JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
TERCEIROS
Sumário

Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):
- não deve ser admitida pretensão dirigida à junção de documentos em poder de terceiro quando tais documentos não têm relação com os concretos factos alegados, que constituem a causa de pedir, embora se relacionem com os temas da prova, formulados de forma genérica.

- não é admissível solicitar esclarecimentos escritos de terceiro sobre factos por a tal corresponder um meio de prova típico (prova testemunhal), cuja forma e requisitos devem ser respeitados.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Évora

I. Costa, Frutuoso & Julião, Lda., intentou a presente acção contra AA pedindo que esta fosse condenada no pagamento da indemnização que indica.


Alegou, nos seus termos essenciais, que:


- a R. foi gerente de sociedade comercial a quem a A. forneceu bens descritos em facturas juntas.


- aquela sociedade foi declarada insolvente, não tendo a A. recebido o valor das referidas facturas.


- a insolvência deveu-se a actos de má gestão, que a A. vai concretizando por referência a:


. dependência de terceiros, através de empréstimos para saldar dívidas ou mediante o financiamento através de linhas de crédito de fornecedores, levando a uma situação de desequilíbrio financeiro / aumento de custos financeiros


. investimentos em equipamento em ano em que a sociedade teve elevados prejuízos, e investimentos suportados pelos fornecedores e instituições financeiras.


. resultados líquidos referentes aos exercícios de 2015 a 2019 positivos mas muito baixos (perto de 0,5%), pelo que a actividade não era rentável.


. aumento dos inventários em 2019 empolado para compensar o aumento de passivo, de maneira a empresa continuar a apresentar lucros.


. capitais permanentes da empresa não são suficientes, nos anos de 2016 a 2020, para fazer face às necessidades de financiamento do activo não corrente.


. nos anos 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020 a liquidez é inferior a 1, incapacitando a empresa de fazer face às dívidas de curto prazo e levando-a a recorrer a financiamento com maturidades maiores para o efeito (a liquidez gerada não era suficiente para o exercício da sua actividade).


. desde 2016 que não houve entrada de capital na empresa por parte dos seus sócios.


. cada vez maior dependência de fornecedores e empréstimos, aumentando de forma gradual o endividamento a curto prazo e nos últimos anos a médio e longo prazo.


. a empresa antes de entrar no PER já não tinha forma de pagar as suas dívidas, estando em situação de insolvência.


. a empresa tinha um volume de negócios crescente mas sem qualquer rendibilidade.


A R. contestou, impugnando a versão da A.. Em particular, afirmou que inexistia situação deficitária, e que tal resultaria «claro da análise das declarações de IES referentes aos anos de 2017, 2018 e 2019» (art. 54º).


A A., em 15.02.2024, pronunciou-se sobre documentos apresentados pela R., e invocando a existência de excepções, teceu considerações sobre a alegação da R., tendo terminado por requerer «atento ao facto da ré considerar que a contabilidade estava em conformidade (...), ao abrigo do artigo 417º do C.P.C. para contraprova da matéria constante do ponto 54 da contestação e para prova 54 a 93 dos factos alegados em sede de petição inicial, os documentos de inventário final do ano de 2019 e 2020».


Na sequência de despacho, a A. aperfeiçoou elementos alegados na PI, clarificando-os (em 22.04.2024). terminou formulando a seguinte pretensão probatória: «Mais se solicita ao abrigo do artigo 417 do C.P.C. que a ré seja notificada para proceder à junção aos autos dos balancetes de apuramento de 2015, 2016 e 2020 para prova dos pontos 6 a 10 do presente articulado» [pontos nos quais está em causa a identificação dos empréstimos que a A. invoca, afirmando a A. não ter informação para os anos 2015, 2016 e 2020].


Tal aperfeiçoamento foi objecto de resposta.


Realizada a audiência prévia, foi nela fixado o objecto do litígio nos seguintes termos: «Nos presentes autos importa aferir: -Da responsabilidade da Ré pela impossibilidade de cobrança do crédito da Autora. ».


E os temas da prova nos seguintes moldes:


«V- Temas da prova


i) situação deficitária da empresa;


ii) desde quando a Ré tinha conhecimento dessa situação;


iii) intenção da Ré de prosseguir com a empresa nessas condições;


iv) violação dos deveres de gerente pela Ré;


v) nexo de causalidade entre essa violação e a existência do crédito da Autora.».


Tendo a A. afirmando manter os requerimentos probatórios que apresentou em 15.02.2024 e 22.04.2024, foi notificada para, em prazo, «esclarecer de forma concretizada as diligências de prova que requereu» naqueles requerimentos.


A A. respondeu, sustentando que «Os documentos de inventário final do ano de 2019 e 2020 irão permitir aferir da fiabilidade das existências efetivamente inscritas na Informação Empresarial Simplificada.» e «Quanto aos balancetes de apuramento de 2015, 2016 e 2020 os mesmos destinam-se a aferir se a ré retirou dinheiro da empresa, se efetuou suprimentos e qual o peso dos clientes no ativo da empresa. Ao ter acesso a estes documentos a autora poderá aferir com maior exatidão o grau de fiabilidade da contabilidade da sociedade».


Após discussão, foi proferido despacho que, por referência os requerimentos probatórios da A. e aos esclarecimentos prestados, considerou que «a Autora justificou plenamente a relevância dos elementos em causa para a prova dos factos que alega. Na verdade, a Autora alicerça a sua causa de pedir, que sustenta o pedido, no facto da contabilidade da sociedade Frutas CC, Lda., estar manipulada ou camuflar a realidade e que aquela sociedade já há muito não tinha viabilidade económica. Ora, os elementos probatórios em causa servem, na óptica da Autora, para comprovar a sua alegação.», tendo determinado que «se oficie ao processo de insolvência nº 594/21.7... do J2 do Juízo de Comércio da Olhão solicitando, caso a documentação contabilística ainda se encontrar apreendida à ordem desses autos, o envio de cópia dos seguintes elementos: documentos de inventário final de 2019 e 2020 e balancetes de apuramento de 2015, 2016 e 2020» e, caso tal se mostre inviável, seja tal solicitação dirigida à contabilista certificada.


O processo de insolvência juntou o balancete referente ao ano 2020, nele não se encontrando os demais documentos solicitados.


A A. solicitou a notificação da contabilista para juntar o balancete de encerramento de contas do ano de 2020 (pois o que foi junto respeitava apenas a Agosto de 2020).


A contabilista respondeu, juntando inventário de 2020 e explicando não dispor dos demais documentos.


Na sequência de pretensão da A., foi determinado que a R. identificasse anterior contabilista e que, depois, fossem a esta solicitados os elementos em falta.


Na sequência da junção de documentos, a A. reagiu nos seguintes termos:


«1. Resulta da análise aos documentos juntos valores bastante elevados na conta de sócios que a autora desconhece o motivo na medida que apenas constam os movimentos inscritos nada mais.


2. Pelo que, se solicita a V.ª Ex.ª que os contabilistas certificados da sociedade sejam notificados para juntar ao abrigo do artigo 417º do C.P.C. as contas correntes das conta 2681 até à conta 278212 relativa ao período compreendido de 2015-2020 de forma a apurar os movimentos financeiros da sócia.


3. A conta 56115 – ajustamento resultados transitados é relativa a lançamentos de correções de erros que afetam resultados de períodos anteriores, sendo situações materialmente relevantes.


4. Tem um saldo devedor de 221.000.00€


5. Solicita-se V.ª Ex.ª que o contabilista remeta os respetivos documentos de suporte para inscrição deste valor.


6. Atenta à disparidade de valores solicita-se igualmente a junção aos autos do extracto da conta 626811 e 626812 de 2015 a 2020


A R. opôs-se, tendo, em particular, afirmado que a A. não identifica os factos que pretende provar, continuando «à pesca».


Foi depois proferido despacho que, no essencial, considerou que «A Autora justificou a relevância dos elementos em causa para a prova dos factos que alega. Considerando que a Autora alicerça a sua causa de pedir, que sustenta o pedido, no facto da contabilidade da sociedade Frutas CC, Lda., estar manipulada ou camuflar a realidade e que aquela sociedade já há muito não tinha viabilidade económica, e requereu a documentação acima mencionada por apontar incongruências que resultam da documentação já junta aos autos, realçando, assim, a relevância desses elementos para o apuramento dos factos.


Assim, os elementos probatórios em causa servem, na ótica da Autora, para comprovar a sua alegação e, considerando que são documentos conexos com outros já apresentados pela contabilista certificada e que tratam dos factos em causa nos autos, entende-se ser de deferir o requerido.


Termos em que, ao abrigo do disposto nos arts. 417.º n.º 1 e 2, 429.º, 430.º e 432.º do CPC, determino a notificação dos contabilistas certificados da sociedade Frutas CC, Lda., e já identificados nos autos, para, em 10 dias, juntarem aos autos os documentos acima indicados:


- as contas correntes da conta 2681 até à conta 278212 relativa ao período compreendido de 2015-2020;


- os documentos de suporte do saldo devedor de 221.000.00€ inscrito na conta 56115;


- extrato da conta 626811 e 626812 de 2015 a 2020.».


Na sequência da junção dos documentos, requereu a A., no que agora releva, que:


«(...)


7. Atente-se agora no que foi junto relativo ao período compreendido entre 2015-2019, na conta da sócia.


8. Cumpre aferir que documento é que serviu de base a movimento na medida que em “em regra” é sabido que as regularizações são feitas para “limpar saldos”


10. Face ao exposto e ao abrigo do artigo 417º do C.P.C. solicita-se a V.ª Ex.ª que o contabilista da sociedade seja notificado para juntar os respetivos documentos de suporte.


11. No exercício de 2016, na conta 2782004 diário 1 são encontrados diversos movimentos á débito e a crédito, desde empréstimos da sociedade à ré, desde faturas e outros movimentos.


12. Pelo que, solicita V.ª Ex.ª ao abrigo do artigo 417º do C.P.C. que o contabilista da sociedade seja notificado para juntar os respetivos documentos de suporte relativos aos movimentos do exercício de 2016 desta conta, na medida que é desconhecido se estamos a falar de despesas pessoais ou outro tipo de despesas.


13. No exercício de 2017, na conta 2782004, aparecem não só inúmeros movimentos, mas situações irregulares mormente


• 5000.00€ deposito em numerário


• 150.00.00€ empréstimo a AA


• 35.06€ despesa pessoal


• 1100.00€ despesa pessoal


• 5050.00€ despesa pessoal


• 183.24€ despesa pessoal


• 1225.47€ despesa pessoal


14. Afigura-se que estamos perante diversas irregularidades e que a sociedade andou a suportar despesas pessoais da ré.


15. De forma a aferir, e de maneira que não subsistam dúvidas, solicita-se a V.ª Ex.ª ao abrigo do artigo 417º do C.P.C. que o contabilista da sociedade seja notificado para juntar os respetivos documentos de suporte relativamente aos movimentos do exercício de 2017 desta conta


16. No exercício de 2018 na conta 2681001 estamos novamente inúmeras transferências de alguém denominado BB, bem como outras faturas cuja natureza é desconhecida.


17. Pelo que, solicita V.ª Ex.ª ao abrigo do artigo 417º do C.P.C. que o contabilista da sociedade seja notificado para juntar os respetivos documentos de suporte relativamente aos movimentos do exercício de 2018 desta conta, na medida que é desconhecido se estamos a falar de despesas pessoais ou outro tipo de despesas, bem como movimentos a crédito cuja natureza é desconhecida.


18. Atente-se agora na seguinte discrepância.


19. A conta termina em 45710.49€ em 2018 e começa em 45717,93€ em 2019


20. Qual o motivo da discrepância?


21. Solicita-se que o contabilista da sociedade seja notificado para proceder aos devidos esclarecimentos ao abrigo do artigo 417 do C.P.C.


22. Novamente afigura-se que a contabilidade não condiz com a realidade


23. No exercício de 2019 na conta 2681001 estamos novamente inúmeras transferências de alguém denominado BB, bem como outras faturas cuja natureza é desconhecida, e depósitos bem como transferência.


24. Pelo que, solicita V.ª Ex.ª que o contabilista da sociedade seja notificado para juntar os respetivos documentos de suporte, ao abrigo do artigo 417º do C.P.C., relativamente aos movimentos do exercício de 2019 desta conta, na medida que é desconhecido se estamos a falar de despesas pessoais ou outro tipo de despesas, bem como movimentos a crédito cuja natureza é desconhecida.».


A R. voltou a deduzir oposição, sublinhando de novo que não se indicam factos concretos em causa e que a A. continua «à pesca».


Sobre aquele requerimento recaiu despacho que, em parte, determinou a junção de documentos e, em outra parte, se pronunciou nos seguintes termos:


«Por fim, na medida em que a A. se limita a levantar conjecturas sobre hipotéticos cenários (nºs 8 e 9, 11 e 12, 13 e 14, 16 e 17, 23 e 24) ou suscita questões que não assumem relevância ao objecto dos autos (nºs 18, 19, 20 e 21), por não se nos afigurarem pertinentes, indeferem-se as diligências requeridas em 10, 12, 15, 17, 21 e 24 do requerimento de 7.01.2025.».


É deste despacho que vem interposto o presente recurso, formulando a A. (doravante recorrente) as seguintes conclusões:


I. O presente recurso incide sobre o despacho proferido em 31-01-2025 no qual é dito o seguinte Por fim, na medida em que a A. se limita a levantar conjecturas sobre hipotéticos cenários (nºs 8 e 9, 11 e 12, 13 e 14, 16 e 17, 23 e 24) ou suscita questões que não assumem relevância ao objecto dos autos (nºs 18, 19, 20 e 21), por não se nos afigurarem pertinentes, indeferem-se as diligências requeridas em 10, 12, 15, 17, 21 e 24 do requerimento de 7.01.2025. Notifique.


II. Atente-se o que consta da ata de audiência datada de 09-05-2024 na matéria referente aos temas de prova: i) situação deficitária da empresa; ii) desde quando a Ré tinha conhecimento dessa situação; iii) intenção da Ré de prosseguir com a empresa nessas condições; iv) violação dos deveres de gerente pela Ré; v) nexo de causalidade entre essa violação e a existência do crédito da Autora.


III. Atente-se no requerimento remetido aos autos principais, pela recorrente, em 07-01-2025.


IV. A recorrente em momento algum teve acesso aos documentos agora solicitados.


V. No ponto 10 e 11 solicita-se que a contabilidade da sociedade detida pela recorrida seja notificada para juntar documentos de suporte relativamente aos movimentos do exercício de 2017 desta conta.


VI. Isto deve-se pelo facto de existirem situações irregulares.


VII. Conforme é dito constam inúmeras despesas identificadas como “despesa pessoal” e “empréstimo a AA.”


VIII. No exercício de 2018 na conta 2681001 estamos novamente inúmeras transferências de alguém denominado BB, bem como outras faturas cuja natureza é desconhecida.


IX. A recorrente solicita novamente aqui, a junção aos autos dos documentos de suporte relativamente aos movimentos do exercício de 2018 desta conta, na medida que é desconhecido se estamos a falar de despesas pessoais ou outro tipo de despesas, bem como movimentos a crédito cuja natureza é desconhecida.


X. De igual forma a conta 2681001 termina em 45710.49€ em 2018 e começa em 45717,93€ em 2019, não existindo qualquer explicação para esta discrepância.


XI. No exercício de 2019 na conta 2681001 estamos novamente inúmeras transferências de alguém denominado BB, bem como outras faturas cuja natureza é desconhecida, e depósitos bem como transferências.


XII. Não se compreende que o tribunal ad quo fale que o presente pedido são mera conjeturas e hipotéticos de cenários quando temos uma contabilidade de uma sociedade que ficou insolvente a qualificar despesas como “despesas pessoais”


XIII. Entre as diligências probatórias previstas no Código de Processo Civil está a que consta do seu artigo 429º/1, segundo o qual: “quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requer que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado (…). Dispondo o número 2 que: “se os factos que a parte pretende provar tiverem interesse para a decisão da causa, é ordenada a notificação”.


XIV. A recorrente apenas agora teve acessos aos documentos de forma a aferir um cabal escrutínio e no sentido de ser pertinente requereu a presente diligência probatória.


XV. Não sendo, por conseguinte, compreensível que à parte onerada com a prova, neste caso a recorrente, fosse exigível não só ter acesso prévio aos documentos solicitados, bem como aferir quais são as conclusões que iria retirar dos mesmos.


XVI. Pelo que, no caso dos presentes autos, deveria a Mma Juiz, fazendo apelo ao princípio do inquisitório insíto no Art. 411º CPC e considerando a sua pertinência para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa, ter deferido o requerimento da recorrente e notificado a recorrida e a sua contabilista para juntar os documentos solicitados no prazo que fixasse para o efeito.


XVII. Afigura-se que, em prol da descoberta da verdade material, o juiz tem o poder-dever de realizar, mesmo oficiosamente, todas as diligências que considere necessárias ao apuramento da verdade e justa composição do litígio quanto aos factos que é licito conhecer


XVIII. Ao decidir como decidiu o tribunal ad quo está coartar o direito da recorrente e a impedi-la de produzir prova relativamente ao objeto do presente litígio.


XIX. O principio do inquisitório, de que é a expressão a regra do artigo 411º do C.P.C., não compreende um dever, para o tribunal, de acolher qualquer pretensão instrutório de uma das partes, sob a mera invocação da relevância dos meios que aponta, facultando-lhe a produção de prova que tempestivamente deixou de requerer, obliterando com isso o regime especificamente prescrito para esse efeito e, em igualdade, para ambas as partes.


XX. Só em concreto, isto é, perante concretas circunstâncias da atividade instrutória desenvolvida ou a desenvolver conforme tempestivamente proposta pelas partes, é que o tribunal poderá considerar a necessidade de outros meios de prova, que se revelem necessários “ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio”. E isso poderá acontecer antes da realização da audiência de discussão e julgamento ou mesmo antes, logo que, na situação concreta, o tribunal entenda ser essencial à realização desses objectivos a produção de qualquer meio de prova que as partes não requererem oportuna e regularmente.


XXI. Não o tendo feito, o douto despacho recorrido fez errada interpretação do artigo 417º do C.P.C., assim como violou o artigo 429/1 e 2, 6º e 411º do CPC, devendo ser substituído por outro que admita o requerido pela Recorrente.


A recorrida respondeu, sustentando a manutenção da decisão impugnada.


II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».


Deste modo, cabe delimitar com rigor as questões colocadas no recurso face às pretensões que foram efectivamente indeferidas.


Assim:


Ponto I.


Primeira pretensão indeferida:


«8. No exercício de 2015, na conta 2782004 diário 1, com data de 31-12-2015 é realizada uma regularização de saldo de caixa, resultando um valor de 8000.00€ a favor da sociedade.


9. Cumpre aferir que documento é que serviu de base a movimento na medida que em “em regra” é sabido que as regularizações são feitas para “limpar saldos”


10. Face ao exposto e ao abrigo do artigo 417º do C.P.C. solicita-se a V.ª Ex.ª que o contabilista da sociedade seja notificado para juntar os respetivos documentos de suporte.»


Tal diligência é mencionada nas alegações em termos meramente descritivos (no n.º3 das alegações, quando a recorrente reproduz o teor do requerimento probatório que efectuou [1]), mas é depois ignorada na discussão (no desenvolvimento das alegações), onde a recorrente nunca se refere explicitamente a tal diligência (v. números 8 e ss. das alegações). E nenhuma referência a esta diligência probatória consta depois das conclusões do recurso (pontos V e ss., que no essencial reproduzem as alegações). Esta diligência está, pois, excluída do objecto do recurso.


Ponto II.


Segunda pretensão indeferida:


«11. No exercício de 2016, na conta 2782004 diário 1 são encontrados diversos movimentos á débito e a crédito, desde empréstimos da sociedade à ré, desde faturas e outros movimentos.


12. Pelo que, solicita V.ª Ex.ª ao abrigo do artigo 417º do C.P.C. que o contabilista da sociedade seja notificado para juntar os respetivos documentos de suporte relativos aos movimentos do exercício de 2016 desta conta, na medida que é desconhecido se estamos a falar de despesas pessoais ou outro tipo de despesas.»


Vale, mutatis mutandis, o que se acabou de referir: esta diligência vem referida em termos descritivos nas alegações (reproduzindo o requerimento probatório), e é depois omitida no desenvolvimento das alegações e, em especial, nas conclusões. Também está assim excluída do objecto do recurso.


Ponto III.


Terceira pretensão indeferida:


«13. No exercício de 2017, na conta 2782004, aparecem não só inúmeros movimentos, mas situações irregulares mormente

• 5000.00€ deposito em numerário

• 150.00.00€ empréstimo a AA

• 35.06€ despesa pessoal

• 1100.00€ despesa pessoal

• 5050.00€ despesa pessoal

• 183.24€ despesa pessoal

• 1225.47€ despesa pessoal

14. Afigura-se que estamos perante diversas irregularidades e que a sociedade andou a suportar despesas pessoais da ré.


15. De forma a aferir, e de maneira que não subsistam dúvidas, solicita-se a V.ª Ex.ª ao abrigo do artigo 417º do C.P.C. que o contabilista da sociedade seja notificado para juntar os respetivos documentos de suporte relativamente aos movimentos do exercício de 2017 desta conta


Esta diligência vem discutida nas alegações e nas conclusões (n.º 8 a 10 das alegações e V a VII das conclusões).


Ponto IV.


Quarta pretensão indeferida:


«16. No exercício de 2018 na conta 2681001 estamos novamente inúmeras transferências de alguém denominado BB, bem como outras faturas cuja natureza é


desconhecida.


17. Pelo que, solicita V.ª Ex.ª ao abrigo do artigo 417º do C.P.C. que o contabilista da sociedade seja notificado para juntar os respetivos documentos de suporte relativamente aos movimentos do exercício de 2018 desta conta, na medida que é desconhecido se estamos a falar de despesas pessoais ou outro tipo de despesas, bem como movimentos a crédito cuja natureza é desconhecida


Esta diligência vem discutida nas alegações e nas conclusões (n.º 11 e 12 das alegações e VIII e IX das conclusões).


Ponto V.


Quinta pretensão indeferida:


«18. Atente-se agora na seguinte discrepância.


19. A conta termina em 45710.49€ em 2018 e começa em 45717,93€ em 2019


20. Qual o motivo da discrepância?


21. Solicita-se que o contabilista da sociedade seja notificado para proceder aos devidos esclarecimentos ao abrigo do artigo 417 do C.P.C.»


Esta diligência vem discutida nas alegações e nas conclusões (n.º 13 a 15 das alegações e X das conclusões).


Ponto VI.


Sexta pretensão indeferida:


«23. No exercício de 2019 na conta 2681001 estamos novamente inúmeras transferências de alguém denominado BB, bem como outras faturas cuja natureza é


desconhecida, e depósitos bem como transferência.


24. Pelo que, solicita V.ª Ex.ª que o contabilista da sociedade seja notificado para juntar os respetivos documentos de suporte, ao abrigo do artigo 417º do C.P.C., relativamente aos movimentos do exercício de 2019 desta conta, na medida que é desconhecido se estamos a falar de despesas pessoais ou outro tipo de despesas, bem como movimentos a crédito cuja natureza é desconhecida.»


Esta diligência vem discutida nas alegações e nas conclusões (n.º 16 e 17 das alegações e XI das conclusões).


Assim, o objecto do recurso cinge-se à avaliação da necessidade de realizar as diligências probatórias referidas nos pontos III a VI.


III. Os factos relevantes, na avaliação a realizar, têm natureza exclusivamente processual, mostrando-se descritos no relatório elaborado (a partir dos dados documentados do próprio processo).


IV.1. Está em causa, no essencial [2], a obtenção de documentos que se encontram em poder de terceiros.


O regime geral instrutório, neste quadro, pode sintetizar-se nos seguintes moldes:


- a instrução tem por objecto, no caso, os temas da prova, de acordo com a previsão literal, mas equívoca, do art. 410º do CPC.


- cabe a cada uma das partes oferecer, nos momentos próprios, a prova que considere relevante para sustentar os factos constitutivos da sua tese (pretensão ou contra-pretensão) pois a insuficiência probatória funciona contra a parte (art. 342º do CC e art. 552º n.º6 ou 572º al. d) do CPC).


- estando essa prova (documental) em poder de terceiros, sem que a parte possa a ela aceder, pode requerer a mediação do tribunal para garantir o acesso. Tal deriva do art. 432º do CPC, o qual, quanto aos termos a que fica sujeito o requerimento, remete depois para o art. 429º do CPC. Será, pois, à luz desta norma que deve a pretensão ser analisada.


2. Segundo este art. 429º do CPC:


1 - Quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requer que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado; no requerimento, a parte identifica quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar.


2 - Se os factos que a parte pretende provar tiverem interesse para a decisão da causa, é ordenada a notificação.


O regime fixa, de forma expressa, duas condições de atendibilidade da pretensão:


i. de um lado, cabe ao requerente identificar, na medida do possível, o documento em causa, e especificar os factos que com ele quer provar.


ii. de outro lado, a pretensão só é admitida se os documentos respeitarem a factos com interesse para a decisão da causa, o que equivale à exigência da sua pertinência.


Adicionalmente, sustenta-se também, porque implícito no regime legal, que:


iii. a parte deve justificar a impossibilidade de apresentação do documento, requisito que se justifica por a parte não se poder fazer substituir na actividade probatória. Trata-se esta de exigência cuja verificação, no caso, não suscita dificuldades [3].


3. O primeiro aludido requisito, de feição mais formal, justifica-se por duas vias: a identificação do documento visa obter um mínimo de garantia quanto à sua existência e perceber a sua relação com o objecto do processo [4]; a indicação dos factos pertinentes visa permitir avaliar a pertinência do documento.


O segundo requisito corresponde ao pressuposto material da pretensão: o relevo probatório do documento condiciona a sua admissão. Ou seja, têm que estar em causa documentos que aportem um contributo específico para a boa decisão da causa, o que só pode suceder quando tenham um significado próprio na demonstração de factos controvertidos ou necessitados de prova. Ponto onde se justifica ainda apelar ao regime do art. 443º n.º1 do CPC, pois se o juiz deve mandar desentranhar documentos impertinentes ou desnecessários, por maioria de razão deverá indeferir a junção dos documentos nessas condições (mormente quando os documentos se encontram em poder de terceiros). A definição do que sejam documentos impertinentes ou desnecessários não agrega consensos, envolvendo alguma flutuação. Não obstante, e como ponto de partida heurístico, podem traçar-se algumas linhas orientadoras:


- a pertinência teria a ver com a relação entre o documento e os factos probandos. Documento impertinente seria assim, no seu núcleo essencial, aquele que não tem relação com os factos relevantes em discussão (ou, simetricamente, que visa factos alheios ao objecto do processo, sem relevo próprio na discussão e na decisão da causa). Inclui-se ainda aqui o documento que, relacionando-se embora com factos pertinentes, é manifestamente destituído de capacidade probatória para revelar esses factos (por exemplo, quando o documento apenas contenha opiniões ou valorações sobre factos.)


- a desnecessidade teria a ver com a importância probatória ou o significado probatório, no caso, do próprio documento. Assim, documento desnecessário seria aquele que, embora também relacionado com os factos em discussão e tendo capacidade probatória própria, não teria no caso valor probatório relevante (ou valor probatório consistente) por «nada acrescentar em termos probatórios aos elementos já existentes». Será o caso do documento particular que visa facto que apenas se prova por documento autêntico ou facto que já está demonstrado por documento autêntico ou confissão. Tende-se, contudo, a excluir da asserção, ao menos nos casos em que existe requerimento probatório da parte, a mera redundância probatória, pois o documento redundante (que se junta a outro ou outros elementos probatórios com semelhante valor, surgindo como aparente repetição probatória) não é só por isso desnecessário, envolvendo ainda a afirmação de tal redundância um juízo probatório do tribunal (sobre a suficiência da prova) que, em sede instrutória e perante o requerimento probatório da parte, não prevalece sobre diferente juízo probatório desta parte nem sobre o seu direito à junção do documento [5] [também se afirma que seriam desnecessários os documentos que visam factos sem interesse para a causa mas parece que tal situação já cabe na falta de pertinência].


A distinção não é perfeita e as fronteiras mostram-se fluídas. O exposto funciona, como referido, enquanto directrizes orientadoras.


4. Ora, o que se começa por verificar é que se a recorrente tende a identificar, na medida do possível, os documentos em causa, ela nunca indica quais os factos concretos que com eles pretende demonstrar. O que poderia, só por si, constituir fundamento de indeferimento do requerido (embora tal não tenha sido invocado no despacho recorrido). É certo que também se sustenta, com aparente acerto, que se deve dar a possibilidade à parte de aperfeiçoar o requerimento, indicando os factos que considera estarem relacionados com os documentos solicitados [6]. No entanto, tal não se justificaria no caso, como decorre do que a seguir se expõe.


5. Em sede de recurso, a recorrente procurou justificar o significado probatório dos documentos, relacionando-os com a violação dos deveres de gerente pela recorrida (ponto 7 das alegações), a qual constituiria um dos temas da prova.


A menção aos temas da prova não é, como deriva da literalidade do referido art. 429º n.º1 do CPC, suficiente para preencher aquele requisito formal (que apela a factos concretos). O que se compreende pois os temas da prova não pretendem constituir uma descrição dos factos controvertidos (ao invés, correspondem a um paradigma diverso), visando apenas, com grande latitude operativa [7], indicar quais as grandes questões de facto que permanecem em aberto, por controvertidas ou necessitadas de prova. A sua fixação pode revestir grande amplitude e generalidade (como ocorre no caso), servindo essencialmente para demarcar em termos gerais o objecto da discussão factual e assim aquilo a que, de forma geral, a prova se dirige, mas já não aquilo que, em termos concretos, tem que ser provado. Com efeito, os temas da prova não substituem os factos alegados que integram a causa de pedir (ou a base da excepção), e são, em último termo, estes factos, e apenas estes factos, que se integram na actividade instrutória e que podem e têm que ser demonstrados (em conformidade aliás com a função das provas: demonstrar factos, nos termos do art. 341º do CC). Temas da prova que poderão não conter sequer factos concretos, como ocorre no caso (embora, dada a sua «geometria variável», tal possa ocorrer) [8]. Por isso que os temas da prova têm sempre que ser entendidos por referência aos factos alegados que os justificam: só existem temas da prova porque existem factos alegados que corporizam e delimitam aqueles temas, e por isso o objecto da prova são sempre factos (assim se entendendo a menção do art. 410º do CC aos temas da prova [9]). E também por isso que se justifique afirmar que «a actividade instrutória orienta-se pelos temas da prova mas não os tem por objecto» [10]. Em conformidade, são também factos, e não temas de prova, que serão, na sentença, considerados provados e não provados (art. 607º n.º4 do CPC).


Acresce que a menção, que a recorrente efctua, ao tema da prova relativo à violação dos deveres de gerente se relaciona (e delimita) pelos anteriores temas da prova, pelo que também não estaria em causa uma indagação de actuações violadoras de deveres sem limites, mas apenas aquelas que se relacionassem com a situação deficitária da empresa - situação esta a aferir em função da concreta alegação factual empreendida pela recorrente.


Assim, há que partir da concreta causa de pedir alegada (art. 5º n.º1 do CPC). A qual assentou essencialmente no facto de a sociedade gerida pela recorrida ter uma actividade deficitária, porque sem rendibilidade (sem gerar receitas bastantes), actividade mantida artificialmente com recurso a alavancagem financeira (recurso ao endividamento para financiar operações, o que permitiu à sociedade persistir mesmo sem viabilidade económica), sabendo a recorrida que aquela sociedade era inviável. É, pois, em função destes termos da causa de pedir, que se deverá avaliar a pertinência das diligências requeridas.


6. Atendendo às concretas diligências probatórias documentais em causa, verifica-se que no ponto III (supra referido) estão em causa «despesas pessoais» da recorrida. Porém, em momento algum da causa de pedir se afirma que a inviabilidade económica se deveu ao facto de a recorrida desviar indevidamente bens da sociedade, nunca sendo, esta actuação referida. É pois patente que os factos a investigar com a diligência requerida não têm relação com factos alegados e não interessam, por isso, para a decisão da causa. Basta atentar em que o juiz, a final, não poderá dar como provados tais factos (relativos ao eventual aproveitamento pessoal) pois eles correspondem a uma realidade (e até uma causa de pedir) que não foi alegada: uma coisa é a perpetuação artificial e forçada de uma sociedade sem rentabilidade (condenada), outra muito diversa um esvaziamento patrimonial da sociedade em benefício do gerente. Tanto assim é que se a recorrente intentasse outra acção em que invocasse a apropriação privada de bens societários, não haveria repetição de acções, face à presente acção, porque o círculo de factos básicos era distinto. A recorrente está assim a tentar obter, através da prova, factos não alegados que possam servir a sua tese, o que provoca uma inadmissível inversão da relação da prova com o facto: em vez de a prova servir para demonstrar o facto alegado, é usada como meio de descobrir factos que podem vir a ser alegados [11]. Ou seja, em vez de o facto proceder a prova, sendo esta instrumental daquele, a prova é que precede o facto, sendo este produto daquela. O que não é admissível.


Nota-se também que estes factos também não têm valor instrumental dos factos principais alegados, por, dada a sua diferente natureza, deles não derivar apoio para a demonstração dos factos principais alegados.


Nos pontos IV e VI a recorrente volta a referir-se a despesas pessoais (saber se são despesas pessoais ou outras), embora agora a favor de terceiro. Vale, também aqui, o obstáculo acabado de referir porquanto nunca foi alegado que a debilidade da sociedade gerida pela recorrida se devia ao facto de esta desviar bens da sociedade em benefício de terceiros (ou de ser com eles pródiga com valores da sociedade).


E por esta via se ilustra ainda a razão por que não vêm nunca indicados factos concretos carecidos de prova, ou porque se não justificaria qualquer aperfeiçoamento: os factos a que os documentos se poderiam associar não foram alegados.


Por esta via não seriam admissíveis, pois, as diligências em causa.


7. Acresce que as diligências em causa não visam realmente contribuir para a demonstração de concretos factos alegados mas antes proceder a uma investigação documental da contabilidade, com vista a descobrir novos elementos de facto. Isso é patente quando a recorrente afirma que estão em causa despesas pessoais da recorrida (ponto III), mas ainda quer saber que despesas concretas seriam essas, procurando descobrir novos factos (quando a circunstância de estarem em causa despesas pessoais já revela que não estariam em causa despesas societárias). Ou quando pretende obter facturas subjacentes a movimentos, obtenção esta que apenas visa descobrir factos ignorados e cujo relevo probatório é, igualmente, omitido e ignorado (aliás, a própria recorrente afirma ignorar o seu objecto). Por isso que reiteradamente a recorrente afirma querer esclarecer dúvidas (encontrar factos) e não demonstrar factos relevantes.


Ora, é pacificamente aceite que estas diligências probatórias visam obter prova relevante e não proceder a uma investigação genérica e visando factos novos, ainda que ignorados por, alegadamente, a parte a eles não ter acesso. Na verdade, a articulação dos requisitos legais (identificação do documento, seu relacionamento com factos alegados carecidos de prova e relevo probatório do documento para esses factos) revela que não são admitidas «investidas exploratórias, ou “fishing expeditions”, visando o acesso a documentos ou categorias de documentos potencialmente existentes, com o intuito de os obter, analisar e utilizar se e quando os mesmos revelem ter interesse para a tese do requerente» [12]. Ora, é esta, no fundo, a intenção do requerente.


Mostram-se, também por esta via, inviáveis as pretensões em causa.


8. Obviamente, o exposto torna manifestamente despropositado o apelo ao regime do art. 411º do CPC, o qual, enquanto cláusula de salvaguarda, supõe uma situação de necessidade probatória que manifestamente inexiste (aliás, embora a asserção não seja inteiramente pacífica, até parece que os requisitos da junção de documentos enunciados são menos rigorosos que o fundamento do art. 411º do CPC, orientado por uma situação de necessidade, e não apenas de pertinência, dos documentos).


Não deixando, contudo, de se notar que a recorrente já beneficiou de ampla actividade probatória (e investigatória) que o tribunal lhe proporcionou, mesmo abstraindo de requisitos formais, devendo por isso estar ainda mais consciente dos limites dessa intervenção.


9. Resta avaliar a diligência referida no ponto V. que apresenta características próprias, pois nela não está em causa a junção de documentos mas a obtenção de «esclarecimentos».


Como é sabido, não cabe, no âmbito do processo e com finalidade probatória, obter de terceiros esclarecimentos por escrito que constituem verdadeiras declarações de ciência e assim verdadeiros depoimentos testemunhais escritos. Tais esclarecimentos são obtidos através do regime dos art. 500º e ss. do CPC (prova testemunhal, cujas condições devem ser respeitadas), não sendo admissível provocar a prestação de declarações por escrito no próprio processo - coisa diferente são as declarações constantes de documentos pré-constituídos, ou esclarecimentos relativos a circunstâncias acessórias (como a indicação da localização de documentos, por exemplo), distintas da produção provocada, por escrito, de declarações relativas a factos. Aliás, o expediente invocado permitia ainda à recorrente iludir regras processuais relativas ao momento de indicação da prova testemunhal (e levantava problemas de contraditoriedade, pois a parte contrária não podia «contra-interrogar»). Assim se justificando o seu indeferimento.


De qualquer modo, não deixa de se aditar que a diligência é claramente desproporcional e inconsequente. Mal se compreende o relevo na acção de uma diferença de 7 euros, e a recorrente também não o revela, afirmando apenas que quer saber qual o motivo da discrepância. O requerido, nesta parte, só ilustra a amplitude e intensidade da investida investigatória da recorrente, empenhada em tudo avaliar, ainda que sem critério ou relevo.


E requerido que também se não relaciona de forma clara com factos em discussão.


10. A recorrente invoca reiteradamente o art. 417º do CPC como suporte das suas pretensões. Esta norma, reportando-se à regra da cooperação, consagra-a como verdadeiro dever, tornando obrigatória para os visados a colaboração solicitada (salvo casos de recusa legítima). Este dever de colaboração não constitui, porém, um mecanismo autónomo de obtenção de meios de prova, permitindo às partes requerer livremente a cooperação de terceiros, em qualquer forma e sem esteios ou condições. Pelo contrário, articula-se com os mecanismos probatórios previstos na lei processual, criando a base para a exigibilidade de certa conduta probatória, conduta que, porém, em regra derivará de outras normas. É o caso precisamente do art. 432º do CPC quanto aos documentos em poder de terceiros: esta norma regula os requisitos da pretensão (em articulação com o art. 429º do CPC), e aquele art. 417º do CPC apenas fixa o dever de cooperação (dever de atender ao solicitado) que está subjacente à solicitação dos documentos a terceiro (nesse sentido se afirma que os art. 429º e 432º constituem manifestações do dever de colaboração). O dever serve para superar a resistência, relutância ou inércia da parte contrária ou de terceiro; não serve para fixar os pressupostos da requerida colaboração. Por isso que o art. 417º do CPC não permita contornar ou superar o regime que regula a junção daqueles documentos. E o mesmo vale para os esclarecimentos solicitados, pois o mesmo art. 417º n.º1 do CPC impõe que a parte colabore com o tribunal, prestando depoimento, mas já não permite criar formas atípicas de obter depoimentos (ou provas). E mesmo quando estejam em causa formas de cooperação que não correspondam a formas probatórias típicas, a sua implementação sempre pressuporia a mediação de um juízo avaliativo, atendendo mormente à necessidade, proporcionalidade e relevância da cooperação requerida, crivo que as diligências em causa no recurso não superariam.


Por isso que não sirva para sustentar nenhuma das pretensões da recorrente.


11. Decaindo, suporta a recorrente as custas do recurso (art. 527º n.º1 e 2 do CPC).


V. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.


Custas pela recorrente.


Notifique-se.

Datado e assinado electronicamente.

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).


António Fernando Marques da Silva - Relator

Ana Pessoa - Adjunta

Ricardo Manuel Neto Miranda Peixoto - Adjunto

1. Embora atribuindo, nas alegações, uma numeração aos parágrafos que não coincide com a numeração que consta daquele seu requerimento.↩︎

2. Abstraindo, por ora, da diligência referida no ponto V.↩︎

3. Em rigor, discute-se ainda se este tipo de pretensão probatória fica sujeita a prazo, e, na afirmativa, qual o prazo. Os termos do processo, com as sucessivas pretensões a serem admitidas ou discutidas sem referência a preclusões temporais (no que vai implícito um certo entendimento sobre a questão), cristalizou a situação, excluindo a discussão de tal pressuposto temporal.↩︎

4. Permite ainda que o visado saiba qual o documento a apresentar.↩︎

5. Não obstante, A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa, in CPC Anotado, vol. I, Almedina 2023, pág. 554 indicam como desnecessário documento quando já consta do processo outro documento com igual relevo, o que parece constituir uma hipótese de redundância.↩︎

6. À luz do dever de colaboração, com expressão nos art. 7º n.º1, 6º n.º2 ou 590º n.º3 e 4 do CPC, e perante a severidade da preclusão inerente - v. Ac. do TRL de 07.08.2017, proc. 19439/11.0T2SNT-XC.L1-2 (em 3w.dgsi.pt).↩︎

7. Tendo a lei processual criado um modelo em que a conformação do âmbito ou conteúdo dos temas da prova variará com as circunstâncias e necessidades do processo.↩︎

8. Com efeito, em certos casos pode justificar-se ou ser necessária uma descrição mais precisa do objecto da prova.↩︎

9. Ou, por exemplo, idêntica referência no art. 516º do CPC.↩︎

10. Trata-se de solução que se tem por pacífica: v. T. de Sousa, ob. cit., pág. 8, A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa, in CPC Anotado, vol. I, Almedina 2023, pág. 522, L. Freitas e I. Alexandre, CPC Anotado, vol. 2º, Almedina 2022, pág. 205/6, ou Primeiras notas ao novo CPC, P. Ramos de Faria e A. Luísa Loureiro, Almedina 2014, pág. 361.↩︎

11. Seguindo a formulação de T. de Sousa, Nota prévia aos art. 411º, 417º e 418º, no CPC online, pág. 14.↩︎

12. Francisco Cortez/Rita Nunes dos Santos, Como conseguir em Tribunal a junção de documentos em poder da parte contrária e de terceiros: regime legal e considerações práticas, Revista de direito civil, 2018, n.º2, pág. 370. Também assim, T. de Sousa, loc. cit., sublinhando a desproporcionalidade da actuação; ou ainda Ac. do TRP de 04.04.2024, proc. 17171/21.5T8PRT-A.P1 (in 3w.dgsi.pt), sublinhando que «o processo civil não é um processo de inquérito, não se destinando à descoberta de factos hipotéticos desconhecidos pela parte»↩︎