REPRESENTAÇÃO SEM PODERES
GESTÃO DE NEGÓCIOS
RATIFICAÇÃO DO NEGÓCIO
MAIOR ACOMPANHADO
Sumário

Sumário:
1. A gestão de negócios, tal como se encontra disciplinada nos artigos 464.º e ss. do Código Civil, apenas importa quanto às relações entre o gestor e o dono do negócio e para a apreciação do pedido da autora (que gere um lar de idosos e é terceira nas relações entre a utente representada – entretanto falecida – e os familiares que se assumiram como seus representantes) é indiferente saber se ocorreu validamente uma gestão de negócios e se existiu, ou não, aprovação da gestão.
2. A eficácia de um negócio celebrado entre a entidade que gere a Estrutura Residencial para Pessoas Idosas e familiares (intitulando-se como representantes) da utente (a representada) depende, em regra, da sua ratificação por esta, conforme o disposto no artigo 268.º do Código Civil.
3. A ratificação é um negócio unilateral, não dependente de aceitação, e é receptício, tendo por destinatário a contraparte do negócio, que é aquela a quem importa a ratificação.
4. Estando a representada incapaz de, por si, emitir a declaração de vontade negocial de ratificação e tendo esse poder passado legalmente (por via de decisão judicial proferida em processo de maior acompanhado) para uma das pessoas que outorgou, em nome daquela, o contrato com a autora, não será de exigir nova ratificação formal escrita para se decidir pela eficácia do contrato.

Texto Integral

Apelação n.º 76632/23.3YIPRT.E1

(1.ª Secção)


Relator: Filipe Aveiro Marques


1.ª Adjunta: Maria João Sousa e Faro


2.ª Adjunta: Elisabete Valente



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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO:

I.A.


AA, um dos réus na acção intentada por “Lar PA, Lda.” veio interpor recurso sobre a sentença proferida pelo Juízo Local Cível de Torres Novas, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, que terminou com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, julga-se procedente por provada a ação intentada por Lar PA, Lda. contra BB, CC, DD, EE, AA e FF, na qualidade de representantes da HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE GG e, em consequência, decide-se condenar os RR., nessa qualidade de representantes da HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE GG, a pagarem à A.:

(i) a quantia de 5.268,90€ (cinco mil duzentos e sessenta e oito euros e noventa cêntimos) a título de capital;

(ii) a quantia de 182,85€ (cento e oitenta e dois euros e oitenta e cinco cêntimos), a título de juros de mora vencidos até 07-07-2023.

Custas pelos RR. (cf. artigo 527.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário com que alguns dos RR. litigaram.

Fixa-se o valor da causa em 5.451,75€, ao abrigo do disposto nos artigos 296.º, n.º 1, 297.º, n.º 1 e 306.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil e artigo 18.º do regime anexo ao Decreto-lei n.º 269/98.

I.B.

O réu/apelante apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:

I.

O presente recurso tem como objeto a não existência de uma relação contratual entre a autora na acção e a autora da sucessão a que os réus foram chamados, outrossim, que a divida peticionada não recaiu na esfera jurídica da mãe dos réus mas sim nas rés outorgantes do contrato objeto dos autos.

II.

A autora é uma sociedade que se dedica à prestação de apoio social no âmbito da resposta social de Estrutura Residencial para Idosos tendo intentado procedimento de injunção onde peticionou a condenação dos réus na qualidade de herdeiros de GG no pagamento da quantia de 5.451,75€ pelos serviços prestados e bens fornecidos à sua mãe no âmbito de contrato de prestação de serviços celebrado em 14/04/2021 entre a autora e as rés FF e EE.

III.

O Tribunal a quo começou por indagar da existência de uma relação contratual entre a autora e a autora da sucessão a que os réus foram chamados na acção, apurando saber se a constituição da dívida operou na esfera jurídica da mãe dos réus enquanto autora da sucessão ou se nas outorgantes do contrato, as rés filhas FF e EE.

IV.

Tendo resultado provado que foram as rés FF e EE que decidiram levar a mãe para o Lar explorado pela autora outorgando apenas elas um contrato denominado de prestação de serviços datado de 14/04/2021, estando a mãe até então a residir na sua casa aos cuidados da sua filha, também ré, DD.

V.

Tendo ficado provado que, por sentença transitada em julgado em 30/07/2021 foi determinado o acompanhamento de GG, com a aplicação da medida de representação geral que se tornou conveniente no ano de 2015, e foi nomeada como acompanhante a ré FF e para os cargos de vogais do Conselho de Familia foram nomeados os réus EE e BB.

VI.

Razão pela qual o Tribunal a quo não deveria ter considerado o facto 7 dado como provado em resultado do contrato de prestação de serviços apenas outorgando pelas rés FF e EE porquanto não tinham poderes para agir na qualidade de legais representantes da mãe.

VII.

O douto Tribunal a quo decidiu pela existência de relação contratual entre a autora e GG enquadrando a atuação das rés FF e EE na figura jurídica da gestão de negócios dando como provado por isso o ponto 7 da matéria de facto.

VIII.

Para que se possa recorrer a esta figura jurídica, ao abrigo do disposto no artigo 464º Código Civil, é pressuposto que se verifique a assunção da direcção de negócio alheio, que seja tomada no interesse e por conta do dono do negócio e que exista falta de autorização para tal atuação.

IX.

Resulta provado das várias clausulas do contracto e do demais provado em sede de matéria de facto que quem beneficiou dos serviços prestados pela autora foi GG e não as suas filhas.

X.

Concordando, por isso, o ora recorrente com o douto Tribunal a quo no sentido de estar verificado o primeiro pressuposto da figura jurídica de gestão de negócios, ou seja, que as rés assumiram a direcção de negócio alheio.

XI.

Contudo, o ora recorrente discorda em absoluto na verificação dos demais pressupostos, senão vejamos o segundo pressuposto da actuação por interesse e por conta do dono do negócio.

XII.

Resultando como provado que à data da outorga do contrato GG era portadora de uma síndrome demencial, a atuação das rés no interesse de GG tem de ser avaliada não mediante o apuramento da sua vontade à data, mas sim em moldes objetivos.

XIII.

E objetivamente ficou provado através dos depoimentos prestados pela testemunha HH, pelo réu AA, ora recorrente, e pelas rés FF e EE, em concreto, quando refere que chamaram a GNR para ter a certeza que não estavam a fazer nada ilegal com a sua mãe, que GG nunca manifestou vontade em ir para o Lar.

XIV.

Sendo que a atuação das rés nunca foi no interesse da mãe mas sim no seu próprio interesse para resolver uma situação no imediato – a mãe ter ficado sozinha – sem nunca terem questionado os restantes irmãos se podiam ficar com a mãe pelo menos naquela noite uma vez que também resulta provado que eram os filhos que habitualmente cuidavam da mãe.

XV.

As rés sabiam que a pensão auferida pela mãe não era suficiente para o pagamento da mensalidade e bem sabiam não ter rendimentos próprios que permitissem suportar o pagamento do remanescente.

XVI.

As rés bem sabiam que iriam constituir dívida junto da autora não agindo por isso no interesse do dono do negócio, outrossim, celebrando um negócio ruinoso.

XVII.

A actuação do gestor de negócio terá de ser de acordo com o interesse e a vontade real ou presumível do dono do negócio e as rés bem sabiam que a vontade real e presumível da mãe não era colocar-se em situação de incumprimento uma vez que os seus rendimentos não eram suficientes para o pagamento da mensalidade.

XVIII.

Também resulta provado de que a acompanhante nomeada não requereu autorização de venda do património da mãe no processo de maior acompanhado que correu termos com o nº 215/21.8... para fazer face à divida que estava a acumular no Lar explorado pela autora.

XIX.

Não devendo por isso ter sido dado como provado o ponto 7 da matéria de facto porquanto o segundo pressuposto da figura jurídica da gestão de negócios não se encontra preenchido uma vez que a ré FF não agiu no interesse da mãe, outrossim, agiu em seu prejuízo.

XX.

Vejamos se o último pressuposto da figura jurídica - a falta de autorização do gestor – se encontra colmatado,

XXI.

Do ponto 11 dos factos dados como provados, é possível concluir que à data da outorga do contrato objeto dos presentes autos, nenhuma das rés tinha poderes para o fazer nem para agir enquanto responsáveis pela mãe porquanto a ré FF só foi nomeada como acompanhante a 30/07/2021, data essa em que passou a agir em representação legal da sua mãe.

XXII.

E nesse sentido, dispõe o artigo 268º do Código Civil o seguinte: (…)[1]

XXIII.

A ratificação da gestão é a declaração de vontade pela qual alguém faz seu ou chama a si o acto jurídico realizado por outrem em seu nome e sem poderes de representação. – Vide Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 8/11/1990 e disponível em www.dgsi.pt

XXIV.

Contudo, sendo o dono do negócio incapaz, caberá ao seu representante legal aprovar e ratificar a gestão de negócios, daí que não se poderá concordar com o douto Tribunal a quo quando conclui que por se ter concentrado na pessoa da ré FF a posição jurídica de gestora de negócios e de legal representante já torna eficaz em relação à mãe o contrato celebrado, estando colmatada a ratificação.

XXV.

Não podemos estar mais em desacordo com a posição assumida pelo douto Tribunal a quo porque a ratificação deveria ter tido lugar na acção de maior acompanhado que correu termos com o nº 215/21.8...

XXVI.

E conforme certidão da sentença do referido processo junta aos presentes autos que serviu de base à matéria de facto provada no ponto 11, em nenhum momento foi feita essa declaração de vontade por parte da acompanhante nomeada no processo.

XXVII.

Sendo que, aqui chegados, não podemos dar como verificado o requisito da autorização do dono do negócio.

XXVIII.

Tendo ficado por demais provado que a constituição da dívida não operou na esfera jurídica de GG mas sim nas rés FF e EE devendo as mesmas ser condenadas no seu pagamento e o aqui recorrente absolvido.

TERMOS EM QUE, E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUENCIA SER A DECISÃO REVOGADA E O ORA RECORRENTE ABSOLVIDO.

FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA!

I.C.

A autora/apelada não respondeu.


I.D.


O recurso foi devidamente recebido pelo Tribunal a quo.


Após os vistos, cumpre decidir.



***


II. QUESTÕES A DECIDIR:

As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).


Assim, no caso, impõe-se apreciar:

a. Impugnação da matéria de facto;

b. Eventual erro de julgamento quanto à possibilidade de responsabilização do recorrente pelo pagamento peticionado.



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III. FUNDAMENTAÇÃO:

III.A. Fundamentação de facto:

III.A.1 Impugnação da matéria de facto:

Quando impugna a matéria de facto o recorrente tem de cumprir os ónus que sobre si impendem, sob pena de rejeição, conforme preceituado no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) a c), e n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil.


De tal preceito decorre que na impugnação da matéria de facto a lei exige o cumprimento pelo Recorrente dos seguintes requisitos cumulativos:

1. a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

2. a indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados;

3. a indicação da decisão que, no seu entender, deve ser proferida quanto aos indicados pontos da matéria de facto;

4. a indicação, com exatidão, das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, isto quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, sem prejuízo da faculdade que a lei concede ao Recorrente de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.


Estes requisitos impostos para a admissibilidade da impugnação da decisão de facto têm em vista garantir uma adequada delimitação do objecto do recurso, não apenas para circunscrever o âmbito do poder de cognição do Tribunal de recurso, mas também para que a outra parte tenha a possibilidade de exercer o contraditório com o âmbito previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 640.º, designadamente indicando os meios de prova que, a seu ver, infirmem as conclusões do recorrente.


O que se visa é circunscrever a reapreciação do julgamento efetuado a pontos concretos da matéria controvertida, uma vez que os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto não visam a realização de um segundo julgamento de toda a matéria de facto, devendo consequentemente recusar-se a admissibilidade de recursos genéricos contra uma invocada errada decisão da matéria de facto.


Quando falte a especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, deve ser rejeitado o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, o mesmo sucedendo quanto aos restantes dois requisitos, nomeadamente a falta de indicação da decisão pretendida sobre esses mesmos factos (ver António Abrantes Geraldes[2]).


Como se sumariou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/02/2022 (processo n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1[3]):

I. Os ónus primários previstos nas alíneas a), b) e c) do art.º 640.º do CPC são indispensáveis à reapreciação pela Relação da impugnação da decisão da matéria de facto.

II. O incumprimento de qualquer um desses ónus implica a imediata rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões.

No mesmo sentido, sumariou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/02/2024 (processo n.º 2351/21.1T8PDL.L1.S1[4]): “Para o cumprimento do ónus de especificação do art. 640.º, n.º 1, do CPC, os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respectivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. Já quanto à especificação dos meios probatórios e à exigência da decisão alternativa, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação”.


Também para esta solução aponta a jurisprudência constante deste Tribunal, de que é exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10/10/2024 (processo n.º 1109/21.2T8ENT.E1[5]).


Não está prevista a possibilidade de convidar o recorrente a aperfeiçoar as alegações de recurso quanto ao incumprimento dos ónus impostos a quem impugne a decisão relativa à matéria de facto.


De todo o modo, a rejeição não opera em bloco. Deve avaliar-se cada um dos concretos pontos impugnados, só se rejeitando o recurso onde fique afectada gravemente a análise do recurso ou a contraditoriedade pela parte contrária (ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/01/2024, processo n.º 1007/17.4T8VCT.G1.S1[6]). Em suma, rejeita‑se a impugnação onde for inviável o seu conhecimento.


No caso concreto, impõe-se verificar que o recorrente apenas em parte cumpre os requisitos principais para a impugnação da matéria de facto (artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).


Na verdade, nas conclusões das suas alegações o recorrente alude a uma impugnação genérica de alguns factos (aludindo, mesmo, a factos que não constam do elenco dos provados) e parece confundir impugnação da matéria de facto com a manifestação de discordância das conclusões jurídicas tiradas a propósito dos factos. No entanto, das conclusões apresentadas pelo recorrente apenas se pode retirar, das indicadas nas alíneas VI) e XIX), o ponto 7 dos factos provados da sentença recorrida como sendo aquele que, na sua visão e sem margem para dúvidas, deve ser alterado.


Assim, apenas se aceita a impugnação relativamente a esse ponto 7 dos factos provados e, quanto ao demais, por falta de indicação dos pontos concretamente impugnados e da decisão pretendida, impõe‑se a rejeição imediata da impugnação quanto à matéria de facto.


Embora não o diga expressamente nas conclusões, retira-se dos pontos 13.º e 14.º das suas alegações[7] que o recorrente apenas se insurge quanto a uma palavra do ponto 7 dos factos provados da sentença: pretende o apelante que, pelo conteúdo do referido contrato, deveria ter sido dado como provado que FF e EE outorgaram na qualidade de responsáveis e não de legais representantes.


Nesse ponto 7 o Tribunal a quo deu como provado que: “Os Legais Representantes da A. e as RR. EE e FF, assinaram um documento, datado de 14-04-2021, denominado «Contrato de prestação de serviços», cuja cópia se mostra junta aos autos sob a referência 10697337, de 27-05-2024, como Doc. 1, e no qual se pode ler, além do mais, o seguinte: (…)” (transcrevendo-se partes do indicado documento).


A sentença recorrida, para fundamentar a resposta a esse ponto consignou que: “Para a prova do ponto 7 dos factos provados, o Tribunal considerou o documento denominado «contrato de prestação de serviços» junto como Doc. 1 do requerimento da A. com a referência 10697337, de 27‑05‑2024, cujo teor aí se reproduziu”.


Ora, o Tribunal a quo explicou da forma possível, esclarecedora e completa, a resposta que ficou consignada nesse ponto 7.


É o recorrente que parte de um equívoco: nesse ponto 7 não se diz que FF e EE outorgaram na qualidade de legais representantes; resulta de uma simples leitura desse ponto que a expressão “legais representantes” se refere às pessoas físicas que outorgaram o contrato em nome da autora (que é uma pessoa colectiva). De resto, quanto às rés EE e FF apenas se diz que assinaram um documento (que, depois, se transcreve).


Improcede, por isso e sem necessidade de outros considerandos, a impugnação sobre a matéria de facto.



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III.A.2. Factos provados:

Considera-se, por isso, a seguinte matéria de facto provada:

1. A A. é uma sociedade que se dedica à prestação de apoio social no âmbito da resposta social de Estrutura Residencial para Idosos.

2. GG, nascida em ...-...-1926, foi portadora de uma síndrome demencial irreversível que, desde o ano de 2015, afetou todas as áreas da sua vida corrente, social, afetiva e económica.

3. Em consequência da patologia referida em 2, GG necessitava da ajuda de terceiros para cuidar da sua pessoa, tratar da sua higiene, apresentação e saúde e para gerir os seus bens, para celebrar contratos, não sendo capaz de se deslocar sozinha, nem de decidir sobre as suas relações afetivas.

4. GG residia na sua casa, sita em Local 1, tendo a sua filha DD estado a residir consigo e a cuidar da sua pessoa desde data não apurada e até 14‑04-2021.

5. Em 14-04-2021, em circunstâncias não determinadas, DD saiu de casa de GG para voltar para sua casa, e informou a irmã FF de que deveria ficar a cuidar de GG, por tempo não apurado.

6. Na senda do referido em 5, FF e EE, filhas de GG, decidiram levá-la, no dia 14-04-2021, para a Estrutura Residencial para Idosos explorada pela A., onde FF trabalhava como auxiliar de Lar.

7. Os Legais Representantes da A. e as RR. EE e FF, assinaram um documento, datado de 14‑04‑2021, denominado «Contrato de prestação de serviços», cuja cópia se mostra junta aos autos sob a referência 10697337, de 27-05-2024, como Doc. 1, e no qual se pode ler, além do mais, o seguinte:

«Entre

PRIMEIRO OUTORGANTE: Lar PA (…)

SEGUNDO OUTORGANTE: (Cliente) GG portador do B.I. n.º ..., contribuinte n.º ..., residente em Local 1.

E, (Responsável) EE (…)

E, (Responsável) FF (…)

Na qualidade de responsável (eis) do Cliente;

Celebra-se o presente contrato nos termos do artigo 25º do Decreto-lei nº 33/2014, de 4 de Março, o qual se rege pelas cláusulas seguintes:

CLÁUSULA I

Fins

O presente contrato visa regular a prestação de apoio social efetuada pelo Primeiro Contratante ao Segundo Contratante, no âmbito da resposta social de Estrutura Residencial para Idosos.

CLÁUSULA II

Objeto do Contrato

Constitui objeto do presente contrato a prestação de serviços de alojamento em regime de internamento, alimentação, higiene pessoal, cuidados de saúde e de enfermagem, bem como atividades complementares com sessões de Animação Sócio Cultural de acordo com o estabelecido no Regulamento Interno.

CLÁUSULA III

Direitos e Obrigações do Primeiro Contratante

No âmbito do presente contrato constituem direitos e obrigações dos Outorgantes, os constantes no Regulamento Interno de Funcionamento, nos termos dos normativos e legislação em vigor.

CLÁUSULA IV

Local da Prestação de Serviços

No âmbito do presente contrato, o Primeiro contratante compromete-se a prestar os serviços no Lar PA, localizado na Local 2.

CLÁUSULA V

Duração e Horário da Prestação de Apoio Social

1. No âmbito do presente contrato os cuidados são prestados ao cliente, mensalmente, 24 horas diárias.

2. Qualquer alteração ao horário, deve ser acordado previamente, por escrito, entre as partes outorgantes, com a maior antecedência possível.

CLÁUSULA VI

Interrupção da Prestação de Cuidados

1. O incumprimento das normas deste contrato, por parte do cliente ou do (s) seu (s) responsável (eis), confere ao estabelecimento o direito de rescindir o contrato de imediato, ainda que no mês em curso, ficando em dívida todos os serviços prestados até à data, bem como os serviços não incluídos na mensalidade e prestados no mês anterior.

2. A rescisão do contrato referida no número anterior poderá ocorrer a partir dos 15 dias após o vencimento da mensalidade e implica a imediata evacuação do cliente do estabelecimento, sendo da sua responsabilidade ou do (s) seus (s) responsável todas as despesas inerentes à sua deslocação, do estabelecimento para o outro destino, ficando desde já estabelecido e acordado que a evacuação se processará para a residência dos cliente ou do (s) seu (s) responsável (eis),

3. Em caso de falecimento, a remoção do corpo deverá ser feita com a maior brevidade possível após comunicação ao (s) responsável (eis) do cliente. Os serviços a prestar pela Agência Funerária deverão ser escolhidos pelo (s) responsável (eis) do cliente.

CLÁUSULA VII

Pagamento da Mensalidade

1. A mensalidade é fixada em 975 € para o ano de 2021, podendo ser alterada se houver agravamento do estado do cliente ou se, por sua iniciativa, mudar de quarto.

2. A mensalidade é paga até ao dia 8 em relação ao mês a que respeita.

3. O estabelecimento reserva o direito de aumentar anualmente a mensalidade referida no número anterior, com um pré-aviso de 30 dias.

4. Não estão incluídos na mensalidade honorários de consultas médicas de especialidade ou fisioterapia de reabilitação, despesas hospitalares, materiais de médicos e de enfermagem, medicamentos, soros, algaliações, calista, fraldas, refeições especiais e outros serviços especiais não previstos no Regulamento Interno e que poderão ser debitados em separado e em conjunto com o recibo da mensalidade.

5. A não utilização dos serviços postos à disposição do cliente, nomeadamente em caso de falecimento, internamento hospitalar, férias, ausência temporária ou rescisão do contrato por internamento, não confere nem reconhece o direito à restituição de quaisquer importâncias já pagas ao estabelecimento.

(…)

CLÁUSULA IX

Vigência do Contrato

1. O internamento será feito pelo prazo de um mês e renovável por períodos sucessivos se nenhuma das partes denunciar o presente contrato com pré-aviso de 30 dias relativamente ao final do mês seguinte, sendo devido o pagamento do mês do pré-aviso caso o cliente se retire ou seja retirado do estabelecimento sem o seu cumprimento.

2. Caso o comportamento do cliente, ou o estado de saúde destabilize o funcionamento do estabelecimento ou ponha em causa o bem-estar físico ou psíquico dos restantes clientes deverá o mesmo ser retirado no prazo máximo de 3 dias, a contar a data da informação dada ao (s) responsável (eis).

(…)

CLÁUSULA XII

Disposições Finais

1. O presente contrato encontra-se redigido em 5 folhas, deve ser celebrado por escrito, em dois exemplares, devidamente assinados e rubricados, sendo um exemplar para o 1º Outorgante, outro para o 2º Outorgante, nos termos da legislação em vigor.

2. Sempre que o cliente não possa assinar o Regulamento Interno bem como o presente contrato, por quaisquer razões físicas ou psíquicas, serão os mesmos assinados pelo (s) seu (s) responsável (eis), nessa qualidade ou na qualidade de gestor de negócios do cliente, produzindo o mesmo efeito da assinatura do cliente.

3. Em tudo o que o presente contrato for omisso, aplica-se o disposto na legislação e normativos em vigor, bem como no Regulamento Interno do 1º Outorgante.

4. O 2º Outorgante declara ter tomado conhecimento do conteúdo do Regulamento Interno do estabelecimento, cujo cópia lhe foi facultada no ato da assinatura do presente contrato;

5. Depois de lido o contrato, ambos concordam com o seu teor e será outorgado um duplicado, sendo o original arquivado no processo individual do cliente e o duplicado entregue ao segundo outorgante.

CLÁUSULA XIII

Entrada em vigor

O presente contrato entra em vigor 15/04/2021.»

8. GG residiu na Estrutura Residencial para Idosos da A., que opera sob a mesma designação social desta, pelo menos desde 15-04-2021 e até ...-04-2023.

9. Os RR. CC, DD e AA não concordaram com o internamento de GG no Lar da A.

10. Todos os RR. visitaram GG no Lar da A.

11. Por sentença proferida por este Juízo Local Cível de Torres Novas, no âmbito do processo n.º 215/21.8..., em 09-07-2021, transitada em julgado em 30‑07-2021, foi determinado o acompanhamento de GG, com aplicação da medida de acompanhamento de representação geral, foi declarado que GG era incapaz de celebrar negócios da vida corrente, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de estabelecer relações com quem entendesse, de cuidar e de educar filhos ou adotados, de testar, de celebrar testamento vital e de exercer direito de voto e foi declarado que a medida de acompanhamento de representação geral se tornou conveniente no ano de 2015.

12. Na sentença referida em 11, a R. FF foi nomeada Acompanhante de GG, e para os cargos de vogais do Conselho de Família foram nomeados os RR. BB e EE.

13. Pelos serviços prestados a GG entre novembro de 2022 e ...-04-2023 e pelos consumíveis de higiene adquiridos para GG pela A. nesse período, a A. emitiu as seguintes faturas em nome de GG:

1. fatura FT2022/2 emitida em 29-11-2022, com vencimento na mesma data, no valor de 1.074,00€, que incluía a mensalidade do mês de dezembro de 2022, no valor de 1.000.00€, 90 unidades de fralda dia, no valor de 54,00€ e 40 unidades de pensos confort Tena L, no valor de 20,00€;

2. fatura FT2022/3 emitida em 02-12-2022, com vencimento na mesma data, no valor de 2,55€, que incluía 3 compressas esterilizadas, no valor de 0,27€, 3 gazes parafinadas, no valor de 1,29€ e 3 ligaduras elásticas, no valor de 0,99€;

3. fatura FT2022/4 emitida em 29-12-2022, com vencimento na mesma data, no valor de 1.160,00€, que incluía a mensalidade do mês de janeiro de 2023, no valor de 1.075,00€, 75 unidades de fralda dia, no valor de 45,00€ e 80 unidades de pensos confort Tena L, no valor de 40,00€;

4. fatura FT2023/1 emitida em 27-01-2023, com vencimento na mesma data, no valor de 1.126,60€, que incluía a mensalidade do mês de fevereiro de 2023, no valor de 1.075,00€, 41 unidades de fralda dia, no valor de 24,60€ e 54 unidades de pensos confort Tena L, no valor de 27,00€;

5. fatura FT2023/2 emitida em 27-02-2023, com vencimento na mesma data, no valor de 1.158,00€, que incluía a mensalidade do mês de março de 2023, no valor de 1.075,00€, 60 unidades de fralda dia, no valor de 39,00€ e 80 unidades de pensos confort Tena L, no valor de 44,00€;

6. fatura FT2023/3 emitida em 30-03-2023, com vencimento na mesma data, no valor de 1.177,50€, que incluía a mensalidade do mês de abril de 2023, no valor de 1.075,00€, 90 unidades de fralda dia, no valor de 58,50€ e 80 unidades de pensos confort Tena L, no valor de 44,00€; e

7. fatura FT2023/4 emitida em 28-04-2023, com vencimento na mesma data, no valor de 11€, que incluía 20 unidades de pensos confort Tena L, no valor de 11,00€.

14. Entre 09-11-2022 e ...-04-2023, a A. adquiriu para GG medicamentos nos seguintes valores:

1. em 09-11-2022: 7,33€; em 22-11-2022: 7,33€; em 23-11-2022: 18,36€; em 24-11-2022: 11,54€;

2. em 07-12-2022: 1,56€ e 11,54€; em 21-12-2022: 7,33€, 1,78€, 2,29€ e 1,56€; em 30-12-2022: 3,37€;

3. em 02-01-2023: 6,23€; em 03-01-2023: 3,18€, 6,55€ e 11,54€; em 05-01-2023: 3,03€; em 09-01-2023: 7,95€; em 20-01-2023: 6,69€; em 25-01-2023: 15,60€;

4. em 01-02-2023: 1,56€, 11,54€ e 3,18€; em 15-02-2023: 1,78€ e 4,79€; em 23-02-2023: 7,35€;

5. em 02-03-2023: 11,54€ e 3,18€; em 11-03-2023: 7,33€; em 14-03-2023: 1,47€, 1,56€, 6,31€, 1,78€ e 7,33€; em 15-03-2023: 1,99€; em 24-03-2023: 11,54€ e 3,18€ em 27-03-2023: 1,47€.

15. Os valores referidos em 13.1, 13.2 e 14.1 foram pagos parcialmente, não tendo sido paga, por referência a tais faturas e despesas, a quantia de 456,82€.

16. As faturas e valores mencionados de 13.3 a 13.7 e de 14.2 a 14.5 não foram pagos.

17. GG faleceu no dia ...-04-2023, no estado de viúva.

18. GG não deixou testamento nem qualquer outra disposição de última vontade.

19. GG deixou os filhos, aqui RR., BB, CC, DD, EE, AA e FF.



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III.A.3. Factos não provados:


Do elenco dos factos não provados nada consta.



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III.B. Fundamentação jurídica:


A. Sobre a natureza jurídica do contrato que fundou a pretensão da autora, entre outros, pode consultar-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 9/04/2025, processo n.º 236/24.9T8PSR.E1[8]: trata-se contrato de prestação de serviços (e alojamento), a que se reporta o artigo 25.º do regime jurídico de instalação, funcionamento e fiscalização dos estabelecimentos de apoio social geridos por entidades privadas (aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 64/2007, de 14 de Março).


Trata-se de um contrato frequente e tipificado, mas cujo conteúdo não se encontra regulamentado, remetendo a lei a sua fixação para a autonomia das partes.


De todo o modo, não está em causa neste recurso nem essa qualificação desse contrato nem a efectiva prestação dos serviços (e alojamento) por parte da autora e que, por isso, deu lugar à necessidade de ser remunerada por eles.


Ora, importa ter presente que o cidadão idoso é, em regra, um adulto com plena capacidade de exercício. Nas palavras de Maria Conceição Barbosa Carvalho Sampaio[9] este “ponto de partida é correto, se pelo caminho atentarmos na possibilidade de desvios. Os casos da vida diária são muitos e diversificados. Vejam-se os casos tão correntes avançados por Cláudia Trabuco, e a sua contextualização: ‘a existência de uma relação jurídica de parentesco ou de afinidade não legitima os familiares a assumirem decisões que se prendam com a pessoa e os bens do seu parente. Da mesma forma, os profissionais das instituições prestadoras de cuidados de saúde devem restringir a sua actuação à prestação de cuidados. No entanto, quando confrontados com uma gradual ou repentina diminuição de capacidade, quer uns quer outros, assumem a gestão da vida das pessoas, tomando decisões relativas à sua vida, saúde e património, muitas vezes sem legitimidade para tal e sem supervisão, que permita designadamente verificar se o interesse da pessoa idosa foi efectivamente acautelado. Assim sucede com a decisão de internamento numa instituição social, muitas vezes tomada pela família com o acordo da instituição em causa sem o consentimento expresso do idoso; com as decisões para a realização de pequenas intervenções de saúde (pequenas intervenções oftalmológicas, utilização de sedativos, tratamentos de fisioterapia,…) que aparecem frequentemente autorizadas pelo responsável da instituição ou por um familiar”.


Tudo está em saber, por isso, quem é responsável pela contraprestação devida à autora.


B. Importa afastar, desde logo, parte da argumentação do recorrente (alíneas VII) a XVIII), XX), XXI) e XXVII) das suas conclusões), pois a gestão de negócios, tal como se encontra disciplinada nos artigos 464.º e ss. do Código Civil, apenas importa quanto às relações entre o gestor e o dono do negócio (como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela[10]).


Nas palavras de Raul Guichard, Catarina Brandão Proença e Ana Teresa Ribeiro[11], existe uma diferenciação a fazer: “A representação (sem poderes) distingue-se da gestão de negócios. Em termos gerais, a primeira diz respeito à relação externa, a segunda à relação interna. Assim, ao operarem em planos diferentes, entrecruzar-se-ão, mas não se confundirão. E a ratificação do negócio representativo não se identifica, concetualmente e na sua relevância, com a aprovação da gestão, mesmo tendo esta por objeto negócios jurídicos. Nem o inverso se mostra verdadeiro. E uma não implica a outra”.


Assim, para a apreciação do pedido da autora (que é terceira nas relações entre a representada – entretanto falecida – e quem se assumiu como sua representante e, sobretudo, é alheia às relações entre os réus) é indiferente saber se ocorreu validamente uma gestão de negócios e se existiu, ou não, aprovação da gestão.


Improcede, por isso, essa parte do recurso.


C. Importará saber, aplicando o regime do artigo 268.º do Código Civil, se o negócio com a autora (sociedade que gere a Estrutura Residencial para Pessoas Idosas) e que foi celebrado por duas das filhas (intitulando-se como representantes) de GG (a representada) é eficaz em relação a esta última em termos tais que, por ter falecido, seja a sua herança a responder pelo pagamento da contraprestação à ora autora.


Para que o negócio celebrado em nome de outra pessoa (o representado) sem que a pessoa que o celebrou em seu nome tenha poderes de representação possa ter plena eficácia, faculta-se ao representado, através da ratificação, a possibilidade de lhe conferir eficácia, assumindo para si o negócio que lhe era destinado e foi concluído em seu nome.


A ratificação é um negócio unilateral (ver o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/07/2013, processo n.º 4244/09.1TBSXL.L1.S1[12]), destinado a tornar eficaz outro negócio e, por isso, não carece de aceitação (nem da contraparte, nem do representante). É, também, receptício, pois tem por destinatário a contraparte do negócio que é aquele a quem importa a ratificação (ver, neste particular, Raul Guichard, Catarina Brandão Proença e Ana Teresa Ribeiro[13]).


A ratificação, como expressamente se refere no n.º 2, do referido artigo 268.º, tem eficácia retroactiva. Ou seja, os efeitos do negócio, uma vez ratificado, têm-se por produzidos na esfera jurídica do representado a partir da celebração do negócio (como se o representante tivesse poderes logo de início). E, por ser assim, uma vez verificada a eficácia da ratificação a mesma é irrevogável (pois já se estaria a falar de desvinculação unilateral do contrato que passou a ter existência e eficácia).


No caso concreto, concordando-se com a solução bem fundamentada a que o Tribunal a quo chegou, pode dizer-se que estando a representada incapaz de, por si, emitir a declaração de vontade negocial de ratificação, esse poder passou legalmente (por via da decisão judicial proferida em 9/07/2021 – ver ponto 11 dos factos provados) para uma das pessoas que outorgou, em nome daquela, o contrato com a autora.


É absolutamente desprovida de base legal a afirmação do recorrente de que, a partir dessa decisão judicial, a ratificação do negócio tivesse que ser feita na acção de maior acompanhado (ver alíneas XXIV a XXVI) das suas conclusões), já que, como se viu, a declaração de ratificação teria por destinatária a autora destes autos (a contraparte do contrato) e nunca o Tribunal ou os eventuais intervenientes dessa outra acção judicial. E nem se vislumbra que esse acto de ratificação tivesse que ser autorizado.


Improcede, por isso, também este fundamento do recurso.


D. Em face do que resultou provado, não existem dúvidas que ocorreu cumprimento do contrato pela autora (esta prestou, efectivamente, cuidados à representada por cerca de 2 anos – conforme pontos 8 e 10 dos factos provados da sentença, já que a falecida GG residiu na estrutura residencial para idosos da autora, também se sabendo que todos os réus, filhos dela, ali a visitaram), o que poderia revelar (factos concludentes, pela aceitação daquele cumprimento) uma ratificação tácita (que, regra geral, se admite nos termos do artigo 217.º do Código Civil).


No entanto, o referido artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14 de Março (norma legal habilitante), conjugado com o artigo 10.º da Portaria n.º 67/2012, de 21 de Março, impõe a obrigatoriedade da forma escrita para os contratos celebrados entre as entidades gestoras das estruturas residenciais para pessoas idosas (ERPI) e os utentes (ou seus familiares).


Na verdade, dispõe-se no n.º 1, do referido artigo 10.º da referida Portaria n.º 67/2012 que: “Devem ser celebrados por escrito contratos de prestação de serviços, atividades e cuidados com os residentes e ou seus familiares e, quando exista, com o representante legal, dos quais devem constar os direitos e obrigações das partes e a discriminação dos serviços, atividades e cuidados a prestar aos residentes que se encontram incluídos na mensalidade, devendo o contrato ser alterado em função da evolução das necessidades”.


Por ser assim, a ratificação do contrato (por via da conjugação do n.º 2, primeira parte, do artigo 268.º e do n.º 2, do artigo 262.º, ambos do Código Civil), teria de ser feita por escrito.


Acontece que, como bem se observa na sentença recorrida, enquanto foi viva a representada não estava capaz de fazer essa ratificação escrita (basta ver a data fixada na sentença que decretou o seu acompanhamento como a do início da necessidade dessa medida), mas a pessoa que passou a poder fazê-lo (em representação daquela) é a mesma que antes tinha agido sem poderes na outorga do contrato (confundindo-se na mesma pessoa que outorgou o contrato escrito os poderes para o ratificar).


Não se vislumbra (nem por uma visão demasiado formalista) que pudesse ser exigido à ré FF que, após ter sido nomeada acompanhante da sua mãe em Julho de 2021, fosse ratificar em nome desta e por escrito o contrato que tinha assinado em Abril desse mesmo ano (3 meses antes).


De resto, seria a todos os títulos ilegítimo (e constituiria claro abuso de direito – cf. artigo 334.º do Código Civil) que se admitisse que a única pessoa que passou a poder ratificar o negócio ainda em vida da representada se pudesse prevalecer da sua ineficácia, recusando a sua ratificação depois de o ter celebrado (e depois de ter aceitado o seu cumprimento pela contraparte, ora autora) ou invocando uma falta de forma da ratificação.


Por seu turno, em vida da representada no negócio em causa nos autos, não assistia ao ora réu/apelante o poder de dar ou recusar a ratificação (não era o representante da pessoa em nome do qual foi feito o negócio). E, depois do falecimento da representada no negócio, perante a actuação anterior de quem teve esse poder de ratificação (as restantes rés que outorgaram o contrato escrito), também não lhe era lícito recusar sozinho a ratificação e, sobretudo (perante a referida regra geral decorrente do artigo 334.º do Código Civil), não lhe é lícito invocar uma eventual falta de forma da ratificação.


Improcede, por isso, também esta parte do recurso e, por conseguinte e não havendo outras questões a decidir, deverá confirmar-se a sentença recorrida.



*




As custas do presente recurso deverão ficar a cargo do recorrente, por ter ficado vencido, nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.



***




IV. DECISÃO:


Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, em conformidade, confirmar a sentença recorrida.


Condena-se o réu/apelante nas custas do recurso.


Notifique.



Évora, 25 de Junho de 2025


Filipe Aveiro Marques


Maria João Sousa e Faro


Elisabete Valente

1. Opta-se por não se transcrever essa parte da conclusão por apenas se referir ao teor da lei que, necessariamente, será do conhecimento do Tribunal.↩︎

2. Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição, Almedina, pág. 200 e ss..↩︎

3. Acessível em https://www.dgsi.pt/JSTJ.NSF/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/526a06e36e808e84802587e3003cb7ce.↩︎

4. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1007b672c0f9ed2980258ad6005cfad7.↩︎

5. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/009a5f03f424577380258bc5005038be.↩︎

6. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2d914831f90a3c4d80258aaf006040d2 e https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/1007-2024-877464275.↩︎

7. E que se transcrevem:

13º. Assim como, o Tribunal a quo não deveria ter considerado o facto 7 dado como provado em resultado do contrato de prestação de serviços junto como doc. 1 do requerimento da autora com a referência 10697337.

14º. Ao invés, pelo conteúdo do referido contrato deveria ter sido dado como provado que FF e EE outorgaram na qualidade de responsáveis e não de legais representantes.↩︎

8. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/acf9a9f20ebfc3ad80258c8c0035a25b.↩︎

9. Revista Julgar online, Dezembro de 2016, pág. 8 (acessível em https://www.julgar.pt/wp-content/uploads/2016/12/20161209-ARTIGO-JULGAR-Regime-Jur%C3%ADdico-das-Incapacidades-Novo-Regime-para-a-Prote%C3%A7%C3%A3o-dos-Idosos-Concei%C3%A7%C3%A3o-Sampaio.pdf.↩︎

10. Código Civil Anotado, Vol. I, 2.ª Ed., Coimbra Editora, Pág. 231.↩︎

11. Comentário do Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Portuguesa, 2014, pág. 652.↩︎

12. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/CAAE7DB78B896A7080257BA60055EC6A.↩︎

13. Op. cit., pág. 653.↩︎