PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
CABEÇA DE CASAL
HERANÇA
ACÇÃO DE DESPEJO
LEGITIMIDADE
RENDA
ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA
TÍTULO EXECUTIVO
Sumário

Sumário:
I. Não é a circunstância de o Tribunal apelidar de “liminar” a decisão em que considerou inexistir título executivo que tem a virtualidade de dispensar a audiência prévia das partes: é que ultrapassada a fase liminar terá de ser acautelado o princípio do contraditório, desiderato que aqui não foi cumprido;
II. Se o cabeça-de-casal tem legitimidade para isoladamente intentar acção de despejo relativa a imóvel que integra o acervo hereditário por maioria de razão também a tem para cobrar as rendas devidas pelo inquilino até à efectiva entrega do locado e que fundamentaram a resolução do contrato de arrendamento relativo a esse mesmo imóvel.
III. Não se trata nesse caso de cobrar dívidas activas da herança (art.º 2089º do Cód. Civil) mas sim de exigir, concomitantemente, do inquilino o pagamento das rendas que fundamentam a resolução do contrato de arrendamento levada a efeito pelo cabeça de casal no âmbito das suas atribuições e que se venceram no período em que a mesma administrou o imóvel.
IV. As dívidas, quer as activas quer as passivas, da herança são aquelas (e só aquelas) que existiam à data da abertura da herança que é a data de falecimento do de cujus.

Texto Integral

1619/21.1T8ENT.E1

ACÓRDÃO

1. AA, na qualidade de cabeça de casal aberta por óbito de BB, exequente nos autos à margem identificados, sendo executada Campo das Freiras, Sociedade de Exploração Agrícola Lda., inconformada com a decisão que indeferiu “liminarmente” o requerimento executivo, dela veio interpor recurso, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:


A) A presente execução foi intentada pela aqui recorrente, na qualidade de cabeça de casal aberta por óbito de BB, com vista à cobrança de rendas devidas, e não pagas, pela executada desde 2012 e teve por base dois títulos executivos: contrato de arrendamento e notificação judicial avulsa para resolução do mesmo.


B) A decisão recorrida indeferiu liminarmente o requerimento executivo por entender que um dos títulos dados à execução - no caso a notificação judicial -foi apenas deduzida pela exequente, desacompanhada dos restantes herdeiros.


C) Essa notificação destinou-se à resolução do contrato de arrendamento, através da qual a recorrente, na qualidade de cabeça de casal, comunicou à arrendatária a cessação do contrato de arrendamento por resolução, com fundamento na falta de pagamento de rendas, nos termos do disposto nos artº 17º, nº 2, alínea a), artº 26º, nº 4 e artº 29º do Decreto Lei 294/2009, de 13 de Outubro.


D) Em cumprimento do estatuído no nº 2 do artº 33º do mesmo diploma, a recorrente, nessa mesma NJA, repete-se: efectuada com vista à resolução do contrato de arrendamento, deu conhecimento à recorrida dos montantes devidos a título de renda, uma vez que esta poderia, à posteriori, lançar mão do disposto no artº 1048º, nº 1 do Código Civil, ex-vi do artº 17º, nº 6 do NRAR, fazendo, assim, caducar o direito à resolução.


E) A resolução, tal como a denúncia ou oposição, de contrato de arrendamento de imóveis que integram a herança ilíquida e indivisa trata-se de um mero acto de administração ordinária, pelo que pode ser exercido apenas pelo cabeça de casal, nos termos do disposto no artº 2079º do Código Civil.


F) A propositura de ação de despejo configura um ato de administração compreendido no âmbito dos poderes gerais conferidos ao cabeça-de-casal pelo artº 2079º do Código Civil.


G) Por maioria de razão, a resolução de um contrato de arrendamento, neste caso com fundamento na falta de pagamento de rendas e por via de NJA, está também incluído nos poderes e deveres de administração do cabeça de casal não sendo necessária para tal efeito a intervenção de todos os herdeiros.


H) Está aqui em causa a prática pela exequente, no exercício das suas funções de cabeça de casal, de acto destinado a pôr termo a um contrato de arrendamento e não a cobrar dívidas da herança.


I) Falece assim o argumento de que a há falta de título executivo por a NJA ter sido feita apenas pela exequente, ora recorrente, desacompanhada dos restantes herdeiros.


J) Refere também a sentença de que se recorre, que há uma divergência entre os herdeiros intervenientes com o exequente primitivo, designadamente assumindo estes a posição da executada (…) e que (…) esses herdeiros têm interesses distintos da exequente (…).


K) Alguns dos intervenientes chamados não aderiram aos fundamentos da exequente primitiva, a cabeça de casal, entre eles o legal representante (filho do autor da herança) da arrendatária, aqui apelada.


L) Todavia, a decisão de indeferimento liminar do requerimento executivo funda-se na alegada falta de título executivo e não na posição assumida pelos intervenientes na execução para cobrança das rendas devidas ao acervo hereditário.


M) Ademais, a razão do mencionado artº 2091º do Código Civil deriva da circunstância de a natureza da relação controvertida exigir a intervenção de todos os herdeiros, configurando, assim, um caso de litisconsórcio necessário para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal – art.º 33º, nº 2 do C.P.C.


N) «Não se trata de impor o litisconsórcio para evitar decisões contraditórias nos seus fundamentos, mas de evitar sentenças – ou outras providências – inúteis, por um lado, ao não vincularem os terceiros interessados e, por outro, não poderem produzir o seu efeito típico em face apenas das partes processuais» - Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2008, pág. 58.


O) O artº 2091º do C.C. ao estabelecer que os direitos relativos à herança apenas podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos eles, opta por considerar a herança uma realidade jurídica de comunhão de pluralidade de interesses, tornando indispensável a intervenção de todos os interessados na acção, independentemente da posição que assumam, pois só desta forma a decisão judicial pode obter o seu efeito útil, isto é, só com a presença de todos os interessados no processo o direito pode ser declarado de modo definitivo.


P) A posição que os restantes herdeiros, intervenientes chamados, assumiram nos presentes autos - de execução para cobrança de rendas - não tem qualquer relevância ou influência para aferir da validade do título executivo.


Q) A decisão proferida – de indeferimento liminar - constitui uma decisão surpresa, já que a matéria sobre a qual recaiu decisão – falta de título executivo – não foi alegada pelas partes nos seus articulados, sendo certo que a mesma foi determinante para a decisão.


R) Deveria ter sido dado cumprimento pleno ao princípio do contraditório, uma vez que se trata de tema essencial e susceptível de integrar a base da decisão a proferir, como aconteceu.


S) A inobservância do princípio do contraditório, omissão grave por parte do Tribunal a quo, constitui nulidade processual e nulidade da decisão, não sendo lícito ao Tribunal decidir sem que às partes tenha sido concedido o direito de sobre a mesma se pronunciarem.


T) O princípio do dispositivo encontra-se estritamente conexo com o princípio do contraditório tendo este último de ser respeitado, sob pena de se considerar a sentença uma decisão surpresa.


U) Todavia, colocando-se ao Tribunal essa questão, não configurada pelas partes, deveria ter sido dado à exequente e à executada a possibilidade de sobre a mesma exercerem o contraditório nos termos do que dispõe o n.º 3 do artigo 3.ºdo CPC.


V) Tal omissão constitui nulidade processual e também nulidade da decisão.


W) A decisão do Tribunal, antecedida de omissão de acto obrigatório, que no caso concreto não pode deixar de ser considerada uma omissão grave ou relevante para o exame e decisão da causa, gera nulidade secundária (prevista no artigo195.º do CPC) e também nulidade da decisão por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC).


X) A decisão proferida e ora em crise, violou, entre outros, os artigos 3.º, 195º, 615º, nº 1, alínea d), todos do C.P.C e artigos 2078º e 2079º do Código Civil, devendo ser substituída por outra que declare nula a decisão surpresa e que, a final, considere como válidos os títulos dados à execução, prosseguindo os autos os seus termos e anulando-se a decisão de indeferimento liminar do requerimento executivo.


Nestes termos e nos mais de direito que Vossas Excelências certamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, declarando-se a nulidade da decisão proferida pelo Tribunal e, a final, considerar como válidos os títulos dados à execução, prosseguindo os autos os seus termos e anulando-se a decisão de indeferimento liminar do requerimento executivo.”.

2. Contra-alegou a apelada defendendo a improcedência do recurso.

3. O objecto do recurso – delimitado pelas conclusões da apelante- circunscreve-se à apreciação das seguintes questões:

1. Se ocorreu violação do dever de audiência prévia quanto ao conhecimento da oficioso da inexistência de título executivo. Consequências;

2. Da (in) existência de título executivo.


II. FUNDAMENTAÇÃO

1. É o seguinte o teor da decisão recorrida:


“Antes de mais, cumpre dizer que, compulsados os autos, verifica-se que, na execução que ainda se mantém, entre os intervenientes chamados como exequentes, há uma divergência com o exequente primitivo, designadamente assumindo estes a posição da executada.


Ora, nos termos da posição revista no apenso A, e como dispõe o artigo 2089.º do Código Civil «o cabeça-de-casal pode cobrar as dívidas activas da herança quando a cobrança possa perigar com a demora ou o pagamento seja feito espontaneamente» e, dispõe o n.º 1 do citado artigo 2091.º que «fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no art. 2078º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros».


Não havendo, nos autos, indícios do perigo com a demora, entende-se que a cabeça de casal teria de se articular com os demais herdeiros para poder cobrar a dívida em causa nos autos.


Ora, na execução que ainda se mantém, foi apresentado como título executivo o contrato de arrendamento celebrado entre BB e o Campo das Freiras e a notificação judicial avulsa juntos com o requerimento executivo, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.


Esta notificação judicial avulsa foi apenas deduzida pela exequente, desacompanhada dos demais herdeiros.


Constata-se agora que esses herdeiros têm interesses distintos da exequente.


Há, pois, crê-se, falta de título, já que a notificação judicial avulsa devia ser de todos os herdeiros.


A falta de título foi oportunamente suscitada em sede de embargos, pelo que se entende que poderá ser agora conhecida.


Pelo que, e à luz do artigo 726.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Civil, o Tribunal decide:


- Indeferir liminarmente o requerimento executivo apresentado, na parte em que ainda se mantinha.”.

2. Da consulta dos autos (principal e apensos) emerge igualmente o seguinte:

a. No apenso de embargos de executado, foi proferido despacho saneador em 31.1.2023 do qual consta, designadamente o seguinte:


“Da (i) legitimidade da cabeça-de-casal exequente


Como já se referiu anteriormente, nos autos principais, a exequente, enquanto cabeça de casal da herança aberta por óbito de BB, veio instaurar a execução para pagamento da quantia certa. Baseia a execução num contrato de arrendamento celebrado entre BB e a embargante e uma notificação judicial avulsa relativa a esse contrato.


A embargante, em sede de embargos de executado, defendeu-se, para além do mais, por excepção, nomeadamente, invocando uma excepção dilatória, por a presente acção ter sido apresentada sem os restantes herdeiros, como impõe o artigo 2091.º do Código Civil, o que determina a absolvição da executada, ora embargante, da presente instância executiva, sendo ainda uma excepção de conhecimento oficioso - tudo cf. Artigos 2091.º do Código Civil, 278.º, n.º 1, alínea d), 576.º, n.º 2, 577.º, alínea e) e 578.º do Código de Processo Civil.


Nos termos do Douto Acórdão proferido nos autos apensos B, cumpre tomar uma decisão quanto a esta questão.


Ora, dispõe o artigo 2089.º do Código Civil que «o cabeça-de-casal pode cobrar as dívidas activas da herança quando a cobrança possa perigar com a demora ou o pagamento seja feito espontaneamente» e, dispõe o n.º 1 do citado artigo 2091.º que «fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no art. 2078º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros».


Em face das normas transcritas, estando em causa nos presentes autos, a cobrança de uma dívida activa da herança, e revendo-se a posição adotada anteriormente, entende- se agora que a cabeça de casal apenas teria legitimidade para propor a presente acção (desacompanhada dos demais herdeiros) se a cobrança da dívida pudesse perigar com a demora – neste sentido, cf. o ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA, de 26 de Fevereiro de 2019, Processo n.º 1222/16.8T8VIS-C.C1, in dgsi.


Não há, nos autos, indícios desse perigo com a demora.


Por outro lado, o artigo 2078.º do Código Civil não altera a conclusão a que chegou agora.


Nos termos deste artigo: «1. Sendo vários os herdeiros, qualquer deles tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens lhe não pertencem por inteiro.


2. O disposto no número anterior não prejudica o direito que assiste ao cabeça-de-casal de pedir a entrega dos bens que deva administrar, nos termos do capítulo seguinte.»


No caso, entende-se que não se está perante qualquer caso de entrega de coisa certa, mas, ao invés, de cobrança de dívida, não sendo, portanto, aplicável o artigo acima transcrito.


Consequentemente, a cabeça de casal, desacompanhada dos demais herdeiros, não tem legitimidade para a presente acção.


Mas a excepção de ilegitimidade da cabeça de casal por preterição de litisconsórcio necessário é sanável por via do incidente de intervenção de terceiros, conforme decorre do artigo 316.º, nº 1, do Código de Processo Civil, impondo-se mesmo ao juiz o dever de providenciar pela sanação dessa excepção, convidando as partes a deduzir o incidente adequado à intervenção dos herdeiros em falta (cf. artigo 6.º, n.º 2, do Código de Processo Civil) – neste sentido, cf. o ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA, de 24 de Fevereiro de 2015, Processo n.º 1530/12.7TBPBL.C1, in dgsi).


Pelo que:


- se julga procedente a ilegitimidade activa da cabeça-de casal;


- se convida a exequente a vir requerer nos autos principais, no prazo de dez dias, a intervenção principal provocada dos herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de BB, sob pena de, em caso de silêncio, absolvição da executada, ora embargante, da instância executiva.”.

b. A embargante recorreu de tal decisão e subsequentemente foi proferido acórdão que a confirmou1;

c. Acatando tal decisão, a exequente deduziu em 16.2.2023 o incidente de intervenção principal dos demais herdeiros do falecido para “assegurar a legitimidade da Exequente nos presentes autos, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de BB”, falecido em ........2011.

4. Do mérito do recurso

1. Da violação do dever de audiência prévia quanto ao conhecimento da oficioso da inexistência de título executivo. Consequências.


Entendeu, inopinadamente, o Tribunal “a quo” indeferir “liminarmente” o requerimento executivo por, na sua opinião, ocorrer “falta de título”.


Conquanto o Tribunal “a quo” a “tenha apelidado de “liminar” tal decisão, o certo é que não se trata de uma decisão liminar. Aliás, a decisão liminar há muito que havia sido dada: mais concretamente em 28.6.2021 (“Cite”).


“Em geral, a ideia que subjaz ao carisma do despacho liminar é a de uma decisão estritamente inicial, imediatamente seguinte ao petitório do requerente, antes mesmo da audição do requerido e, por regra, destinada a escrutinar preliminarmente a viabilidade do procedimento suscitado. Como nota JOÃO AUGUSTO PAIS DE AMARAL trata-se aí de decisão que se profere no limiar do processo, no seu início, começo ou princípio. Se, porventura, razões houvesse que teriam justificado a retenção liminar (inicial) do procedimento, mas sem que este tivesse sido aí determinado, obviamente, não decorrem essas precludidas, podendo (e devendo), então já numa fase mais avançada, comprometer o respectivo sucesso e acarretando, em momento já mais adiantado, a decorrente extinção; mas com a especificidade de, neste momento, já não comportar a envolvência de uma decisão (de indeferimento) liminar.2”.


Sendo certo que a decisão recorrida não é uma decisão liminar, isto não significa que não possa ser constatada e posteriormente declarada a “falta de título”.


Mas evidentemente tomando outras cautelas que aqui foram notoriamente desprezadas.


Vejamos então.


É certo que o título executivo constitui a base da acção executiva e consiste num documento de acto constitutivo ou certificativo da existência da obrigação, ou seja, do dever de prestar que vincula o devedor perante o credor.


Em contrapartida, a inexistência do título impede o prosseguimento da execução, logo que constatada, pois a pretensão é destituída de exequibilidade.


E porque assim é, a falta de título executivo constitui fundamento para rejeição oficiosa da execução – artigo 734º, nº 1, do CPC.


Mas ultrapassada a fase liminar, terá de ser acautelado o princípio do contraditório, desiderato que aqui não foi cumprido.


Entende, por isso, a apelante que a decisão enferma de nulidade.


Cremos que lhe assiste razão.


Tendo o Tribunal “a quo” decidido conhecer no decurso da execução da “falta de título” com omissão de audiência prévia, e sem ter dado a oportunidade às partes de se pronunciarem sobre a mesma, violou o disposto no nº3 do art.º3º do CPC, proferindo, pois, uma “decisão surpresa”.


Como foi referido no acórdão desta Relação proferido no processo 1308/22.0T8PTG.E1 ( com a mesma relatora) : “ Através da consagração naquela norma (artigo 3.º, n.º 3, do CPC) por imposição constitucional, de um princípio geral de contraditório, visa-se a participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o processo, permitindo‑lhes, em condições de plena igualdade material, influir em todos os seus aspectos (alegação dos factos, proposição e produção da prova e discussão das questões de direito).


Como nos dá conta o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 77/20233 é de “realçar a evidente centralidade da garantia de contraditório no quadro das exigências de um processo justo decorrentes do artigo 20.º da Constituição” expressando o seu entendimento de que a actuação do tribunal tem de ser previsível para a parte, num processo equitativo.


A efectividade de tal garantia está, pois, também no nosso entender, conexionada com a previsibilidade para a parte da decisão que irá ser tomada porque só desse modo lhe será permitido “influir em todos os seus aspectos”.


Quanto à questão das consequências da omissão do contraditório, dá-nos conta Luís Mendonça4: “Três são as correntes que podemos identificar na jurisprudência sobre a natureza e regime de arguição da nulidade consistente na falta de actuação do contraditório prévio a uma decisão. Uma primeira corrente entende que se trata de uma nulidade processual, cujo remédio reside, não na reclamação para o juiz, mas na interposição de recurso; uma outra que se trata de uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia, igualmente impugnável por via recursiva; uma terceira corrente defende que estamos ao invés perante uma nulidade procedimental, sujeita ao regime geral dos arts. 195.º e 199.º.”.


Admitimos que decisão recorrida que no decurso da execução entende haver “falta de título” e a extingue sem adequado cumprimento do contraditório, enferma de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do art.º 615º, nº 1, al. d) do CPC.


Para o justificar recorremos, com a devida vénia, ao estudo de Miguel Teixeira de Sousa5, no qual afirma: «(...) A audição prévia das partes é um pressuposto ou uma condição para que a decisão não seja considerada uma decisão-surpresa. Quer dizer: a decisão- surpresa é um vício único e próprio: a decisão é uma decisão-surpresa quando tenha sido omitida a audição prévia das partes. Noutros termos: há um vício (que é a decisão- surpresa), e não dois vícios independentes (a omissão da audiência prévia das partes e a decisão-surpresa). Em concreto: há um vício processual que é consequência da omissão de um acto. Se assim é, claro que o que há que considerar é o vício em si mesmo (a decisão-surpresa) e não separadamente a causa do vício e o vício. Em parte alguma do direito processual ou do direito substantivo se considera a causa do vício e o vício como duas realidades distintas. A única distinção que é possível fazer é ontológica: é a distinção entre a causa e a consequência. Dado que a decisão-surpresa corresponde a um único vício e porque este nada tem a ver com a decisão como trâmite, o vício de que padece a decisão-surpresa só pode ser um vício que respeita à decisão como acto. Em concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º1, al. d), CPC), dado que se pronuncia sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se pode pronunciar.»


Em conclusão: Na procedência do recurso da apelante neste conspecto, declara-se a nulidade da decisão recorrida nos termos do art.º 615º, nº 1, al. d), 2.ª parte, do CPC.


Porém, considerando que a questão que levou o Tribunal “a quo” a indeferir a execução já foi nesta sede recursória debatida por ambas as partes, passa-se, ao abrigo do disposto no art.º 665º, nº1 do CPC, a dela conhecer.


3.2. Da (in) existência de título executivo.


Entendeu agora o Tribunal “a quo” (i.e. depois de ter proferido o convite à dedução do incidente de intervenção principal e depois do mesmo ter sido deduzido pela exequente) que a circunstância de a cabeça de casal estar desacompanhada dos demais herdeiros aquando da formação do título executivo (notificação judicial avulsa) impedia que o mesmo se tivesse formado validamente.


Vejamos se assim é.


Atente-se que os títulos dados à execução foram o contrato de arrendamento (“rural empresarial”) celebrado em 1.3.2010 entre BB e Campo das Freiras, Sociedade de Exploração Agrícola Lda e a notificação judicial avulsa dirigida à arrendatária através da qual a exequente, na qualidade de cabeça de casal, comunicou à mesma arrendatária a cessação do contrato de arrendamento por resolução, com fundamento na falta de pagamento de rendas, nos termos do disposto nos artº 17º, nº 2, alínea a), artº 26º, nº 4 e artº 29º do Decreto Lei 294/2009, de 13 de Outubro (NRAR).


Nessa Notificação Judicial Avulsa com vista à resolução do contrato de arrendamento, deu-se conhecimento à arrendatária dos montantes devidos a título de renda.


Ora, não há quaisquer dúvidas que a resolução do contrato de arrendamento de imóveis que integram a herança ilíquida e indivisa consubstancia um acto de administração ordinária que pode ser exercido apenas pelo cabeça de casal, nos termos do disposto no art.º 2078º do Código Civil.


É que a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal (artigo 2079.º do Código Civil).


Nos poderes de administração incluem-se aqueles que visam a valorização e protecção do património, desideratos visados com a acção de despejo.


Aliás, tal direito (de propor acções de despejo) é concedido ao cabeça de casal mesmo quando o contrato de arrendamento foi celebrado pelo inventariado ou por outro herdeiro.6


Como refere Lopes Cardoso7 “(…) a lei defere o cabeçalato não em função da competência para o seu exercício mas com respeito por uma ordem que tem ínsito o parentesco, a proximidade de grau com o falecido, critérios de razão afectiva, sentimental, quiçá de relativo interesse pessoal, tudo factores sem relevância no tocante à administração que atribui e impõe ao titular assim designado. Concluir-se-á, portanto, que, colocado numa situação temporária de administração de bens em que tem mera parte ideal (e até em que não tem parte alguma), o cabeça-de-casal deverá praticar os actos que sejam indispensáveis à conservação do património em partilha, exercer aquele conjunto de direitos que a lei lhe outorga especificamente com vista a essa conservação e cumprir as tarefas que diplomas vários lhe impõem em atenção à qualidade em que investido ou a que tem potencial direito”.


Mas o que aqui nesta execução se visa neste momento é de obter o pagamento das rendas em dívida (pois a entrega da coisa já foi alcançada).


Ora, se o cabeça-de-casal tem legitimidade para isoladamente intentar acção de despejo relativa a imóvel que integra o acervo hereditário por maioria de razão também a tem para cobrar as rendas devidas pelo inquilino até à efectiva entrega do locado e que fundamentaram a resolução do contrato de arrendamento relativo a esse mesmo imóvel.


Ademais, não se trata aqui de cobrar dívidas activas da herança (art.º 2089º do Cód. Civil) mas sim de exigir, concomitantemente, do inquilino o pagamento das rendas que fundamentam a resolução do contrato de arrendamento levada a efeito pelo cabeça de casal no âmbito das suas atribuições e que se venceram no período em que a mesma administrou o imóvel.


É que as dívidas, quer as activas quer as passivas, da herança são aquelas (e só aquelas) que existiam à data da abertura da herança que é a data de falecimento do de cujus, não se devendo descrever aquelas constituídas posteriormente à sua morte8.


No caso, tratam-se de rendas emergentes do contrato de arrendamento celebrado em 2010 entre o falecido e a ora executada reportando-se as rendas em dívida ao ano de 2012 e seguintes, ou seja, vencidas após a morte do de cujus e sob a égide da administração da cabeça de casal.


Estabelece o art.º 33º do DL n.º 294/2009, de 13 de Outubro, sob a epígrafe “título executivo”, o seguinte:


“1 - Não sendo o prédio desocupado na data devida por lei ou por convenção das partes, podem servir de base à execução para entrega de coisa certa, o contrato de arrendamento, acompanhado dos comprovativos das comunicações previstas no presente decreto-lei, relativos à cessação do contrato de arrendamento.


2 - O contrato de arrendamento constitui título executivo para a acção de pagamento da renda, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida”.


Por conseguinte, o título executivo em apreço formado pelo contrato de arrendamento celebrado em 1.3.2010 entre BB e a ora executada e pela notificação judicial avulsa promovida pela cabeça de casal na qual se descrevem as rendas em dívida pela mesma arrendatária (todas posteriores à data do óbito de BB) mostra-se validamente constituído.


A decisão recorrida não pode, pois, subsistir, impondo-se o prosseguimento da execução (assim como dos embargos que foram prematuramente extintos por “inutilidade”).


III. DECISÃO


Por todo o exposto se julga procedente o recurso e, revogando-se a decisão recorrida, se determina que a execução prossiga os seus ulteriores termos.


Custas pela apelada.


Évora, 25 de Junho de 2025


Maria João Sousa e Faro (relatora)


Manuel Bargado


Susana Ferrão da Costa Cabral

1. Isto é admitiu ser possível a dedução de incidente de intervenção de terceiros na acção executiva.↩︎

2. Cfr. Acórdão TRP de 8.4.2013 ( Luís Lameiras ).↩︎

3. Proferido no processo n.º 574/2022 da 1.ª Secção cujo relator foi o Conselheiro José António Teles Pereira↩︎

4. In estudo cit.↩︎

5. Consultável em https://blogippc.blogspot.com/2020/09/nulidades-do-processo-e-nulidades-da.html↩︎

6. Cfr. Lopes Cardoso in Partilhas Judiciais Almedina, 1979, Vol. I, pág. 315.↩︎

7. Ob.cit.pag.305.↩︎

8. Cfr. Lopes Cardoso Partilhas Judiciais, 4.ª edição, vol. I, p. 468 e 483. apud Acórdão TRP de 23.11.2006 ( Manuel Capelo).↩︎