Sumário do Acórdão
(Da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663º , nº 7 , do CPC )
Não tendo sido outorgado pelo estabelecimento de oficina “BB Unipessoal, Lda” o obrigatório seguro previsto no n.º 3 do artigo 6.º do regime jurídico aprovado pelo Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21/08, mas existindo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel da locatária do veículo conduzido pelo sócio-gerente daquela oficina no momento do embate por si causado, deve a seguradora deste segundo assumir a responsabilidade civil perante o lesado, ora Apelado, ficando com direito de regresso sobre a dita oficina, nos termos do previsto no artigo 27.º, n.º, 1, f), do diploma legal acima identificado, sem que possa ser responsabilizado o Fundo de Garantia Automóvel.
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém - Juízo Local Cível de Santarém - Juiz 1
Apelante: Generali Seguros, SA
Apelado: AA
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Acordam os Juízes na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora no seguinte:
I – Relatório
AA, com residência na Rua 1, intentou a presente ação declarativa condenatória, sob a forma de processo comum contra GENERALI SEGUROS S.A., com sede na Avenida da Liberdade, n.º 242, 1250-149, Lisboa, peticionando que esta fosse condenada a pagar àquele a quantia de € 12.035,41, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora até efetivo e integral pagamento, bem como a quantia de € 4.500,00, a título de danos não patrimoniais.
Alegou, em suma, que em resultado de acidente de viação exclusivamente imputável ao condutor do veículo com matrícula ..-VZ-.., o veículo de matrícula ..-BP-.., de que é proprietário, sofreu diversos estragos, cuja reparação foi orçamentada em € 12.035,41.
Acrescentou que a privação da utilização do seu veículo provocou-lhe constrangimentos na sua via pessoal, assim como preocupação e indignação.
Mais invocou que, à data do sinistro, a responsabilidade civil relativa à circulação do veículo com a matrícula ..-VZ-.. se encontrava transferida para a seguradora Ré, a qual inicialmente assumiu a responsabilidade do sinistro provocado, tendo posteriormente declinado, não obstante a declaração amigável que havia sido preenchida pelos intervenientes.
Regularmente citada, a Ré contestou, defendendo-se por excepção, invocando a sua ilegitimidade processual e por impugnação, pugnando pela total improcedência da ação.
Finda a fase dos articulados foi dispensada a audiência prévia e proferido despacho saneador, o qual julgou improcedente a exceção de ilegitimidade processual deduzida pela Ré.
Foi ainda proferido despacho que identificou o objeto do litígio e enunciou os temas de prova.
Agendou-se e realizou-se a audiência final, tendo subsequentemente sido proferida sentença, que contem o seguinte dispositivo:
“Face ao exposto, julga-se a presente ação parcialmente procedente e, em consequência decide-se:
i. Condenar a ré GENERALI SEGUROS, S.A. a pagar ao autor AA a quantia de capital de € 12.035,41 (doze mil e trinta e cinco euros e quarenta e um cêntimos), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros moratórios civis vencidos, computados à taxa supletiva legal de 4% ao ano, que perfaz o valor global de € 12.379,66 (doze mil trezentos e setenta e nove euros e sessenta e seis cêntimos), e vincendos contabilizados diariamente sobre aquele montante de capital, a partir de 20.06.2024 (inclusive), até efetivo e integral pagamento;
ii. Condenar a ré GENERALI SEGUROS, S.A. a pagar ao autor AA a quantia de capital de € 500,00 (quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais sofridos;
iii. Absolver a ré GENERALI SEGUROS, S.A. do demais peticionado.
Custas na proporção de 24,2 % pelo autor, e 75,8 % pela ré.”
Inconformada com a sentença, veio a Ré apresentar recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Évora alinhando extensas conclusões rematando a pedir a procedência do recurso e revogação e substituição da sentença recorrida por outra que a absolva do pedido.
O Autor não apresentou resposta ao recurso da Ré.
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O recurso foi admitido na 1ª Instância como apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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O processo subiu a este Tribunal da Relação de Évora e nele houve lugar à prolação pelo relator de despacho convidando ao aperfeiçoamento do segmento recursivo das conclusões do recurso apresentado pela Ré, tendo esta última acedido ao convite e apresentado em tempo novo segmento de conclusões recursivas nos seguintes termos:
“1. Entende a Recorrente que o Autor não cumpriu o ónus de prova quanto à aos pressupostos de responsabilidade civil extra contratual da Ré.- o que levará, consequentemente, ora à absolvição parcial da Ré (por aplicação das regras sobre distribuição do risco na condução estradal), ora à absolvição total da Ré do pedido, caso se considere que o único responsável foi o condutor do veículo do Autor;
2. Devem os factos Factos Provados 7, 8 e 9 da matéria de facto provada ser dados como não provados.
3. Devem ainda ser incluídos como provados os seguintes factos :
- Provado que Que, em 22/02/2023, o Sr. BB, condutor do veículo “VZ”, declarou por escrito aos serviços da Ré, sobre o acidente objecto dos presentes autos, que “Venho por este meio informar que em relação ao presente sinistro venho a dará a participação assinada por mim como condutor do veiculo automóvel 25-VZ01 sem efeito em virtude do acidente não ter ocorrido conforme participado”.
- Provado, que o acidente se deu por colisão entre os veículos intervenientes, com embate entre a traseira do veículo “VZ” e a frente do veículo “BP”, não se conseguindo apurar a verdadeira dinâmica do acidente”.
4. Deveria o Tribunal ter valorado negativamente o depoimento da testemunha BB, porque ambíguo, contraditório, e contrário até à versão que o Autor apresenta sobre o acidente.
5. Desconsiderou ainda o Tribunal o teor do doc. 3 junto com a contestação, onde consta além do mais, a declaração expressa do Sr. BB, na qualidade de condutor interveniente, que o acidente dos autos, não ocorreu conforme participado “Venho por este meio informar que em relação ao presente sinistro venho a dará a participação assinada por mim como condutor do veiculo automóvel 25-VZ- 01 sem efeito em virtude do acidente não ter ocorrido conforme participado” - que contraria o depoimento prestado pela testemunha autos, desacreditando-o, fazendo prova de que o acidente não ocorreu, ou a ocorrer, não ocorreu conforme participado.
6. Do depoimento prestado na sessão de julgamento pelo Sr. BB, gerente da oficina, econdutor da carrinha interveniente, extrai-se, em contrário da resposta dos pontos 7 a 9 dos factos provados, que o acidente não ocorreu conforme participado.(ficheiro gravado no sistema áudio, sessão de 08/05/2024, minutos 21:33 e 39:44 e sss
7. Se a testemunha BB expressamente reconhece e assina declaração (do. 3 com a contestação) em que menciona que o acidente não aconteceu conforme participado, tal equivale a dizer que a versão apresentada na Declaração Amigável de Acidente Automóvel não corresponde com a realidade.
8. Consta da leitura do Relatório Final de Averiguação (doc. 3 junto com a contestação), no ponto 9, ali consta que “No dia 22-02-2023, pelas 15h00, na localidade de ..., contactei CC, o qual não quis prestar qualquer declaração escrita, remetendo-as para a participação do sinistro, na qual declara que estava parado, quando o outro veículo embateu no seu.
9. Ora, esta declaração da testemunha CC é contrária com a versão do acidente apresentada pela testemunha BB (cfr. depoimento indicado supra), o qual afirmou que no momento do acidente, o outro veículo estaria a circular, verificando-se contradição manifesta entre estes depoimentos.
10. Deveria ter considerado o Tribunal por outro lado o depoimento das testemunhas DD e EE, peritos averiguadores, que depuseram com firmeza, objectividade, e sustentados no Relatório Final de Averiguação, e com depoimentos prestados na sessão de 08/05/2024, e cujos registos audiofónicos de fls. , referem que não se verifica o modo do acidente
conforme relatado na Participação de Acidente Automóvel.
11. Dada a manifesta imprecisão dos elementos probatórios para atestar a tese de que o acidente se deu conforme consta nessa Declaração Amigável, somos forçados a concluir que, não foi demonstrado que o acidente, a ter ocorrido, foi-o por responsabilidade do condutor do veículo “..-VZ-..”
12. E, assim, entendendo-se, dos elementos probatórios carreados para os autos, que apenas se prova a colisão entre os dois veículos, deve a responsabilidade pelo sinistro ser distribuída entre os dois veículos, na proporção de 50% para cada um deles, devendo, nessa sequência, a Ré /Recorrente ser condenada no pagamento apenas de 50% dos valores que forem considerados para efeitos de cálculo do cômputo indemnizatório.
13. Não tendo a “URBANOS LOGÍSTICA, SA.” direcção efectiva do veículo “VZ”., sendo a direcção efectiva do “VZ” da sociedade “BB Unipessoal, Lda.”.- conforme resulta da matéria de facto provada; e estando o veículo “VZ” conduzido, por BB, no exercício das suas funções, em cumprimento do objecto social da “BB Unipessoal, Lda” e em cumprimento do dever de guarda que lhe era imposto por força da entrega, para reparação do veículo, deve esta oficina ser directamente responsabilizada pelos danos causados na esfera do Autor em consequência do acidente..
14. Por se tratar de sinistro ocorrido quando o veículo “VZ” se encontrava à guarda de oficina, e caso o mesmo se verificasse, seria a oficina “BB Unipessoal, Lda”, responsável pelo sinistro, nos termos do disposto no art.º 6.º n.º 3 do DL 291/2007, sendo necessário ser acionado o seguro de carta/garagista.
15. Conforme vem decidido na Jurisprudência:
• Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 28/06/2005, o proprietário dum veículo automóvel que o entrega numa oficina para reparação perde a sua direcção efectiva a favor desta, durante o período dessa reparação e enquanto se mantiver em poder do garagista, ou seja, perde a sua direcção efectiva depois de o entregar para reparação.
2. As acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, e em que seja interveniente um veículo automóvel conduzido na via pública por um garagista (ou por um seu empregado) devem ser deduzidas contra a seguradora do garagista e não contra a seguradora do dono desse veículo
• Ac. STJ de 21/04/2009, in www.dgsi.pt:
A direcção efectiva do veículo traduz-se num poder real (material ou de facto), presumindo-se que o detém o proprietário.
2) O titular da direcção efectiva é solidariamente responsável pelos danos causados pelo condutor desde que demonstrada uma relação de comissão, ou seja, uma inequívoca relação de dependência, ou de mando, em que o comitente pode dar ordens e o comissário lhes deve obediência.
3) Aquando da entrega de um veículo na oficina, para reparação (revisão ou até inspecção) a direcção efectiva transfere-se do proprietário para o garagista durante o período de trabalhos e fases prévias de diagnóstico ou de teste final, fá-lo na qualidade de comissário do garagista.
4) O empregado mecânico da oficina que conduz o veículo nas fases de diagnóstico ou de teste final, fá-lo na qualidade de comissário do garagista.
5) A direcção efectiva pode transferir-se para este, antes da entrada na oficina, se acordada contratualmente com a reparação, a tomada e restituição do veículo, no local indicado pelo dono, tal não acontecendo se tal actividade resultar de mera cortesia ou de solicitação do dono à parte do contrato de reparação.
6) O garagista está obrigatoriamente sujeito à obrigação de segurar (artigo 6.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 291/2007 e do anterior, aqui aplicável) artigo 2.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro) sendo o seguro de responsabilidade civil para garantir a utilização do veículo enquanto tiver a sua direcção efectiva, isto é, o utilizar por virtude das suas funções e no exercício da sua actividade profissional.
7) A ausência de seguro torna o Fundo de Garantia Automóvel garante da indemnização, que fica 27ub-rogado nos direitos do lesado.
• Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07/01/2016, processo 128/12.4TBBRG, Relator Heitor Gonçalves, disponível em ww.dgsi.pt:
1. O garagista é obrigado a segurar a responsabilidade civil emergente da utilização de veículos automóveis quando os utilizem, por virtude das suas funções e no âmbito da sua actividade profissional – nº3, do artigo 6º do Dec-Lei nº. 291/2007.
2. Sendo o garagista incumpridor dessa obrigação e detendo à data do acidente a direcção efectiva do veículo, quem deve ser chamado a ressarcir os danos causados a terceiros lesados é o Fundo de Garantia Automóvel, solidariamente com os responsáveis civis (artigos 47º, nº1 , e 62º, nº1, do DL 292/07), e não a seguradora do proprietário do veículo.
• quando o veículo é entregue à guarda do garagista para reparação, este adquire a direção efetiva do veículo, - (cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça 15.09.2022, proc. n.º 4124/19.2T8BRG.G1.S1, relatado por Ferreira Lopes, do Tribunal da Relação de Évora de 25.02.2021, no âmbito do proc. n.º 234/19.4T8SALR.E1, relatado por Tomé Ramião, Tribunal da Relação do Porto de 30.01.2024, proc. n.º 20183/21.5T8PRT.P1, relatado por Ana Lucinda Cabral, todos disponíveis in www.dgsi.pt)
• A seguradora do proprietário apenas podia responder na medida em que este também fosse responsável, o que não se verifica quando este proprietário (argumento extensível ao locador) entrega o veículo a uma oficina para reparação. - se o proprietário não tem a direção efetiva, não poderá ser responsabilizado. Por conseguinte, também a sua seguradora não poderá sê-lo, uma vez que o contrato de seguro não tem a virtualidade de modificar o regime previsto no Código Civil (cfr., a título de exemplo e sem qualquer pretensão exaustiva, os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães 07.01.2016, proc. n.º 128/12.4TBBRG, relatado por Heitor Gonçalves, e do Tribunal da Relação do Porto 10.12.2019, proc. n.º 398/12.8T2ILH.P1, relatado por Filipe Caroço, ambos disponíveis em www.dgsi.pt)
16. E, por isso, entende a Ré / Recorrente que a responsabilidade no ressarcimento dos danos cabe, em primeiro lugar, à oficina onde o veículo se encontrava a ser reparado, e , devendo em caso de falta de seguro de garagista – como é o caso dos autos – ser o Fundo de Garantia Automóvel chamado, solidariamente com os responsáveis civis, devendo nessa sequência ser a Ré absolvida do pedido contra si deduzido.
Termos em que
Deve o presente recurso ser julgado procedente
Deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva a Ré do pedido
Fazendo-se a costumada JUSTIÇA.”
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Não foi apresentada resposta às conclusões recursivas aperfeiçoadas.
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O recurso é o próprio e foi correctamente admitido quanto ao modo de subida e efeito fixado, sendo certo que apesar do segmento das conclusões recursivas comportar ainda um extensíssimo ponto 15 dedicado apenas à menção de decisões judiciais percebemos que a Apelante revelou, ainda assim, algum esforço no sentido da redução das ditas conclusões na peça que apresentou nos autos, o que nos permite admitir também as mesmas para apreciação.
Correram Vistos pelo que cumpre, agora, decidir.
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II - Objecto do Recurso
Nos termos do disposto no artigo 635º, nº4, conjugado com o artigo 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC), o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que respeita à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que as questões a apreciar e decidir traduzem-se objectivamente no seguinte:
1- Impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
2-Reapreciação de mérito incidente sobre a responsabilização da Apelante no acidente descrito nos autos.
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III - Fundamentação de Facto
Decorre da sentença recorrida, no tocante a matéria de facto, o seguinte:
“a. Fundamentação de facto
i. Factos provados
Com relevância para a boa decisão da causa, mostram-se provados os seguintes factos:
1. O autor é proprietário do veículo de marca BMW, modelo 730, com a matrícula ..-BP-..;
2. A ré dedica-se à atividade seguradora;
3. Em data não concretamente apurada, mas antes do dia 11 de novembro de 2022, o veículo da marca Renault, com a matrícula ..-VZ-.., pertencente a Urbanos Logística, S.A. entrou na oficina denominada BBUnipessoal, Lda., para ser pintado e recondicionado;
4. A aludida oficina executa trabalhos de reparação de chapa e pintura de automóveis, sendo seu sócio gerente BB;
5. No dia 11 novembro de 2022, pelas 21:00 horas, o veículo VZ encontrava-se estacionado ao lado das instalações da oficina, uma vez que ainda não se encontrava pronto para entrega à Urbanos Log. S.A.;
6. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, BB entrou no referido veículo para guardá-lo no interior da oficina referida em 3.;
7. Dirigindo o veículo VZ para o portão das instalações da oficina, e em velocidade não concretamente apurada, realizou uma manobra em marcha atrás realizando um trajeto curvilíneo, numa distância de cerca de 20 metros, entrando na Rua 2, altura em que embateu no veículo ..-BP-.., que estava a ser conduzido por CC, filho do autor;
8. BB, aquando da realização da manobra de marcha atrás, não viu que o veículo BP estava no seu trajeto, por distração;
9. O embate deu-se através do contacto entre a plataforma traseira do veículo VZ na parte frontal do veículo BP;
10. Em consequência, o veículo BP sofreu amolgadelas no capô, faróis dianteiros e para-choques dianteiro, cujo valor de reparação foi orçamentado em € 12.035,41;
11. Na referida data, o veículo VZ era objeto de contrato de seguro titulado pela apólice n.º ..., mediante o qual Urbanos Logística, S.A. transferiu para a ré a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo VZ;
12. Na referida data, o risco da circulação do veículo BP encontrava-se transferido para a Zurich Insurance PLC - Sucursal em Portugal, mediante contrato de seguro com apólice ...;
13. O acidente foi participado à ré através da Convenção IDS pela Zurich Insurance PLC;
14. No dia 18 novembro 2022, a Zurich comunicou à ré que a responsabilidade do sinistro caberia à oficina BB Unipessoal, Lda., e não à seguradora do veículo VZ, uma vez que o veículo se encontrava à guarda da oficina, circunstância que levou à exclusão da convenção IDS;
15. Em 21 de dezembro de 2022 a ré, por lapso, remeteu uma carta ao autor, por este recebida, declinando a sua responsabilidade;
16. No dia 28 de dezembro de 2022, a ré comunicou ao autor, por carta, que assumiria a responsabilidade pelo sinistro e, em 17 de fevereiro 2023, comunicou pela mesma via que disponibilizava o valor de € 7.030,00 a título de cobertura de danos;
17. Posteriormente, por entender, após averiguações internas, que houve simulação do acidente e que existiu tentativa de fraude na participação, no dia 27 de fevereiro de 2023 enviou uma carta ao autor a rejeitar a cobertura dos danos pela seguradora;
18. À data do acidente, o valor de venda do veículo era de € 9.880,00 e o valor de salvado era de € 2.850,00;
19. Naquela data, BB S.A. não possuía seguro de garagista;
20. Por ser invisual, o autor pedia a amigos e familiares para ser transportado no seu próprio veículo;
21. A partir do acidente, o autor deixou de poder utilizar aquele veículo e passou a fazer-se transportar nos veículos dos familiares e amigos, o que lhe gerou transtorno no seu quotidiano por deixar de ter o seu veículo disponível;
1. 22. À presente data o veículo circula com restrições, uma vez que, ocasionalmente, deixa de trabalhar.
ii. Factos não provados
Com relevância para a decisão da causa deram-se como não provados os seguintes factos:
a. O autor passou inúmeras noites sem dormir, preocupado com a situação de não ter meios para, por sua conta, mandar reparar o seu veículo;
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Consigna-se que não foi levada à decisão sobre a matéria de facto a alegação contida nos articulados de natureza conclusiva, instrumental ou simplesmente irrelevante para a decisão da causa.”
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IV- Fundamentação de Direito
1-Impugnação da decisão relativa à matéria de facto
Abordemos de seguida a questão relativa a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
A Apelante sustenta que os factos contidos sob os pontos 7 a 9 do segmento da sentença recorrida atinente à matéria de facto provada deveriam ter sido considerados como não provados, mais pugnando pelo aditamento àquele segmento de dois novos factos.
Resulta do artigo 640º do CPC, que se debruça sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, o seguinte:
“1-Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b), do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
[…] “
A este propósito sustenta o Conselheiro António Abrantes Geraldes (“Recursos no Novo Código de Processo Civil“, Almedina, 5ª ed., 2018, a págs. 168-169), que a rejeição total ou parcial respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve ser feita nas seguintes situações:
“a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4 e 641º, nº 2, al. b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, nº 1, a ));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc );
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação“, esclarecendo, ainda, que a apreciação do cumprimento de qualquer uma das exigências legais quanto ao ónus de prova prevenidas no mencionado nº 1 e 2, a ), do artigo 640º do CPC, deve ser feita “à luz de um critério de rigor “.
Resulta do artigo 662º, do CPC, o seguinte:
“1-A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa“
Refere a propósito deste normativo o Conselheiro António Abrantes Geraldes (obra acima identificada, pág. 287), que:
“O actual artigo 662º representa uma clara evolução no sentido que já antes se anunciava […] , através dos nºs 1 e 2 , als. a ) e b ), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do principio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia.“
Diz-nos também sobre este preceito o Conselheiro Fernando Pereira Rodrigues (“Noções Fundamentais de Processo Civil”, Almedina, 2ª edição atualizada, 2019, pág. 463-464), o seguinte:
“A redação do preceito [662º, nº 1] não parece ter sido muito feliz quando manda tomar em consideração os “factos assentes” para proferir decisão diversa, que só pode ser daqueles mesmos factos considerados assentes, porque o que está em causa é modificar a decisão em matéria de facto proferida pela primeira instância.
[…]
A leitura que se sugere como mais adequada do preceito, salvaguardada melhor opinião, é que ele pretende dizer que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, “confrontados” com a prova produzida ou com um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Nesta sede importa ainda recordar o teor do n.º 5 do artigo 607.º do CPC, relativo à “Sentença”, que se traduz no seguinte:
“5- O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”
Começando pelo teor dos pontos de facto 7 a 9 acima mencionados é inquestionável que a Apelante os identificou na motivação e nas conclusões recursivas aperfeiçoadas, assim como deixou clara, em ambos os segmentos, a diversa solução que entende ser a correcta, tendo ainda indicado os meios probatórios concretos que, na sua óptica, sustentam tal diversa solução, ou seja o doc 3 junto com a contestação e as testemunhas inquiridas em audiência final, DD e EE.
Na conformidade exposta temos de convir que a Apelante cumpriu os ónus primários de obrigatória especificação previstos no n.º 1, do artigo 640.º, do CPC.
Porém, nem no corpo, nem menos ainda nas conclusões recursivas aperfeiçoadas, a Apelante logrou cumprir devidamente o ónus secundário de obrigatória especificação, previsto na alínea a), do n.º 2, do mencionado artigo.
Com efeito, nessa alínea estatui-se expressamente que “[…] incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.”
Sucede que no tocante aos depoimentos das testemunhas DD e EE a Apelante limita-se a dizer no corpo das alegações que;
“A versão das testemunhas EE e DD, depoimentos prestados na sessão de 08/05/2024 e cujos registos audiofónicos se encontram gravados no ficheiro corroboram a tese de que, dos elementos recolhidos, não se verifica o modo do acidente conforme relatado na Participação de Acidente Automóvel.”
E em sede de conclusões recursivas aperfeiçoadas menciona que:
“Deveria o Tribunal ter valorado negativamente o depoimento da testemunha BB, porque ambíguo, contraditório e contrário até à versão que o Autor apresenta sobre o acidente.”
[…]
“Do depoimento prestado na sessão de julgamento pelo Sr. BB, gerente da oficina e condutor da carrinha interveniente, extrai-se, em contrário da resposta aos pontos 7 a 9 dos factos provados, que o acidente não ocorreu conforme participado […]
“Deveria ter considerado o Tribunal por outro lado o depoimento das testemunhas DD e EE, peritos averiguadores, que depuseram com firmeza, objectividade, e sustentados no Relatório Final de Averiguação, e com depoimentos prestados na sessão de 08/05/2024, e cujos registos audiofónicos de fls. , referem que não se verifica o modo do acidente conforme relatado na Participação de Acidente Automóvel.”
Percebemos que se alude aos depoimentos gravados em ficheiros áudio prestados na sessão de audiência final em 08/05/2024, sem que, todavia, a Apelante, conforme lhe era legalmente exigido, tenha indicado minimamente as passagens dessas gravações em que fundou a sua discordância relativamente à solução adoptada pelo Tribunal a quo na sentença recorrida.
Na verdade, atendendo à formulação constante da lei dizer-se que os depoimentos que podem relevar foram prestados na sessão de um determinado dia e que os respectivos registos foram gravados em ficheiro, sem que se identifique, ainda que de forma mínima, entre que momentos temporais da gravação constam as passagens que se consideraram relevantes para a impugnação é claramente insuficiente.
Destarte, rejeita-se a impugnação relativa à matéria de facto no que concerne aos depoimentos das testemunhas EE e DD.
Aqui chegados apreciemos então a impugnação dirigida contra os factos contidos nos pontos 7 a 9 da matéria de facto considerada como provada, tendo em atenção os meios probatórios indicados não liminarmente rejeitados, ou seja, o depoimento da testemunha BB e o teor do documento n.º 3 junto com a contestação.
Relembremos o conteúdo desses factos.
“7. Dirigindo o veículo VZ para o portão das instalações da oficina, e em velocidade não concretamente apurada, realizou uma manobra em marcha atrás realizando um trajeto curvilíneo, numa distância de cerca de 20 metros, entrando na Rua 2, altura em que embateu no veículo ..-BP-.., que estava a ser conduzido por CC, filho do autor;
8. BB, aquando da realização da manobra de marcha atrás, não viu que o veículo BP estava no seu trajeto, por distração;
9. O embate deu-se através do contacto entre a plataforma traseira do veículo VZ na parte frontal do veículo BP; “
Vejamos agora o que referiu o Tribunal a quo em sede de motivação da decisão factual na sentença recorrida a propósito dos factos contidos naqueles três pontos:
“ […] Para prova do contexto e dinâmica do sinistro descrita em 5., 6., 7., 8., 9., 10. importa adiantar, prima facie, que o Tribunal atendeu aos diversos elementos documentais e testemunhais carreados pelas partes.
Neste particular, foi junta pelo autor a declaração amigável assinada por ambos os intervenientes no sinistro, isto é, pela testemunha BB (sócio gerente da sociedade com firma BB S.A.), e pela testemunha CC (filho do autor). Porém – importa dizê-lo -, tal documento não se afigura, sem mais, suficiente para a prova dos factos relativos à dinâmica do acidente.
Não se olvida o disposto no artigo 35.º n.º 3 do Decreto-Lei 291/2007 o qual consagra que, quando a participação do sinistro seja assinada conjuntamente por ambos os condutores envolvidos no sinistro, presume-se que este se verificou nas circunstâncias, nos moldes e com as consequências constantes da mesma, salvo prova em contrário por parte da empresa de seguros.
Não obstante, e como resulta da própria inserção sistemática, as regras aplicáveis ao procedimento a observar pela empresa de seguros naquele diploma legal (donde este regime emana), não se impõe à apreciação judicial, já que aquela disposição se insere no âmbito da resolução extrajudicial dos litígios (em sentido concordante, cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.12.2022, no âmbito do proc. n.º 1720/20.9T8GDM.P1, relatado por Fernanda Almeida, disponível in www.dgsi.pt).
Ou seja, uma vez frustrada essa fase graciosa, em contencioso judicial, a declaração amigável no caso concreto será um documento particular que constituirá, quanto muito, um (mero) indício probatório, isto porque o seu subscritor, in casu, não é parte no presente processo.
Da aludida declaração resulta essencialmente que, ao realizar uma manobra de marcha atrás, BB colidiu com a viatura do autor porque não a viu.
Porém, no dia 22.02.2023, BB assinou um escrito declarando o seguinte «Venho por este meio informar que em relação ao presente sinistro venho a dar a participação assinada por mim como condutor da Renault master ..-VZ-.. sem efeito em virtude do acidente não ter ocorrido como participado».
Por seu turno, a seguradora ancorou-se neste último escrito para afastar a versão do acidente descrita na declaração amigável.
Atendendo a que nenhum dos indícios documentais constitui prova tarifada, importa auscultar a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão de julgamento.
Concretizando.
Desde logo, resultou dos depoimentos testemunhais de BB e de CC uma versão inteiramente consentânea quanto à causa do acidente e às circunstâncias que o envolveram. Com efeito, a testemunha BB admitiu que embateu no automóvel conduzido por CC por ocasião da marcha atrás que realizava, de modo a colocar o veículo dentro da sua oficina. Ademais, as testemunhas detalharam, de modo verosímil, os elementos circunstanciais e envolventes, caracterizando o local e os motivos que os levaram a que ambos se cruzassem naquela altura.
Assim, CC dirigiu-se à oficina de BB uma vez que ambos combinaram ali encontrar-se pelas 21:00 horas. Foi por volta dessa hora que, estando CC a aproximar-se do local e a conduzir o veículo ..-BP-.., BB embateu nele quando realizou a manobra de marcha atrás com o veículo ..-VZ-...
As testemunhas prestaram, pois, um depoimento essencialmente harmonioso, relatando circunstanciadamente o local onde se deu o embate (o qual se deu já na faixa de rodagem, a cerca de 20/30 metros da entrada da oficina), e também descreveram concretamente como se deu o acidente de modo objetivo, credível e, portanto, verdadeiro. CC relatou ainda que o embate se deu cerca de três segundos após o mesmo ter parado o carro, circunstância que não lhe deu oportunidade de se desviar (v.g. colocando marcha atrás).
Ora, não obstante a incerteza que paira sobre aspetos laterais sobre a colisão, por falta de memória dos factos, como seja a circunstância de a testemunha CC não se recordar se BB trazia ou não as luzes acesas, tal circunstancialismo não é, por si só, suscetível de afastar a valoração positiva sobre a ocorrência do acidente.
Perante os demais elementos colhidos, o Tribunal conclui que a colisão se deu nos moldes exatamente descritos pelas testemunhas.
Destarte, das imagens fotográficas de ambos os veículos é possível descortinar que as amolgadelas se verificaram em termos perfeitamente compatíveis com a versão narrada por ambos os intervenientes (testemunhas BB e CC). De facto, resulta inequívoco que a plataforma elevatória situada na traseira do veículo VZ embateu contra a parte frontal do veículo BP (circunstância que também vem reconhecida no «relatório final» elaborado pela ré).
Ou seja, é certo que no «relatório final» realizado em 25.02.2022, após as investigações internas da ré, consta que esta última suspeitou que o acidente constituiu, nos seus dizeres, uma tentativa de fraude. Nesta conformidade, os «elementos suspeitos» colhidos naquele «relatório final» resumem-se apenas ao seguinte:
«- Quando do primeiro contacto com o CVS, o mesmo apresentou algum nervosismo quando indicava o local do sinistro.
- O CVS, verbalmente descreveu o sinistro de várias maneiras, para justificar os danos no veiculo terceiro.
- Sinistro por colisão, no acesso de uma oficina às 21H00.
- Proximidade da oficina do CVS e o terceiro.
- CVS e terceiro, intervenientes num outro sinistro simulado.
- Laços de proximidade e negócios entre o CVS e o filho do terceiro.
- O CVT, não querer prestar declarações.»
Sucede que, aliando a sua leitura às declarações prestadas pelas testemunhas EE e DD, resultou, fundamentalmente, que a desconfiança gerada em torno do presente acidente se deveu à circunstância de, num outro processo de sinistro, ter havido uma desistência da participação por parte de BB (igualmente por indícios de fraude).
Quanto ao mais, dando como boas as conclusões ali vertidas, pouco ou nada se refere que milite de modo suficientemente relevante para tornar inverosímil ou abalar o depoimento prestado pelas testemunhas BB e CC.
Note-se que, as testemunhas EE e DD relataram essencialmente os factos escritos no aludido relatório, evidenciando que também havia sido conversado, junto da testemunha BB, a necessidade de este estar obrigado a celebrar um contrato de seguro de garagista, facto que este último lhes terá transmitido que não tinha.
Sem embargo, e em todo o caso, a decisão adotada no procedimento de averiguação interno da seguradora, bem como os fundamentos (e respetiva apreciação), não se impõem à convicção do Tribunal, constituindo, pois, mera prova documental sujeita à sua livre apreciação, tanto mais que foram realizadas por uma parte interessada.
Nesta sede, afigura-se preponderante o juízo crítico que o Tribunal estabelece com a prova constituenda, maxime, prova testemunhal, ancorada nos depoimentos dos intervenientes no aludido sinistro e no princípio da imediação.
Assim, não obstante a declaração escrita pela testemunha BB em 22.02.2024 (não constituindo tal documento uma confissão, pois que, desde logo, este não é parte no processo), também importa salientar que tal declaração não veicula, necessariamente, a versão real dos factos. Isto é, tal como a declaração amigável pode conter factos que são irreais, pode igualmente aquela declaração conter uma falsa negação dos factos contidos na participação.
E nenhuma razão existe para fazer prevalecer a declaração desta testemunha que apenas se limita a declarar que os factos não ocorreram conforme participado, antes pelo contrário.
Vejamos porquê.
Em primeiro lugar, o autor deste documento, em sede de audiência de discussão e julgamento, declarou que o acidente havia acontecido conforme tinha participado.
Do teor do documento não resulta, igualmente, qualquer outra versão dos acontecimentos.
Apenas se diz que não aconteceu conforme participado.
Apesar de esta testemunha, quando confrontada com o documento, ter manifestado aparente surpresa e confusão quanto ao seu conteúdo (declarando que estava convencida que aquele documento se reportava a outro acidente e não a este), também é possível encontrar razões para que a testemunha assinasse, nesta data, este documento. Na verdade, os peritos EE e DD transmitiram a BB que estava obrigado a ter seguro de garagista e que era nesse âmbito que deveria ser responsabilizado. Em face dessa informação, e por não querer «problemas» (tal como foi expressado pelas testemunhas da seguradora), a testemunha BB teria interesse em dar o dito por não dito, eventualmente receando que a sua empresa pudesse ser responsabilizada ou o seguro de garagista pudesse ser acionado (e não obstante poder manter-se em erro, desconhecendo a possibilidade de poder vir a ser responsabilizado).
Daí que, o valor deste documento, nesta sede, deverá ser reduzido, atenta a circunstância da versão dos factos ter sido inteiramente consentânea entre as pessoas que nele participaram e, em consequência, oposta ao teor do aludido documento.
Igualmente, os factos apurados no contexto das averiguações realizadas pela ré, e que culminaram com a exclusão da responsabilidade, não se mostraram minimamente corroborados em sede de audiência de discussão e julgamento.
Ou seja, não se vê qualquer motivo para o acidente ter sido simulado ou causado intencionalmente pelas testemunhas. Por um lado, não é suficiente para afirmá-lo a circunstância do veículo do autor ser antigo (tal como a ré alega). Por outro – e é este o ponto fulcral - a testemunha BB estava a conduzir um veículo que não era seu, mas sim da empresa sua cliente, Urbanos Log. S.A, pelo que não se alcança qual a vantagem que adviria para ambas as partes (ou para uma delas), em face do prejuízo que seria suscetível de causar a BB (e à empresa que utilizava o veículo). Aliás, o prejuízo para esta testemunha foi constatável, uma vez que foi a própria sociedade BB S.A. a realizar a reparação do veículo VZ (conforme resultou das declarações, não só de BB, como também de FF).”
Estamos perante meios de prova não vinculada sujeitos, assim, ao principio da livre apreciação do julgador, de acordo com a sua prudente convicção sobre cada facto e com a sua experiência (aplicável ao juízo a edificar pelo julgador do Tribunal Superior), com apoio nos igualmente relevantes princípios da imediação, oralidade e concentração da prova.
Relativamente ao depoimento de BB a Apelante refere, por um lado, que o mesmo deveria ter sido valorado negativamente, por ser “ambíguo, contraditório e contrário” à versão apresentado pelo Autor e por outro lado que se extrai do mesmo depoimento em contrário do que resultou provado sob os pontos n.ºs 7 a 9 do segmento dos factos provados que o acidente não ocorreu conforme ali descrito.
Dir-se-á que se o depoimento é ambíguo e contraditório dificilmente pode servir para apoiar devidamente outra tese, designadamente a demonstração do facto cujo aditamento se pretende à matéria de facto considerada como provada mormente que “o acidente se deu por colisão entre os veículos intervenientes, com embate entre a traseira do veículo “VZ” e a frente do veículo “BP”, não se conseguindo apurar a verdadeira dinâmica do acidente.”
De resto, para além do excerto do depoimento da testemunha BB transcrito pela Apelante na motivação do seu recurso não apoiar a formulação factual pretendida percebemos ainda que a parte final do aludido facto pretendido aditar (”não se conseguindo apurar a verdadeira dinâmica do acidente”) é notoriamente conclusiva e especulativa.
Pelo que improcede tal aditamento.
Relativamente à (in)demonstração dos factos contidos nos pontos 7 a 9 do segmento respeitante aos factos considerados como provados pensamos que a motivação expressa na sentença recorrida, acima reproduzida, mostra-se bem construída, com análise exaustiva e crítica dos meios de prova considerados como relevantes, que concatenou entre si, a par de acertada enunciação das razões que determinaram a credibilidade que lhes foi atribuída, sem esquecer a vantagem evidente da imediação de que pode beneficiar o Tribunal a quo na produção da prova em audiência final, seguindo assim aquele os ditames legais previstos nos acima mencionados n.ºs 4 e 5, do artigo 607.º do CPC, não decorrendo, como tal, dos meios probatórios indicados pela Apelante (que foram escrutinados pelo Tribunal recorrido), que a decisão a que chegou tal Tribunal a propósito de tais factos se revele incorrecta.
Na verdade, a circunstância de poder ter existido um processo de averiguação de um outro sinistro envolvendo pessoas/entidades comuns ao do sinistro ora em análise sobre o qual incidiram suspeitas de simulação e fraude na descrição da dinâmica do mesmo, que não terão sido confirmadas por se ter verificado desistência por parte do participante desse acidente e de no identificado documento n.º 3 junto com a contestação a testemunha BB ter aparentemente firmado um texto onde se menciona que o acidente não teria ocorrido conforme participado desse modo pretendendo anular o que participara, não constitui, como bem se explica na motivação da sentença recorrida, fundamento assertivo e bastante para considerar como não provados os factos discriminados sob os pontos 7 a 9 do segmento atinente à matéria de facto considerada como provada, importando sublinhar aqui e agora que do teor do aludido documento não consta qualquer descrição de como teria então ocorrido o embate, apenas se referindo que não teria ocorrido conforme participado, sem olvidar que a descrição factual da participação feita em 11/11/2022 envolveu mais uma pessoa, precisamente o Autor, ora Apelado, que confirmou os factos ali discriminados e que impugnou especificadamente a versão referida no dito documento de que o acidente não teria ocorrido conforme participado precisamente na resposta que apresentou contra a contestação em 12/12/2023, resultando, como tal, como mais provável a versão a que chegou o Tribunal a quo em face da argumentação exposta pelo mesmo que a versão que a Apelante pretendeu sustentar.
Dito isto julgamos também improcedente a impugnação no tocante aos factos discriminados sob os pontos 7, 8 e 9 do segmento da sentença recorrida respeitante aos factos provados.
Pretende ainda a Apelante o aditamento à matéria de facto considerada como provada na sentença recorrida de um facto com o seguinte teor:
“Em 22/02/2023 o Sr. BB, condutor do veículo “VZ”, declarou por escrito aos serviços da Ré, sobre o acidente objecto dos presentes autos, que “Venho por este meio informar que em relação ao presente sinistro venho dar a participação assinada por mim como condutor do veículo automóvel ..-VZ-.. sem efeito em virtude o acidente não ter ocorrido conforme participado.”
Não resulta claro do excerto do depoimento da testemunha BB selecionado e transcrito pela Apelante que aquele se tenha pretendido referir ao concreto sinistro destes autos.
De todo o modo e também pelo que acima se disse o Apelado impugnou nos autos que a versão constante da participação de 11/11/2022 não fosse a verdadeira, mostrando-se ainda o aditamento nos termos expostos destituído de relevância dado que nem sequer descreve uma diversa dinâmica do sinistro, contendo apenas a descrição conclusiva de “em virtude de o acidente não ter ocorrido conforme participado.”
Na conformidade exposta julga-se ainda improcedente a impugnação apresentada quanto ao mencionado facto pretendido aditar à matéria de facto provada.
2- Reapreciação de mérito incidente sobre a responsabilização da Apelante no acidente descrito nos autos
Em face da imodificabilidade da decisão relativa à matéria de facto que resultou da apreciação feita supra importa desde já adiantar que se queda necessariamente pelo insucesso a pretensão manifestada pela Apelante no ponto 12 das conclusões recursivas aperfeiçoadas.
Defende, outrossim, a Apelante nas suas conclusões recursivas aperfeiçoadas, mormente nos pontos 13 e seguintes das mesmas, que estando a direcção efectiva da viatura “VZ” à data da produção do acidente a cargo da sociedade “BB Unipessoal, Lda” e sendo a dita viatura nesse momento conduzida por BB no exercício das suas funções, em cumprimento do objecto social daquela Sociedade e do dever de guarda que sobre si impendia por força da entrega para reparação do veículo em causa na oficina pertença da identificada Sociedade “deve a oficina ser directamente responsabilizada pelos danos causados na esfera do Autor em consequência do acidente”, afigurando-se necessário acionar “o seguro de carta/garagista”, mais entendendo que faltando o dito seguro de garagista deve ser o Fundo de Garantia Automóvel chamado solidariamente com os responsáveis civis, absolvendo-se a Apelante do pedido contra si deduzido.
Vejamos o que ficou expresso na sentença recorrida a este respeito:
“[…]
Significa isto que, no caso concreto, quando o veículo é entregue à guarda do garagista para reparação, este adquire a direção efetiva do veículo, conforme tem vindo a ser entendimento pacificamente acolhido na nossa jurisprudência (cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça 15.09.2022, proc. n.º 4124/19.2T8BRG.G1.S1, relatado por Ferreira Lopes, do Tribunal da Relação de Évora de 25.02.2021, no âmbito do proc. n.º 234/19.4T8SALR.E1, relatado por Tomé Ramião, Tribunal da Relação do Porto de 30.01.2024, proc. n.º 20183/21.5T8PRT.P1, relatado por Ana Lucinda Cabral, todos disponíveis in www.dgsi.pt).
Perante isto, é inequívoco que a eventual responsabilidade da seguradora da proprietária/locatária não poderá fundar-se no disposto no artigo 503.º, n.º 1 do Código Civil, isto porque, esta não detinha a direção efetiva, a qual se encontrava transferida para a aludida oficina.
Perguntar-se-á: ficará então a seguradora da tomadora de seguro isenta de responsabilidade?
Adiante-se que a resposta é negativa. Vejamos porquê.
A vexata quaestio nesta sede consiste, essencialmente, em saber se, num acidente de viação automóvel, a seguradora da proprietária/locatária deverá ser civilmente responsável nos casos em que, estando o veículo entregue a uma oficina, e sendo obrigatória a existência de seguro de garagista, o acidente tenha sido causado pelo gerente desta última.
O tratamento desta matéria deverá ser enquadrado juridicamente.
Desde logo, o seguro de garagista está atualmente previsto no artigo 6.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, sendo um seguro de responsabilidade civil destinado a garantir a utilização do veículo enquanto o garagista tiver a sua direção efetiva, isto é, utilizá-lo em virtude das suas funções e no exercício da sua atividade profissional. Neste caso, segura-se o risco decorrente do exercício de uma atividade bem delimitada, praticada por pessoas certas e determinadas e que atuam, por regra, num espaço físico muito limitado.
Sujeitos à obrigação de seguro de garagista, nos termos do disposto naquele preceito legal (i.) são todos os garagistas; (ii.) bem como quaisquer pessoas ou entidades que habitualmente exercem a atividade de fabrico, montagem ou transformação, de compra e ou venda, de reparação, de desempanagem ou de controlo do bom funcionamento de veículos, a segurar a responsabilidade civil em que incorrem quando utilizem, por virtude das suas funções, os referidos veículos no âmbito da sua atividade profissional.
Atendendo ao objeto a que se dedica a aludida oficina – à guarda da qual o veículo VZ se encontrava - assente na reparação de chapa e pintura de automóveis (cfr. facto provado n.º 4), é inequívoco que esta se encontra sujeita à obrigação de manter um seguro de garagista.
Sem embargo, esta obrigação de manter seguro de garagista válido não retira a pertinência a outros dispositivos legais que, in casu, revelam capital importância quanto ao enquadramento legal da responsabilidade da ré.
Desde logo, reconhece-se que a questão não é pacífica na jurisprudência, embora o seu rumo atualmente se dirija no sentido que se reputa mais acertado.
Em suma, em casos semelhantes ao dos autos, vinha-se decidindo na jurisprudência que a seguradora do proprietário apenas podia responder na medida em que este também fosse responsável, o que não se verifica quando este proprietário (argumento extensível ao locador) entrega o veículo a uma oficina para reparação. O argumento assenta, pois, numa visão isolada do disposto no artigo 503.º, n.º 1 do Código Civil, nos termos do qual se retirava a conclusão seguinte: se o proprietário não tem a direção efetiva, não poderá ser responsabilizado. Por conseguinte, também a sua seguradora não poderá sê-lo, uma vez que o contrato de seguro não tem a virtualidade de modificar o regime previsto no Código Civil (cfr., a título de exemplo e sem qualquer pretensão exaustiva, os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães 07.01.2016, proc. n.º 128/12.4TBBRG, relatado por Heitor Gonçalves, e do Tribunal da Relação do Porto 10.12.2019, proc. n.º 398/12.8T2ILH.P1, relatado por Filipe Caroço, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Acontece que – apesar do respeito devido à corrente citada -, nesta matéria haverá ainda que conjugar as aludidas regras previstas no Código Civil com o regime normativo vertido no Decreto Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.
Neste conspecto, o Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel assume uma inequívoca finalidade social, visando tornar efetivo o exercício e satisfação dos direitos dos lesados. E tal desígnio não se pode desprender da circunstância de a respetiva seguradora garantir, não apenas a responsabilidade imputada ao proprietário do veículo, mas também a do respetivo condutor ou legítimo proprietário.
Indo mais longe, o explicita o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.04.2012, no âmbito do proc. n.º 3203/05.8TBMTJ.L1.S1 que: «Ora, jamais se pôs em dúvida que nos casos em que exista seguro de responsabilidade civil a respectiva Seguradora garante não apenas a responsabilidade imputada ao proprietário do veículo mas também a do respectivo condutor. Sinal claro de que a responsabilidade de garante atribuída à Seguradora ou, nos casos em que a lei o prescreve, ao Fundo de Garantia Automóvel, persiste se e enquanto persistir a obrigação imputada a qualquer dos responsáveis civis perante terceiros, ainda que por algum motivo não exista ou se tenha extinguido o direito de indemnização em relação ao proprietário do veículo(…)»
Assim, desde logo, nos termos do artigo 15.º daquele diploma legal, resulta lineamente que «O contrato garante a responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar previstos no artigo 4.º e dos legítimos detentores e condutores do veículo.»
Por outro lado, ante as coordenadas legislativas contidas naquele diploma, da conjugação dos artigos 23.º, n.º 1 e 27.º, n.º 1 alínea f) resulta que, no limite, a seguradora do responsável civil poderá sempre exercer o direito de regresso contra o aludido garagista.
Compreende-se que assim seja, pois, por força da alteração do sucessivo encadeamento de responsabilidades em que surge, em último lugar, o seguro celebrado pelo proprietário, se esta seguradora assumir a qualidade de garante da indemnização perante o lesado, tem direito de regresso sobre o efetivo responsável, no caso, o garagista (cfr., com total pertinência, embora sob o domínio do anterior regime, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.11.2009 no âmbito do proc. n.º 3162/08.5TBLRA.C1.S1, disponível em www.dgsi).
Ora, se é certo que o locatário não detém a direção efetiva da viatura quando a entrega numa oficina, como ocorre caso dos autos, também é certo que, na falta de contrato de seguro de garagista, a seguradora do locatário é chamada a intervir para ressarcir o lesado.
Só na ausência deste contrato, poderá intervir o Fundo de Garantia Automóvel (vide a jurisprudência mais recente, com elevada aproximação aos autos nesta matéria, expressa nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 07.10.2021 no âmbito do proc. n.º 2031/17.2T8PNF.P1.S1, relatado por Pedro Lima Gonçalves, do Tribunal da Relação do Porto de 11.02.2021 proc. n.º 2031/17.2T8PNF.P1, relatado por João Venade, e do Tribunal da Relação de Évora de 25.02.2021 proc. n.º 234/19.4T8ALR.E1, relatado por Tomé Ramião, este último decidindo um caso de direito de regresso exercido pela seguradora do proprietário, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Nesta ótica, o lesado tem direito a exigir diretamente da seguradora o pagamento da referida indemnização (cfr. artigo 146.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril).”
Perante a matéria de facto tida como provada na sentença recorrida e que resultou consolidada neste aresto não temos dúvidas (sendo que o Apelante tão pouco questiona tal nas conclusões recursivas aperfeiçoadas), que à data de 11/11/2022 a direcção efectiva da viatura ..-VZ-.. cabia à oficina denominada “BB Unipessoal, Lda”, para quem fora transferida pela sociedade “Urbanos Logística, SA”, proprietária da mencionada viatura e tomadora do seguro de responsabilidade civil automóvel outorgado com a Apelante Generali Seguros, SA, através da entrega material por parte da mencionada locatária à referida oficina do dito veículo para ser “pintado e recondicionado”, em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 11/11/2022.
Também não subsistem reticências de que no momento da produção do acidente existiria uma relação de comitente/comissário entre a oficina para quem fora transferida a direcção efectiva da viatura “VZ” e o condutor da mesma BB, sócio-gerente da mencionada oficina, bem como que, aquando do sinistro ocorrido, a aludida oficina utilizava o veículo no seu interesse dado que pretendia colocá-lo no interior das respectivas instalações para o manter guardado e dessa forma assegurar a realização dos serviços de pintura e recondicionamento contratados com a locatária do mesmo, ainda não concluídos naquela data, sem que possuísse seguro de garagista.
Aqui chegados impõe-se questionar se atenta a falta de direcção efectiva da respectiva proprietária sobre o veículo “VZ” em 11/11/2022, ou seja na data da produção do embate descrito nos autos, o qual foi provocado pelo condutor do mesmo no momento, que era o sócio gerente da oficina onde a viatura fora entregue, deve ser responsabilizada a seguradora para quem a proprietária do veículo “VZ” transferira validamente a respectiva responsabilidade em caso de acidente de viação envolvendo tal viatura através de contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel.
Estamos cientes de que a questão não tem conhecido um tratamento uniforme, mormente no domínio da jurisprudência, conforme se deu conta na sentença recorrida que refere as duas linhas orientadoras que têm sido consideradas.
De todo o modo afigura-se-nos que a tendência mais recente e que tende a consolidar-se como maioritária vai no sentido da posição sufragada na sentença recorrida, buscando a sua sustentação jurídica no actual regime jurídico do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel aprovado pelo Dec.Lei n.º 291/2007 de 21/08, que sucedeu ao anterior regime sobre a matéria aprovado pelo Dec.Lei n.º 522/ 85 de 31/12 e que se mostra aplicável ao caso dos autos, diploma aquele que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio e revogou diversas normas anteriores, mormente do anterior regime até então aplicável.
Isto dito decorre do artigo 6.º do identificado regime, aprovado pelo Dec,Lei n.º 291/2007 de 21/08, o seguinte:
“1 - A obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, exceptuando-se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a obrigação recai, respectivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário.
2 - Se qualquer outra pessoa celebrar, relativamente ao veículo, contrato de seguro que satisfaça o disposto no presente decreto-lei, fica suprida, enquanto o contrato produzir efeitos, a obrigação das pessoas referidas no número anterior.
3 - Estão ainda obrigados os garagistas, bem como quaisquer pessoas ou entidades que habitualmente exercem a actividade de fabrico, montagem ou transformação, de compra e ou venda, de reparação, de desempanagem ou de controlo do bom funcionamento de veículos, a segurar a responsabilidade civil em que incorrem quando utilizem, por virtude das suas funções, os referidos veículos no âmbito da sua actividade profissional.
4 - Podem ainda, nos termos que vierem a ser aprovados por norma do Instituto de Seguros de Portugal, ser celebrados seguros de automobilista com os efeitos previstos no presente decreto-lei.
5 - Quaisquer provas desportivas de veículos terrestres a motor e respectivos treinos oficiais só podem ser autorizados mediante a celebração prévia de um seguro, feito caso a caso, que garanta a responsabilidade civil dos organizadores, dos proprietários dos veículos e dos seus detentores e condutores em virtude de acidentes causados por esses veículos.”
Por seu turno resulta do artigo 15.º do aludido regime jurídico que:
“1 - O contrato garante a responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar previstos no artigo 4.º e dos legítimos detentores e condutores do veículo
[…].” No artigo 16.º sempre do mesmo diploma legal estatui-se ainda que: “1 - As empresas de seguros legalmente autorizadas a explorar o ramo «Responsabilidade civil de veículos terrestres a motor» só poderão contratar os seguros nos precisos termos previstos no presente decreto-lei e nas condições contratuais estabelecidas pelo Instituto de Seguros de Portugal. […]” Já no artigo 23.º do sobredito regime previu-se que: “No caso de, relativamente ao mesmo veículo, existirem vários seguros, efectuados ao abrigo do artigo 6.º, responde, para todos os efeitos legais, o seguro referido no n.º 5, ou, em caso de inexistência deste, o referido no n.º 3, ou, em caso de inexistência destes dois, o referido no n.º 4, ou, em caso de inexistência destes três, o referido no n.º 2 do mesmo artigo, ou, em caso de inexistência destes quatro, o referido no n.º 1 do mesmo artigo.” Assume-se como particularmente relevante para a situação que temos entre mãos o disposto no artigo 27.º do regime jurídico em apreço o qual dispõe que: “1 - Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso: […] f) Contra o incumpridor da obrigação prevista no n.º 3 do artigo 6.º; […]” Perante o quadro legal acabado de enunciar e atenta a matéria de facto considerada como provada na sentença recorrida e consolidada neste acórdão, mormente a que se encontra discriminada sob os pontos 3 a 9, 11 e 19, do segmento dos factos provados, reiteramos revelar-se como mais acertado para a solução da questão ora em reapreciação o juízo jurídico-normativo exposto pelo Tribunal recorrido na sentença colocada em crise (destacado através da transcrição já supra efectuada). Na verdade, à luz do actual regime jurídico respeitante ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel em caso de acidente causado por garagista, ou pessoa/entidade equiparada a tal subsumível ao disposto no nº3 do artigo 6.º acima transcrito, com viatura que estivesse à sua guarda e de que tivesse a direcção efectiva, utilizando-a no momento do acidente no seu interesse, em virtude das suas funções e no exercício da sua actividade profissional, pertença de terceiro e objecto de seguro válido de responsabilidade civil automóvel constituído pelo respectivo proprietário, o lesado pode acionar directamente a seguradora deste último, que assim responderá pelo montante de danos apurados, no caso de o garagista, ou comissario do mesmo que conduzisse no momento do embate a viatura detida por aquele, não possuir seguro válido de garagista ou seguro de automobilista, podendo, subsequentemente, a empresa de seguros do proprietário da viatura causadora do acidente exercer, no limite, o direito de regresso sobre aquele garagista, solução esta que além de evidenciar uma acrescida preocupação com a finalidade social também inerente ao sistema de seguros na perspectiva duma efectiva satisfação dos direitos dos lesados possibilita, ainda, em regra, um ressarcimento mais célere ao lesado. De resto sempre se acrescentará que perante a factualidade assente no presente caso que convoca, além do mais, a aplicabilidade da parte final do n.º 1 do artigo 15.º do regime jurídico aprovado pelo Dec.Lei n.º 291/2007 de 21/08 sempre estaria arredada a aplicação in casu do disposto no artigo 62.º do mesmo diploma legal, que prevê a demanda do Fundo de Garantia Automóvel. Dito isto importa ainda dizer que se acompanha a resenha jurisprudencial favorável a este entendimento acertadamente exposta pelo Tribunal a quo na sentença recorrida destacando-se somente o seguinte do recente acórdão proferido por unanimidade pelo STJ em 07/10/2021, relatado pelo Conselheiro Pedro de Lima Gonçalves, no âmbito do processo n.º 2031/17.2T8PNF.P1.S1, acessível in www.dgsi.pt, o qual, aliás, confirmou em sede de recurso de revista o acórdão anteriormente proferido pelo Tribunal da Relação do Porto exarado nesses mesmos autos em 11/02/2021: “[…] Entendeu o Acórdão recorrido que “Houve esta alteração de subsidiariedade que faz com que, não existindo seguro de garagista nem de automobilista, responde o seguro do proprietário do veículo. Daí que esta seguradora tem direito de regresso sobre o garagista – artigo 27.º, n.º, 1, f), do citado Decreto-Lei n.º 291/2007 - «satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso contra o incumpridor da obrigação prevista no n.º 3 do artigo 6.º». E só se não existir este seguro obrigatório celebrado pelo proprietário, é que tem de ser demandado o Fundo de Garantia Automóvel. (…) Também no Ac. do S. T. J. de 05/11/2009, www. dgsi.pt, relatado pelo Conselheiro Lopes do Rego, se aborda este novo regime. Na realidade, este Acórdão relatando uma situação em que já existia caso julgado sobre a decisão condenatória da seguradora celebrado pelo proprietário do veículo em assumir a responsabilidade por danos causados quando o veículo estava na direção efetiva da viatura e se indagava se aquela seguradora tinha direito de regresso sobre o garagista, menciona-se que « … esta questão de direito mostra-se actualmente resolvida por via legislativa, tendo o DL 291/07 optado por perspectivar o direito ao reembolso da seguradora do proprietário do veículo sobre a empresa de reparação de veículos que omitiu a feitura do seguro obrigatório especial da sua responsabilidade civil como mais uma das situações, tipicamente previstas, que se consubstanciam na figura do «direito de regresso» da seguradora (art.27º, nº1, alínea f);» Ou seja, por força da alteração do sucessivo encadeamento de responsabilidades em que surge, em último lugar, o seguro celebrado pelo proprietário, se esta seguradora assumir a qualidade de garante da indemnização perante o lesado, tem direito de regresso sobre o efetivo responsável, no caso o garagista.”. Como refere Maria Manuela Chichorro (In O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, Coimbra Editora, Dezembro 2010, pp. 215 e 216), “Se o sinistro for causado por garagista e este não tenha cumprido a sua obrigação de segurar prevista no art. 6.º, n.º 3, do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, o segurador de um contrato de seguro subsidiário daquele, através do qual seja paga indemnização ao lesado, tem direito de regresso contra o referido garagista” - “Vide art. 27.º, 1, alínea f), do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, reproduzido pela Cláusula 31.º, alínea f), da Parte Uniforme da Condições Gerais da Apólice de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel.” - Igualmente, Adriano Garção Soares e de Maria José Rangel de Mesquita (In Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, Anotado e Comentado, 2008, Almedina, pp. 21 a 41, 89 a 92, 133 a 165, 203 a 205 e 251 e 253), referem que a nova alínea f) do artigo 27.º prevê expressamente o direito de regresso contra os garagistas ou equiparados que não hajam efetuado o seguro previsto no n.º 3 do artigo 6.º (134). De igual modo, José António França Pitão (In Seguro Automóvel Obrigatório Anotado, Outubro 2019, Quid Juris?, p. 15 a 38, 72 a 78, 108 a 129, 204 a 207 e 257 a 263), acompanha esta posição que resulta da introdução da alínea f) ao artigo 27.º do Regime do Seguro de Responsabilidade Civil Automóvel (p. 111 e 112). Desta forma, também nesta parte deverá ser mantido o Acórdão recorrido, nos termos em que considerou a Ré Lusitânia Companhia de Seguros S.A. responsável pelo pagamento da indemnização ao Autor, sem prejuízo de posterior direito de regresso sobre a chamada Auto-Calvário, Lda., enquanto garagista, que não procedeu à celebração do respetivo seguro. […]” De todo o exposto conclui-se, pois, que não tendo sido outorgado pelo estabelecimento de oficina “BB Unipessoal, Lda” o obrigatório seguro previsto no n.º 3 do artigo 6.º do regime jurídico aprovado pelo Dec.Lei n.º 291/2007 de 21/08, mas existindo seguro obrigatório constituído pela proprietária do veículo causador do sinistro relativamente ao mesmo, deve a seguradora desta segunda assumir a responsabilidade civil perante o lesado, ora Apelado, ficando com direito de regresso sobre a dita oficina, nos termos do previsto no artigo 27.º, n.º, 1, f), do diploma legal acima identificado, sem que possa ser responsabilizado o Fundo de Garantia Automóvel. Destarte, improcederá o recurso de apelação interposto sendo de manter a sentença recorrida, a qual não é merecedora de censura. |
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Face a todo o exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso de apelação interposto por Generali, Seguros, SA, decidindo-se, em consequência, o seguinte:
1. Confirmar a sentença recorrida;
2- Condenar em custas a Apelante - artigo 527.º, n.º 1 e 2, do CPC.
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Notifique.
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ÉVORA, 25 de JUNHO de 2025
(José António Moita-Relator)
(Ana Pessoa – 1ªAdjunta)
(Maria João Sousa e Faro - 2.ª Adjunta)