COBRANÇA DE DÍVIDA
ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
SUPRESSIO
Sumário

I - A não cobrança de uma dívida por um lapso de tempo não leva à sua extinção legal por criar no devedor o direito a não pagar, quando não se verifique a extinção do crédito por prescrição.
II - A proibição da conduta contrária à fides só atua quando se verifique que, mercê da atuação do agente, num determinado sentido (factum proprium), o confiante desenvolve uma determinada atividade. Esta atividade vem a ser a consequência de um investimento de confiança fundamentado no factum proprium a que aderiu.
III - O abuso de direito na modalidade de supressio verifica-se com o decurso de um período de tempo significativo suscetível de criar na contraparte a expectativa legítima de que o direito não mais será exercido.
IV - Serve este recorte da figura do abuso de direito para acudir àqueles casos em que o titular de uma posição jurídica a não exerce por tanto tempo que a contraparte mantém expetativa legítima – criada pelo decurso de um longo período de tempo – de a situação criada – omissão de ação – se manter sem alteração.
V - Não sucede assim, quando o titular de um direito de crédito o não exercita de imediato, não tendo decorrido o prazo legal para extinção do direito pela prescrição ordinária ou, sendo caso disso, não tendo o devedor invocado eventual prescrição presuntiva que se verificasse.

Texto Integral

Processo: 66704/24.2YIPRT.P1

Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:

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Acordam os juízes da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

Relatório

AUTOR: A..., Travessa ..., Aveiro.

RÉ: B... Unipessoal Ld.ª, Rua ..., ....

Por via da presente ação declarativa, pretende o A. obter da Ré a condenação desta a pagar-lhe € 3.544,33, acrescido de € 2.195,04, de juros de mora, invocando um contrato de prestação de serviços, de 20.1.2016, por via do qual o A. procedeu à reparação das viaturas da Ré, com as matrículas ..-..-XF, ..-..-SV e ..-..-IR, tendo emitido diversas faturas que a Ré não liquidou.

O processo foi instaurado inicialmente como injunção, a 21.5.2024, passando, depois, a ação declarativa, por ter a Ré apresentado oposição, alegando ter pago todos os serviços solicitados ao A.

Requer a condenação da requerente como litigante de má-fé, em indemnização na quantia de € 3.000, 00.

O A. exerceu contraditório.

Tendo sido realizado julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de 29.11.2024, a qual julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, condenou a Ré a pagar ao A. as faturas descritas no ponto 3 dos factos provados, com juros de mora, desde a data do vencimento até à data da instauração da execução, à taxa supletiva para juros comerciais, até ao limite de € 2.195, 04; juros de mora vencidos desde 22.5.2024 e vincendos até integral pagamento, às mesmas taxas; mais a quantia de € 40, 00.

Julgou improcedente o incidente de litigância de má-fé.

Desta sentença recorre a Ré, visando a sua revogação, com base nos argumentos que assim sintetiza:

(…)

Não foram apresentadas contra-alegações.

Objeto do recurso:

- Da impugnação da decisão de facto;

- Do putativo exercício abusivo do direito de crédito por parte do A.;

- Da dívida de juros a forfait.

FUNDAMENTAÇÃO

Factos dados como provados em primeira instância

1) O autor realiza trabalhos de reparação automóvel, mecânica, bate-chapa e pintura, em nome individual.

2) A ré é uma sociedade por quotas que se dedica à reabilitação e restauro de edifícios, coberturas e fachadas.

3) No âmbito das suas atividades, o autor, a pedido da ré, aplicou os materiais e executou os trabalhos descritos nas seguintes faturas, referentes, nomeadamente, aos veículos com as matrículas ..-..-XF, ..-..-SV e ..-..-IR:

3.1) fatura n.º ..., emitida em 20-01-2016, vencida em 19-02-2016, no valor de 634,41 € (seiscentos e trinta e quatro euros e quarenta e um cêntimos);

3.2) fatura n.º ..., emitida em 02-02-2016, vencida em 03-03-2016, no valor de 474,25 € (quatrocentos e setenta e quatro euros e vinte e cinco cêntimos);

3.3) fatura n.º ..., emitida em 02-02-2016, vencida em 03-03-2016, no valor de 1.282,58 € (mil duzentos e oitenta e dois euros e cinquenta e oito cêntimos);

3.4) fatura n.º ..., emitida em 02-03-2016, vencida em 01-04-2016, no valor de 719,59 € (setecentos e dezanove euros e cinquenta e nove cêntimos);

3.5) fatura n.º ..., emitida em 04-10-2016, vencida em 03-11-2016, no valor de 433,50 € (quatrocentos e trinta e três euros e cinquenta cêntimos).

4) O autor enviou à ré as faturas identificadas em 3).

5) O autor solicitou à ré, verbalmente, por uma vez, que efetuasse o pagamento dos valores que tinha em dívida.

6) O autor remeteu à ré a carta datada de 09-02-2024, sob registo, a solicitar o pagamento das faturas referidas em 3), a qual foi devolvida com a informação “objeto não reclamado”.

7) O autor suportou a quantia de 40,00 € (quarenta euros) em despesas destinadas a obter o pagamento extrajudicial das faturas referidas em 3).

8) A ré expediu uma carta dirigida ao autor, datada de 11-04-2016, a devolver as faturas identificas de 3.1) a 3.4), alegando que correspondem a trabalhos que não foram realizados.


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Factos dados como não provados

Não se provou que:

a) os custos referidos em 7) tivessem ascendido ao montante de 100,00 € (cem euros);

b) a carta referida em 8) tivesse sido entregue e rececionada;

c) a ausência de comunicação do autor, na sequência do recebimento da carta referida em b), tivesse criado na ré a convicção de que as faturas tinham sido emitidas por lapso, não sendo devidas;

d) após a devolução das faturas, na ré tivesse solicitado outros serviços ao autor, cujo pagamento efetuou.

Da impugnação da decisão de facto:

Começa a recorrente por afirmar, no tocante à impugnação, que “em momento nenhum, a Ré alega que nunca foram prestados serviços naqueles automóveis, mas sim que os serviços titulados por aquelas faturas não foram prestados”. Mais: pretende que o A. explicite e demonstre “serviços ou partes intervencionadas”, “métodos utilizados” “períodos em que tais serviços teriam decorrido”.

Sem cuidar da prova realizada em julgamento, verificamos, desde já, que as razões assim invocadas para justificar a impugnação da decisão de factos são, a todos os títulos, irrisórias.

Todos nós que, algum dia, nos socorremos do serviço de um mecânico sabemos, sem necessidade de muito labor intelectual, que o conteúdo das respetivas faturas ou é genérico ou, se o não é, no momento da receção do veículo e/ou das faturas, há que reclamar por maior especificidade quanto às reparações efetuadas. Já quanto aos métodos utilizados pelo mecânico não vemos como argumentar contra – e a Ré também o não diz – posto tratar-se de trabalho técnico específico e de, neste momento, nenhuma perícia aos veículos ter sido pedida ou ser já possível, dado o decurso do tempo.

Ora, cabe ao A. demonstrar ter prestado os serviços cujo pagamento peticiona e a Ré sabe que levou estes três automóveis ao estabelecimento do A. e lhe solicitou serviços de reparação. Tanto disso está consciente que o afirmou expressamente.

Está, assim, em muito bom caminho o cumprimento pelo A. do ónus previsto no disposto no art. 342.º CC.

A sentença explica-o muito bem.

Depois, temos as faturas que estão descritas nos diversos segmentos do ponto 3 dos factos provados, juntos a 26.9.2024.

Nesta faturas, os serviços prestados revelam-se descritos de forma compreensível, em trabalho, material, quantidade e preço:


















Pode, então, a Ré afirmar, sem corar, não saber que trabalhos foram realizados nos seus veículos?

A resposta é, obviamente, negativa.

Mais.

Na mesma data processual, o A. juntou aos autos as ordens de serviço correspondentes ao que pretendia a A. para cada um dos veículos.

É o seguinte o conteúdo destes documentos:








A motivação da sentença explicita de forma profusa a relação entre estes documentos e as faturas.

Diz assim:

«Da conjugação das referidas facturas e documentos referentes a reparações, extrai-se que:

- os trabalhos identificados na factura n.º ..., que contém a indicação “OR ...”, correspondem aos serviços descritos no documento emitido pelo réu com o n.º ..., com a excepção da rúbrica mão-de-obra de chaparia, no valor de 81,00 €, que consta apenas da factura e não também da ordem de reparação; o documento ..., por seu turno, possui a indicação daquela factura e, da descrição dos trabalhos realizados que consta em ambos os documentos, decorre que houve lugar a mão-de-obra de chaparia (desempenar porta lateral direita);

- os trabalhos identificados na factura n.º ..., que contém a indicação “OR ...”, correspondem integralmente aos serviços descritos no documento emitido pelo autor com o n.º ...; este último, por seu turno, possui a indicação daquela factura;

- os trabalhos identificados na factura n.º ..., que contém a indicação “OR ...”, correspondem integralmente aos serviços descritos no documento emitido pelo autor com o n.º ...; este último, por seu turno, possui a indicação daquela factura;

- os trabalhos identificados na factura n.º ..., que contém a indicação “OR ...”, correspondem integralmente aos serviços descritos no documento emitido pelo autor com o n.º ...; este último, por seu turno, possui a indicação daquela factura;

- os trabalhos identificados na factura n.º ..., que contém a indicação “OR 3649”, correspondem aos serviços descritos no documento emitido pelo autor com o n.º ..., com a excepção das rúbricas “alternador” e “mão-de-obra mecânica”, nos valores, respectivamente, de 210,00 € e de 67,50 €; esta última consta, apenas, da factura, e não também da ordem de reparação; o documento ..., por seu turno, possui a indicação daquela factura e, da descrição dos trabalhos realizados que consta de ambos os documentos, extrai-se que houve lugar a mão-de-obra de mecânica (revisão para inspecção).

Na carta datada de 11-04-2016, endereçada pela ré, à autora, aquela declara devolver as facturas n.ºs ..., ..., ... e ..., com a alegação de que os trabalhos não foram realizados. Do expediente postal junto decorre que a aludida carta foi expedida em 11-4-2016, mas já não que a mesma foi devidamente entregue. Tendo a carta sido expedida em correio registado, tal informação é disponibilizada pelos “CTT”, não tendo, porém, sido apresentada nos autos pela ré, conforme se impunha.»

Finalmente, tendo recebido as faturas em apreço nestes autos, a Ré devolveu quatro delas (as ..., ..., ... e ...), tendo simplesmente dito, de forma simples, mas absolutamente inaceitável face aos deveres de honestidade e probidade que se impõem nas relações comerciais (e, na verdade, em qualquer das relações), que as devolvia por não corresponderem a trabalhos realizados. Isto sem mais, sem explicar por que assim entendia.

Afinal, a que trabalhos não realizados se refere a Ré? Não levou a demanda as viaturas para consertar na oficina do A.? Se as levou, o que fez o A. que, afinal, não deveria ter feito? Que defesa é esta da demandada que se remete a dizer “não fizeram”? Não fizeram o quê? O que deveria ter sido feito e não foi? O que foi faturado e não deveria ter sido?

Toda a estrutura desta defesa se mostra destituída de consistência e rigor, tornando o recurso uma falácia, no tocante à impugnação de facto, revelando-se inútil a apreciação dos testemunhos face aos documentos juntos.

Todavia, quanto a estes últimos, vislumbramos suficiente o depoimento de quem trabalhou na reparação dos automóveis e confirmou os documentos emitidos: AA (mecânico ao serviço do A.) e BB, pintor de automóveis, bem como o próprio autor, em declarações que, pretendendo com a ação cobrar o que aqui pede – quantia de pouca monta –, mas que lhe é devido há anos, não deixou de explicar o que está em causa, revelando ser humilde mas não ter interesse em burlar quem recorreu aos seus serviços, antes e depois das faturas dos autos.

Tudo isto, em contraste com o depoimento de quem, por parte da Ré – o seu legal representante – se convenceu que devolver faturas, sem mais, a quem encomendou serviços, apenas argumentando que o serviço não foi feito, mas sem certezas algumas (como afirmou em audiência) seria o suficiente para sustentar uma oposição processual justa e bem fundada.

Mantém-se, por isso, todo o ponto 3 e seus segmentos.

Quanto ao ponto 5.º, o habitual em qualquer serviço de oficina é que se pague quando se recolhe a viatura, outro acordo de deferimento do pagamento haveria de ser argumentado e provado pela Ré, o que não sucedeu.

Mantém-se, assim, tudo quanto consta em 5 dos factos provados.

O mesmo o sucede relativamente ao ponto 6, cujo documento se encontra junto a 26.9.2024, com o preenchimento do respetivo registo postal e doc. 8, carta que a própria Ré invoca.

Os factos provados mantêm-se, assim, na totalidade.

No tocante aos factos não provados em b), c) e d), a Ré não demonstrou a receção da carta mencionada em 8 – não há documentação que o demonstre -, o que consta de c) não é um facto, mas uma alegação de direito, inócua (como veremos), mas sem interesse para a questão factual e o que se acha em d), referindo-se a serviços não cobrados nos autos é absolutamente espúrio quanto ao objeto do processo. O facto de o mecânico – não obstante lhe estarem em dívida serviços anteriores – continuar a receber solicitações de novos serviços do devedor relapso apenas concita a ideia de que o comerciante em causa, que vive desta prestação de serviços, não recusa nova prestação pelo facto de o cliente lhe não saldar o anteriormente devido, com a esperança, claro está – é da experiência da vida – de que, a dado ponto, a situação seja, como deve ser, regularizada. Todos nós temos conhecimento do exemplo mais comezinho da vida, em mercearias de bairro, do merceeiro que continua a fornecer artigos a quem há muito deixou de pagar o devido, sempre com a esperança de composição futura da situação em dívida.

Termos em que se indefere a impugnação de facto.

Do Direito

A sentença expressou de forma absolutamente correta o que está, juridicamente, aqui em causa: o pagamento de serviços devidos pela prestação de serviços ali normativamente enquadrada, sendo inútil aqui a repetição do que não suscita dúvida alguma.

Já a alegação de que, pelo facto de o A. não ter cobrado a dívida por cerca de oito anos, criou na Ré a expectativa de que a mesma não seria já cobrada e, por isso, se teria “extinto” o crédito é, a todos os títulos, improcedente.

Primeiro, porque o prazo ordinário de prescrição das dívidas é, como se sabe, de 20 anos (art. 309.º CC).

Depois, porque, a existir alguma prescrição presuntiva de pagamento, do tipo previsto no art. 312.º CC (cfr. art. 317.º b) CC), a mesma haveria de ser invocada e, sobretudo, não haveria de ter sido impugnado o crédito do A., sob pena de mútua exclusão desta defesa excetiva particular.

Finalmente, porque a não cobrança de uma dívida por um lapso de tempo que não leva à sua extinção legal não cria no devedor o direito a não pagar, direito esse eventualmente a salvaguardar por baixo do largo chapéu do abuso do direito (art. 334.º CC), em qualquer dos seus subtipos, por paralisação censurável do crédito que assim exercita.

Sem necessidade de outras cogitações, por deslocadas, o invocado venire contra factum proprium obnubila completamente a essência da figura: o exercício anormal de um direito apenas com o fito de prejudicar o interesse do terceiro, quando o que aqui está em causa é a cobrança de um crédito legítimo. Se A devolve a seu bel prazer faturas correspondentes a um débito que o obriga, não pode pretender que B o acione de imediato, sob pena de, não o fazendo no tempo que A entende razoável (e qual tempo?) se extinguir o crédito de B.

A proibição da conduta contrária à fides só atua quando se verifique que, mercê da atuação do agente, num determinado sentido (factum proprium), o confiante desenvolve uma determinada atividade. Esta atividade vem a ser a consequência de um investimento de confiança fundamentado no factum proprium a que aderiu. Não é isso, manifestamente, que está aqui em causa.

Já o abuso de direito na modalidade de supressio “verifica-se com o decurso de um período de tempo significativo susceptível de criar na contraparte a expectativa legítima de que o direito não mais será exercido”[1].

Serve este recorte da figura do abuso de direito para acudir àqueles casos em que o titular de uma posição jurídica a não exerce por tanto tempo que a contraparte mantém expetativa legítima – criada pelo decurso de um longo período de tempo – de a situação criada – omissão de ação – se manter sem alteração.

Não sucede assim, quando o titular de um direito de crédito o não exercita de imediato, não tendo decorrido o prazo legal para extinção do direito pela prescrição ordinária ou, sendo o caso, não tendo o devedor invocado eventual prescrição presuntiva que se verificasse.

Quanto a juros de mora, as faturas tinham datas de vencimento que nelas estavam exaradas, funcionando o disposto nos arts. 804.º e 805.º/1 e 2 a) CC, tendo ainda a Ré sido interpelada para cumprir.

Os juros foram, assim, devidamente contabilizados.

O que a Ré não invocou foi a prescrição prevista no art. 310.º d) CC, o que funciona a seu desfavor (por omissão desta defesa), mas não altera a decisão proferida.

Dispositivo

Termos em que decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e manter a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.


Porto, 26.5.2025
Fernanda Almeida
Jorge Martins Ribeiro
Ana Paula Amorim
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[1] Ac. STJ, de 5.6.2018, Proc.10855/15.9T8CBR-A.C1.S1.