HERDEIRO
EXPECTATIVA JURÍDICA
DOAÇÃO
QUOTA DISPONÍVEL
Sumário

Sumário:
I - A qualidade de herdeiro legitimário em vida do autor da sucessão não lhe atribui qualquer direito subjetivo à quota-parte que constituirá a sua quota legitimária, configurando uma mera expetativa jurídica titulada à sua porção legitimária.

II - O facto de os autores da sucessão terem doado à requerida, sua filha, por conta da quota disponível, imóveis de maior valor do que aquele que também doaram ao requerente, seu filho, por conta da mesma quota, não atribui ao requerente qualquer direito de crédito mediante arresto a seu favor em bens da requerida.

Texto Integral

Proc. nº 1242/25.1T8STR.E1

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


I - RELATÓRIO


AA e mulher, BB, instauraram procedimento cautelar de arresto contra CC, pedindo que seja decretado o arresto dos seguintes bens imóveis:


a) Fração autónoma designada pela letra “B”, que corresponde a uma garagem na cave do prédio urbano sito na Rua Dr. Fanhais, ..., freguesia de Nossa Sra. de Fátima, concelho do Entroncamento, inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o Art.º Urbano nº ...11, à data com o valor patrimonial de € 3.828,38, e descrita na C. R. Predial do Entroncamento sob o nº ...51, com a licença de utilização nº 99, emitida para todo o prédio, em 15.09.2005;


b) Fração autónoma designada pela letra “F”, que corresponde o segundo andar esquerdo com arrecadação no sótão do prédio urbano sito no Gaveto da Rua Dr. Fanhais nº ... com a Rua Martim Moniz, freguesia de Nossa Sra. de Fátima, concelho do Entroncamento, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o Art.º Urbano nº ...67, à data com o valor patrimonial de € 86.056,27, e descrito na C. R. Predial do Entroncamento sob o nº ...36, com a licença de utilização nº 21/2004, emitida para todo o prédio, pela respetiva Câmara Municipal, em 10.03.2004;


c) Fração autónoma designada pela letra “F”, que corresponde à garagem com o nº 6 do prédio urbano sito na Rua Feliciano Castilho, nºs. ..., freguesia de Nossa Sra. De Fátima, concelho do Entroncamento, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o Art.º Urbano nº ...87, à data com o valor patrimonial de €2.320,38, e descrito na C. R. Predial do Entroncamento sob o nº ...94, com a licença de utilização nº 93, emitida para todo o prédio, pela respetiva Câmara Municipal, em 19.11.1996;


d) Fração autónoma designada pela letra “J”, que corresponde ao rés-do-chão esquerdo com arrecadação no sótão com o nº 6, situada no hall esquerdo e terraço ao nível da varanda, fração esta que faz parte do prédio urbano sito na Rua Feliciano Castilho, nºs. ..., freguesia de Nossa Sra. de Fátima, concelho do Entroncamento, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o Art.º Urbano nº ...87, à data com o valor patrimonial de €48.460,00, e descrito na C. R. Predial do Entroncamento sob o nº ...94, com a licença de utilização nº 93, emitida para todo o prédio, pela respetiva Câmara Municipal, em 19.11.1996.


Alegam, resumidamente, que:


- O Requerente e a Requerida são irmãos e únicos filhos de DD e EE, os quais, em 21.12.2004, fizeram a doação por conta da quota disponível ao Requerente, do prédio urbano situado em Casal Pinheiro, freguesia da Freixianda, do concelho de Ourém, o qual, à data, tinha um valor patrimonial de € 5.381,63, tendo os mesmos, em 09.05.2013, doado à filha, aqui Requerida, por conta das suas quotas disponíveis e com dispensa da colação, quatro frações autónomas que identificam.


- Em 23.10.2013, cinco meses passados sobre esta última doação, a Requerida vendeu aquelas frações ao seu primo FF, pelo preço de € 140.664,65, correspondente à soma do valor patrimonial de todas as frações, sendo que em 06.01.2020, a Requerida comprou tais frações ao referido primo, pelo mesmo preço de € 140.664,65.


- Os pais do Requerente e da Requerida foram declarados insolventes, sendo que o respetivo processo se iniciou em 2013 e apenas veio a ser encerrado em 01.06.2023.


- Os pais do Requerente e da Requerida, têm ambos setenta e sete anos de idade e, em virtude do referido processo de insolvência, ficaram sem quaisquer bens, vivendo exclusivamente das respetivas pensões de reforma, de valor muito reduzido, desde a data em que a sua insolvência foi decretada, não sendo expectável que venham a constituir novo património, quer pela idade que têm, quer pela sua saúde e, ainda, pela respetiva situação económica.


- O Requerente receia que, aquando do falecimento dos pais e logo que o Requerente e a Requerida estejam em condições de proceder à partilha dos bens deixados em herança, os bens originariamente doados à Requerida, já não sejam, nessa data, propriedade da mesma, o que muito prejudicará o Requerente e o impossibilitará de se pagar do crédito que ele tem sobre a Requerida, de pelo menos € 67.641,50, considerando os valores dos bens doados a cada um.


- O comportamento da Requerida é pouco confiável, já que, tanto ela como os pais, sujeitaram a respetiva doação a um absoluto sigilo, nunca tendo comentado ou sequer consultado o Requerente a esse propósito.


- Acresce que a Requerida ficou viúva em novembro de 2023, sendo que o seu falecido marido era a única fonte de rendimento do agregado familiar, visto que a Requerida nunca teve um emprego, nem desempenhou, durante a sua vida, qualquer atividade profissional remunerada.


- Por força das dificuldades sentidas ocasionadas pela falta do rendimento auferido pelo seu falecido marido, desde o seu falecimento, a Requerida tem-se desdobrado a propor ações judiciais e a realizar várias diligências, com vista à partilha dos bens de que o falecido marido era herdeiro em conjunto com o seu único irmão.


- Tais diligências, porém, não têm decorrido com a celeridade pretendida pela Requerida e também elas importam encargos, aos quais vêm acrescer as muitas despesas normais e correntes do agregado familiar da Requerida, já que ambos os filhos da Requerida estão a residir fora da casa de morada de família, frequentando a filha mais velha o curso de Medicina em Lisboa, e o filho mais novo está no segundo ano de Medicina em Coimbra, vivendo ambos em quartos/casas arrendadas e sem rendimentos.


- Se a Requerida optar – como se prevê que seja a sua única alternativa – pela venda das ditas frações, o Requerente deixará de poder concretizar o supracitado “acerto de contas” entre as doações realizadas pelos seus pais, pois à data da partilha dos bens por óbito dos pais de ambos, a Requerida já não irá, com toda a certeza, dispor do dinheiro resultante da respetiva venda, considerando as elevadas despesas fixas mensais que tem ao seu encargo.


- Tiveram ainda os Requerentes conhecimento de que a Requerida anda a oferecer para venda bens que constituem ainda o acervo a partilhar no âmbito do Proc. 419/24..., por valores baixos e “quase oferecidos”.


Foi de seguida proferida decisão em cujo dispositivo se consignou:


«Atento o exposto, quer pelas razões factuais, quer pelo enquadramento jurídico supra invocado, indefere-se liminarmente o presente procedimento cautelar, por ser manifestamente improcedente, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 363/1º, 364º/1, 365º/1, 368º, 391º/1, 392º/1 e 590º/1, todos do CPC.»


Inconformados com tal decisão vieram os Requerentes recorrer da mesma, culminando as alegações por si apresentadas com as conclusões que se transcrevem:


«A) Os Recorrentes não concordam e não se conformam com a decisão de Indeferimento Liminar do Procedimento Cautelar de Arresto, que o julgou manifestamente improcedente ao abrigo das disposições conjugadas dos Artºs. dos Artºs. 363º nº 1, 364º nº 1, 365º nº 1, 368º, 391º nº 1, 392º nº 1 e 590º nº 1, todos do C.P.C., porquanto dela vêm recorrer.


B) O Indeferimento Liminar só se justifica e deve ser aplicado em casos muito específicos, nos quais se verifique a existência de “vícios substanciais ou formais de tal modo graves que permitem antever, logo nesta fase, a improcedência inequívoca da pretensão…”, entendendo os Recorrentes que não se verifica no caso concreto.


C) Entendem os Recorrentes que está verificado no caso concreto o Direito de Crédito do Recorrente, porque ele já existe, é real, perfeitamente contabilizável e, por isso, com proteção jurídica;


D) Não é uma mera expectativa juridicamente atendível a dos Recorrentes, mas antes um Direito já adquirido e que lhes está legalmente conferido, uma vez que é certa e está definida na Lei a qualidade de herdeiros de ambos os irmãos: Recorrente e Recorrida; os quais serão sempre Herdeiros, independentemente do valor e dimensão do património hereditário que lhes venha a ser deixado pelos pais e que venha a existir no momento da abertura da sucessão.


E) Ao formalizarem as Doações – Docs. 1 e 2 juntos com o Requerimento Inicial do Arresto -, os pais de ambos – Recorrente e Recorrido – quiseram de forma clara e inquestionável privilegiar a Recorrida em detrimento do seu irmão, aqui Recorrente.


F) Sendo que os pais do Recorrente e da Recorrida têm já avançada idade – 77 anos -, vários problemas de saúde, não dispõem de rendimentos para lá das magras reformas e forma declarados insolventes – cujo encerramento ocorreu em 2023 -, e, por isso, perderam todos os bens de que dispunham, para pagamento aos credores, tudo razões que inviabilizam a aquisição de novos bens que eles, oportunamente, venham a deixar em herança a Recorrente e Recorrida.


G) Ao privilegiarem ou beneficiarem a Recorrida em prejuízo do Recorrente, através das citadas Doações (Docs. 1 e 2 com a PI do Arresto), prejudicaram-nos enquanto seus herdeiros legitimários, desrespeitando a forma justa e igual como as legítimas de ambos os filhos deveriam ser preenchidas no futuro, aquando da abertura da sucessão.


H) O Arresto é, pois, a única forma dos Recorrentes garantirem o crédito que detêm sobre a Recorrida, o qual nasceu da partilha antecipada e em vida realizada pelos pais de ambos e concretizada através das citadas Doações – Docs. 1 e 2 com a PI do Arresto -.


I) Ainda que aqui nos bastássemos com o entendimento de tal crédito apenas como uma “expectativa juridicamente atendível”, ainda assim e também esta tem proteção legislativa, como escreveu o Prof. Inocêncio Galvão Telles (in “Direito das Sucessões”, Ed. de 1971, pág. 98), que a denominou de “esperança fortalecida pela intervenção do legislador…”


J) Porquanto, entendem os Recorrentes, que o primeiro requisito – probabilidade séria da existência do direito de crédito do Recorrente – está preenchido, sem dúvidas, no caso concreto.


K) Quanto ao segundo requisito, previsto no nº 1 do Art.º 391º do C.P.C. e no Art.º 619º do C.C. – justo receio de perda da garantia patrimonial -, está, também ele, verificado no caso concreto, uma vez que os comportamentos da Recorrida, as suas atuais condições de vida, o facto de não haver outros bens que sejam sua propriedade, o valor consideravelmente elevado do crédito do Recorrente e a eminente dissipação de património por parte da Requerida - que o Recorrente tem como certa e muito próxima -, fazem antever que, se o Recorrente nada fizer, venha ele, de facto, a perder a garantia patrimonial de receber o pagamento do crédito que detém sobre a sua irmã, aqui Recorrida.


L) A Jurisprudência e a Doutrina têm entendido que este segundo requisito – justo receio ou “periculum in mora” – “decorre de actuações ou comportamentos do devedor que revelem ser difícil ou impossível a cobrança do crédito…” e, no caso concreto, ficou alegado que o marido da Recorrida, que era a única fonte de rendimento do Agregado Familiar, faleceu; as despesas de todo o agregado, muito elevadas, estão, nesta altura, apenas a expensas exclusivas da Recorrida; esta, nunca trabalhou nem auferiu qualquer vencimento ou rendimento mensal; a Recorrida, vive apenas de uma pequena pensão de viuvez e não tem quaisquer bens à excepção das Frações cujo Arresto se pretende ver decretado; recentemente, no Proc. de Inventário nº 419/24..., a correr no Juízo Local Cível do Tribunal de Ourém, concretamente na Audiência do dia 22-04-2025, não foi viabilizado um acordo entre a Recorrida e a outra parte, pelo que os bens que irão resultar desse inventário em favor da aqui Recorrida e que ela poderia vender, ainda irão demorar a integrar o património da Recorrida, tendo chegado ao conhecimento do Recorrente que, ainda assim, a Recorrida desde logo começou a tentar negociar esses bens, mesmo ainda que não partilhados, no próprio dia 22-04-2025.


M) Perante as atuais circunstâncias da Recorrida e uma vez que os bens que estão em partilha no Proc. 419/24 ainda demorarão a integrar o património da Recorrida, não havendo possibilidade de ela concretizar as negociações que já iniciou, é lógico que os únicos bens de que ela poderá dispor no seu atual momento de emergência económica e financeira, são os bens cujo Arresto se pretende, melhor identificados no Requerimento Inicial, os quais estão registados em seu nome próprio e sem quaisquer ónus ou encargos, porquanto perfeitamente livres para uma venda imediata.


N) A venda eminente pela Recorrida das Fracções cujo Arresto aqui se pretende, a concretizar-se e nada se fazendo para a evitar – como acontece com o presente Arresto -, irá tornar impossível a cobrança do seu crédito pelo Recorrente, porquanto existe e está perfunctoriamente alegado e provado o justo receio de perda de garantia patrimonial pelo Recorrente.


O) Também a urgência do recurso ao Arresto está verificada, já que apenas no passado dia 22-04-2025, após a Audiência no Proc. nº 419/24..., tiveram os Recorrentes conhecimento, por tereiros, da existência e prosseguimento desses Autos e de que nos mesmos ficou frustrada qualquer tentativa de acordo entre a Recorrida e seu cunhado e, por isso, só nessa data os Recorrentes souberam que não está para já uma decisão final nesse Inventário e a distribuição entre as partes dos bens que aí constam, circunstância que anulou qualquer hipótese de concretização das negociações já iniciadas pela Recorrida relativamente àqueles bens, que lhe permitissem realizar dinheiro para fazer face aos seus constrangimentos financeiros, pelo que, com a frustração da dita tentativa de acordo, não resta à Recorrida outra alternativa que não seja a venda dos seus únicos bens pessoais, ou seja, a venda das Frações cujo Arresto aqui se requere.


NORMAS VIOLADAS:


- Art.º 391º do C.P.C.


- Artº. 392º do C.P.C.


- Art.º 619º C.C.


- Art.º 590º do C.P.C.


(…).


Nestes termos e nos melhores de Direito, (…), deverá o presente Recurso obter total provimento e, em consequência, ser revogada a Sentença que indeferiu liminarmente o Procedimento Cautelar de Arresto, por o julgar manifestamente improcedente, substituindo-a por outra decisão que decrete o Procedimento Cautelar de Arresto ou, caso assim se não entenda, seja a Douta Decisão proferida e ora Recorrida revogada e substituída por outra que ordene o normal e ulterior andamento processual, designadamente convidando os Recorrentes a uma melhor concretização do alegado no Requerimento Inicial do Procedimento Cautelar de Arresto.»


Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II – ÂMBITO DO RECURSO


Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), são as seguintes as questões a decidir:


- se o Requerente é titular de um crédito sobre a Requerida;


- reconhecendo-se a existência desse crédito, se foram alegados factos que demonstrem a existência de justo receio de perda da garantia patrimonial.


III – FUNDAMENTAÇÃO


OS FACTOS


Os factos que relevam na decisão do recurso, são os que constam do antecedente relatório.


O DIREITO


Dispõe o art. 391º, nº 1, do CPC, que «[o] credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor».


O arresto «tem por finalidade evitar que determinado direito de crédito fique insatisfeito, por não se encontrarem, no património do devedor, bens suficientes para o pagamento»1.


Conforme o disposto no nº 1 do art. 619º do CC, o direito de requerer o arresto, é um direito conferido ao credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito. E sendo um direito conferido ao credor, caberá em primeiro lugar ao requerente demonstrar que o é à data do pedido, visto o arresto se destinar a garantir créditos atuais e não futuros2.


Só não será necessário que então o faça de um modo certo e seguro, já que a prova da existência do crédito nessas condições se pode reservar para a ação principal, sendo, porém, indispensável que pelo menos o demonstre em termos de probabilidade (fumus boni juris), de harmonia com o nº 1 do art. 392º do CPC, onde se estabelece que o requerente do arresto fundado no receio da perda da garantia patrimonial deduzirá os factos que tornem provável a existência do crédito e justifiquem o receio invocado.


São, assim, requisitos próprios do arresto, a probabilidade da existência do direito de crédito pedido na ação proposta, ou a propor, e o receio que o requerido lese, por forma grave e de reparação difícil, esse direito, dissipando a garantia patrimonial3.


Será que in casu, face ao alegado pelos Requerentes, se pode concluir pela séria probabilidade da existência do direito invocado?


A decisão recorrida respondeu negativamente à questão, com base na seguinte argumentação, que aqui se reproduz:


«Estando aqui a falar, nos vertentes autos, em direitos do Requerente e Requerida enquanto herdeiros dos seus pais, importa destacar que o momento da abertura da sucessão tem uma importância primacial por a lei lhe ligar diversas consequências jurídicas relevantíssimas.


Assim, a sucessão, tal como configurada no art. 2024º do CC, abre-se no momento da morte do seu autor (art. 2031º do CC) e é nesse momento, e nunca antes, que é feito o chamamento dos herdeiros à titularidade das relações jurídicas do falecido (art. 2032º/1 do CC).


Concomitantemente, é a esse momento que se atende para saber quais os bens existentes no património do autor da sucessão e qual o valor desses bens para efeitos do cálculo da porção legitimária (cfr. artigo 2162º CC).


Em face deste enquadramento legal, neste momento não existe qualquer direito de crédito do Requerente e esposa à herança dos pais daquele. Os mesmos ainda estão vivos e, nessa medida, não existe sucessão (art. 2024º do CC), nem sucessores (art. 2032º/1 do CC). Existe, sim, uma expectativa juridicamente atendível do Requerente e Requerida de virem a herdar o património dos pais quando estes falecerem, mas é desconhecida a data em que tal facto, necessariamente, venha a acontecer, e a composição do património hereditário que exista no momento da abertura da sucessão.


Nada impede que os pais do Requerente e Requerida aumentem entretanto o seu património de forma que todas as contas feitas pelo Requerente saiam goradas. Basta que lhes saia um prémio milionário.


Será após a abertura da herança, e não antes, que o Requerente poderá fazer as contas que entenda por adequadas relativamente à composição do património hereditário e, entendendo-se credor da irmã, recorrer a uma ação de petição da herança, invocando a colação. Antes disso, não há qualidade de herdeiro, nem património hereditário definido que permita a formação do direito sobre a Requerida de que se arroga.


Por conseguinte, não existe qualquer direito de crédito dos Requerentes, neste momento, que possa ser atendido no vertente procedimento cautelar.»


Os recorrentes insurgem-se contra tal decisão, reafirmando serem titulares do crédito invocado, mas sem razão, como se passa a demonstrar.


Embora haja uma porção dos seus bens de que o testador não pode dispor, por ser legalmente destinada aos seus herdeiros legitimários [artigo 2156º do Código Civil4], daqui não se pode retirar, como ensina Rabindranath Capelo de Sousa5, que os sucessíveis legitimários tenham em vida do autor da sucessão um direito subjetivo à quota-parte que constitui a sua porção legitimária ou, muito menos, um direito subjetivo aos bens em concreto do património hereditário que possam integrar a sua quota: em face dos concretos poderes ou faculdades jurídicas atribuídas pela lei a tais sucessíveis, estes têm em vida do autor da sucessão uma expetativa juridicamente titulada à sua porção legitimária.


A doutrina dominante qualifica tal situação como uma verdadeira expetativa jurídica6, assinalando, em geral, como manifestação da tutela dos sucessíveis legitimários em vida do autor da sucessão, a legitimidade atribuída aos herdeiros legitimários para arguirem a existência da simulação em vida do autor da sucessão, relativamente aos negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar [art. 242º, nº 2, do CC].


Já no que concerne ao instituto de proteção dos sucessíveis legitimários - redução por inoficiosidade das liberalidades - embora tenha reflexos em vida do autor da sucessão, por impor a este o dever de não dispor da porção (quota) de bens destinada aos herdeiros legitimários, o meio concedido por lei para dar efetividade a tal dever opera somente após a abertura da sucessão: uma vez que a quota disponível e os sucessíveis legitimários só se fixam à data da abertura da sucessão, diferiu-se para esse momento a possibilidade de redução de liberalidades inoficiosas7.


Como se lê no Ac. do TRC de 08.07.20158, «[s]endo vivo o autor da sucessão, a expetativa jurídica do sucessível legitimário só será objeto de tutela nos casos especificamente previstos na lei, não se lhe negando que, nos casos em que tal situação jurídica seja expressamente reconhecida, a tal direito corresponderá uma ação adequada a defendê-lo em juízo, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação, nos termos do nº 2 do artigo 2º do CPC9.


Revertendo ao caso em apreço, não configurando os factos alegados a titularidade de algum direito de crédito por parte do Requerente - enquanto os seus pais forem vivos, serão eles os titulares do direito de crédito resultante de uma qualquer ofensa ao respetivo património - o pedido de decretamento de arresto a seu favor, em bens da Requerida, encontra-se destituído de fundamento.


Na verdade, «só em relação a direitos de crédito é possível deduzir esta providencia, já que ela visa precisamente a garantia do seu cumprimento…o perigo de insatisfação de direitos de diversa natureza (v.g. direitos reais) ou que, apesar de assentarem em direitos de crédito não comunguem no específico receio de perda da garantia patrimonial, deverão encontrar guarida noutros instrumentos»10.


Como se lê no citado Ac. do TRC de 08.07.2015, «[o] Arrolamento será o procedimento adequado a, em caso de justo receio de extravio ou dissipação de bens, obter a sua descrição, avaliação e depósito, podendo ser intentado por aquele que tenha, ou fundadamente espere vir a ter, direito a que lhe venha a ser entregue um certo número bens (cfr., no sentido da possibilidade de dedução de uma providência cautelar de arrolamento a intentar pelos herdeiros legitimários na pendencia de uma ação em que se invocasse a prodigalidade, se pronunciou António Abrantes Geraldes – Temas da Reforma do Processo Civil, IV Vol., pág. 268 e 269, nota 502 –, e ainda Acórdão do STJ de 13.10.1993, relatado por Folque de Gouveia, disponível in www.dgsi.pt


Não sendo necessário que o crédito respeite a uma obrigação certa, exigível e líquida, ou sequer indicação rigorosa e exata do respetivo montante, a titularidade do crédito terá de ser inequívoca, no sentido de ser o requerente o credor efetivo do requerido11.


Confirma-se assim o juízo ínsito na decisão recorrida de que, dos factos alegados no requerimento inicial, não resulta que o Requerente disponha de qualquer crédito suscetível de tutela por via de arresto, o que determina a improcedência do presente procedimento.


Fica, deste modo, prejudicado o conhecimento da questão atinente à verificação do justo receio de perda da garantia patrimonial (cfr. art. 608º, nº 2, ex vi art. 663º, nº 2, ambos do CPC).


Por conseguinte, o recurso improcede, não se mostrando violadas as normas invocadas pelos recorrentes ou quaisquer outras.


Vencidos no recurso, suportarão os requerentes/recorrentes as respetivas custas – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.


IV – DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.


Custas pelos recorrentes.


*


Évora, 25 de junho de 2025


Manuel Bargado (Relator)


António Fernando Marques da Silva


Filipe Aveiro Marques


(documento com assinaturas eletrónicas)

______________________________________________

1. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, p. 6.↩︎

2. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, p. 452 e Vaz Serra, in Realização Coactiva da Prestação, BMJ, nº 73, pp. 225 e ss.↩︎

3. Cfr., por todos, o Acórdão do STJ de 29.05.2007, proc. 07A1674, in www.dgsi.pt.↩︎

4. Doravante CC.↩︎

5. Lições de Direito das Sucessões, Vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora 2000, pp. 140 e 141, em especial nota 284, e p. 160, nota 335. Segundo o autor, o facto de a redução de liberalidades operar retroativamente, abrangendo as liberalidades feitas em vida do autor da sucessão e lhe parecer que a lei não outorgou tais meios em vida do de cuius apenas porque só no momento da sua morte se pode avaliar a quota dos legitimários e porque, correspondentemente, não lhe pareceu desejável cercear exageradamente os poderes de disposição do autor, levam-no a concluir que a morte do de cuius funciona como uma condição suspensiva de um direito ou faculdade jurídica pré-existente, enquadrável na ideia de uma expetativa juridicamente tutelada à sucessão.↩︎

6. Cfr., inter alia, Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, Quid Iuris, 2ª ed., p. 379, que considera ainda uma forma de tutela do legitimário, embora mais difusa, em vida do de cuius, as limitações a este impostas em sede de livre disposição dos seus bens a título gratuito, seja por atos inter vivos ou mortis causa, reconhecendo embora que esse direito – de redução por inoficiosidade – só se torna efetivo após a morte do autor da sucessão. José de Oliveira Ascensão refere que se os legitimários têm uma segura expetativa jurídica logo que designados, para a generalidade dos efeitos, porém, a proteção é diferida - Direito Civil Sucessões, Coimbra Editora, p. 345.↩︎

7. Assim, Maria Raquel Aleixo Antunes Rei, Da Expectativa Jurídica, p. 158, artigo disponível in https://portal.oa.pt/upl/%7Bbe3a1a7b-a871-454a-885d-c405a2542c48%7D.pdf. Precisamente por se tratar de uma mera expectativa, também a jurisprudência tem vindo a negar a possibilidade de, em vida dos doadores, ser peticionada a declaração de nulidade de uma doação, por inoficiosidade (Ac. do TRP de 26.01.2004, proc. 0355994), ou a negar legitimidade ao herdeiro legitimário para pedir a anulabilidade de uma doação, em vida da autora, com fundamento na incapacidade acidental desta (Ac. do TRL de 12.12.2013, proc. 282/13.8TVLSB.L1-6), ambos os arestos disponíveis in www.dgsi.pt.↩︎

8. Proc. 749/15.3T8GRD.C1, in www.dgsi.pt., que aqui seguimos de perto.↩︎

9. Para além do poder potestativo de invocar a nulidade de um negócio simulado que o prejudique, Maria Raquel Aleixo Antunes Rei salienta que a posição jurídica do sucessível legitimário em vida do autor da sucessão é composta ainda por uma série de situações jurídicas: poder de autorizar a venda a filhos ou netos pelos pais ou avós e de pedir a anulação da venda caso não hajam prestado o seu consentimento (art. 877º do CC); proteção reflexa decorrente do dever do autor da sucessão de não dispor gratuitamente da legítima objetiva (art. 2156º do CC); poder de dar o seu consentimento para qualquer partilha em vida (art. 2029º do CC); poder de exigir dos outros sucessíveis legitimários a composição da sua quota em dinheiro quando a sua qualidade de sucessível legitimário não existisse ou fosse desconhecida à data da partilha (art. 2029º, nº 2, do CC); dever de compor em dinheiro a quota legitimária de qualquer sucessível legitimário superveniente em relação a uma partilha em vida (art. 2029º, nº 2, do CC) – artigo citado, pp. 158 e 159.↩︎

10. António Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV Vol., 2ª ed., Almedina, p. 179.↩︎

11. Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 4ª ed., Almedina, pp. 226 a 229.↩︎