DESPACHO SANEADOR
CONHECIMENTO DE EXCEÇÃO PEREMTÓRIA
RECURSO AUTÓNOMO
ABUSO DE DIREITO
Sumário

I – A decisão que, em sede de despacho saneador, aprecia uma exceção perentória, como a prescrição, mesmo que a julgue improcedente, é suscetível de recurso autónomo, sob pena, não sendo interposto, transitar em julgado.
II – Não há abuso do direito se o direito exercido judicialmente pelo reconvinte – e que decorre de um ilegítimo enriquecimento do reconvindo –, além de não se mostrar prescrito, é inequivocamente reconhecido em juízo.

Texto Integral

Processo n.º 98516/22.2YIPRT.P1

Recorrente – A..., Lda.

Recorrida – B..., Lda.

Relator – José Eusébio Almeida

Adjuntos – Manuel Fernandes e Fátima Andrade

Acordam na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório

A..., Lda. apresentou requerimento de injunção em que era requerida B..., Lda., reclamando o pagamento de 34.543,80€, sendo 4.098,13€ de juros vencidos até à apresentação do requerimento e o restante de capital, acrescida dos juros vincendos, da taxa de justiça (153,00€) e o pagamento de 1.500,00€, a título de despesas e honorários de advogado para instauração do procedimento. Pediu, ainda, a condenação da requerida como litigante de má-fé, em valor nunca inferiora 2.500€.

Alegou, em síntese, que durante o ano 2019, a requerente, empresa que se dedica à fabricação de produtos e bens para uso industrial, forneceu produtos à requerida, a pedido desta, tendo emitido as respetivas faturas (N/Fatura ...; N/Fatura ...; N/Fatura ...; Fatura ...; N/Fatura ...; N/Fatura ...; N/Fatura ...; N/Fatura ...; N/Fatura ...; N/Fatura ...; N/Fatura ...; N/Fatura ...; N/Fatura ... ; N/Fatura ...; N/Fatura ...; N/Fatura ...; N/Fatura ...; N/Fatura ...; N/Fatura ... ; N/Fatura ...; N/Fatura ...; N/Fatura ...; N/Fatura ...; N/Fatura ...; N/Fatura ...), que perfazem 28.792,67€, e não foram pagas, apesar da interpelação.

A requerida deduziu oposição, impugnando, excecionando, e reconvindo. Alegou que parte das faturas acham-se integralmente pagas por si, reconhecendo o valor de dívida de fornecimentos prestados e não pagos no montante, apenas, de 17.522,11€. Acrescenta que se apresentou-se à insolvência tendo aquela sido declarada, e aprovado um Plano que estabeleceu um perdão de 50% do valor dos créditos comuns, tendo a pago à requerente o valor global de 10.500,00€, em 27 prestações, ficando, em resultado dos pagamentos, em 18.01.13, o crédito reduzido a 19.783,68€. Nesta data, apresentou a Processo Especial de Revitalização no qual foi aprovado um Plano de Revitalização que previu, novamente, uma redução em 50% do crédito, ou seja, para o valor de 9.891,84€, e fez à requerente entregas mensais no valor global de 30.500,00€. Tudo ponderado, pagou a mais (por referência a esse Plano) a quantia de 20.608,17€ sendo afinal credora desta pelo valor remanescente de 3.086,06€.

A autora replicou. Impugnou a imputação dos alegados pagamentos e excecionou a prescrição do crédito reclamado. Mais declarou desistir do pedido de condenação da ré no pagamento de 1.500,00€, a título de despesas e honorários de advogado para instauração de procedimento de injunção.

Foi proferido despacho saneador, admitindo a reconvenção, julgando improcedente a exceção [A autora entende que o contra crédito da ré se encontra prescrito ao abrigo do disposto no artigo 482.º do Código Civil, segundo o qual o direito à restituição por enriquecimento sem causa prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do enriquecimento. Resulta, porém, da contestação apresentada que a ré que apenas conseguiu apurar e calcular o valor do contra crédito no ano de 2020, ano em que terminou os pagamentos à autora que alega terem excedido o seu crédito sobre a ré em mais de 20.000,00€. Ora, se assim é, até à dedução do pedido reconvencional pela ré, não chegou a decorrer o período prescricional de três anos. Em virtude do exposto, julgo não verificada a exceção de prescrição] fixando o objeto da causa [- O direito da autora a obter da ré o pagamento do preço dos materiais fornecidos. - O direito da ré à compensação do crédito peticionado pela autora com o valor do seu contra crédito sobre a autora, assim como ao pagamento do valor em que tal contra crédito excede o crédito da autora. - A litigância de má fé da ré] e os temas da prova [1. O pagamento parcial pela ré do crédito reclamado pela autora. 2. Os pagamentos feitos pela ré à autora no âmbito do plano de insolvência e a medida em que excedem o crédito da autora] bem como o valor da causa [37.476,86€].

Realizada a audiência, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Face ao exposto, decide-se: 1 – Absolver a R do pedido formulado, por verificação de compensação de créditos; 2 – Condenar a A no pagamento à R da importância de €3127,67 correspondente ao remanescente do pedido reconvencional. 3 – Absolver a R do pedido de litigância de má- fé”.

II – Do Recurso

A autora, inconformada com o decidido, veio apelar. Pretende a revogação da sentença e a sua substituição por acórdão que declare procedente a pretensão inicialmente formulada. Para tanto, formula as seguintes Conclusões:

(…)

A recorrida respondeu ao recurso e sustentou a sua improcedência.

O recurso foi recebido nos termos legais, nada se tendo alterado, nesta sede, ao despacho que, recebendo-o, lhe determinou o efeito e modo de subida. Os autos correram Vistos e nada observamos que obste ao conhecimento do seu mérito, cujo objeto, tendo em conta as conclusões da apelante, se traduz em saber se a) deve ser reapreciada a decisão relativa à matéria de facto; b) se, em razão dessa reapreciação ou independentemente dela, a sentença deve ser revogada, porquanto os valores reclamados pela recorrente não foram pagos ou, pelo menos, a recorrida não pode compensar o créditos, uma vez que ocorre a prescrição do seu crédito e age em abuso do direito.

III – Fundamentação

Da reapreciação da decisão relativa à matéria de facto

Além do cumprimento do ónus decorrente do disposto no artigo 640 do Código de Processo Civil (CPC) a reapreciação da decisão relativa à matéria de facto impõe, necessariamente, que essa reapreciação constitua efetivo objeto do recurso ou, dito de outro modo, esteja incluída nas conclusões, uma vez que estas definem esse objeto. Dito de outro modo, e embora reconhecendo-se alguma maleabilidade jurisprudencial nas exigências impostas ao recorrente que impugna a matéria de facto, pois tal constitui a assunção da prevalência da substância (mérito) sobre a forma, é imposição primeira que a definição do objeto do recurso concretize essa pretensão de reapreciação, ou seja, o recorrente, nas suas conclusões, e como requisito mínimo, terá de identificar que concretos factos que pretende ver alterados.

A leitura das conclusões apresentadas pela apelante revela, com clareza bastante, que ficaram por concretizar os factos pretendidos alterar. A referência ao depoimento testemunhal nas conclusões V, VI e X, não equivale àquela concretização, porquanto a apelante não idêntica, ao menos de modo claro – e ao tribunal de recurso não cabe, nesta sede, uma interpretação da vontade que se revele dúbia – que facto concreto entende, no caso, dever ser aditado. A impugnação da decisão relativa à matéria de facto não comporta a possibilidade de um convite ao aperfeiçoamento e, assim, nos termos dos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do CPC, não há lugar à reapreciação da prova[1], rejeitando-se a alegada pretensão de alteração da decisão relativa à matéria de facto, a qual, necessariamente, se mantém.

III.I - Fundamentação de facto

O tribunal recorrido deu como assente a seguinte factualidade provada:[2]

Factos provados

1 - A autora dedica-se à fabricação de produtos para a indústria de fundição.

2 – Autora e ré desenvolveram ao longo do tempo relações de negócio entre si, tendo a autora fornecido à ré produtos que fabricou e comercializou.

3 - Em 10.08.2007, a requerida apresentou-se à insolvência tendo aquela sido declarada no dia 14.09.2007, no âmbito do processo n.º 433/07.1TYVNG, que correu os seus termos no 1.º Juízo do antigo Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia.

4 - Nesses autos foi reconhecido crédito da a requerente, sobre a requerida, no valor de 60.567,35€

5 - No âmbito daquele processo, foi aprovado um Plano de Insolvência que estabeleceu um perdão de 50% do valor dos créditos comuns – como é o caso do crédito da requerente – e previu o seu pagamento em 12 prestações semestrais sucessivas e crescentes, vencendo-se a primeiros dois anos após a data da Assembleia de Credores que aprovou o Plano.

6 - Para cumprimento do Plano de Insolvência, e entre o mês de abril de 2008 e o mês de janeiro de 2013, a requerida pagou à requerente o valor global de 10.500,00€, em 27 prestações.

7 - Em 18.01.2013, a requerida apresentou um Processo Especial de Revitalização, o qual correu os seus termos no antigo 3.º Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, sob o n.º 134/13.1TYVNG.

8 - No âmbito do processo, foi aprovado e homologado, a 4.06.2013 um Plano de Revitalização que previu, novamente, uma redução em 50% do crédito da requerida[3].

9 - Entre dezembro de 2013 e agosto de 2020, a requerida efetuou, à requerente e por conta desse Plano, entregas mensais, no valor global de 30.500,00€.

10 - A ré não apresentou nos referidos autos qualquer reclamação ou requerimento interposto no âmbito desses processos e antes do seu encerramento de valores pagos a mais.

11 - Após a aprovação do Plano a que se refere a alínea anterior, a autora continuou a vender à ré mercadoria. Nomeadamente, por solicitação da ré, a autora forneceu até final de março de 2020 os produtos que fabricou e comercializou, conforme discriminados nas seguintes faturas, no valor global de 14.583,82€

11.1 N/Fatura ..., datada de 20/12/2019, no valor 6.06€; 11.2 N/Fatura ..., datada de 3/1/2020 no valor de 333,21€; 11.3 N/Fatura ..., datada de 8/1/2020, no valor de 2.100,69€; 11.4 Fatura ..., datada de 14/1/2020, no valor de 246,00€; 11.5 N/Fatura ..., datada de 15/1/2020, no valor de 675,74€; 11.6 N/Fatura ..., datada de 16/1/2020, no valor de 217,98€; 11.7 N/Fatura ..., datada de 21/1/2020, no valor de 2.121,75€; 11.8 N/Fatura ..., datada de 27/1/2020, no valor de 422,20€; 11.9 N/Fatura ..., datada de 30/1/2020, no valor de 1.093,84€; 11.10 N/Fatura ..., datada de 5/2/2020, no valor de 240,47€; 11.11 N/Fatura ..., datada de 7/2/2020, no valor de 369,92€; 11.12 N/Fatura ..., datada de 14/2/2020, no valor de 2.057,73€; 11.13 N/Fatura ..., datada de 20/2/2020, no valor de 547,66€; 11.14 N/Fatura ..., datada de 26/2/2020, no valor de 1.484,79€; 11.15 N/Fatura ..., datada de 2/3/2020, no valor de 611,31€; 11.16 N/Fatura ..., datada de 11/3/2020, no valor de 1.937,00€; 11.17 N/Fatura ..., datada de 11/3/2020, no valor de 117,47€;

12. E, entre abril, maio e junho de 2020 os seguintes, no valor global de 14.208,84€:

12.1 N/Fatura ..., datada de 6/4/2020, no valor de 254,00€; 12.2 N/Fatura ..., datada de 7/4/2020, no valor de 1.194,95€; 12.3 N/Fatura ..., datada de 8/472020, no valor de 2.264,80€; 12.4 N/Fatura ..., datada de 17/4/2020, no valor de 280,44€; 12.5 N/Fatura ..., datada de 29/4/2020, no valor de 2.826,54€; 12.6 N/Fatura ..., datada de 6/5/2020, no valor de 2.886,87€; 12.7 N/Fatura ..., datada de 21/5/2020, no valor de 2.644,56€ e 12.8 N/Fatura ..., datada de 2/6/2020, no valor de 1.856,69€.

13 - A solicitação da ré, foi acordado entre autora e ré, a 28.07.2020, o pagamento da quantia mensal de 1.946,99€, ao dia 15 de cada mês, pelo período de 24 meses, como forma liquidação total da dívida vencida até final de final de março de 2020.

14 - Mais se obrigou, nos termos desse acordo, a ré a liquidar os fornecimentos relativos aos meses de abril, maio e junho de 2020, num montante global de 14.208,84€, em 6 prestações de 2.029,83€ e 1 prestação de 2.029,86€.

15 - Após esse acordo, a ré efetuou os seguintes pagamentos à autora:

15.1 No valor global de 14.625,43€: - Por transferência bancária, de 29/04/2021, do valor de 1.946,49€; - Por transferência bancária, de 28/05/2021, do valor de 1.946,49€, - Por transferência bancária, de 28/05/2021, do valor de 1.946,49€; - Por transferência bancária, de 29/06/2021, do valor de 1.946,49€; - Por transferência bancária, de 30/07/2021, do valor de 1.946,49€; - Por transferência bancária, de 31/08/2021, do valor de 1.946,49€; - Por transferência bancária, de 30/09/2021, do valor de 1.946,49€; Por transferência bancária, de 29/10/2021, do valor de 1.946,49€; - Por transferência bancária, de 01/02/2022, do valor de 1.000,00€.

16 – A ré não pagou à autora os seguintes valores referentes a fornecimento de materiais que lhe foram entregues, que no total perfazem 17.522,11€:

16.1 Parte da fatura n.º ..., quanto a 429,50€; 16.2 A totalidade das faturas: o n.º ..., do valor de 611,31€; o n.º ..., do valor de 1.937,00€; o n.º ..., do valor de 117,47€; o n.º ..., do valor de 254,00€; o n.º ..., do valor de 1.194,95€; o n.º ..., do valor de 2.264,80€; o n.º ..., do valor de 280,44€; o n.º ..., do valor de 2.826,54€; o n.º ..., do valor de 2.886,87€; o n.º ..., do valor de 2.644,56€; o n.º ..., do valor de 1.856,69€, no valor global de 17.304,13€; 16.3 uma Nota de Débito emitida pela requerente no valor de 217,98€.

17 - A autora enviou à ré, que recebeu, a 2 de março de 2022, o e-mail, junto aos autos nos termos do qual, além do mais, declarava não ter recebido os pagamentos em falta, solicitando que a ré retomasse os pagamentos acordados, de imediato.

III.II – Fundamentação de Direito

O tribunal recorrido decidiu a presente ação com os fundamentos que, com síntese, transcrevemos e sublinhamos: “(...) a R procedeu à entrega à A das importâncias atrás identificadas nos factos assentes, divergindo as partes quanto à imputação e efeitos dessas entregas, atento o Plano de Revitalização aprovado à R e a continuação dos fornecimentos da A à R após esse Plano. (...) O Plano de revitalização (como antes o Plano de insolvência) com a sentença de homologação produz as alterações dos créditos introduzidas pelo plano, vinculando os respetivos credores mas não visa nem tem como efeito premiar os devedores relapsos ou incumpridores, antes apela a um esfoço destes comprimindo os seus direitos na perspetiva da viabilização da empresa. (...) ficou demonstrado que a R não cumpriu os termos do primeiro Plano de Revitalização. Mas, sem que tenha ficado qualquer interpelação da A nessa altura para cumprir, ficou a R sujeita a um segundo processo no qual foi aprovado e homologado Plano de revitalização com novo perdão de 50% do capital em dívida. Por força dos dois processos o capital em dívida pela R à A ficou assim reduzido, até ao acordo referido em 12 e 13 (...) a R pagou em excesso a quantia de €3127,67 que corresponderia a um crédito sobre a A por esse valor. De facto, a R pagou mais do que estava obrigada (embora menos do que o preço acordado): a forneceu à R bens que esta não pagou – não pagou a parte do preço abrangida pelos dois perdões de que beneficiou – mas pagou a mais do que aquilo que,de acordo com o Plano de Revitalização aprovado no segundo processo, estava obrigada. (...) Como então qualificar juridicamente o pagamento feito em excesso: - um pagamento indevido a considerar segundo as regras de enriquecimento sem causa? ou - um pagamento em cumprimento de uma obrigação natural? (...) não se deve considerar ter-se tratado do cumprimento de uma obrigação natural: havia um Plano judicialmente homologado a que a A estava vinculado e a satisfação dos seus créditos para além desse plano era contrário ao princípio da igualdade de tratamento dos credores da mesma espécie da A (credores comuns). O pagamento do capital inicial em dívida ao arrepio do que fora determinado em sentença judicial não corresponde a uma qualquer dever moral ou social de justiça, antes é contrário a um dever de justiça com carácter vinculativo decorrente da homologação judicial do Plano. Tais pagamentos devem, de outro modo, ser tratados no quadro do instituto do enriquecimento sem causa (...) Alegou a A que o direito a esse crédito não pode ser objeto de compensação porque está prescrito, mas tal exceção foi já julgada improcedente, como se viu, no despacho saneador. De todo o modo sempre se dirá que se a invocada prescrição obstaria a que a R reclamasse da A autonomamente o seu crédito já não impedia que pudesse invoca-lo como exceção ao direito reclamado pela A, por via da compensação até ao limite do seu débito perante a A. (...)”.

Apreciemos.

Importa, antes de mais, clarificar a questão da alegada prescrição do direito da recorrida, exercido em sede reconvencional, fundada no decurso do prazo de três anos para a invocação do enriquecimento sem causa. Ora, independentemente da bondade deste instituto na decisão da ação/reconvenção (o que apreciaremos mais adiante) a exceção da prescrição foi apreciada em sede de despacho saneador e, mesmo tendo sido julgada improcedente, impunha a interposição de recurso autónomo (644, n.º 1, alínea b) do CPC), sob pena de transitar em julgado, interposição aquela que não ocorreu. Não tendo sido interposto recurso, transitou a decisão que declarou não se verificar a exceção perentória da prescrição[4].

Isto dito e mantida a decisão relativa à matéria de facto, pouco haverá a acrescentar. Vejamos.

A apelante sustenta a sua discordância, essencialmente, em dois aspetos, ainda que interligados: a recorrida não pagou a mais, pois nem sequer pagou o preço (dos fornecimentos) e tudo o que pagou teve como causa a compra e venda; por isso, não houve enriquecimento sem causa por parte da recorrente.

Salvo o devido respeito, a apelante incorre num erro interpretativo de base, atinente à causa da dívida. Sem dúvida que as partes celebraram diversos contratos de compra e venda, ou de fornecimento, através dos quais a apelante entregou produtos/bens à apelada e esta devia pagar-lhos. Essa é a causa primeira da contraprestação devida pela compradora, mas é uma causa mediata, ou que se transmuta em mediata, a partir da ocasião em que, aprovados os planos em sede de Insolvência ou de Processo Especial de Revitalização (PER), a dívida se altera e consolida em moldes (montante e prazos) distintos dos que resultariam do contrato de compra e venda. Independentemente de, dogmaticamente, estarmos perante um verdadeira novação (a que poderia faltar uma cláusula de irreversibilidade), é indubitável que a dívida deixou de ser a que existia antes da aprovação dos planos, cuja existência a apelante aceita e que, até independentemente da sua concordância, sempre a vinculariam. A causa imediata, agora, é, passou a ser, a aprovação, homologada, dos planos de pagamento. Dito de outro modo, a recorrida deixou de dever certa quantia, porque passou a dever outra (e inferior) a pagar mais dilatadamente e de acordo com os planos homologados.

O que acabámos de dizer é assinalado na sentença, em moldes que, por concordância, nos dispensam de mais ou complementares considerações.

Assim, a recorrida deixou de dever à recorrente o que (antes) devia, o que devia antes dos acordos homologados em sede de Insolvência e de PER. E, feitas as contas, é inequívoco que a recorrida pagou mais do que devia, atendendo à “nova” (ou novada) dívida.

Em linguagem matemática a questão clarifica-se. Depois dos acordos/planos aqui levados à matéria de facto, a recorrida ficou a dever X; porém, pagou Z (X + Y). Pagou a mais Y.

A simplificação precedente clarifica que não estamos perante uma obrigação natural (artigo 402 do Código Civil – CC), mas perante um enriquecimento sem causa por parte da recorrente (artigo 473 do CC), na parte (Y) que excedeu a dívida (X): houve enriquecimento, vantagem patrimonial, da apelante, à custa do que a recorrida pagou em excesso e sem que houvesse fundamento legal ou contratual, causa justificativa, para aquela vantagem patrimonial.

Resta acrescentar um nota sucinta a propósito do invocado abuso do direito, instituto que sempre seria de conhecimento oficioso, mas, naturalmente, se os factos o integrassem. Ora, tendo o direito da reconvinte fundamento no enriquecimento injustificado da recorrente, torna-se evidente – e sem necessidade de acrescidas considerações – que não ocorre abuso do direito. Efetivamente, a reconvinte só tinha de pagar o valor correspondente, não aos montantes pecuniários resultante do(s) contrato(s), mas ao que veio a resultar dos planos acordados (e homologados) em sede insolvencial e em sede de PER.

Por tudo, o recurso revela-se improcedente.

As custas do recurso, atento o decaimento da apelante, são por esta devidas – artigo 527 do CPC.

IV – Dispositivo

Pelo exposto, acorda-se na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e, em conformidade, confirma-se a sentença recorrida.


Porto, 26.06.2025
José Eusébio Almeida
Manuel Domingos Fernandes
Fátima Andrade
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[1] Como salienta Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida (Direito Processual Civil, Volume II, 4.ª Edição, Almedina, 2025, pág. 547) “a omissão (total) do dever (ónus) que impende sobre o recorrente de indicar os concretos pontos de facto (cuja alteração pretende, bem como o sentido e os termos dessa alteração) – omissão essa geradora da rejeição liminar do recurso, sem qualquer convite prévio ao aperfeiçoamento das alegações”.
[2] Escrevendo, quanto aos factos não provados: “Não se provou qualquer outro facto de relevo”.
[3] Evidencia-se o lapso decorrente da referência à requerida, quando se pretendeu escrever autora/ requerente (recorrente).
[4] Nesse sentido, é claro o entendimento de António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 8.ª Edição Atualizada, Almedina, 2024, pág. 284): “(...) 0 atual CPC não contém qualquer norma que delimite o conceito de decisão que incide sobre o “mérito da causa” (...) Na falta desta definição, revela-se importante a intervenção do elemento histórico para concluir que conhece do mérito da causa o despacho saneador (mesmo sem pôr termo ao processo, nos termos da al. a)), que julga procedente ou improcedente algum ou alguns dos pedidos relativamente a todos ou a algum dos réus ou que julga procedente ou improcedente alguma exceção perentória, como a caducidade, a prescrição, a compensação, a nulidade ou a anulabilidade. Assim, sempre que o despacho saneador tenha esse conteúdo, o respetivo segmento decisório é suscetível de impugnação mediante a interposição de recurso de apelação, respeitados que sejam os demais pressupostos formais, sob pena de transitar em julgado” (sublinhados nossos).