ARECT
AÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE TRABALHO A TERMO
Sumário

Sumário elaborado pela relatora:
I. Através das alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, aos artigos 2.º e 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, foi alargado o âmbito da aplicação da ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho às situações em que a estipulação de termo num contrato de trabalho vise iludir as disposições que regulam o contrato sem termo e quando o motivo justificativo da duração limitada do contrato seja insuficiente – alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 147.º do Código do Trabalho.
II. Pedindo-se na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho que seja reconhecida a existência de um contrato de trabalho entre a Ré e uma pessoa identificada, com início na data indicada, este pedido é perfeitamente inteligível.
III. Se a situação irregular que se visa corrigir por via desta ação respeitar a uma situação em que a estipulação de termo num contrato de trabalho vise iludir as disposições que regulam o contrato sem termo e/ou quando o motivo justificativo da duração limitada do contrato se revele insuficiente – alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 147.º do Código do Trabalho – não há qualquer contradição entre o pedido e a causa de pedir.
IV. O Ministério Público tem legitimidade ativa para interpor a ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.
V. A utilidade da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho mantém-se mesmo que a relação jurídica cuja qualificação como contrato de trabalho sem termo se peticiona tenha cessado antes da propositura da ação.

Texto Integral

P.1402/24.2T8TMR.E1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora1


I. Relatório


O Ministério Público intentou a presente ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, prevista nos artigos 186.º-K e seguintes do Código de Processo do Trabalho, contra Pingo Doce Distribuição Alimentar, S.A., pedindo que seja reconhecida a existência de um contrato de trabalho entre a Ré e AA, desde 01-04-2024.


Alegou, em breve síntese, que a Ré contratou AA para trabalhar como operadora de hipermercado/supermercado/loja ajudante, mediante um acordo escrito designado como «contrato de trabalho a termo certo», com a duração prevista para 6 meses. Todavia, a justificação para aposição do termo não é válida, pelo que o contrato deve ser considerado sem termo, ao abrigo do disposto no artigo 147.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código do Trabalho.


Contestou a Ré, invocando que o contrato de trabalho em causa cessou anteriormente à propositura da presente ação por abandono do trabalho pela trabalhadora, pelo que inexiste qualquer utilidade na apreciação do mérito do pedido.


Respondeu o Ministério Público, alegando, sucintamente, que a finalidade da presente ação é a obtenção de uma declaração de existência de contrato de trabalho sem termo “ ab initio”, nos termos do artigo 2.º , n.º 4, da Lei n.º 107/2009 de 14 de setembro, e sua comunicação à Autoridade Para as Condições do Trabalho (ACT), com nota de trânsito em julgado, para dar continuidade ao processo de contraordenação, suspenso até esse momento. Como tal, é irrelevante saber se o contrato ainda se mantém ou, tendo cessado, qual foi o motivo da cessação, que aliás, não fazem parte da causa de pedir.


Por despacho prolatado em 26-01-2025, foi julgada improcedente a exceção perentória inominada que a Ré invocou em sua defesa.


Posteriormente, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:


«Pelos fundamentos expostos, julga-se a presente ação procedente, por provada e, em consequência, reconhece-se que foi um contrato de trabalho sem termo aquele que foi celebrado entre a Ré PINGO DOCE – Distribuição Alimentar S.A. e AA, com início em 1 de abril de 2024, mostrando-se cessado na presente data e desde 17 de julho de 2024.


*


Valor: 2000€ (cfr. art. 186º-Q, n.º 1 do CPT e art. 12º, n.º 1, al. e) do RCP).


Custas pela Ré


Comunique ao trabalhador, à ACT e ao ISS, nos termos do art. 186.º-O n.º 9 do CPT.


Registe, notifique.»


-


A Ré interpôs recurso desta decisão, extraindo das suas alegações as seguintes conclusões:


«1. A douta sentença recorrida reconheceu a existência de contrato de trabalho sem termo declarando simultaneamente o contrato cessado por abandono de posto de trabalho, mostrando-se igualmente proferido nos autos douto despacho saneador que conheceu e indeferiu a exceção oportunamente alegada pela Recorrente em sede de Contestação/Oposição.


2. Nos termos do art. 644.º, n.º 3 do CPC, aplicável ex vi art. 1.º, n.º 2, al. a) do CPT, a decisão proferida em saneador, que não se integre nos números anteriores é recorrível com o recurso da decisão final, pelo que, no presente se apresentará igualmente recurso da douta decisão proferida em despacho saneador.


3. A Recorrente não pode conformar-se com as decisões proferidas crendo que as mesmas incorreram em erro na interpretação e aplicação de Direito


4. A Recorrente mostra-se condenada no âmbito de ação especial de reconhecimento de existência de contrato de trabalho, a qual resulta da conjugação do disposto no art. 15.º A, da Lei 107/2009 e dos arts. 186.º K e ss do CPT.


5. O art. 15.º A, da Lei 107/2009, remetendo para o art. 2.º, nºs 3 e 4, e bem assim para os arts. 12.º, 12.º A, 147.º, 175.º e 180.º do CT, dispõe que caso a ACT, detete situação em que uma pessoa presta atividade para outra, que dela beneficia, com características de contrato de trabalho, sem que o mesmo exista, deverá elaborar participação para o Ministério Público para que inicie a ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho.


6. É pressuposto essencial da ação especial a deteção pela ACT de prestação de atividade de uma pessoa para outra, que dela beneficia, e ausência de contrato de trabalho, agindo a ACT quando verificar indícios de falta de comunicação de admissão do trabalhador à Segurança Social, em situações de prestação de serviço enquanto empresário em nome individual, ou como sociedade unipessoal, ou em situações de trabalho temporário. Nenhuma das situações/indícios previstos no art. 2.º, n.ºs 2 e 3 da Lei 107/2009, ocorre nas situações de facto da trabalhadora identificada nos autos.


7. A situação de facto dos autos não se mostrava necessitada de intervenção da ACT e, consequentemente não carecia da instauração de qualquer ação pelo MP, desde logo, atendendo a que como resulta de modo inequívoco da douta Petição Inicial, a R. celebrou, com a trabalhadora identificada, contrato de trabalho a termo certo.


8. A existência de contrato de trabalho celebrado entre a trabalhadora e a Recorrente mostrou-se, ab initio, expressamente afirmada pela ACT e pelo MP, soçobrando assim, a possibilidade de recurso à ação especial a qual, sendo considerada procedente, determina a prolação de sentença nos termos do disposto no art. 186.º O, n.º 8 do CPT, que afirma que “a sentença que reconheça a existência de um contrato de trabalho fixa a data de início da relação laboral”, o que nos presentes autos não se mostra carecido de reconhecimento, mostrando-se a sentença, sub judice, desprovida de utilidade e sem qualquer efeito no vínculo contratual laboral que existiu entre a Recorrente e a trabalhadora.


9. Resulta da documentação junta com a douta Petição Inicial que a Recorrente celebrou com a trabalhadora contrato de trabalho a termo, cumprindo integralmente os requisitos do disposto no art. 141.º do CT. A Recorrente comunicou à Segurança Social a admissão da trabalhadora, pelo que dúvidas não subsistem quanto ao vínculo laboral celebrado entre a Recorrente e a trabalhadora identificada.


10. Acresce ainda que a necessária conjugação com o art. 12.º A, n.º 10 do CT aponta para o recurso à ação especial pela presunção de laboralidade em prestação de atividade em plataformas digitais, nos termos do art. 12.º A do CT


11. A Recorrente, reconhecidamente, não atua na área das plataformas digitais, estando o seu objeto social devidamente demonstrado e esclarecido nos autos. Soçobrando, assim, outro indício/critério que permita o recurso à ação especial de reconhecimento de existência de contrato de trabalho.


12. A ação especial tem origem na Lei 63/2013, que teve por escopo: “Instituição de mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado - primeira alteração à Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, e quarta alteração ao Código de Processo do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 480/99, de 9 de novembro”.


13. A este propósito produziu-se já basta jurisprudência no sentido de esclarecer que está em causa o combate aos falsos recibos verdes, veja-se a este propósito o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 5 de Julho de 2015, nos autos de processo n.º 859/14.4T8CTB.C1, que teve como relator, o senhor juiz Desembargador Ramalho Pinto, disponível para consulta em www.dgsi.pt, com o link https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/70a094108ac54c0380257e45004e7417?OpenDocument, supra transcrito e que aqui se dá por reproduzido.


14. A remissão do art. 2.º, n.º 4, da Lei 107/2009, não encontra, qualquer suporte processual na ação especial prevista no art. 186.º K do CPT, porquanto, nenhum efeito útil da sentença a proferir, nos termos em que a mesma se encontra prevista se retiram para o pedido em apreço.


15. Nem o poderia fazer em face da especificidade da ação especial para reconhecimento de existência de contrato de trabalho, num caso em que o mesmo já existe.


16. A discussão da validade do termo aposto não encontra qualquer sustentação na ação especial, sequer os meios de prova se compadecem com a tramitação específica, ou se confundem com a demonstração da existência de contrato de trabalho, que a Recorrente expressamente reconhece existir, tendo cumprido com todas as obrigações legais. Revelando-se, assim, a ação especial prevista no art. 186.º K do CPT, incompatível com o tipo/forma de processo utilizado.


17. Não se mostra a ação especial o meio processual adequado ao objetivo da ação em apreço, porquanto o pedido reconduz-se à discussão da validade ou invalidade do termo aposto nos respetivos contratos de trabalho e não sobre a existência, ou não, de vínculo laboral sustentado em contrato de trabalho entre as partes.


18. Sendo o escopo da ação especial o reconhecimento de existência de contrato de trabalho, não se mostram reunidos os pressupostos que permitam ao MP lançar mão de forma de processo especial, tanto mais que ao fazê-lo o MP beneficia por um lado de uma ação urgente, e especial, e por outro, atendendo à tramitação especial coarta uma diligência essencial do processo comum, qual seja a realização de audiência de partes e a consequente tentativa de conciliação.


19. A discussão da validade do termo não cabe, nem se adequa à tramitação especial e urgente da ação prevista nos arts. 186.º K e ss do CPT.


20. Pelo que ocorrendo erro na forma de processo e não se afigurando possibilidade do aproveitamento dos atos já praticados, em função da diferente tramitação processual e pressupostos de demonstração factual diversos para a existência de contrato ou debate sobre a validade do termo, deveria o douto Tribunal a quo ter determinado a absolvição da Recorrente do pedido por nulidade dos autos.


21. Lançar mão de meio processual especial com vista à declaração de existência de contrato de trabalho, afirmando a sua existência, torna o pedido ininteligível, o que determina a necessidade de declaração de ineptidão da petição inicial e sua consequente nulidade.


22. Conforme decorre do art. 186.º, n.º 2, als. a) e b), do CPC, aplicável ex vi art. 1.º, n.º 2, al. a) do CPT, diz-se inepta a petição inicial na qual seja ininteligível o pedido ou a causa de pedir, ou em que o pedido esteja em contradição com a causa de pedir.


23. Não se vislumbra nos autos nexo lógico em pedir o reconhecimento de existência de algo cuja existência se reconhece. Muito menos se mostrando inteligível lançar mão de uma ação especial cujo pressuposto essencial é a inexistência de um vínculo laboral sustentado num contrato de trabalho, afirmando a existência do mesmo.


24. O MP não obstante ter lançado mão da referida ação especial, formula um pedido que assenta na validade do termo aposto em contrato de trabalho e a hipotética conversão de tal contrato de trabalho a termo em contrato de trabalho sem termo.


Sucede que, a discussão da validade do termo, não se encontra prevista na ação especial, reitera-se, não obstante a aparente remissão do art. 2.º, n.º 4 da Lei 107/2009. Não se encontrando a discussão de cláusulas contratuais de contrato de trabalho válido, celebrado entre privados, no escopo da ação especial.


25. Com efeito, a ação especial tem por base a prossecução de interesses de carácter público, pelo MP, no exercício da sua função de garante da legalidade.


26. Tanto assim é que o trabalhador não é parte na ação, sendo o seu interesse, na mesma, irrelevante para o instaurar e desfecho da ação.


27. Dúvidas não subsistem que o titular da legitimidade na ação especial em apreço é o MP, porém, a ação especial não prevê a discussão da validade do termo aposto no contrato de trabalho.


28. Ao encontrarmo-nos totalmente fora do âmbito da ação especial, forçoso será concluir que passamos ao carácter privado da relação contratual estabelecida entre trabalhador e empregador, ambos privados.


29. Resultando expressamente da douta sentença ora recorrida que a Trabalhadora devidamente notificada não manifestou intenção, interesse ou consentiu na ação instaurada pelo MP.


30. Fora das situações expressamente previstas no art. 5º A do CPT, a legitimidade do MP depende do exercício de patrocínio judiciário em representação da parte. Ora, existindo nos autos expressa menção à inação da Trabalhadora de qualquer pedido de patrocínio, forçoso será concluir não dispor o MP de legitimidade processual para a ação. Termos em que forçoso será concluir pela ilegitimidade do MP para a ação em apreço.


31. Decidiu o douto Tribunal a quo pela improcedência da exceção invocada pela Recorrente quanto à inutilidade originária da lide em virtude de “(…) desde logo por o contrato ter vigorado durante um período concreto e existir um procedimento contraordenacional que se encontra suspenso (cfr. art. 15.º-A da Lei 107/2009, de 14 de setembro).” Cfr. fls 2 do douto Despacho Saneador, penúltimo parágrafo.


32. Crê-se que mal andou o douto Tribunal a quo ao decidir como fez, porquanto como expressamente veio a reconhecer a douta sentença em crise, o contrato terminou por abandono de posto de trabalho.


33. A cessação do contrato nos precisos termos em que o foi afasta liminarmente a aplicação do art. 15.º A da Lei 107/2009, porquanto, cessado o contrato não se verificam quaisquer indícios de um potencial vínculo laboral carecido de adequação.


34. A lei encontra-se estruturada para retificação de uma situação contratual em curso e não para um contrato cessado.


35. Atendendo a que o objetivo último da ação especial é fixar a data de início de uma relação laboral em curso, e a regularização das contribuições que não hajam sido efetuadas para com a Segurança Social, bem como, conforme resulta expressamente da douta sentença permitir a prossecução de um processo contraordenacional, dir-se-á que se falha em encontrar a utilidade dos presentes autos em “declarar a data de início do contrato”, face à cessação do mesmo.


36. Se o fim último dos presentes autos for dotar a ACT de uma decisão prévia quanto a alegada invalidade de um termo sempre se dirá que não existe uma relação de dependência entre o poder legalmente conferido à ACT para prosseguir com o processo contraordenacional e a necessidade prévia da ação especial, nem o Código do Trabalho, nem a Lei 107/2009, fazem depender a legitimidade de a ACT instaurar um processo contraordenacional, da sentença que venha a ser proferida numa ação especial de reconhecimento de existência de contrato de trabalho. O conhecimento da inutilidade originária não inibiria assim a ação da ACT nos termos do disposto no art. 140.º, n.º 6 do CT. Pelo que se afigura forçoso concluir pela necessidade de revogação da douta sentença proferida e da sua substituição por outra que conheça da inutilidade originária da lide.


37. O entendimento perfilhado no douto despacho saneador e que se reflete na douta sentença ora em crise, determina uma interpretação da Lei 107/2009 e dos artigos da ação especial para reconhecimento de existência de contrato de trabalho, que se apresenta como inconstitucional.


38. Tal entendimento redunda numa ilegítima possibilidade de a Recorrente vir a ser julgada duas vezes pelos mesmos factos e com o mesmo objeto, porquanto a decisão ora proferida resultará indubitavelmente na total impossibilidade de a Recorrente se defender em sede de impugnação judicial da certa decisão condenatória que a ACT irá proferir.


39. Se o fim último da ação especial é apreciar e declarar a (in)validade de um contrato de trabalho a termo, e dotar o processo contraordenacional de uma decisão sobre tal tema e objeto, pergunta-se o que vai apreciar o processo contraordenacional.


40. O iter lógico da conjugação de ambas as ações redunda na inutilidade absoluta de qualquer defesa que a Recorrente possa vir a apresentar em sede de contraordenação e resultará necessariamente na sua condenação suportada em decisão judicial prévia.


41. Não obstante a ação especial não se mostrar concebida no âmbito contraordenacional, o entendimento perfilhado nos autos reencaminha para o processo contraordenacional suspenso a aguardar decisão, que em caso de procedência da ação especial redunda na existência de decisão definitiva sobre o objeto do processo contraordenacional.


42. Senão vejamos, a douta sentença ora recorrida declara a invalidade do termo aposto no contrato por vago e genérico, logo inválido. Proferida a douta sentença determina a notificação da ACT, leia-se para dentro dos poderes que lhe cabem prosseguir com o processo contraordenacional. A ACT encontra-se assim na posse de uma decisão judicial que expressamente declara a invalidade do termo.


43. Na normal tramitação do processo contraordenacional a ACT irá notificar a Recorrente do auto de notícia, que serve na presente ação como conhecimento e impulso para o MP iniciar a ação especial, e seguramente da douta sentença e da sua fundamentação na qual conclui pela invalidade do termos aposto no contrato.


44. A Recorrente irá apresentar defesa, que foi já apreciada pela douta sentença ora em crise, consequentemente crê-se a ACT irá decidir em sentido concordante com a sentença proferida. A Recorrente irá seguidamente apresentar recurso de impugnação judicial, que pela competência territorial deste douto Tribunal irá novamente apreciar uma questão que já apreciou.


45. Mantendo-se a situação de facto inalterada, antecipa-se que este douto Tribunal irá manter a decisão condenatória proferida pela ACT sustentada, além do mais na douta sentença ora recorrida que se pronunciou já sobre o tema, esgotando-o.


46. Afigura-se que o resultado da necessária conjugação processual destes processos resulta numa dupla apreciação dos mesmos factos, inadmissível no nosso ordenamento jurídico, bem como na supressão do direito de defesa constitucionalmente previsto e dir-se-ia até do direito de recurso. Salvo o devido e muito respeito pelo douto entendimento perfilhado reitera-se que o mesmo determina uma inaceitável subtração do direito de defesa e afeta, igualmente o princípio da presunção de inocência do arguido de processo contraordenacional.


47. Salvo o devido e muito respeito, dá-se aqui por integralmente reproduzido quanto supra se alegou a propósito da inadequação da ação especial para apreciação de (in)validade de contratos a termo, repudiando, além do mais a consequência manifesta de condenação segura em processo contraordenacional subsequente, com dupla apreciação dos mesmos factos, do mesmo objeto e das mesmas consequências.


48. Sequer se diga que da ação especial não resulta a aplicação direta de uma sanção à Recorrente, porquanto essa é a consequência necessária de uma ação de contraordenação suspensa que recebe uma decisão judicial transitada em julgado, logo consolidada na ordem jurídica, que já apreciou e declarou a invalidade do referido termo.


49. A conjugação necessária entre os dois tipos de ações coarta em absoluto o direito de defesa, previsto no art. 32.º, nº 10 da Constituição e, paralelamente afasta igualmente de modo desadequado a presunção de inocência do arguido em processo contraordenacional.


50. Termos em que por ofensa manifesta da Constituição deverá a douta sentença ser revogada com as legais consequências.»


-


Contra-alegou o Ministério Público, propugnando pela improcedência do recurso.


-


A 1.ª instância admitiu o recurso como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.


-


O processo subiu à Relação e o recurso foi mantido.


Foi elaborado o projeto de acórdão e colhidos os vistos legais.


Cumpre, em conferência, apreciar e decidir.


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II. Objeto do Recurso


É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho).


Em função destas premissas, as questões suscitadas no recurso, por ordem lógica, são as seguintes:


1. Inaplicabilidade da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho e erro na forma de processo.


2. Ineptidão da petição inicial e ilegitimidade do Ministério Público.


3. Existência de erro de direito na apreciação da exceção inominada invocada (inutilidade originária da lide).


4. Violação de princípios constitucionais.


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III. Matéria de Facto


A 1.ª instância julgou provados os seguintes factos:


1. A Ré PINGO DOCE – DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR S.A. dedica-se à atividade de comércio a retalho com o CAE 47111 – Comércio a Retalho em Supermercados e Hipermercados;


2. No dia 1 de abril de 2024 a Ré admitiu ao seu serviço AA mediante escrito particular intitulado “Contrato de Trabalho a Termo Certo” constante de fls. 14 a 29, com o seguinte teor, além do mais que aqui se dá por reproduzido:


(…)


1.ª (Objeto e funções)


O(A) Segundo(a) Contraente é admitido(a) ao serviço da Primeira Contraente com a categoria profissional de Operador de hipermercado/supermercado/loja Ajudante, de acordo com o estabelecido no instrumento de regulamentação coletiva de trabalho aplicável, a fim de desempenhar as funções inerentes à mesma e/ou outras, desde que compatíveis com as suas qualificações e/ou habilitações.


2.ª (Local de trabalho)


1- O(A) Segundo(a) Contraente exercerá as suas funções em qualquer estabelecimento da Primeira Contraente, situado no Distrito de Santarém.


2 - No início da execução do presente contrato, a atividade do(a) Segundo(a) Contraente será realizada na loja Entroncamento sita em Rua ..., ... Entroncamento.


3 - A Primeira Contraente poderá, a todo o tempo, e unilateralmente, indicar outro local para a realização da prestação de trabalho, desde que no distrito identificado no número 1.


3.ª (Prazo e justificação)


1 - O presente contrato é celebrado pelo período de 6 meses, tendo início em 01.04.2024 e termo em 30.09.2024.


2 - O(A) Segundo(a) Contraente é admitido(a) nos termos da alínea f) do número 2 do artigo 140º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, com fundamento no acréscimo excecional da atividade da Primeira Contraente, na medida em que, dado o aumento das promoções de diversos produtos, há necessidade de proceder ao reforço do número de colaboradores da loja, estimando-se que esta necessidade perdure pelo prazo definido no número anterior.


4.ª (Remuneração)


1 - A Primeira Contraente pagará ao(a) Segundo(a) Contraente uma retribuição base mensal e ilíquida de 415,00 Euros (quatrocentos e quinze euros), acrescida de subsídio de férias e de Natal, verbas essas que estarão sujeitas aos descontos legais em vigor.


(…)


5 - Quando seja devido subsídio de alimentação, o mesmo será pago através de vales de refeição, designadamente através de cartão refeição, dando, desde já, o(a) Segundo(a) Contraente o seu acordo a que o meio de pagamento possa ser, por conveniência da Primeira Contraente, unilateralmente alterado por esta.


(…)


5.ª (Horário de Trabalho)


1 - O período normal de trabalho a que o(a) Segundo(a) Contraente estará sujeito(a) terá, de acordo com o horário fixado pela Primeira Contraente, a duração de 20 horas semanais, distribuídas de Segunda a Domingo, com a duração média diária de 4 horas, com dois dias de descanso semanal.


2 - Por efeito do número anterior, e tendo em conta que o período normal de trabalho é em regra de 40 horas, e de oito horas por dia, o(a) Segundo(a) Contraente prestará o seu trabalho a parcial.


(…)


3. A Autoridade para as Condições de Trabalho tomou conhecimento do contrato mencionado em 2 na visita inspetiva que realizou no dia 30 de abril de 2024;


4. A Ré foi notificada nos termos do art.º 15 –A da Lei 107/2009 e não regularizou a situação nos termos indicados pela ACT, ou seja, a conversão de contrato a termo em contrato sem termo;


5. Confrontada com um total de 12 (doze) faltas injustificadas da trabalhadora, a Ré remeteu-lhe a carta registada com aviso de receção datada de 2 de agosto de 2024, constante de fls. 40, com o seguinte teor, além do mais que aqui se dá por reproduzido:


(…) Exma. Sra.


Verifica-se que V. Exa tem faltado injustificadamente ao serviço desde o passado dia 17 de julho de 2024, perfazendo, portanto 12 (doze) dias seguidos de faltas ao serviço Nesta sequência, solicitamos que, no prazo máximo de 5 (cinco) dias após boa receção desta carta - venha V. Exa justificar a sua ausência comparecendo seu local de trabalho ou enviando a respetiva justificação para o mesmo local, ou, em alternativa, enviar para o seguinte endereço eletrónico com seu número de colaborador seguido de "justificação de Ausências" em assunto serviços administrativos ....


Mais salientamos, que a não comparência ou a não justificação das suas ausências no referido prazo, equivale à denuncia sem aviso prévio do contrato de trabalho que o vincula à nossa Empresa reservando-se esta no direito de pedir uma indemnização, nos termos legais.


Caso seja intenção de V.Exa, a não manutenção do seu contrato de trabalho, solicita-se o envio da comunicação escrita nesse sentido, para os locais e pelos meios supra indicados.


Sem outro assunto, aguardamos a sua resposta. (…)


6. Em resposta à carta mencionada em 5, a trabalhadora dirigiu à Ré a mensagem de correio eletrónico constante de fls. 40v, datada de 8 de agosto de 2024, com o seguinte teor, além do mais que aqui se dá por reproduzido:


(…) Exmos.Srs.,


Venho por este meio, apresentar a minha resposta à vossa carta relativa à ausência injustificada ao trabalho.


A minha ausência deve-se a razões pessoais/familiares que, infelizmente, não podem ser oficialmente justificadas. A razão da minha ausência foi, na altura, comunicada à gerência de loja.


Com a impossibilidade da justificação e como requisitado na carta, comunico a intenção de não manter o meu contrato de trabalho.


Estou ciente da ausência de qualquer direito pela falta de aviso prévio e deixo, desde já, as minhas sinceras desculpas pelo incómodo causado com a minha ausência. No entanto, gostaria de vos pedir, por favor, a possibilidade da subtração dos valores de subsídios de férias e natal do valor total da indemnização, sendo que nestes meses de trabalho, não recebi qualquer tipo de duodécimos relativos aos mesmos. Agradeço a possibilidade e aguardo uma resposta/instruções vossas.


Mais uma vez, as minhas sinceras desculpas. Caso seja necessário escrever uma carta formal de demissão, em formato físico ou em documento digital, aguardo a vossa instrução. (…)


*


IV. Enquadramento jurídico


Entre as questões suscitadas no recurso, anota-se que as mencionadas nos pontos 1, 2 e 4 não foram invocadas na contestação da recorrente. Contudo, estando em causa matéria que é de conhecimento oficioso, e que não foi decidida pelo tribunal a quo, inexistindo, assim, caso julgado formal, o Tribunal da Relação pode conhecer das mesmas como objeto da apelação – cf. Acórdão da Relação de Évora de 17-12-2020 (Proc. n.º 1775/19.9T8BJA.E1), acessível em www.dgsi.pt.


Esclareça-se, em complemento, que o saneador tabelar que foi proferido não opera o caso julgado formal – cf. Acórdãos da Relação de Guimarães de 30-01-2025 (Proc. n.º 396/17.5T8AVV-G.G1) e de 05-12-2029 (Proc. n.º 858/15.9T8VNF-A.G1), publicados em www.dgsi.pt.


Assim sendo, nada impede o conhecimento das questões suscitadas no recurso, que, relembramos, são as seguintes:


1. Inaplicabilidade da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho e erro na forma de processo.


2. Ineptidão da petição inicial e ilegitimidade do Ministério Público.


3. Existência de erro de direito na apreciação da exceção perentória inominada invocada (inutilidade originária da lide).


4. Violação de princípios constitucionais.


Vejamos, então.


a) Inaplicabilidade da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho e erro na forma de processo


Esta questão já foi apreciada por esta Secção Social, pelo menos, em duas ações de reconhecimento da existência de contrato de trabalho deduzidas contra a ora Ré/recorrente.


Referimo-nos aos processos com os n.ºs 1393/24.0T8TMR.E1 e 1399/24.9T8TMR.E1.


Foi, então, decidido:


«A Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, alterou os artigos 2.º e 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.


Por via dessa alteração o artigo 2.º passou a ter a seguinte redação:


«1- [...]


2 - [...]


3 - A ACT é igualmente competente e instaura o procedimento previsto no artigo 15.º-A da presente lei, sempre que se verifique a existência de características de contrato de trabalho, nomeadamente:


a) Nos termos previstos no n.º 1 do artigo 12.º e no n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, incluindo nos casos em que o prestador de serviço atue como empresário em nome individual ou através de sociedade unipessoal; e


b) Em caso de indício de violação dos artigos 175.º e 180.º do Código do Trabalho, no âmbito do trabalho temporário.


4 - O procedimento referido no número anterior é igualmente aplicável nas situações previstas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 147.º do Código do Trabalho.»


Quanto ao artigo 15.º-A, a redação alterada passou a ser a seguinte:


«1 - Caso o inspetor do trabalho verifique, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, a existência de características de contrato de trabalho, nos termos previstos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 2.º, lavra um auto e notifica o empregador para, no prazo de 10 dias, regularizar a situação, ou se pronunciar dizendo o que tiver por conveniente.


2 - O procedimento é imediatamente arquivado caso o empregador faça prova da regularização da situação do trabalhador, designadamente, mediante a apresentação do contrato de trabalho ou de documento comprovativo da existência do mesmo, reportada à data do início da relação laboral, mas não dispensa a aplicação das contraordenações previstas no n.º 2 do artigo 12.º e no n.º 10 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho.


3 - [...]


4 - [...]»


Extrai-se das citadas alterações que o procedimento previsto no artigo 15.º-A passou a ser aplicável, nomeadamente, às situações em que a estipulação de termo num contrato de trabalho vise iludir as disposições que regulam o contrato sem termo e quando o motivo justificativo da duração limitada do contrato seja insuficiente – alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 147.º do Código do Trabalho.


Deste modo, se a situação irregular do trabalhador, detetada pelo inspetor de trabalho, não for regularizada na sequência da notificação a que alude o n.º 1 do artigo 15.º-A, a ACT remete, em cinco dias, participação dos factos para os serviços do Ministério Público junto do tribunal do lugar da prestação da atividade, acompanhada de todos os elementos de prova recolhidos, para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.2


A nova solução legal mostra-se devidamente sintetizada no sumário do acórdão da Relação de Lisboa de 10-06-2024 (Proc. n.º 718/24.2T8LSB.L1-4), acessível em www.dgsi.pt:


«I – Através da Lei nº 13/2023, de 3-4 (inserida na Agenda do Trabalho Digno), o nosso legislador veio alargar o âmbito de aplicação da ação laboral, com processo especial, de reconhecimento da existência de contrato de trabalho (AREC) a outras situações, também, carentes de tutela pública (não obstante incontroversa a existência de um contrato de trabalho): caso haja indiciada violação do regime de contrato de utilização de trabalho temporário (previsto nos arts. 175º e 180º do Código do Trabalho); e caso haja indiciada violação do regime de contratação a termo (previsto no art. 147º do Código do Trabalho;


II – O nosso legislador (em vez de criar um regime autónomo para fazer face a este fenómeno e combatê-lo) aproveitou a existência da ação, com processo especial de AREC e do respetivo regime processual (contido quer no Código de Processo do Trabalho quer na Lei nº 107/2009, de 14-9), ampliando o âmbito, quer destas ações, quer destes dois regimes processuais (contidos no CPT e na Lei 107/2009), nestes enxertando/aditando certas e determinadas normas legais respetivas que têm (necessariamente) de ser lidas e aplicadas à luz de todo o sobredito contexto.»


Ora, no caso dos autos, o que sucedeu foi precisamente que, na sequência da não regularização pela Ré dos contratos celebrados nas condições previstas nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 147.º do Código do Trabalho, a ACT remeteu a participação dos factos, acompanhados pelos elementos de prova, para o Ministério Público, a fim deste propor as respetivas ações de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.


Destarte, a ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, prevista nos artigos 186.º-K e seguintes do Código do Trabalho, é o meio processual próprio para as concretas situações dos autos.»


Assinalamos que mantemos o entendimento manifestado.


Por conseguinte, porque o caso dos autos em nada se destaca das situações anteriormente julgadas nos supra identificados processos – a ACT, na sequência da não regularização pela recorrente do contrato de trabalho celebrado com AA, remeteu a participação dos factos acompanhada dos elementos de prova para o Ministério Público, a fim de ser proposta a ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho – resta-nos concluir que a forma de processo especial intentada é o meio processual próprio para a concreta situação dos autos.


Como efeito, improcede a primeira questão suscitada no recurso.


b) Ineptidão da petição inicial e ilegitimidade do Ministério Público


A segunda questão suscitada no recurso também não constitui novidade para esta Secção Social.


Tal questão foi também colocada nos dois processos acima identificados.


E foi, assim, decidida:


«A invocada ineptidão da petição inicial baseou-se.


- na alegada ininteligibilidade do pedido; e


- na ocorrência de contradição por se formular pedido de reconhecimento da existência de um contrato de trabalho que já se reconhece existir.


Ora, entendemos que o pedido formulado é perfeitamente claro e compreensível e, como tal, inteligível.


Percebe-se nitidamente que está pedido o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho entre a Ré e a pessoa identificada, com início em determinada data (que é expressamente indicada).Não podia ser mais cristalino.


Quanto à apontada contradição, tendo em atenção o que supra se referiu quanto à forma de processo própria e o pedido que tem de ser formulado nesta ação especial, não há qualquer incoerência assinalável que afete a validade da petição inicial.


Para finalizar, é manifesto que da conjugação dos artigos 15.º-A, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, 186.º-K, n.º 1, e 186.º-L, n.º 1, ambos do Código do Trabalho, e 5.º-A, alínea c), do Código de Processo do Trabalho, é o Ministério Público quem tem legitimidade para intentar esta ação especial.


Cita-se, pela relevância, o Acórdão da Relação de Guimarães de 07-10-2021 (Proc. n.º 3835/19.7T8GMR.G1), publicado em www.dgsi.pt:


“O Ministério Público não só tem legitimidade para a propositura da ação, que resulta do artigo 186º-L, nº 1 do CPT, como tem interesse em agir, ainda que desacompanhado do trabalhador, porquanto age na prossecução do interesse público, designadamente de combate à precaridade laboral (…)”»


Também quanto a esta matéria reiteramos a posição anteriormente manifestada.


E, o caso concreto não contém qualquer diferença dos casos anteriormente decididos.


Na petição inicial, apresentada pelo Ministério Público - que é quem tem legitimidade para interpor a ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho – o pedido formulado é claramente inteligível: pede-se o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho sem termo entre a recorrente e AA, desde 01-04-2024.


A correção da forma de processo utilizada, anteriormente apreciada, faz claudicar, também, a alegada contradição entre a causa de pedir e o pedido.


Sendo assim, resta-nos concluir, igualmente nesta parte, pela improcedência do recurso.


c) Existência de erro de direito na apreciação da exceção inominada invocada (inutilidade originária da lide)


A recorrente impugna, em sede de recurso, a decisão do tribunal a quo que julgou improcedente a exceção inominada da inutilidade originária da lide, que havia sido invocada na contestação.


Para melhor compreensão, transcreve-se a decisão posta em crise:


«Tiveram início os presentes autos com a participação apresentada pelo Ministério Público, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º n.º 4 e 15.º-A da Lei 107/2009, de 4 de setembro e arts. 26.º n.º 1 al. i) e n.º 6 e 186.º-K do Código do Processo de Trabalho, com vista à instauração de ação de Reconhecimento da Existência de Contrato de Trabalho Sem Termo, relativamente à trabalhadora AA, sendo entidade empregadora a sociedade Ré “PINGO DOCE DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR, S.A.”.


Os autos ficaram a aguardar o prazo de 20 dias para a ação ser proposta, tendo efetivamente sido apresentada a competente P.I. (art. 186.º-K n.º 1 do CPT), na qual o Digno Autor, alegando, em suma, a insuficiência de indicação do motivo justificativo do termo e a intenção de afastar o regime legal aplicável a um contrato de trabalho sem termo, formulou pedido nos seguintes termos:


(…)


Deve a presente ação ser julgada procedente, por provada e, em consequência, ser reconhecida e declarada a existência de um contrato de trabalho sem termo entre a Ré e AA, fixando-se a data do seu início em 1 de abril de 2024.


(…)


*


Devidamente citada, a Ré contestou, tendo alegado, em suma, o que designou exceção perentória inominada, pugnando pela extinção do direito alegado pelo MP. Concretizou que o contrato de trabalho em causa cessou por abandono do posto de trabalho, já que a trabalhadora referida registou 12 faltas injustificadas, o que fez com que se iniciasse o competente procedimento previsto no art. 403.º do Código do Trabalho, com envio de carta registada com aviso de receção, datada de 2 de agosto de 2024, à qual a trabalhadora respondeu, por e-mail, confirmando as ausência, bem como a intenção de não manter o seu contrato de trabalho, que assim se mostra cessado. Em face desta cessação, mostra-se desprovida de utilidade a apreciação do mérito do pedido [Ref.ª 11142121, de 8 de novembro de 2024].


(…)


Cumpre apreciar


E apreciando dir-se-á que não assiste razão à Ré.


A ação especial em causa tem como finalidade principal o combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviço em relações de trabalho subordinado, sendo uma ação de cariz publicista que resulta da atividade da Autoridade para as Condições do Trabalho, com uma tramitação muito simplificada, cujo objeto consiste em apurar a factualidade relevante para qualificar o vínculo existente, e caso se reconheça a existência de um contrato de trabalho fixar a data do início da relação laboral, como impõe o n.º 8 do art.º 186.º-O do Código de Processo do Trabalho. Aplica-se, ainda, aos casos em que o contrato de trabalho a termo celebrado deve ser considerado contrato sem termo (cfr. art. 2.º n.º 3 e 4 da Lei 107/2009, de 14 de setembro).


No presente caso, pede o Ministério Público o reconhecimento da existência de Contrato de Trabalho Sem Termo, relativamente à trabalhadora identificada, fixando-se a data do seu início em 1 de abril de 2024.


A empregadora, não pondo em causa a alegação do Autor, limitou-se a referir que o contrato se mostra cessado, por abandono do posto de trabalho pela trabalhadora. Este facto, porém, não gera inutilidade da lide, desde logo por o contrato ter vigorado durante um período concreto e existir um procedimento contraordenacional que se encontra suspenso (cfr. art. 15.º-A da Lei 107/2009, de 14 de setembro).


Como refere o Autor, o interesse em agir do Ministério Público nesta ação está na obtenção de uma declaração de existência de contrato de trabalho sem termo “ ab initio”, nos termos dos artigos 2.º n.º 4 da Lei 107/2009 de 14 de Setembro e sua comunicação à ACT com nota de trânsito em julgado para dar continuidade ao processo de contraordenação, sendo irrelevante saber se o contrato ainda se mantém ou, tendo cessado, qual foi o motivo da cessação.


Como tal, sem mais considerações, improcede a exceção arguida pela Ré.»


Adiantamos, desde já, que o decidido não merece censura.


A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, como é sabido, tem cariz publicista e a sua finalidade é o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho e a data em que se iniciou. É uma ação de simples apreciação positiva.


Cita-se, a propósito, o Acórdão desta Secção Social de 08-03-2018 (Proc. n.º 2166717.1T8STR.E1), consultável em www.dgis.pt:


«i) A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é uma ação de simples apreciação positiva. Pretende pôr fim à situação de incerteza quanto a determinada situação de facto e de direito. É necessário apurar os factos e qualificá-los. A empregadora não é condenada. É apenas destinatária de uma declaração que torna certa uma questão de facto e de direito incerta.»


É, pois, uma ação que visa determinar uma ligação contratual de incerteza ou de fraude à lei.


E esse objetivo mantém-se mesmo numa situação em que a relação contratual cessou antes da instauração da ação por abandono do trabalho pelo trabalhador (cf. artigo 403.º do Código do Trabalho), porque o efeito útil que se visa alcançar com a propositura da ação permanece, mesmo que circunscrito ao restrito período temporal em que se manteve a relação contratual.


O efeito útil (originário) da ação só se teria esfumado se, porventura, antes da instauração da ação a recorrente tivesse reconhecido que celebrou um contrato de trabalho sem termo, desde o início, com a trabalhadora identificada.


Neste sentido, cita-se o Acórdão da Relação de Guimarães de 07-10-2021 (Proc. n.º 3835/19.7T8GMR.G1), acessível na base de dados da dgsi:


«Com a ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho não se pretende apenas a regularização da situação para o futuro, mas antes o reconhecimento da natureza laboral da relação havida num determinado contexto temporal.


Não ocorre inutilidade ou impossibilidade da lide numa ação para reconhecimento de existência de contrato de trabalho, pelo facto de entretanto as partes terem celebrado um contrato de trabalho, mas não cobrindo o período temporal abrangido pela relação cuja natureza laboral se pretende fazer reconhecer. Como não implica tal inutilidade ou impossibilidade o facto de a relação entre as partes ter entretanto cessado, ainda que por iniciativa do trabalhador.»


Ademais, como se infere do n.º 4 do artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, o procedimento contraordenacional que se iniciou com o auto de notícia mencionado no n.º 1 do artigo encontra-se suspenso e a aguardar o trânsito em julgado da decisão final da ação - cf. Acórdão da Relação do Porto de 18-05-2020 (Proc. n.º 15931/19.6T8PRT.P1), publicado em www.dgsi.pt.


Em suma, atento o exposto, não merece reparo a decisão recorrida.


Em consequência, improcede, nesta parte, o recurso.


d) Violação de princípios constitucionais


Alega a recorrente que o entendimento perfilhado no despacho que apreciou a invocada exceção inominada viola:


- O princípio da defesa consagrado no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa;


- O princípio da presunção de inocência do arguido em processo contraordenacional.


Cumpre apreciar.


Prescreve o artigo 32.º, n.º 10, do Lei Fundamental que nos processos de contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audição e defesa.


Traduz-se este princípio na impossibilidade de ser aplicada qualquer tipo de sanção, contraordenacional, fiscal, disciplinar, administrativa ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e se possa defender das acusações ou imputações que lhe são feitas (direito de defesa).


Quanto ao princípio da presunção de inocência do arguido o mesmo encontra-se previsto no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição que estipula que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.


Ora, em causa estão, manifestamente, direitos e princípios enquadráveis nomeadamente no procedimento contraordenacional, mas inaplicáveis no processo civil.


Logo, a alegada violação dos mesmos faria sentido no âmbito de um processo contraordenacional, mas não no âmbito de um processo civil declarativo, como o dos autos.


Ademais, a violação dos aludidos princípios constitucionais baseia-se no efeito que a decisão proferida na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, quando transitada em julgado, irá ter no processo contraordenacional que se encontrava suspenso ao abrigo do n.º 4 do artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.


Sucede que o despacho recorrido – que julgou improcedente a exceção inominada – não se pronunciou sobre tal efeito.


Deste modo, a alegada violação de princípios constitucionais não tem, em concreto, suporte para ser analisada nesta ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.


Consequentemente, não se conhece da mesma.


-


Concluindo, o recurso mostra-se totalmente improcedente.


As custas do recurso serão suportadas pela recorrente – artigo 527.º do Código de Processo Civil.


*


V. Decisão


Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.


Custas do recurso a suportar pela recorrente.


Notifique.


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Évora, 25 de junho de 2025


Paula do Paço


Emília Ramos Costa


Mário Branco Coelho

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1. Relatora: Paula do Paço; 1.ª Adjunta: Emília Ramos Costa; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho↩︎

2. Realce e sublinhado da nossa responsabilidade.↩︎