dos créditos que era responsável, tinha acesso à casa, a fechadura nunca foi mudada, e nunca comunicou por escrito a sua intenção de fixar uma renda.
V) Portanto, decisão diversa se impunha, ainda que não se provasse que a Recorrente não viveu lá por mais de 6 meses, o que não se concede, o Recorrido não logrou provar o contrário,
W) Nesse sentido, teria que ser dado como provado que a totalidade do crédito foi destinado à aquisição da fração por prova documental, ao contrário da al. C) e G) dos factos não provados,
X) Não se concedendo, ainda que não fosse provado, o Recorrido era responsável pela totalidade dos créditos.
Y) Na mesma linha de raciocínio, também não teria relevância o facto não provado na al.F, não se provando que a Recorrente ali residia, e como já alegado, pouca diferença faria para a decisão, não se provando que foi acordado entre as partes que esta assumia o pagamento integral, decisão diversa se impunha condenando-se o Recorrido na quantia peticionada.
Z) Por lógica se não ficou provado que as partes acordaram que a Recorrente assumiu a responsabilidade do pagamento dos 20.000,00 Euros, também não ficou provada que esta assumiu o outro crédito.
AA) Tal, conduz ao dispositivo que condenou a Recorrente no incidente de litigância de má fé e na absolvição do Recorrido no incidente da mesma figura jurídica.
BB) Questiona-se quando, como e porquê o Tribunal “a quo” retirou a ilação que a Recorrente alterou a verdade dos factos, com pelo menos negligência grave?
CC) O que ficou provado, isso sim, é que a Recorrente pagou os créditos, ambos, se o pseudo acordo não logrou provar-se quanto ao ponto 8 dos factos provados, não poderia ficar provado qualquer acordo quanto ao pagamento do outro crédito, uma contradição insanável do Tribunal “a quo”.
DD) Tendo sido provado que a Recorrente efectuou o pagamento total desde Dezembro 2013 e Janeiro de 2014, até à venda judicial e que os pagamentos foram aleatórios e para além da responsabilidade do Recorrido, não havendo incumprimento das mensalidades, a que título foram pagas tais quantias?
EE) Sendo plausível ao homem médio, ainda que não na totalidade, que o excedente foi a título de liberalidade.
FF)Além disso, a alegada posição distinta no processo de divisão de coisa comum não é assim tão distinta, a Recorrente suporta o facto que viveu no imóvel cerca de seis meses após a separação, entre 2012 e 2013, e 10 ou 12 anos depois pode haver natural discrepância de factos,
GG) Inexiste qualquer vantagem ou desvantagem por parte da Recorrente em admitir que viveu no imóvel ou não.
HH) Já o Recorrido alegar que acordaram que os créditos ficaram na responsabilidade da Recorrente parece ser doloso para isentar-se ao pagamento.
II) Não houve qualquer intenção de distorcer os factos em seu benefício porquanto utilizou os meios processuais idóneos para ver ressarcidos os seus prejuízos patrimoniais, já o contrário parece uma construção “mirabolante” para não ser condenado ao pagamento.
JJ) Por via do não pagamento dos créditos pelo Recorrido na parte que lhe cabia houve um enriquecimento indevido e um empobrecimento na mesma proporção da Recorrente após a separação pelo que deve ser restituído a esta, por isso, sem qualquer causa que o justificasse, pois já estavam separados.
KK) Portanto decisão diversa se impunha, condenando-se o Recorrido na quantia na proporção em que enriqueceu, bem como a absolvição da Recorrente no incidente de litigância de má-fé, pela distorção dos factos a seu favor, condenar-se aquele no incidente de litigância de má-fé.
LL) A restante prova testemunhal não apresenta grande relevância em face da prova documental, pelo que não se entende necessária a sua menção neste recurso.».
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5. Resposta
O Réu não apresentou contra-alegações ao recurso de apelação da Autora.
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6. Objecto do recurso – Questões a Decidir:
Considerando que o objecto dos recursos está delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (arts. 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC) – são as seguintes as questões cuja apreciação aquelas convocam:
– Da impugnação da matéria de facto;
– Da reapreciação jurídica da causa.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
7. É o seguinte o teor da decisão de facto constante da sentença recorrida:
«Da prova produzida resultaram provados os seguintes factos:
1. A autora AA e o réu BB viveram em comunhão de cama, mesa e habitação entre o ano de 2008 e Outubro de 2012.
2. No período referido em 1), a autora e o réu partilhavam a mesma conta bancária, n.º ..., junto da Caixa Geral de Depósitos, S.A.
3. No decurso na relação que mantiveram, a autora e o réu combinaram adquirir, em conjunto, um imóvel para residência própria do casal.
4. Em execução desse acordo, a autora e o réu, na qualidade de adquirentes, declararam adquirir, em 05/01/2011, o imóvel sito na Rua 1, descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º 641-B e inscrito na matriz predial urbana sob o n.º 7728, pelo preço de €125.000,00, tendo sociedade Construções Fernando Rodrigues, Lda. declarado vender.
5. Pelo acordo referido em 4), a autora e o réu não procederam à definição de parte ou de direito concretamente adquirido por cada um.
6. Para pagamento do preço devido pela aquisição do imóvel referido em 4), a autora e o réu celebraram a Caixa Geral de Depósito, em 05/01/2011, um contrato de concessão de crédito à habitação pelo qual obtiveram a entrega do montante de €125.000,00.
7. Pelo acordo referido em 4), os progenitores da autora declararam perante a Caixa Geral de Depósitos, S.A. responsabilizar-se, na qualidade de fiadores, por todas as obrigações emergentes daquele contrato, assumindo tal responsabilidade como principais pagadores,
declarando, ainda, renunciar ao benefício de excussão prévia.
8. A autora e o réu celebraram a Caixa Geral de Depósito, ainda, um contrato de concessão de crédito pelo qual obtiveram a entrega do montante de €20.000,00.
9. As prestações para liquidação das obrigações emergentes dos acordos referidos em 4) e 8) venciam-se mensalmente ao dia 5, repartindo a autora e o réu o pagamento dessa despesa.
10. A autora recebia mensalmente, na conta bancária referida em 2), a remuneração colocada à disposição pela sua entidade empregadora, a sociedade Modelo Continente, S.A.
11. A autora tem, de um anterior casamento, dois filhos a seu cargo, sofrendo o mais velho de síndrome de Asperger.
12. Entre Outubro de 2012 e Maio de 2020, foram liquidadas as seguintes prestações de ambos os créditos, a partir da conta referida em 2):
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14. Em 26/09/2017, o réu intentou acção de divisão de coisa comum contra a autora tendo por objecto o imóvel referido em 4), a qual correu termo no Juízo Local Cível de Évora – Juiz 1 sob o n.º 1697/17.8...
15. Em 30/09/2021, a autora procedeu ao pagamento da quantia de €50,00 referente às mensalidades do orçamento referente aos meses Setembro a Dezembro de 2017 do imóvel e do fundo de reserva referente aos meses de Outubro a Dezembro de 2017.
16. Entre Outubro de 2012 e Dezembro de 2013, foram realizadas as seguintes transferências bancárias ou depósitos para a conta de depósitos à ordem referida em 2), por ordem ou por conta do réu, no valor total de €4.704,67:
a. Em 02/10/2012, a quantia de €701,59, para pagamento da remuneração do réu, efectuada pela sociedade Alugamix Alugueres;
b. Em 30/10/2012, a quantia de €701,59, para pagamento da remuneração do réu, efectuada pela sociedade Alugamix Alugueres;
c. Em 30/11/2012, a quantia de €350,00, d. Em 31/12/2012, a quantia de €350,00; e. Em 31/01/2013, a quantia de €400,00; f. Em 04/03/2013, a quantia de €450,00; g. Em 04/04/2013, a quantia de €450,00; h. Em 03/05/2013, a quantia de €400,00; i. Em 09/09/2013, a quantia de €220,00; j. Em 02/10/2013, a quantia de €300,00; e
k. Em 31/12/2013, a quantia de €381,49, para pagamento da remuneração do réu, efectuada
pela sociedade Alugamix Alugueres.
17. O réu destinava os valores referidos em 16) ao cumprimento das suas responsabilidades perante a instituição bancária.
18. Após a cessação da relação, a autora continuou a residir no imóvel referido em 4).
19. Após a realização da última transferência para a conta bancária referida em 4), o réu informou a autora que pretendia colocar termo à compropriedade dado que não conseguir continuar a contribuir para um bem que não poderia utilizar, tendo expressado à autora a intenção de adquirir o imóvel, o que esta recusou.
20. Então, a autora e o réu acordaram que o imóvel seria colocado no mercado para ser vendido a terceiro, tendo estabelecido que o valor obtido com a venda seria utilizado para liquidar a dívida com a instituição financeira.
21. Em 20), a autora e o réu acordaram, ainda, que até à venda do imóvel a autora ficaria responsável pelo pagamento das prestações mensais ao banco dado que era a mesma que se encontrava a usufruir do imóvel.
22. Em 28/10/2020, no âmbito do processo n.º 1697/17.8..., foi adjudicada a venda do imóvel pelo preço de €131.300,00, à sociedade Sofio & Sofio, Lda.
23. Pela apresentação n.º 3687, de 24/03/2021, encontra-se averbada a aquisição pelo réu BB e por CC da propriedade do prédio referido em 4), transmitida por Sofio & Sofio, Lda.
24. Entre Outubro de 2012 e Outubro de 2020, o imóvel referido em 4) apresentava um valor locatício de mercado de, pelo menos, cerca de €400,00.
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Da apreciação da prova produzida resultaram ainda como não provados os seguintes factos:
A. Que após Outubro de 2012, o réu não tenha procedido ao pagamento de qualquer quantia para pagamento das prestações bancárias.
B. Que a autora tenha procedido ao pagamento das quotas de condomínio e seguros relacionados com a fracção e, ainda, procedido ao pagamento de dívida de condomínio no valor total de €708,27, referente ao período de Setembro de 2017 a Outubro de 2020.
C. Que o crédito referido em 8) tenha sido destinado à aquisição do imóvel referido em 4).
D. Que o crédito referido em 8) tenha sido celebrado para satisfação de uma
responsabilidade exclusiva da autora emergente da aquisição, pelo ex-cônjuge daquela, de um veículo Audi A4.
E. Que a autora e o réu tenham acordado que as obrigações emergentes do acordo referido em 8) seriam exclusivamente satisfeitas pela autora.
F. Em 18), que a autora tenha continuado a residir com os dois filhos no imóvel.
G. Que o valor de €20.000,00, obtido em função do acordo referido em 8), tenha sido destinado para proceder ao pagamento do sinal para aquisição do imóvel.».
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8. Impugnação da decisão da matéria de facto
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto está sujeita a determinadas regras ou ónus sob pena de rejeição e o incumprimento destas regras também deve ser oficiosamente conhecido.
Dispõe o art. 640.º, do CPC, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o seguinte:
1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 – O disposto nos 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do no 2 do artigo 636.º.
Então, daqui resulta desde logo que o recorrente tem de especificar obrigatoriamente, sob pena de rejeição:
1.º - Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
2.º - Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
3.º - A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas;
4.º - E quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
A previsão destes ónus tem razão de ser, quer para garantia do contraditório, quer para efeito de rigorosa delimitação do objeto do recurso, até porque o sistema consagrado não admite recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, não é compreensível que a verificação do cumprimento de tais ónus se transforme num exercício meramente burocrático1.
Já foi objecto de debate saber se os requisitos do ónus impugnatório devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões sob pena da rejeição do recurso. A este propósito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2023 (processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1)2 uniformizou a jurisprudência do seguinte modo: «Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa.».
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8.1. Ponto 4 dos factos provados:
No caso concreto, através de algum esforço interpretativo, parece-nos que a Recorrente se insurge contra a decisão de facto no que toca ao preço de aquisição do imóvel.
Com efeito, insurge-se a Recorrente contra a decisão de se ter considerado como provado que o imóvel em causa foi adquirido em compropriedade pela Recorrente e Recorrido pelo preço de €125.000,00 porque entende para além desse montante foi pago de sinal €20.000,00.
Para tal efeito entende a Recorrente que tal facto está comprovado pelo Doc. 1 junto com a Réplica (transferência bancária para o construtor), ou seja, considera que o imóvel foi adquirido por €145.000,00, pelo que deveria ter sido dado como provado que o imóvel foi escriturado por €125.000,00, com um sinal de €20.000,00, transferidos para o construtor a título de sinal, para tanto, pago através de crédito multiopções.
Considera ainda a Recorrente porque foi dado como provado o crédito de €20.000,00, e bem, contraído por Recorrente e Recorrido, conforme o ponto 8 dos factos provados, cumpria dar como provado o destino desse valor, destino esse provado pelo documento acima referido e pelo depoimento de parte da Recorrente, na conjugação do documento, bem como dos créditos contraídos e no depoimento de parte da Recorrente, deveria ter sido dado como provado que a totalidade dos mesmos foram entregues ao construtor/vendedor do imóvel.
Parece-nos que, apesar da Recorrente invocar o ponto 8, o valor de aquisição do imóvel está mencionado no ponto 4 dos factos provados, portanto, admitimos que é este o ponto de facto impugnado, embora a Recorrente não o diga expressamente.
Na sentença recorrida fundamentou-se aquela decisão de facto do seguinte modo:
«O juízo acerca dos factos acima elencados resulta da análise crítica e conjugada das posições assumidas pelas partes do longo dos articulados e da respectiva prova oferecida, bem como da prova produzida em sede de audiência de julgamento, sujeita a exame contraditório, tendo o Tribunal formado o sentido decisório uma vez apreciada a prova de acordo com o valor legalmente determinado e, nas restantes situações, de acordo com as regras da experiência comum.
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O Tribunal ancorou a sua convicção na documentação constante dos autos (e que adiante melhor se analisará), bem como em razão das declarações e depoimento de parte da autora AA, das declarações de parte do réu BB, bem assim como nos depoimentos prestados pelas testemunhas DD, EE, FF, GG, HH, II e CC.
Concretizando o que anteriormente ficou dito:
(…)
O facto 4) resulta demonstrado por acordo no que tange ao acordo para aquisição do aludido imóvel, tendo sido, ainda, levado em consideração o teor da escritura apresentada nos autos (pela autora, com a petição inicial), de onde resulta que o preço estabelecido para aquisição do imóvel foi de €125.000,00 (e não de €145.000,00 como a autora procurou, posteriormente, fazer crer. Neste particular, as declarações da autora não se mostraram particularmente convincentes, escapando, desde logo, à documentação apresentada nos autos. Neste particular, veja-se que a ordem de transferência apresentada nos autos pela autora, no valor de €20.000,00, se mostra datada de 03/12/2010, ou seja, cerca de um mês antes da celebração da escritura. Donde, impõe-se concluir que o montante em crise foi transferido na decorrência da ordem de transferência outorgada pelo réu antes da concessão do crédito nesse montante, desconhecendo-se – até porque não foi alegado nem demonstrado – qual o destino dado ao referido sinal, sendo certo que não encontrou eco na escritura nem na demais prova. Donde, a hipótese ventilada do negócio ter sido efectuado pelo valor de €140.000,00 – versão da autora –, €145.000,00 (ou de €165.000,00, caso não tivesse havido restituição do sinal) não se mostra de acordo com a prova existente e, ainda, com as regras de experiência comum, atento o distanciamento temporal entre a ordem de transferência e a celebração da escritura e consequentes acordo de financiamento.».
Apesar de constar na escritura o valor de €125.000,00, por si só, não significa que tenha sido este o valor de aquisição, contudo, para se dar como provado um valor diferente daquele que consta da escritura não é suficiente provar que previamente se entregou ao vendedor a quantia de €20.000,00, seria ainda necessário demonstrar que além desse valor também foi efectivamente entregue ao vendedor a alegada quantia de €125.000,00 e não foi produzida qualquer prova nesse sentido.
Com efeito, desconhecemos qual o montante que foi pago ao vendedor no dia da escritura: tanto poderia ter sido €105.000,00 (a acrescer aos mencionados €20.000,00 pagos previamente) como um outro montante qualquer.
E não basta a Recorrente invocar o seu próprio depoimento de parte para fundamentar essa possibilidade.
Aliás, dos elementos objectivos constantes nos autos não temos sequer qualquer indício que possa apontar como plausível o preço alegado pela Autora de €145.000,00, antes pelo contrário, todos os elementos apontam precisamente no sentido contrário: basta atentar que o imóvel foi adquirido pelas partes em 2011 (cfr. ponto 4 dos factos provados) e foi vendido em 2020 apenas pelo valor de €131.300,00 (cfr. ponto 22 dos factos provados), por isso, objectivamente, parece-nos desde logo mais provável ter sido adquirido pelo preço de €120.000,00 do que pelo preço de €145.000,00.
Por outro lado, mesmo que tenham sido pedidos créditos bancários no montante de €145.000,00 não significa necessariamente que tal montante global se destine integralmente ao pagamento do preço, podendo perfeitamente destinar-se a outras finalidades (despesas pessoais, mobiliário, electrodomésticos, entre outras possibilidades), o que também é frequente suceder.
Nesta sequência, não resultaram demonstrados quaisquer elementos para se poder afirmar, em termos de probabilidade probatória que o preço de aquisição foi diferente daquele que consta plasmado na escritura, nem existem razões objectivas para discordar da motivação constante da sentença relativamente à decisão sobre tais factos.
Em suma, improcede a impugnação da decisão de facto relativa ao preço de aquisição do imóvel em causa.
*
8.2. Pontos 16 e 17 dos factos provados:
Nos artigos 10.º e ss. do corpo das alegações a Recorrente alega o seguinte:
“10.º
No ponto 16 foi dado como provado o valor das transferências do Recorrido, sendo que no ponto 17 é dado como provado que tais quantias destinavam-se a fazer face às responsabilidades por si assumidas nos créditos,
11º
Mas, se nunca houve incumprimento contratual, sendo que a quantia mensal dos créditos rondava os 415,00 Euros, a que título é que Recorrido efetuou a transferência de valores muito acima das suas responsabilidades, designadamente conforme a tabela do ponto 12 dos factos provados?
12º
A que título o Recorrido efetuou tais pagamentos no valor de 4.704,67 Euros entre Outubro de 2012 e Dezembro de 2013, conforme dado como provado no ponto 16?
13º
Vejamos, no depoimento de parte do Recorrido:
(…)
14.º
Então, se o Recorrido fazia depósitos acima do valor necessário, só pode ser entendido como liberalidades na parte que excedia a sua responsabilidade no pagamento dos créditos.
15º
O Tribunal pode e deve ter convicções mas perante a prova cabal não pode ser só subjetivo, tem que ser objetivo face às provas e à prova rainha, que é a documental.”.
E as alíneas J) a N) das conclusões do recurso de apelação são no essencial a reprodução do exposto.
Na primeira instância fundamentou-se a decisão de facto do seguinte modo:
«Os factos 16) e 17) resultaram demonstrados atento das declarações prestadas pelo réu, as quais foram valoradas tendo em consideração o teor dos extractos bancários e comprovativos de depósito oferecidos pelo mesmo nos autos, bem assim como atendendo aos extractos bancários oferecidos pela própria autora nos autos, os quais atestam a existência de depósitos e transferências efectuadas para aquela conta bancária durante o ano de 2013. Foi igualmente valorada, quanto à motivação de tais alocações financeiras, o relato objectivo e sereno do réu, digno de credibilidade, tendo explicado ter municiado a conta bancária à medida das suas possibilidades dado que sabia que correspondia a uma obrigação que o vinculava, só o tendo deixado de fazer por incapacidade financeira e na sequência do acordo alcançado com a autora. Por seu turno, as declarações da autora nesse particular não se mostraram particularmente credíveis, procurando perpassar a ideia que tais actos corresponderiam a doações efectuadas pelo réu para a auxiliar. Ora, vistos os factos objectivamente, encontravam-se ambos em situações idênticas, sendo certo que auferiam remunerações similares (ainda que o réu não tivesse menores a cargo). Donde, a motivação verbalizada pelo réu mostra-se consentânea com as regras de normalidade e experiência, especialmente no contexto de cessação da relação análoga à dos cônjuges e no decurso da qual assumiram responsabilidades comuns, responsabilidades essas satisfeitas precisamente a partir daquela conta bancária. Assim, pela sua objectividade e consistência, o relato do réu mostrou-se particularmente credível neste segmento, impondo-se ao demais.».
Ora, tanto no corpo das alegações agora transcritas como nas suas conclusões a Recorrente formula interrogações de onde parece resultar a sua discordância dos pontos 16 e 17 dos factos provados, contudo, não especifica muito claramente qual a decisão de facto a esse propósito que deveria ter sido tomada pelo tribunal, apenas alega que “Então, se o Recorrido fazia depósitos acima do valor necessário, só pode ser entendido como liberalidades na parte que excedia a sua responsabilidade no pagamento dos créditos”, no entanto, entender o excesso como “liberalidades” é um conceito jurídico que não pode constar dos factos provados.
A Recorrente tece um conjunto de comentários vagos e genéricos, de todo o modo, analisada a fundamentação referida constante da sentença recorrida e, sem perder de vista a imediação de que beneficia a primeira instância, ouvidas as declarações do Recorrido delas não resulta qualquer elemento que aponte em sentido diferente da valoração que lhe foi dada pela primeira instância, que mantemos, improcedendo deste modo a impugnação dos pontos 16 e 17 dos factos provados.
*
8.3. Ponto 21 dos factos provados e alíneas C) e G) dos factos não provados:
Prossegue a Recorrente do seguinte modo:
“16º
No ponto 21 dos factos provados, o Tribunal “a quo” entendeu que houve um acordo entre Recorrente e Recorrido, sendo que aquela ficaria a pagar a mensalidade dos créditos enquanto usufruísse do imóvel,
17º
Mal esteve o Tribunal “a quo”, pois apenas gerou a sua convicção tão só no depoimento do Recorrido, sem data de início desse tal suposto acordo, ou seja, sem sequer existir uma prova documental do acordo e quando tal pseudo acordo foi celebrado.
18.º
Isto porque no depoimento da Recorrente ela afirmou ter estado apenas cerca de 6 meses após a separação, ora o Recorrido pagou até fim de 2013, vejamos:
(…)
19.º
Em confronto o depoimento do Recorrido:
(…)
20º
Ou seja, a palavra de um contra ou outro quanto a um pseudo acordo, tendo o Recorrido todo o interesse em afirmar que efetuou tal acordo, uma vez que não cumpriu com as suas obrigações nos créditos, tendo interesse no desfecho da causa e não pagar à Recorrente o valor peticionado.
21º
Não podendo valorar-se mais as declarações do Recorrido do que as da Recorrente, até porque aquele admitiu não ter pago a parte que lhe cabia nos créditos,
22º
E até porque ambos tinham a chave do imóvel, nunca o Recorrido foi impedido de aceder ao imóvel, vejamos as declarações de Recorrente e Recorrido:
(…)
23º
Ambas as partes declararam nunca o Recorrido ter sido impedido de entrar no imóvel, se não o fez foi por vontade própria.
24º
Será que é de tanta a importância se a Recorrente viveu ou não viveu e até que data?! Esta discorda em absoluto, o cerne é que o Recorrido não pagou a parte dos créditos que era responsável, tinha acesso à casa, a fechadura nunca foi mudada, e nunca comunicou por escrito a sua intenção de fixar uma renda.
25º
Portanto, decisão diversa se impunha, ainda que não se provasse que a Recorrente não viveu lá por mais de 6 meses, o que não se concede, o Recorrido não logrou provar o contrário,
27º
Nesse sentido, teria que ser dado como provado que a totalidade do crédito foi destinado à aquisição da fração por prova documental, ao contrário da al. C) e G) dos factos não provados,
28º
Não se concedendo, ainda que não fosse provado, o Recorrido era responsável pela totalidade dos créditos.”
As conclusões reproduzem no essencial aquelas alegações.
Uma vez mais, após algum esforço interpretativo, parece-nos que a Recorrente se insurge contra a decisão de facto relativa ao ponto 21 dos factos provados e alíneas C) e G) dos factos não provados, mas volta ainda a Recorrente a insistir em dar como provado que a totalidade do crédito (€145.000,00) foi destinado à aquisição da fracção, sendo que nesta última parte já diz respeito à impugnação do ponto 4 dos factos provados acima já analisada e já considerada improcedente.
Deste modo, vamos cingir-nos à apreciação do ponto 21 e alíneas C) e G).
A sentença motivou esta decisão de facto do seguinte modo:
«Os factos 19 a 21 resultaram demonstrados a partir do teor das credíveis declarações do réu a esse propósito, as quais se mostraram objectivas, detalhadas e serenas, encontrando, ainda, eco na demais prova objectiva, mormente nos extractos bancários, sendo razoável, à luz da forma como eventos idênticos ocorrem, que a vida assim tenha acontecido. Vejamos: de acordo com as próprias declarações da autora, a mesma não logrou obter financiamento bancário que lhe permitisse adquirir ao réu a parte que lhe cabia no imóvel, tendo-se recusado a alienar o imóvel ao réu. Donde, tendo resultado demonstrado que a autora prosseguiu a residir no imóvel (conforme se apurou), mostra-se de acordo com a normalidade que, em contexto de cessação conjugal, aquele que mantém o uso da coisa adquirida em comum responda pelas responsabilidades financeiras inerentes. Aliás, nem se compreenderia que as partes tivesse aguardado até Novembro ou Dezembro de 2015 (conforme data aposta no contrato de imediação imobiliária oferecido nos autos, conjuntamente com as peças processuais apresentadas na acção de divisão de coisa comum) para colocar o imóvel à venda se nenhum deles se encontrasse a usufruir do mesmo. Não é assim que se opera na realidade, sendo que de acordo com as declarações da autora, recorde-se, esta estaria a viver numa Quinta..., sem condições de habitabilidade, em momento prévio à celebração do contrato de mediação imobiliária. Onde, torna-se por demais evidente a incapacidade da autora explicar as razões da inacção no período temporal em causa, sendo certo que se encontrava a suportar, em exclusivo, as prestações desde Janeiro de 2014, decisão que não se mostra despicienda tendo em consideração que a soma das prestações bancárias corresponde a um valor superior a 4/7 da sua remuneração mensal (de cerca de €700). A corresponder à verdade a versão da autora (que, de acordo com a sua narrativa, não residira no imóvel mas que observava o seu rendimento mensal a ser manifestamente consumido pelas responsabilidades bancárias), não se consegue entender no plano racional – nem das suas declarações – porque razão terá aguardado cerca de dois anos até que o imóvel fosse colocado à venda, no final de 2015. Dito isto, a versão narrada pelo réu apresenta-se mais racional, escorreita e de acordo com as regras de normalidade, fazendo associar o (relevantíssimo) esforço financeiro da autora no pagamento das prestações bancárias no ano de 2014 e nos que se seguiram com a utilização do imóvel, convencendo pela sua sistematização e coerência o relato do réu sobre o da autora.
(…)
Os factos C) a E) e G) resultaram não provados porquanto os meios de prova produzidos não permitem demonstrar, para além de qualquer dúvida, o destino dado pelas partes ao valor em causa e, ainda, a existência de um qualquer acordo quanto ao pagamento das prestações emergentes do crédito pessoal. Detalhando, a versão trazida pela autora, como se disse, não mereceu a atribuição de credibilidade porquanto, para além do manifesto empenho declarativo e fluidez no relato, falha no detalhe, não se revelando coerente no que respeita à cronologia dos eventos. Veja-se, nesse particular, a manifesta incoerência entre a utilização do valor entregue em execução do contrato multiopções e a prévia entrega ao vendedor daquela quantia, infirmando, por essa mesma razão, que o negócio tenha sido efectuado por valor distinto. De igual modo, o relato do réu não se mostrou convincente, nesse particular, quanto ao destino do montante para liquidação de responsabilidade da autora e que esta se tenha vinculado a pagá-lo em exclusivo na medida em que, caso assim fosse, a autora manter-se-ia responsável pela liquidação do mútuo referente ao dito veículo até ao dia da aquisição do imóvel, o que determinaria a verificação da razão que, na perspectiva do réu, seria igualmente impeditiva da sua celebração: a existência de situação de prévio incumprimento bancário. Donde, na falta de prova convincente e tendo presentes os ónus probatórios, impõe-se julgar não demonstrada tal factualidade, não se tendo, em concreto, apurado o destino daquele montante.».
Depois de ouvidos os depoimentos em causa, á luz das regras da experiência e da lógica, sem perder de vista a imediação de que beneficia a primeira instância, como já tivemos oportunidade de referir anteriormente, aderimos a esta motivação, uma vez que, efectivamente, a versão narrada pelo Recorrido apresenta-se mais racional, escorreita e de acordo com as regras de normalidade, fazendo associar o (relevantíssimo) esforço financeiro da Recorrente no pagamento das prestações bancárias no ano de 2014 e nos que se seguiram com a utilização do imóvel, sendo mais provável o que resulta do relato do Recorrido do que da Recorrente.
Deste modo, improcede a impugnação do ponto 21 e das alíneas C) e G).
*
8.4. A Recorrente prossegue as suas alegações (cfr. artigos 29.º e ss. do corpo das alegações e alíneas Y) e ss. das suas conclusões) tecendo considerações vagas e genéricas, referindo vagamente a irrelevância do que consta da al. F) dos factos não provados, não se compreendendo se pretende impugnar alguma factualidade ou apenas tecer considerações jurídicas, novamente insistindo sobre o montante da aquisição do imóvel com referência ao crédito de €20.000,00, menciona a condenação em litigância de má fé e na absolvição do Recorrido no incidente da mesma figura jurídica, questionando porque o Tribunal “a quo” retirou a ilação que a Recorrente alterou a verdade dos factos, com pelo menos negligência grave, entre outros aspectos.
Deste modo, tais asserções devem ser interpretadas não como impugnação da decisão de facto, mas antes como discordância quanto à apreciação jurídica da causa e a sua condenação como litigância de má fé e absolvição do Recorrido da litigância de má fé, que se verá infra.
*
9. Reapreciação jurídica da causa
9.1. Considerando o insucesso da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não vemos razões para alteração do enquadramento jurídico efectuado pela sentença recorrida ao qual aderimos, nada mais havendo a acrescentar.
*
9.2. Quanto à litigância de má fé:
Nos termos do disposto no art. 542.º, n.º 2, do CPC,
Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Como refere Abrantes Geraldes3, «A lei não coloca entraves irrazoáveis à introdução em juízo de pretensões ou de meios de defesa, nem consente que se faça do direito de ação uma interpretação correspondente a uma verdadeira petição de princípio, segundo a qual o acesso aos tribunais estaria reservado apenas aos que tivessem razão. Se um dos objetivos do exercício do direito de ação é o reconhecimento de uma situação jurídica tutelável, o recurso legítimo aos tribunais não pode restringir-se àqueles que inequivocamente tenham a razão do seu lado. Ao invés, a lei confere uma vasta amplitude ao direito de ação ou de defesa, de maneira que, para além da repercussão no campo das custas judiciais, não retira do decaimento qualquer outra consequência, a não ser que alguma das partes aja violando as regras e princípios básicos por que devem pautar a sua atuação processual (cf. também RE 16-12-21, 201/19). Assim, não deve confundir-se a litigância de má-fé com:
a) A mera dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova, por a parte não ter logrado convencer da realidade por si trazida a juízo;
b) A eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar;
c) A discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, a diversidade de versões sobre certos factos ou a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, a lograr impor (RP 2-3-10, 6145/09)».
E continua o referido autor4 que «Através da litigância de má-fé, a lei sanciona a instrumentalização do direito processual em diversas vertentes, quer ela se apresente como uma forma de conseguir um objetivo considerado ilegítimo pelo direito substantivo, quer como um meio de impedir a descoberta da verdade, quer ainda como forma de emperrar ainda mais a máquina judiciária, com a colocação de obstáculos ou com a promoção de expedientes meramente dilatórios. Abarca ainda os casos em que se pretende impedir o trânsito em julgado da decisão e, deste modo, prejudicar a contraparte na tutela ou na realização do direito substantivo que através da decisão lhe seja reconhecido».
Para se verificar a litigância de má fé exige-se a actuação dolosa ou com negligência grosseira.
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/04/20235 (Jorge Arcanjo, proc. n.º 1915/11.6TBALM-A.L1.S1, www.dgsi.pt) decidiu-se que «…a lei tipifica as situações objectivas de má fé, exigindo-se simultaneamente um elemento subjectivo, já não no sentido psicológico, mas ético-jurídico. Por isso, actua de má fé não apenas a parte que tem consciência da falta de fundamento da pretensão ou oposição, como aquela que, muito embora não tenha tal consciência, deveria ter agido com o dever de cuidado».
Na sua atuação processual as partes estão vinculadas aos deveres de probidade e de cooperação, agindo de boa-fé, com brevidade e eficácia, de forma a alcançar-se a justa composição do litígio (cfr. artigos 7.º a 9.º do CPC).
Todavia, tal como decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14/09/20236 (Maria Adelaide Domingos, proc. n.º 20469/19.9T8SNT.E1, www.dgsi.pt), não corresponde a litigância de má-fé a dedução de pretensão ou oposição em que se decaí por mera fragilidade da prova ou por não lograr-se convencer o tribunal de determinada realidade trazida a julgamento, bem como as situações que resultam de discordâncias na interpretação e aplicação da lei aos factos.
De igual modo se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/01/20257 (Helena Melo, proc. n.º 107/24.9T8LRA.C1, www.dgsi.pt):
«A circunstância dos apelantes não terem logrado provar determinados factos que alegaram, não constitui litigância de má fé. A litigância de má-fé não deve ser confundida com prova frágil ou dificuldade de se fazer prova».
Com efeito, na sequência do termo de uma união de facto, qualquer dos elementos da mesma pode instaurar uma acção judicial para obter a cobrança de valores que, em seu entender, tem direito a receber do outro elemento, o que normalmente se procede nos termos do regime do enriquecimento sem causa, transformando-se na prática numa acção com muitas similitudes a uma prestação de contas.
Isto significa que, por regra, é extremamente complexo às partes destrinçar os factos essenciais relevantes e as considerações jurídicas ou mesmo económicas e contabilísticas dos mesmos. A presente acção não é excepção.
No caso concreto em apreciação, quanto à parte respeitante à litigância de má fé, no que toca ao Recorrido/Réu, a sentença recorrida decidiu do seguinte modo: “Julgar improcedente por não provado o incidente de litigância de má fé deduzido contra o réu BB, sendo este absolvido do mesmo;” com os seguintes fundamentos:
«(…) Revertendo à situação em concreto e principiando a análise pela conduta processual do réu, constata o Tribunal que o réu não alegou factos falsos (em concreto, a residência da autora no imóvel, a qual se demonstrou), sendo certo que, no que tange à alegação que o crédito pessoal de destinou a proceder ao pagamento de uma dívida pessoal da autora, pese embora tal realidade não se tenha demonstrado, não se apurou que o facto alegado seja objectivamente falso na medida em que não resultou demonstrada a finalidade do aludido mútuo, nem a alegada pelo réu nem qualquer outra.
Deste modo, uma vez que não se mostram preenchidos os pressupostos objectivos e subjectivos do instituto em causa, impõe-se julgar improcedente o incidente de litigância de má fé do réu, sendo o mesmo consequentemente absolvido do mesmo.».
Ora, analisando o comportamento processual do Recorrido que dimana dos factos por si alegados, dos factos provados nos autos e da motivação, nada há a apontar às considerações plasmadas na sentença recorrida a este propósito.
Com efeito, o Recorrido limitou-se a exercer os seus direitos previstos na Lei e na Constituição, apenas não demonstrando a sua versão dos factos, não actuando assim com litigância de má fé, nem com negligência grave nem com dolo.
No que diz respeito à Recorrente, a primeira instância decidiu do seguinte modo: “Julgar procedente por provado o incidente de litigância de ma fé deduzido contra a autora AA e, em consequência, condenar a autora no pagamento de multa processual que se fixa em 2,75 UC’s; (…) g) Condenar a autora AA no pagamento das custas processuais referentes os incidentes de litigância de má fé, fixando-se a taxa de justiça em 1UC a respeito de cada um, no total de 2 UC’s.”, com os seguintes fundamentos:
«Por seu turno, impõe-se concluir que a autora, com, pelo menos, negligência grave, alterou a verdade dos factos e omitiu factos relevantes para a decisão da causa, na medida em que alegou que não residiu no imóvel – facto que se apurou não corresponder efectivamente à verdade dos factos, tendo presente, desde logo, a assunção de posição processual incompatível em processo judicial distinto a respeito do mesmo objecto – e, ainda, omitiu que o réu tenha procedido ao municiamento da conta de depósitos à ordem mantida em comum, no período entre Outubro de 2012 e Dezembro de 2013, sendo certo que a ordem de grandeza dos valores que foram ali colocados à disposição (que não é despicienda face aos rendimentos então obtidos pela autora) permitem concluir que o mesmo houvera contribuído, pelo menos parcialmente, para o cumprimento daquelas obrigações.
Ora, a posição processual assumida pela autora nos autos é, nessa perspectiva, absolutamente censurável porquanto, simultaneamente, faltou à verdade factual e omitiu factualidade relevante para a boa decisão da causa, o que fez, pelo menos, com negligência grave, invocando factualidade que, de modo expedito, poderia saber não corresponder à verdade.
Deste modo, uma vez que se verificam os pressupostos objectivos e subjectivos, ao abrigo dos artigos 542.º, n.º1 e 2, al. b) do Código de Processo Civil e 27.º, n.º3 e 4 do Regulamento das Custas Processuais, condena-se a autora como litigante de má fé no pagamento de multa que se fixa em 2,75 UC’s, tendo em consideração a relevância económica da acção, a situação económica da autora e a repercussão da condenação no património desta, não se condenando no pagamento de qualquer indemnização ao réu porquanto nada foi peticionado.».
Ora, analisando o comportamento processual da Recorrente/Autora que dimana dos factos por si alegados e dos factos provados nos autos, tal como de igual modo sucedeu com o Recorrido/Réu, verifica-se que esta se limitou a exercer os seus direitos previstos na Lei e na Constituição, apenas não demonstrando a sua versão dos factos, não actuando assim com litigância de má fé, nem com negligência grave nem com dolo.
Com efeito, no contexto dos factos alegados e provados no seu conjunto, a referida omissão da Recorrente/autora de que o Recorrido/Réu tenha procedido ao municiamento da conta de depósitos à ordem mantida em comum, no período entre Outubro de 2012 e Dezembro de 2013 não é suficiente para daí se retirar uma actuação subjectivamente com dolo ou negligência grave, pois competia ao Recorrido/Réu e não àquela o ónus de invocar os seus eventuais créditos, o que veio a fazer em reconvenção.
Nesta sequência, acaba por se debater no caso concreto uma diversidade de versões sobre certos factos ou a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, se tratar de uma actuação em litigância de má fé dolosa ou com negligência grave.
Deste modo, importa manter a decisão de absolvição do Recorrido/Réu e revogar a decisão que condenou a Recorrente/Autora como litigante de má fé, absolvendo-a dessa condenação.
*
10. Responsabilidade Tributária
As custas do recurso de Apelação são da responsabilidade da Recorrente/Autora e do Recorrido/Réu, na proporção do decaimento, que se fixa em 9/10 a cargo da Recorrente/Autora.
*
III. DISPOSITIVO
Nos termos e fundamentos expostos,
1. Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela Recorrente/Autora e, em consequência,
2. Absolve-se a Recorrente/Autora da condenação como litigância de má fé.
3. Confirmar a sentença quanto ao demais.
4. Custas do recurso de Apelação da responsabilidade da Recorrente/Autora e do Recorrido/Réu, na proporção do decaimento, que se fixa em 9/10 a cargo da Recorrente/Autora.
5. Registe e notifique.
*
Évora, data e assinaturas certificadas
Relator: Filipe César Osório
1.º Adjunto: Ana Pessoa
2.º Adjunto: Sónia Moura
______________________________________________
1. António Abrantes Geraldes e outros, CPC Anotado, Vol. I, Almedina, 2022, pág. 831.↩︎
2. https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/12-2023-224203164↩︎
3. Geraldes, António, A. et al. Código de Processo Civil Anotado Vol. I - Parte Geral e Ação Declarativa. Disponível em: Grupo Almedina, (3rd Edição). Grupo Almedina, 2022, pág. 641.↩︎
4. Geraldes, António, A. et al. ob. cit., pág. 642.↩︎
5. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a6895c7d3b47a37180258998002b539a?OpenDocument↩︎
6. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/682878d13e3ada1580258a37004aeeb6?OpenDocument↩︎
7. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/3b66623f822b187480258c2600349ab2?OpenDocument↩︎