PROCESSO ARBITRAL
PENDÊNCIA DE PROCESSO CRIME
Sumário

I - Estando pendente processo-crime atinente a factos em discussão no processo arbitral, o tribunal arbitral é materialmente incompetente para conhecer da pretensão deduzida.
II - A pendência de questão penal versando factos controvertidos em tribunal arbitral impede a apreciação da pretensão do requerente nesta jurisdição, sob pena de subversão de princípios de ordem pública.
III - Sendo controvertido se a atuação do requerente de processo arbitral consubstancia prática de ilícito criminal de furto de energia elétrica, a matéria em causa extravasa o âmbito de um conflito de consumo.

Texto Integral

Proc. 82/25.2YIPRT




Sumário
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Relatora: Teresa Maria Sena Fonseca
1.ª adjunta: Teresa Pinto da Silva
2.º adjunto: Nuno Marcelo Nóbrega Araújo





Acordam no Tribunal da Relação do Porto



I - Relatório


O processo arbitral n.º 2357/2024 iniciou-se junto do Tribunal Arbitral CICAP - Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto com a reclamação apresentada por AA contra “E-REDES - Distribuição de Eletricidade, S.A.”.
AA requereu que se considerasse que a quantia de € 1 389,53 peticionada pela “E-REDES - Distribuição de Eletricidade, S.A.” a título de indemnização por apropriação indevida de energia fosse considerada como não sendo devida.
Por meio de sentença arbitral de 29-12-2024 decidiu-se, assinaladamente, que, mesmo estando pendente um processo-crime relativamente aos mesmos factos, o tribunal arbitral era competente para julgar a reclamação apresentada.
Aí, assinaladamente, se lê: considerando que esta exceção já foi apreciada e decidida noutros processos de arbitragem que correram termos neste Tribunal Arbitral, designadamente nos autos do processo de arbitragem n.º 2146-2024, em que a demandada figurou, igualmente, como demandada, e a decisão proferida vai de encontro ao entendimento adotado na jurisprudência arbitral do CICAP, julga-se, então, totalmente improcedente, por não provada, a exceção da incompetência material deste Tribunal Arbitral, com os fundamentos expendidos na sentença proferida nos autos acima citados, que se dão aqui por reproduzidos, e, consequentemente, determina-se o prosseguimento dos presentes autos para conhecimento e decisão do pedido formulado pelo demandante.
Nesta sequência, a “E-REDES – Distribuição de Eletricidade, S.A.” intentou a presente ação de anulação da sentença.
A alegação da “E-REDES – Distribuição de Eletricidade, S.A.” consiste, em síntese, no seguinte:
- que estão em causa factos que consubstanciam a prática de um crime de furto de energia elétrica, que se consumou com a apropriação ilegítima de energia elétrica por parte do utilizador da instalação, que beneficiou e enriqueceu com o ilícito praticado, na medida dos consumos não faturados;
- que em 13-12-2024 efetuou queixa-crime junto dos serviços do Ministério Público ..., visando a instauração de um processo de inquérito pelos factos vertidos na reclamação;
- que manifestou a intenção de deduzir pedido de indemnização civil;
- que se encontra a correr termos, junto dos serviços do Ministério Público ..., o processo de inquérito com o n.º ...;
- que, uma vez que está em causa um litígio de natureza criminal, o tribunal arbitral não é materialmente competente para julgar a reclamação apresentada.
AA foi citado para, querendo, se opor ao pedido e oferecer prova, nos termos do disposto no art.º 46.º/2/b da Lei da Arbitragem Voluntária.
Não deduziu oposição.

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Foram colhidos os vistos legais.
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O tribunal é competente para conhecer da causa em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas, encontrando-se a requerente devidamente representada em juízo.
O processo é o próprio e não existem outras exceções, nulidades ou questões prévias de que cumpra conhecer.
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Não existe prova a produzir, mostrando-se a matéria relevante para o conhecimento de direito assente por documentos.
Nos termos do art.º 46.º/2/e da Lei da Arbitragem Voluntária (L.A.V.), aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro, os presentes autos seguem nesta fase a tramitação do recurso de apelação, com as necessárias adaptações.
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II - A questão a dirimir consiste em determinar se a sentença arbitral enferma de vício que conduza à sua anulação. Assinaladamente, atento o alegado pela requerente, cabe apurar se a decisão arbitral conheceu de questão de que não poderia conhecer por o objeto e litígio subjacente à reclamação não ser suscetível de ser decidido por um tribunal arbitral.
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III - Fundamentação de facto

1 - O processo arbitral n.º 2357/2024 iniciou-se com reclamação apresentada por AA contra “E-REDES - Distribuição de Eletricidade, S.A.”, em que este requereu a anulação do montante peticionado por aquela a título de indemnização (doc. 1). Vd. valor
2 - A “E-REDES - Distribuição de Eletricidade, S.A.” contestou, dizendo ter comunicado que havia apresentado queixa-crime pelos factos vertidos naquela reclamação, pelo que não era útil o recurso à arbitragem até trânsito em julgado da correspondente decisão judicial (doc. 4).
3 - A participação criminal deu entrada nos serviços do Ministério Público em 13.12.2024, tendo a requerente procedido à junção do original da participação crime no processo (docs. 3 e 4).
4 - O tribunal arbitral decidiu que era competente para julgar o litígio em causa (doc. 2).
5 - A sentença arbitral foi notificada à “E-REDES - Distribuição de Eletricidade, S.A.” em 30-12-2024.

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IV - Fundamentação jurídica

A ação de anulação de decisão arbitral é uma ação especial regulada pela Lei da Arbitragem Voluntária - L.A.V.).
A impugnação da decisão arbitral só pode ter lugar através do pedido da sua anulação, com os fundamentos taxativamente fixados no art.º 46.º da Lei da Arbitragem Voluntária. Todos eles consubstanciam vícios ou irregularidades a latere do objeto/mérito do litígio. Nas ações de anulação da decisão arbitral não está em causa um controle direto do “mérito” ou do “sentido” da decisão, mas um controle da sua validade em função do (in)cumprimento de regras (procedimentais e de princípios) tidas por fundamentais na nossa ordem jurídica (in ac. da Relação de Lisboa, de 13-7-2017, 1358/16.5YRLSB-7, Graça Amaral).
A sentença arbitral pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se a sentença se pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou contém decisões que ultrapassam o âmbito desta (art.º 46.º/3/iii da Lei da Arbitragem Voluntária - L.A.V.).
O art.º 262/2 do decreto-lei n.º 15/2022, de 14 de janeiro (que estabelece a organização e o funcionamento do sistema elétrico nacional, transpondo a Diretiva (UE) 2019/944 e a Diretiva (UE) 2018/2001) inscreveu a possibilidade de recurso aos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados.
No art.º 261.º/1 do mesmo diploma consagra-se o dever de o operador de rede comunicar ao Ministério Público os factos que indiciem a prática de um crime (sempre que existam indícios da prática de um crime, o operador de rede deve participar ao Ministério Público os factos de que tenha tomado conhecimento no desempenho das suas funções).
Entende a requerente que os factos vertidos na reclamação consubstanciam a prática de um crime de furto. Nessa medida, face ao processo de inquérito em curso, o tribunal arbitral não seria materialmente competente para julgar o litígio em causa. O tribunal arbitral não poderia prosseguir com o julgamento da demanda.
De acordo com o disposto no art.º 250.º do decreto-lei n.º 15/2022, de 14 de janeiro:
1 - A apropriação indevida de energia (AIE) ocorre quando há captação de energia elétrica em violação das regras legais ou regulamentares aplicáveis e independentemente da vigência de contrato e sob quaisquer modalidades de acesso ou utilização.
2 - Constituem, designadamente, indícios da ocorrência de AIE os seguintes:
a) A captação de energia elétrica dissociada de equipamentos de medição ou de controlo de potência ou consumo;
b) A viciação, por qualquer meio, do funcionamento normal dos equipamentos de medição ou de controlo de potência ou consumo de energia elétrica, incluindo os respetivos sistemas de comunicação de dados;
c) A alteração dos dispositivos de segurança dos equipamentos referidos nas alíneas anteriores, nomeadamente, através da quebra de selos, violação de fechos ou de fechaduras, ou ainda de incidente de cibersegurança; ou
d) Situações fraudulentas nas atividades de produção, armazenamento, comercialização, consumo, agregação e outras prestações de serviços análogas, nomeadamente o falseamento de valores de energia medidos através da viciação da medição ou de outras práticas fraudulentas.
Tal como descritos os factos pela “E-REDES - Distribuição de Eletricidade, S.A.”, está em causa um crime de furto, sob a forma continuada, previsto e punido nos termos nos artigos 203.º e 30.º do Código Penal.
A “E-REDES - Distribuição de Eletricidade, S.A.” apresentou participação criminal em que manifestou a intenção de deduzir pedido de indemnização civil, visando a instauração de um processo de inquérito pelos factos apreciados na reclamação que está subjacente aos presentes autos.
O regulamento do CICAP - Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto, no seu art.º 4.º/4, prevê que o Centro não pode (…) decidir litígios em que estejam indiciados delitos de natureza criminal (…).
A circunstância de o reclamante ter submetido o litígio à apreciação de um centro de arbitragem de conflitos não pode obviar ao exercício do direito de queixa da “E Redes”. A propositura de ação de apreciação negativa junto do tribunal arbitral competente não é adequada a impedir o exercício de ação penal, sob pena de subversão do ordenamento jurídico no que concerne ao exercício da ação penal.
Se se vier a concluir que AA é criminalmente responsável, tal é suscetível de gerar o direito indemnizatório que aquele pretende ver declarado como inexistente. Deste modo, só após o apuramento da responsabilidade criminal pela prática dos factos indicados pela “E Redes”, estarão reunidas as condições para o tribunal arbitral se pronunciar sobre a indemnização correspondente.
Veja-se que ainda que o tribunal arbitral se debruçasse sobre o litígio como configurado pelo requerido, o objeto da apreciação consistiria em que AA nada deve à “E-Redes”. A queixa criminal apresentada destina-se precisamente a ver apreciada a alegada atuação do requerente. A provar-se que esta teve lugar, a “E-Redes” terá direito a ver-se indemnizada.
Uma vez que a decisão do tribunal arbitral é insuscetível de obstaculizar à prossecução da ação penal, o julgamento solicitado ao tribunal arbitral é inócuo.
Acresce que no âmbito do direito processual penal se encontra consagrado o princípio de adesão (art.º 71º do C.P.P.). Segundo este, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei (nomeadamente no art.º 72º do C.P.P.).
O conhecimento da relação controvertida, tal como configurada por AA, pressupõe a análise de factos, que, nos termos da defesa da “E-Redes”, consubstanciam um ilícito criminal.
Visto que no litígio arbitral foi alegado que não é devido o pagamento de quantia que a “E-Redes”, ao invés, sustenta ser-lhe devida enquanto indemnização pela prática de ilícito pena e que corre os seus termos o processo-crime n.º ..., em que a “E-Redes” manifestou a intenção de deduzir pedido de indemnização civil, o tribunal arbitral não estava em condições de julgar o litígio.
Como enfatiza a “E-Redes”, seria inútil, e desprestigioso, que a arbitragem seguisse os seus termos, podendo vir a ocorrer que desse como não provados os factos tal como descritos por aquela, e, ao invés, que no processo-crime AA viesse a ser condenado pela prática do crime que lhe é imputado e a ser responsabilizado pelo pagamento da indemnização.
É sabido que o caso julgado material é suscetível de se impor por via da exceção do caso julgado, que impede a reapreciação da relação jurídica material definida por sentença transitada, e por via da autoridade do caso julgado, que vincula ao acatamento noutras decisões que venham a ser proferidas do que ali ficou definido.
O ordenamento jurídico está gizado de forma a impedir a contradição entre julgados. A proibição da prática de atos inúteis (art.º 130.º do C.P.C.) obriga, outrossim, a que as decisões dos tribunais visem resultados efetivos e não uma desmultiplicação inglória de efeitos divergentes ou mesmo contraditórios entre si.
Pretende-se, desde logo, evitar o risco de o tribunal arbitral vir a proferir uma decisão cujos factos possam estar, ou vir a estar, em contradição com os que venham, eventualmente, a ser definidos no processo-crime. Por razões de ordem pública, não é admissível o recurso ao tribunal arbitral quando a questão está pendente noutra ordem jurisdicional. Ainda que o procedimento criminal seja desencadeado em momento posterior ao recurso ao tribunal arbitral, outra não poderá ser a solução, sob pena de se inviabilizar a ação penal.
É inclusivamente controvertido que esteja em causa um conflito de consumo, como tal integrável na esfera de atuação dos centros de arbitragens. Se se confirmar a apropriação ilícita de energia elétrica, o apuramento do montante da indemnização não cabe no âmbito dos litígios que o legislador entendeu estarem sujeitos à jurisdição arbitral.
O tribunal arbitral não deve prosseguir com o julgamento da demanda até que seja proferida decisão no âmbito daquele processo-crime. E, diga-se, decisão no sentido de que não há indícios de apropriação indevida suscetível de integrar matéria de índole criminal.
Em conclusão, a ação de declaração negativa proposta por suspeito de prática no consumo de energia elétrica visa desonerá-lo do efeito indemnizatório também alcançado pelo procedimento criminal. A sua prossecução em paralelo com o procedimento criminal poria em causa a ordem pública. A apreciação da questão penal sobre os mesmos factos controvertidos impede a apreciação da pretensão do requerente no tribunal arbitral.
A jurisprudência vem decidindo em sentido conforme àquele que vimos de expender.
Veja-se o ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 13-7-2021 (proc. 38/21.4YRGMR, Joaquim Boavida), segundo o qual, estando pendente processo-crime pelos factos que são imputados ao agente, o tribunal arbitral não pode considerar-se materialmente competente para conhecer da pretensão por aquele deduzida sob a forma de uma ação de apreciação negativa, alicerçada na alegada não prática daqueles factos.
No ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 18-5-2023 (proc. 137/22.5YRGMR, Figueiredo de Almeida) decidiu-se que o tribunal arbitral não é materialmente competente para conhecer da ação de simples apreciação negativa de inexistência de consumo irregular de energia, cuja cobrança a fornecedora pretende obter, estando pendente processo-crime em que é imputada ao cliente a prática daqueles factos.
No ac. da Relação de Guimarães de 25/11/2021 (proc. 115/21.1YRGMR, Alexandra Rolim Mendes) decidiu-se que o tribunal Arbitral com competência para a resolução de litígios de consumo não é competente para conhecer de uma causa em que a fornecedora de eletricidade cobrou a determinada pessoa valores a que entende ter direito a título de indemnização referente a consumos de energia elétrica por via da viciação do contador, ainda que no caso exista um contrato de fornecimento de energia elétrica celebrado entre os dois, uma vez que não estamos perante um litígio de consumo, pois os valores cobrados estão relacionados com uma conduta alegadamente ilícita do réu relacionada com captação fraudulenta de energia elétrica e que, portanto, nada tem a ver com o referido contrato.
Em súmula, estando pendente processo-crime atinente a factos em discussão no processo arbitral, o tribunal arbitral é materialmente incompetente para conhecer da pretensão, deduzida sob a forma de ação de apreciação negativa, alicerçada na alegada não prática daqueles factos.
Impõe-se, por isso, a anulação da decisão arbitral nos termos do preceituado no já aludido art.º 46.º/3/iii da Lei da Arbitragem Voluntária.

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V - Dispositivo

Nos termos sobreditos, anula-se a decisão do Tribunal Arbitral CICAP - Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto, proferida em 29-12-2024, no processo arbitral n.º 2357/2024, movido por AA contra “E-REDES - Distribuição de Eletricidade, S.A.” que desatendeu a exceção da incompetência material e determinou o prosseguimento dos autos.
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Fixa-se de valor à ação o montante de € 1 389,53 (artigos 306.º/2 e 297.º/1 do C.P.C.).
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Custas pela requerente uma vez que o requerido não deduziu oposição (art.º 535.º do C.P.C.).
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Porto, 26-6-2025

Teresa Fonseca

Teresa Pinto da Silva

Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo - [Declaração de voto: Subscrevendo o acórdão e a decisão, clarifico, porém, que o tribunal arbitral, a meu ver, poderia ter decidido a restituição do valor adicional cobrado pela entidade fornecedora desde que o fizesse com expressa menção de que tal restituição era imposta sem prejuízo da decisão a proferir no processo crime, e ainda que isso implicasse a restrição ou a parcial procedência do pedido do reclamante. Em tais circunstâncias, segundo creio, a apresentação de uma queixa crime, acompanhada da pretensão de indemnização civil, superveniente ao início da arbitragem, não teria o desaforamento como consequência, o qual, aliás, apenas é admissível excepcionalmente (cfr. arts. 38.º e 39.º da LOSJ, aprovada pela Lei nº62/2013, de 26 de Agosto), pois o tribunal arbitral já não estaria a invadir a competência dos tribunais comuns, mas apenas, mantendo o conflito em sede de direito de consumo, a avaliar a licitude de cobranças adicionais e coercivas (i, é, sob cominação de corte no fornecimento), feitas pela entidade fornecedora ao consumidor, enquanto o responsável pela irregularidade não for identificado em decisão do tribunal competente para apreciar a queixa criminal que aquela deduziu.].