SIGILO PROFISSIONAL
SEGREDO PROFISSIONAL
ADVOGADO
ORDEM DOS ADVOGADOS
Sumário

Na decisão do incidente de levantamento de segredo profissional do advogado impõe-se a audição prévia da Ordem dos Advogados, ainda que a posição desta não seja vinculativa para o tribunal.

Texto Integral

Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.


Na sessão da audiência de julgamento dos embargos à execução movidos por AA - Empreendimentos Turísticos S.A. contra o Banco Montepio. Em sede de audiência final, a testemunha BB invocou o sigilo profissional de advogado, para fundamentar uma recusa legítima a depor e na sequência dessa posição o embargante suscitou o levantamento de sigilo profissional da testemunha ao abrigo do disposto no artigo 135.º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi n.º 4 do artigo 417.º do Código de Processo Civil, nos seguintes termos:


«1. Em sede de audiência final, a testemunha BB invocou o sigilo profissional de advogado, para fundamentar uma recusa legítima a depor.


2. Não havia dúvidas que a testemunha tem conhecimento privilegiado de muitos dos factos alegados nos embargos, designadamente os relativos à formalização dos negócios relatados.


3. Efetivamente, a testemunha tem conhecimento direto dos factos em causa nos autos, pois esteve pessoalmente envolvida na sua quase totalidade (como confirmaram as outras testemunhas), pelo que não há dúvida que o seu depoimento é essencial à descoberta da verdade material, tanto que foi arrolada por ambas as partes, Executado e Exequente.


4. Importa, assim, demonstrar fundamentadamente que o depoimento é indispensável, por não haver outros meios de prova ao dispor das partes, além dos já produzidos, para demostrar e criar a convicção do tribunal relativamente a alguns dos factos essenciais alegados pelo Executado, infra especificados.


5. O que facilmente se mostrará, na medida em que já foi produzida a quase totalidade dos meios de prova, incluindo a inquirição de todas as demais testemunhas arroladas (à exceção da testemunha CC), havendo ainda factos essenciais - nos quais, além das partes, apenas a testemunha participou, e que a inquirição da testemunha permitirá provar.


Assim,


A – Razão de ciência


6. Primeiramente, cumpre esclarecer que o Banco Exequente contratou a testemunha como sua advogada, para estruturar a operação dos navios, conforme resultou do depoimento das testemunhas DD, EE e FF, pelo que, tendo o Banco Exequente arrolado a sua advogada como testemunha, tem de se considerar que o mesmo autorizou a revelação dos factos sujeitos a sigilo – tanto assim é que não se opôs ao incidente de levantamento.


7. Tendo a testemunha afirmado, aos costumes, que já trabalhou com o Exequente, na qualidade de advogada.


8. Posteriormente, foi também a testemunha quem apresentou as sociedades do grupo à insolvência, agindo formalmente como advogada das sociedades, mas sempre cumprindo instruções do Banco Exequente, cfr. documentos juntos sob o n.º 7 e declarações da testemunha GG e FF.


9. Finalmente, a testemunha atuou como advogada da massa insolvente das sociedades (conforme a própria, aos costumes, afirmou), indicada pelo Banco Exequente, assessorando, pelo menos, a venda dos navios – cfr. declarações da testemunha FF.


10. Mais tendo sido mandatada por todos os administradores da insolvência, naturalmente por indicação do Banco Exequente.


11. Assim, é inequívoco que a testemunha foi, desde o arranque dos factos aqui em causa, advogada do Banco Exequente, tendo participação e total conhecimento da matéria em causa nestes autos, até antes da intervenção do Executado.


B – Indispensabilidade


12. O depoimento da testemunha é essencial para prova dos seguintes factos essenciais:


 Art. 14.º - Em 2012, o Exequente contactou o Dr. FF com o propósito de lhe apresentar uma proposta de trabalho, convidando-o para ser sócio único e gerente de um grupo de sociedades, o qual iria adquirir e explorar um conjunto de navios, com financiamento do Exequente: os navios Lisboa, Porto, Azores e Funchal;


 Art. 19.º - Assim, o Exequente decidiu constituir o grupo Pearl Cruises para explorar os navios e financiar a operação, conseguindo desta forma pagar-se da substancial dívida do CIC;


 Art. 20.º Contudo, como o Exequente não podia ser sócio ou gerente dessas sociedades, procurou quem estivesse disposto a fazê-lo;


 Art. 26.º - Foi neste contexto que o Exequente contactou o Dr. FF, pedindo-lhe que gerisse o negócio dos navios, por conta e no interesse do Exequente, e no estrito cumprimento das suas ordens e instruções;


 Art. 23.º - E, para ter poderes para tanto, em 20 de dezembro de 2012, outorgou, com as sociedades do CIC um Acordo Global de Pagamento, nos termos do qual o Exequente fixou o preço de venda e tinha poderes para escolher, sozinho, o novo proprietário dos navios, obrigando-se as sociedades do CIC a aliená-los, à ordem do Exequente, de forma a que os navios fossem transferidos para o porto de Lisboa, cfr. considerandos h) e j) do contrato, que se junta como documento n.º 2 e dá por integralmente reproduzido;


 Art. 24.º - E mais, o Exequente tinha até poderes – por ordem irrevogável! – para, diretamente ou através de mandatário, negociar e praticar todos os atos necessários ao levantamento dos arrestos, ao pagamento de créditos e aos demais atos necessários ao regresso dos navios a Lisboa, conforme previsto nos n.º 2 e 3 da cláusula oitava do referido documento n.º 2;


 Art. 27.º - Para tanto, o Exequente assegurou ao Dr. FF que nunca lhe seriam pedidas garantias, de forma a que tivesse pouco a perder com o negócio;


 Art. 30.º - Foi também o Exequente que assegurou todos os procedimentos necessários à formalização do mesmo, tendo escolhido a sociedade de advogados ML... & Associados para prestar assessoria jurídica à operação;


 Art. 31.º - O Exequente contratou e pagou à ML... para realizar todos os procedimentos necessários à constituição das sociedades, à transmissão dos navios para as mesmas e à gestão corrente das sociedades;


 Art. 32.º - Em janeiro, o Dr. FF foi ao escritório da ML... assinar de cruz todos os documentos que lhe foram apresentados, comprometendo-se a cumprir todas as ordens do Exequente;


 Art. 34.º - O Dr. FF nunca teve acesso aos navios e nunca conheceu, nem sequer conversou, com qualquer representante ou sócio das sociedades do grupo CIC, tanto que o registo no site da Ordem dos Advogados relativo ao reconhecimento de assinaturas do Executado no contrato de venda do Navio Funchal foi feito às 23:57 da véspera do dia de assinatura do contrato por advogada diversa da que reconheceu as assinaturas dos vendedores, cfr. documento n.º 3 já junto;


 Art. 37.º - A ML... assegurou, anualmente, os serviços de sede social, serviços administrativos e gerente residente para as sociedades – tanto que, conforme resulta dos documentos juntos sob o n.º 5, todas as sociedades proprietárias dos navios têm sede no escritório da ML... no Funchal;


 Art. 40.º - Face ao exposto, durante os três anos seguintes, o Dr. FF deu a cara do negócio, mas cumpriu ordens do Exequente em todas as áreas financeiras e estratégicas;


 Art. 40.º - O controlo do negócio pelo Exequente, nomeadamente através da Dra. BB da ML..., era do conhecimento de todas as pessoas envolvidas no projeto, de tal forma que até o fotógrafo da obra de reconstrução do navio Funchal o afirma abertamente no seu website;


 Art. 42.º - O Exequente tomou todas as decisões estratégicas do negócio, inclusive relacionadas com a insolvência, cfr. emails que se juntam como documento n.º 7 e dão por integralmente reproduzidos;


 Art. 48.º - Mais grave, os financiamentos concedidos tinham como garantia essencial hipotecas sobre os próprios navios e as quotas das próprias sociedades do grupo;


 Art. 56.º - Art. 51.º - Assim, em 30 de julho de 2015, a Pearl Cruises apresentou-se à insolvência – até ao fim, pela mão da Dra. BB da ML....


 Art. 59.º - Porém, a verdade é que o Exequente tem obrigação de saber que esta dívida é uma dívida própria do Montepio, cujas garantias reais e pessoais o Exequente se comprometeu a nunca executar.


13. Isto porque, apesar de já terem sido produzidos quase todos os meios de prova admitidos nos autos, não resultou o cabal esclarecimento destes factos, a não ser pelas declarações da testemunha FF, as quais, pelo seu envolvimento pessoal no caso, requerem a corroboração de meio de prova adicional (razão pela qual não são mencionadas infra).


14. O que não surpreende porque, pela própria natureza da maioria dos factos em causa, os mesmos são apenas do conhecimento direto das partes e da sua advogada, pelo que não admitem outra prova testemunhal, além de indireta e incompleta.


15. Por isso é que todas as testemunhas arroladas, quando inquiridas, revelaram não ter total conhecimento destes factos, conforme infra mencionado, sendo que a Dra. BB é que sabe do tema.


16. Aos factos constantes do artigo 32.º nenhuma testemunha respondeu, pois não esteve presente na ocasião, não podendo, portanto, confirmar quem estava presente, quem redigiu os documentos em causa, nem a pedido de quem – matéria sobre a qual, pela sua própria natureza, apenas a Dra. BB pode testemunhar.


17. Do facto do artigo 34.º nenhuma testemunha demonstrou ter conhecimento, pelos mesmos motivos, tendo apenas a testemunha DD respondido que achava que não e a testemunha EE dito que não teve acesso aos navios não porque não quis (mas porque estavam arrestados) e que esse não era o ponto principal, e que achava que nunca tinha conhecido os irmãos gregos, que terá falado “com a nossa administração, não sei”.


18. Sublinha-se que quem reconhece a assinatura no documento em causa é a testemunha, pelo que só a mesma poderá atestar as circunstâncias em que o documento foi assinado, em concreto qual(is) da(s) parte(s) estava(m) presente(s).


19. Na verdade, as testemunhas arroladas HH, II, JJ declararam não ter conhecimento ou memória dos contornos concretos do caso, sendo absolutamente lacónicos não produzindo, por isso, prova útil.


a. A testemunha JJ, quanto aos factos dos artigos 40.º e 41.º, prestou um depoimento lacónico e incoerente com os documentos com os quais foi confrontado;


b. Quanto aos artigos 48.º e 49.º, todos confessaram desconhecer: HH, GG, JJ.


20. Ou seja, apenas 3 testemunhas responderam a parte da matéria indicada no ponto 12 supra, mas todas revelaram apenas conhecimento fragmentado, o que não permite reconstruir, de forma cabal e completa, o fio condutor dos factos, senão vejamos.


21. Quanto aos factos dos artigos 14.º, 20.º, 21.º, 26.º, 30.º e 31.º relativos à estratégia global desenhada ab initio para a operação de exploração dos navios e contratação da ML...:


a. Apenas a testemunha EE revelou ter conhecimento (ou recordar-se) da forma de abordagem ao Executado, contudo, não conseguiu esclarecer os contornos concretos da formalização da operação, em especial, a pré-existência da estratégia de constituição do grupo de Sociedades (com certificado de admissibilidade de firma já pedido) e quem as constituiu e prestou assessoria, quem negociou e formalizou os acordos com o proprietário anterior dos navios (designadamente os contratos de compra e venda) e, sobretudo, contratado por quem;


b. A testemunha DD soube indicar a pré-existência da estratégia, mas não revelou qualquer conhecimento da mesma;


22. Quanto aos factos do artigo 23.º, relativos à implementação da estratégia junto do anterior proprietário dos navios, isto é, à negociação e formalização dos acordos alcançados, apenas a testemunha DD informou que não teve intervenção;


23. Quanto à matéria artigo 27.º e 59.º, nenhuma testemunha soube indicar nenhum facto concreto:


a. A testemunha DD afirmou apenas que originalmente não estavam previstas garantias, tal como a testemunha EE.


b. A testemunha JJ afirmou apenas que não participou nas negociações dos financiamentos que já estavam aprovados e que a prestação de garantias seria o procedimento normal.


24. Quanto aos factos dos artigos 40.º, 42.º e 56.º,


a. A testemunha GG afirmou apenas que numa segunda fase os pagamentos não eram efetuados e nunca percebeu o critério, esclarecendo ainda que lhe foi dito que “o Banco vai decidir a insolvência” e que teve instruções para preparar os dossiers da insolvência para a Dra. BB que, do que se recorda, era a advogada do banco, e que em determinada altura o “Banco já falava diretamente comigo”;


b. A testemunha EE afirmou apenas que o business plan foi interrompido e que foi uma surpresa completa.


25. Acresce que os factos em causa não podem ser provados por documentos, pela sua própria natureza (estratégias e acordos verbais), salvo os dos artigos 22.º e 23.º, cujos contornos não refletidos nos documentos importa esclarecer – aliás, se assim não fosse, não constariam da matéria sujeita a instrução.


26. Acresce que, se mais documentos existem, estão no poder exclusivo do Exequente e/ou da sua advogada, e o Executado não tem como os trazer para os autos, pois não foi admitida prova por documentos em poder do Banco Exequente.


27. Estes factos também não podem ser demonstrados com recurso a outro meio de prova, já que não foi admitida a produção de prova pericial, nem a prestação de informações pela parte contrária, ao abrigo do princípio da cooperação, requeridas pelo Executado.


28. Consequentemente, está demostrado que, para o conjunto de factos ora indicados, não só o depoimento da testemunha é essencial, sendo, portanto, imprescindível para a descoberta da verdade.


Termos em que, e nos melhores de Direito, se requer a V. Exa. Se digne julgar verificada a legitimidade da escusa, ordenando a constituição de apenso incidental a remeter ao Tribunal da Relação, para que seja ordenado o levantamento do sigilo profissional da testemunha BB e ordenada a prestação do depoimento a incidir sobre os factos supra indicados.»


Na sequência do requerimento foi proferido o seguinte despacho:


«Vem a Embargante AA - EMPREENDIMENTOS TURÍSTICOS S.A. , EMBARGANTE requerer a abertura de incidente de levantamento de sigilo profissional da testemunha BB, ao abrigo do disposto no artigo 135.º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi n.º 4 do artigo 417.º do Código de Processo Civil, com os fundamentos vertidos no requerimento de 07.04.2025, invocando, em suma, que “a testemunha tem conhecimento direto dos factos em causa nos autos, pois esteve pessoalmente envolvida na sua quase totalidade (como confirmaram as outras testemunhas), pelo que não há dúvida que o seu depoimento é essencial à descoberta da verdade material, tanto que foi arrolada por ambas as partes, Executado e Exequente” e que “apesar de já terem sido produzidos quase todos os meios de prova admitidos nos autos, não resultou o cabal esclarecimento destes factos, a não ser pelas declarações da testemunha FF, as quais, pelo seu envolvimento pessoal no caso, requerem a corroboração de meio de prova adicional”.


Notificada nos termos do artigo 221.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a Exequente/Embargada nada disse.


Não se afigura necessário proceder a ulteriores averiguações, cumprindo apreciar.


Dispõe o artigo 417º do Código de Processo Civil que “1 - Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados. 2 - Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil. 3 - A recusa é, porém, legítima se a obediência importar: a) Violação da integridade física ou moral das pessoas; b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações; c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4. 4 - Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.”


Por seu turno, rege o artigo 135.º do Código de Processo Penal sobre o “Segredo profissional” (aplicável ex vi do artigo 417º, nº 4 do Código de Processo Civil) que “1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos. 2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento. 4 - Nos casos previstos nos n.os 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável. 5 - O disposto nos n.os 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.” Conforme nos elucida o Tribunal da Relação de Évora, no seu douto Acórdão de 17.06.2014 (Processo nº 66/08.5IDSTR-B.E1, Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS, consultável em www.dgsi.pt) «(…) o dever de sigilo destina-se a proteger a relação de confiança dos advogado com os seus clientes, bem como com colegas e outros que interagem com o advogado no exercício das suas funções em determinadas posições e contextos, quer se encontrem do lado que representa, quer mesmo do lado contrário, máxime quando esteja causa o conhecimento de factos de que lhe foi dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio – cfr alíneas a), c), d), e) e f) do nº1 do citado art. 87º do EOA.


Esta dimensão pessoal-individual do interesse protegido pelo segredo prevalece, em nosso ver, sobre a dimensão supra-individual institucional, que ainda se lhe reconhece, ligada à proteção da confiança da comunidade na discrição e reserva dos advogados (e outros profissionais em situações similares), como condição do se u desempenho eficaz.»


No caso em apreço, em sede de audiência de discussão e julgamento BB invocou o sigilo profissional de advogado, para fundamentar a recusa legítima a depor (cfr. acta de 27.03.2025).


Da prova produzida, resulta que o Banco Exequente contratou a testemunha como sua advogada, para estruturar a operação dos navios, tendo a mesma testemunha declarado, aos costumes, que trabalhou com a Exequente, na qualidade de advogada.


Estatui o artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados que “1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente: a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste; b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados; c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração; d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante; e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio; f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo. 2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço. 3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo. 4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento. 5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo. 6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional. (…).”


Assim e considerando o objecto do presente processo e a qualidade em que a testemunha terá tido conhecimento dos respectivos factos, surge-nos como legítima a invocada recusa da testemunha BB em prestar depoimento, nos termos dos artigos 417.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Civil, 135.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados.


Pelo exposto, constitua apenso incidental instruído com certidão dos elementos indicados pela Embargante, bem como com o presente despacho – cfr. 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal ex vi artigos 417.º, n 4, do Código de Processo Civil.


Após, remeta ao Venerando Tribunal da Relação de Évora.


Notifique.»


Não foi solicitado o parecer ao Conselho Regional da Ordem dos Advogados


Colhidos os vistos cumpre decidir.


2- Questão a decidir:


Se na decisão do incidente de levantamento de segredo profissional do advogado se impõe a audição prévia da Ordem dos Advogados.


3 –Análise do recurso:


Nos termos do artigo 417º do Código de Processo Civil, “[t]odas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados.”.


Prevê-se, no entanto no n.º 3 do mesmo artigo que a recusa é legítima se a obediência importar: “(…) c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4”, que manda aplicar, deduzida escusa com fundamento em violação do sigilo profissional (n° 3, alínea c) da mesma disposição legal), "[...] com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado".


Por sua vez, dispõe o n.º 3 do art.º 135.º do Código de Processo Penal, aplicável por remissão do n.º 4 do art.º 417.º do Código de Processo Civil, o seguinte:


"[o] tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente se tiver suscitado [...] pode decidir da [...] quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada [...] face ao princípio da prevalência do interesse preponderante […]". (artº 135°, nº 3 do CPP, na parte relevante para a presente situação).


E diz o seu nº 4 – “Nos casos previstos nos n.os 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável”.


Em primeiro lugar, importa saber se a audição aqui prevista é obrigatória.


E cremos que a resposta é afirmativa.


Partilhamos totalmente do entendimento expresso no Ac Ac. RP 6.5.2019, Proc. nº 42896/18.8YIPRT-A.P1, Relator: Fernanda Almeida, que por isso aqui se reproduz na totalidade:


«Com efeito, por um lado, a Ordem dos Advogados poderá dispensar do sigilo profissional o advogado que lho solicite, se entender reunidas condições para tanto, mas, por outro, deverá também ser ouvida pelo Tribunal antes de se decidir pelo levantamento, em incidente processual, daquele sigilo.


A obrigatoriedade de prévia audição da Ordem dos Advogado resulta da natureza pública do interesse prosseguido pelo sigilo do advogado o qual se relaciona com a conservação e desenvolvimento da sociedade política e da satisfação das suas necessidades (1) e não está condicionada à existência de dúvidas sobre a legitimidade da recusa. É isso que resulta da remessa do n.o 4 para as situações do n.o 3 do art. 135.º.


A recolha da posição prévia da agremiação profissional da pessoa cujo depoimento se pretende é de primacial importância, não para aquilatar se é legítima ou ilegítima a recusa em depôr - já se disse nos autos que o é - mas para saber, da perspetiva de tal ordem profissional, qual a interpretação que ao caso faz do disposto no art. 92.º, n.o4, daquele Estatuto.


Cabendo ao tribunal decidir se a violação do segredo profissional é, in casu, absolutamente necessári[a] para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, justifica-se a consulta prévia da instituição que, em primeira linha, não só tem por missão decidir estes temas, como se encontra em situação privilegiada para verificar os interesses daqueles que tem por função representar, concorrendo na definição concreta do princípio da prevalência do interesse preponderante (2) , embora a sua posição não seja vinculativa (3) .


Afastamos, assim, o entendimento plasmado no ac. RG, de 18.2.2016, Proc. 2068/10.2TJVNF-A.G1, segundo o qual se não impõe a audição prévia desta Ordem.


Com efeito, são eloquentes e justificadas as razões apontadas pelo Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados quando crítica este aresto: "a pronúncia da Ordem dos Advogados ao abrigo do disposto no no 4 do art. 135.º do C.P. Penal não pode ser reduzida à condição de um mero parecer, destinado a auxiliar o julgador na percepção e apreciação da realidade fáctica difícil de captar mediante os conhecimentos de que normalmente o juiz está apetrechado, como expressamente é declarado no acórdão em apreço. O segredo profissional é um dever imposto ao advogado por uma lei da república (Lei n.o 145/2015 de 9 de Setembro de 2015), sendo que o n.o 5 do art. 92.º dessa lei comina claramente que "os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo". Desse dever decorre o direito do advogado se remeter ao silêncio sempre que interpelado no sentido da revelação de factos advindos ao conhecimento por via do exercício da sua profissão. Subjacente à imposição legal desse dever está a garantia de um valor fundamental, transversal ao complexo das relações que o advogado estabelece no exercício da sua profissão: o valor da confiança! Confiança daquele que depositando no conhecimento do advogado determinado facto, o faz na legítima expectativa de o mesmo ser mantido sob sigilo, ressalvadas as hipóteses legais em que a sua quebra pode ocorrer. À Ordem dos Advogados, no âmbito das suas atribuições, compete (i) defender os direitos e as garantias dos cidadãos, (ii) promover o respeito pelos valores e princípios deontológicos, (iii) defender os interesses, direitos e prerrogativas dos seus membros - vd artº 3º do EOA. O incidente de quebra do segredo profissional, ao abrigo do disposto no art. 135.º do C.P. Penal, visa a obtenção de um meio de prova que contende, ou pode contender, com valores, deveres, direitos e garantias que, no âmbito das suas atribuições, compete à Ordem dos Advogados zelar e defender. Tem assim a Ordem dos Advogados uma legitimidade própria para se pronunciar quando em causa possam estar os deveres cujo cumprimento deve zelar, direitos e garantias cujo respeito deve defender. O legislador consignou-a obrigatoriamente no no 4 do art. 135.º do C.P. Penal. Nesta pronúncia, marcará a Ordem dos Advogados a sua posição, não com considerações de ordem técnica, mas com considerações de ordem valorativa, com as quais dirá (i) se os valores, direitos e interesses que se pretendem defender com a quebra do sigilo justificam o sacrifício daqueles que se pretendem salvaguardar com a imposição legal do dever de o guardar; (ii) se o facto sigiloso é essencial para a descoberta da verdade material na defesa de interesses preponderantes, (iii) se o depoimento do advogado ou o documento em seu poder, é imprescindível para a comprovação do facto. Não sendo a Ordem dos Advogados chamada a pronunciar-se, é preterida uma formalidade legal que forçosamente inquina a validade do meio de prova que por via do incidente do levantamento de sigilo foi obtido. A Ordem dos Advogados tem interesse na preservação do segredo profissional do advogado, como interesse tem qualquer cidadão. Mas por ter esse interesse e um dever especial na sua preservação, não significa (nem é verdade) que, nas pronúncias que tem proferido ao abrigo da citada norma de direito processual, manifeste sempre a sua oposição no sentido da manutenção do sigilo. Mas, quando a manifesta, fá-lo com fundamento" (4). »


Também no nosso caso (tal como no do Ac. supra referido), em primeira instância não foi observado o itinerário processualmente previsto para o incidente aqui em apreço, que implica a audição prévia da AO relativamente à decisão da 1ª instãncia quanto à legitimidade da recusa, subindo o incidente devidamente instruído com o Parecer da OA.


Designadamente, não foi ouvida a Ordem dos Advogados sobre a pretensão de quebra de segredo profissional do advogado dos autos, cujo depoimento como testemunha se pretende seja recolhido.


E por isso, não pode este tribunal decidir sobre tal incidente, sob pena de, a ser procedente, se vir a colocar de futuro a questão da validade e eficácia da prova que viesse a ser produzida nesta sequência.


Sumário:


(…)


4- Dispositivo:


Pelo exposto, decidem os juízes que compõem este tribunal não conhecer do incidente de quebra de sigilo, ordenando a remessa dos autos à primeira instância a fim de, cumpridas as formalidades legais, nomeadamente audição prévia da Ordem dos Advogados, e se assim continuar a ser entendido, ser suscitado novo incidente.


Sem custas.


Évora, 25.06.2025


Elisabete Valente


Sónia Moura


Ana Pessoa