AÇÃO DE DESPEJO
LEGITIMIDADE ATIVA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
SUSPENSÃO DE PAGAMENTO DE RENDA
Sumário

I - A legitimidade activa para instaurar a acção de despejo não está dependente da alegação e prova por parte do autor da sua qualidade de proprietário em relação ao arrendado, mas sim da sua posição de senhorio no contrato de arrendamento.
II - O arrendatário apenas pode suspender o pagamento de toda a renda quando se trate de não cumprimento do senhorio que exclua totalmente o gozo da coisa; no caso de privação parcial do gozo, imputável ao senhorio, o locatário pode tão-só suspender, proporcionalmente, o pagamento de parte da renda.
III - As questões novas não podem ser apreciadas no recurso, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dessa impugnação, com supressão do duplo grau de jurisdição e inerente perturbação no princípio basilar do contraditório, no âmbito das decisões judiciais.

Texto Integral

Processo: 4603/24.0T8VNG.P1

ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO (3.ª SECÇÃO CÍVEL):

Relator: Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
1.º Adjunto: José Eusébio Almeida
2.º Adjunto: José Nuno Duarte

RELATÓRIO.
A... – UNIPESSOAL LDA, sociedade unipessoal por quotas, com o NIPC ..., sediada na Rua ..., ..., em ..., Coimbra, intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra AA, solteira, titular do NIF ... e com residência na Avenida ..., rés-do-chão, Hab. ..., Entrada ..., Piso 0, em ..., Vila Nova de Gaia.
Pediu que, com a procedência da acção:
A) Seja decretada a resolução do contrato de arrendamento identificado nos presentes autos pela falta de pagamento das rendas nos termos do número 3 do artigo 1083º do CC;
B) A condenação da Ré a despejar o arrendado, entregando-o à A. livre e desocupado de pessoas e bens;
C) Seja a Ré condenada no pagamento das rendas vencidas referentes aos meses de Agosto a Dezembro de 2023 e Janeiro a Maio de 2024, no montante global de € 14.000,00, acrescido de juros de mora, calculados à taxa legal, desde a data dos respetivos vencimentos, até à presente data no valor de €240,27, e das rendas que se vencerem, em singelo, até ao trânsito em julgado da decisão, e elevadas ao dobro desde tal data até à restituição efetiva do locado.
Para o efeito e em síntese, alegou que, âmbito de contrato de locação financeira imobiliária, detém a fracção autónoma designada pela letra “C”, destinada a habitação do tipo T-dois, no rés-do-chão e com um lugar de garagem, sita na Avenida ..., na freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, a qual deu de arrendamento à R., por escrito celebrado e com data de início de vigência a 1/6/2023, mediante a renda mensal no valor de € 1.400,00.
Sucedeu, porém, que a R., desde o mês de Agosto (inclusive) de 2023 até à presente data, ininterruptamente, não efectua o pagamento dessa renda, encontrando-se em dívida no valor total de € 14.000,00, apesar de ter sido interpelada pela A., em vão, para proceder ao pagamento das rendas em dívida bem como para a resolução do contrato de arrendamento e consequente desocupação e entrega do locado.
A R. ofereceu contestação e nela, em primeiro lugar, arguiu a excepção da ilegitimidade activa, pois a A. não é proprietária do imóvel, a qual não consta nos presentes autos como autora.
Para além disso, impugnou parte da matéria invocada na petição inicial e afirmou que no dia 1/6/2023, quando foi assinado o contrato de arrendamento, foi entregue pela Ré a quantia de € 2.800.00 a título de pagamento de renda dos meses de Junho e Agosto de 2023 e a quantia de € 2.800.00 referente à caução exigida, como foi mencionado no contrato, e que houve incumprimento por parte da A.: o lugar de garagem nunca foi colocado à disposição da Ré, tal como as chaves da caixa de correio; o ar condicionado existente no imóvel nunca funcionou, tal como o frigorifico; algumas portas desintegraram-se das paredes onde estavam colocadas; as paredes e tectos do imóvel começaram a padecer de humidade; o piso de madeira nas zonas mais afetadas pela humidade começou a levantar; a placa de indução dias após a sua utilização simplesmente avariou; a caldeira está sistematicamente a avariar; a fechadura da porta da cozinha que dá acesso à marquise nunca funcionou, tendo a Ré que passar pela varanda do quarto para ter acesso à sua máquina de lavar; o vaso sanitário desde o início que se encontra danificado e a canalização existente na zona da cozinha e da casa de banho está constantemente a entupir; e a humidade no imóvel é de tal ordem que a água escorre pelas paredes, fazendo inclusive que partes do chão levantem, o que causa sérios problemas de saúde à Ré e à bebé desta, que tem apenas 4 meses.
Concluiu que existe privação parcial do gozo da fracção destinada a habitação, justificando para a R. a faculdade de recusar o pagamento da renda enquanto o senhorio não cumprir a obrigação de lhe assegurar o gozo em falta.
A A. emitiu pronúncia sobre as excepções deduzidas pela contraparte, pugnando pela respectiva improcedência; subsidiariamente, para suprir a eventual ilegitimidade activa, requereu a intervenção principal provocada de Banco 1..., CRL.
Foi realizada a audiência prévia, na qual a tentativa de conciliação se frustrou, e foram debatidos os contornos do litígio e as principais questões a apreciar, atenta a possibilidade de se entender estarem reunidos os elementos necessários para a apreciação imediata do mérito da causa.
Seguidamente, conclusos os autos, foi proferido saneador-sentença que, após fixar o valor da causa em € 56.000,00, indeferiu à excepção dilatória da ilegitimidade activa e, julgando a acção parcialmente procedente:
a) declarou resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre a autora e a ré, por falta de pagamento da renda;
b) condenou a ré a entregar à autora a fracção autónoma identificada na alínea a), objecto do referido contrato de arrendamento, livre e desocupada de pessoas e bens;
c) condenou a ré a pagar à autora a quantia de 14.000,00 euros;
d) condenou a ré a pagar à autora a quantia mensal de 1.400,00 euros, desde Junho de 2024 e até à efectiva entrega da fracção autónoma identificada na alínea a) dos factos provados, sendo que, após o trânsito em julgado da presente sentença, caso a ré não proceda à entrega do imóvel livre de pessoas e bens, aquele montante será elevado ao dobro, e
e) absolveu a ré do demais peticionado (ou seja, do pedido de condenação no pagamento de juros).
Dessa decisão, inconformada, a R. interpôs recurso, admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Rematou com as conclusões seguintes:
(…)
A A. ofereceu resposta ao recurso, na qual integrou as conclusões que se transcrevem de seguida:
(…)

*
OBJECTO DO RECURSO.
Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões, as quais, assim, definem e delimitam o objeto do recurso (arts. 635.º/4 e 639.º/1 do CPC).
Assim sendo, importa em especial apreciar, seguindo a ordem extraída das conclusões do recurso:
a) se está verificada a excepção dilatória da ilegitimidade activa, por a acção não ter sido interposta pela proprietária do imóvel dado de arrendamento (conclusões 1 a 12);
b) se, mercê da procedência da excepção do não cumprimento do contrato, assistia à R. o direito de suspender o pagamento da renda (conclusões 13 a 73); e
c) se o pagamento da caução de € 2.800,00 pela R. terá de ser considerado para efeitos de acerto de contas entre as partes (conclusões 74 e 75).
*
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Em sede de factualidade relevante, alguns factos alegados na contestação não foram atendidos, os quais a R. volta a convocar no recurso e cuja apreciação deve fazer-se mais adiante.
Assim, sem prejuízo da subsequente consideração dessa alegação, estão provados os seguintes factos, de acordo com a decisão recorrida:
a) Encontra-se descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, freguesia ..., com o número ...-C, a fracção autónoma designada pela letra C, no piso zero (rés-do-chão) – designada por “...”, com acesso pela Entrada ... do edifício sito na Avenida ..., destinada a habitação, com varanda e no piso menos dois da cave um estacionamento não fechado, identificado com a designação “...”, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...;
b) A aquisição da propriedade da fracção autónoma identificada na alínea a) está registada a favor da “Banco 1..., CRL”, através da inscrição com a ap. ..., de 25 de Maio de 2023;
c) A “Banco 1..., CRL”, por documento datado de 25 de Maio de 2023, na qualidade de locadora, celebrou com a autora “A... – Unipessoal, Lda.”, na qualidade de locatária, o contrato de locação financeira imobiliária n.º ..., junto como documento 3 da petição inicial, cujo teor se dá aqui por reproduzido, tendo como objecto a fracção autónoma identificada na alínea a);
d) Por via do referido contrato de locação financeira imobiliária, ficou acordado que o imóvel seria afecto à habitação, visando a prossecução do objecto social da autora, nomeadamente, o arrendamento de imóveis;
e) Por documento datado de 1 de Junho de 2023, foi celebrado entre a autora e a ré um acordo denominado “Contrato de Arrendamento para Fim Habitacional com Prazo Certo”, nos termos e condições constantes do documento n.º 4 junto com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por reproduzido;
f) Nesse acordo, a autora declarou dar de arrendamento à ré, e esta declarou tomar de arrendamento para si, mediante retribuição, a fracção autónoma identificada na alínea a), pelo prazo de três anos, renovável por períodos anuais, com início a 1 de Junho de 2023 e termo a 31 de Maio de 2016;
g) Foi convencionado o pagamento de uma renda mensal no valor de 1.400,00 euros, com vencimento até ao dia oito do mês a que disser respeito, a pagar por transferência bancária para o IBAN ...;
h) Nos termos da Cláusula Quarta do referido acordo “A renda correspondente ao mês de Agosto de 2023 vence-se no primeiro dia útil do referido mês de Agosto e as restantes assim sucessivamente”;
i) A Cláusula Quinta do mesmo acordo tem o seguinte teor: “Para garantia do bom e pontual cumprimento das obrigações decorrentes do presente contrato, a arrendatária presta duas cauções no valor de €2.800,00 (…), atuando a caução em eventuais danos inferiores à mesma, sendo que todos os demais prejuízos, de valor superior, são considerados autonomamente e da responsabilidade da arrendatária.
A caução será devolvida pela senhora, no termo do contrato, desde que se mostrem cumpridas todas as obrigações e pagamentos a que a arrendatária está vinculada.”;
j) A Cláusula Sexta diz o seguinte: “O arrendamento ora celebrado engloba todos os móveis existentes na fração autónoma acima melhor identificada, constando os mesmos da relação de bens anexa ao presente contrato.”;
k) A Cláusula Sexta tem o seguinte teor: “As chaves do local arrendado são facultadas na presente data, pela primeira à segunda, tendo sido conferida por ambos os contraentes o atual estado de conservação da fração.”;
l) Na data referida na alínea e) a ré pagou à autora o valor de duas rendas mensais, ou seja, o montante de 2.800,00 euros, correspondente aos meses de Junho e Julho de 2023, bem como entregou a quantia de 2.800,00 euros, a título de caução, nos termos previstos na Cláusula Quinta;
m) A ré não pagou a renda relativa ao mês de Agosto de 2023, nem as que se venceram posteriormente;
n) A autora, a 31 de Janeiro de 2024, requereu a Notificação Judicial Avulsa da ré, nos termos e com os fundamentos que constam do documento n.º 5 da petição inicial, os quais aqui damos por reproduzidos, notificando-a da resolução do contrato de arrendamento referido nas alíneas e) a k), por falta de pagamento de rendas desde Agosto de 2023, para desocupar o locado, deixando-o livre de pessoas e bens, para pagar a quantia de 8.400,00 euros, a título de rendas vencidas, e as rendas que se vencessem após aquela data e até à entrega efectiva do locado;
o) A Notificação Judicial Avulsa assumiu o n.º 987/24.8T8VNG, do Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 1, e a ré foi notificada a 23 de Abril de 2024;
p) A ré, na sequência dos factos referidos nas alíneas n) e o), não procedeu ao pagamento da quantia em dívida, nem entregou o imóvel à autora, livre de pessoas e bens;
q) A ré continua a residir na fracção autónoma designada pela letra C, identificada na alínea a);
r) A presente acção deu entrada em juízo a 28 de Maio de 2024.
Por outro lado, não foram considerados factos não provados.
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SOBRE A ILEGITIMIDADE ACTIVA
A respeito da legitimidade, dispõe o art. 30.º do CPC que o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer (nº1).
Acrescenta que o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha (nº2).
Finalmente, menciona que na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor (nnº3).
Deste modo, a lei pretende significar que, ressalvadas situações pontuais, nas quais o pressuposto processual é regido por outras disposições legais, a legitimidade das partes é aferida em função da relação material controvertida configurada na petição inicial.
No caso dos autos, essa relação diz respeito à relação de arrendamento, certo que a A. pretende a confirmação judicial da sua cessação, por resolução fundada no incumprimento da contraparte.
Em conformidade, aliás, com o disposto no art. 14.º/1 do NRAU, aprovado pela Lei n.º6/2006, de 27 de Fevereiro, segundo a qual, a ação de despejo destina-se a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação e segue a forma de processo comum declarativo.
Ora, parece evidente que a relação de arrendamento diz apenas respeito a quem nela figura como senhorio e como arrendatário, sem cabimento para a intervenção processual do proprietário que não tenha participado na celebração do contrato.
Trata-se, no fundo, de estabelecer a plena correspondência entre o plano substantivo e o plano do processo: se as vicissitudes do arrendamento respeitam ao senhorio e ao arrendatário, são exactamente as mesmas pessoas que devem figurar na acção como autor e réu.
E assim se explica que, segundo o art. 14.º do NRAU, se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito, que são contadas a final (nº4).
Aditando o nº5 que em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato, devendo, em caso de deferimento do requerimento, o juiz pronunciar-se sobre a autorização de entrada no domicílio, independentemente de ter sido requerida, aplicando-se com as necessárias adaptações os artigos 15.º-J, 15.º-K e 15.º-M.
De modo que, todas as referências legais a respeito das partes na acção de despejo reportam-se ao senhorio e ao arrendatário, independentemente da qualidade de titular do direito de propriedade.
É incompreensível, pois, o fundamento legal, doutrinal ou jurisprudencial do qual a recorrente extrai a asserção de que o proprietário tem necessariamente de intervir no lado activo da instância de despejo.
A este respeito, a doutrina esclarece que “a acção [de despejo] deve em princípio ser proposta, naturalmente, por quem tenha no contrato a posição de senhorio contra quem nele figure como arrendatário (…) observadas as modificações subjectivas operadas no decurso da vigência do contrato” (cfr. J. Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 2.ª ed., p. 957).
Para completar que “a regra geral da legitimidade negocial para prestar arrendamento é, naturalmente, a de que estará para tal legitimado o titular do gozo do imóvel que, pelo contrato, se obriga a proporcionar à contraparte”, aqui cabendo “o proprietário (art. 1305.º CC), o usufrutuário (art. 1446.º CC), ou o fiduciário (art. 2290.º-1 CC), entre outros” e incluindo “o próprio arrendatário” (cfr. J. Pinto Furtado, Ob. cit., p. 313).
Na verdade, o locatário na locação financeira pode ceder a outrem o gozo do bem, embora com obrigação de comunicar ao locador, dentro de 15 dias, a cedência do gozo do bem, quando permitida ou autorizada nos termos da alínea anterior (art. 10.º/1, al. h), do DL n.º149/95, de 24 de Junho, sucessivamente alterado), tanto mais que lhe é facultado exercer, na locação de fracção autónoma, os direitos próprios do locador, com excepção dos que, pela sua natureza, somente por aquele possam ser exercidos (art. 10.º/2, al. e), do DL nº149/95, de 24-6).
No entanto, do que se cuida, face a estas disposições legais, é já da legitimidade material para dar de arrendamento e, portanto, para assumir, validamente, no momento da celebração do contrato, a posição de senhorio.
Em qualquer caso, certo é que, celebrada e posta em execução a relação jurídica de arrendamento, são os efectivos titulares dessa relação, o senhorio e o arrendatário, as partes legítimas para, no plano processual, discutir as questões inerentes à sua possível cessação, independentemente da legitimidade material para a celebração do contrato, que só releva, a montante, na validade deste ou na observância dos deveres relativos à locação financeira, atinente, somente, aos respectivos contraentes.
Neste particular, salienta a doutrina que “uma coisa é, de facto, saber se na acção de indemnização estão em juízo os sujeitos do contrato ou do acto jurídico que serve de fundamento à pretensão do juízo; e outra, muito diferente, é a de saber se o contrato foi efectivamente realizado, ou o foi validamente”, sendo certo que apenas a primeira, “relativa à titularidade dos sujeitos da pretensão, interessa à legitimidade das partes; todas as restantes entram já na órbitra do mérito da causa” (cfr. A. Varela, M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil. 2.ª ed., p. 131).
E por isso que, segundo a jurisprudência, “a legitimidade activa para instaurar a acção de despejo não está dependente da alegação e prova por parte do senhorio da sua qualidade de proprietário em relação ao arrendado, mas sim da sua qualidade de “senhorio”, visto que na acção de despejo o que está em causa é a relação obrigacional e contratual senhorio versus inquilino” (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/10/2019, processo 616/19.1YLPRT.L1-2, relator Vaz Gomes, disponível na base de dados da DGSI em linha).
Improcedem, pois, por manifesta ausência de fundamento, as conclusões 1 a 12 do recurso.
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SOBRE A EXCEPÇÃO DO NÃO CUMPRIMENTO DO CONTRATO
Com a mesma evidência que, segundo pensamos, se impõe concluir que as vicissitudes da relação do arrendamento urbano apenas podem ser discutidas, no processo, pelos sujeitos do contrato, também nos parece óbvio que, caso o inquilino se mantenha na fruição do imóvel arrendado, não lhe é lícito suspender unilateralmente e na totalidade o pagamento da respectiva renda.
É certo que, de acordo com o que dispõe o art. 428.º/1 do Cód. Civil, se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.
Todavia, se as obrigações principais impostas ao senhorio assentam na entrega da coisa locada e em assegurar o gozo dela para os fins a que se destina (art. 1031.º do CC), do lado do arrendatário o dever essencial que do contrato emerge é o do pagamento da renda (art. 1038.º/al. a) do CC).
Ora, se a obrigação que recai sobre o senhorio continua a ser observada, por imperfeita que se apresente, através da concessão da fruição relativa ao imóvel, que continua a ser utilizado pelo locatário, é manifesto que este não pode recusar na íntegra o cumprimento do dever principal que a lei prevê como contrapartida daquela fruição.
Desde logo, porque não é possível dizer, nos termos exigidos pelo citado art. 428.º/1 do CC, que o locador não efectuou a prestação que lhe cabe.
Por outro lado, considerando que, de outro modo, mantendo o inquilino a detenção e aproveitamento possível do prédio, sem assegurar simultaneamente o pagamento de qualquer valor, estaria a forçar, por sua exclusiva vontade, a alteração do contrato celebrado de arrendamento para comodato.
Infringindo-se, dessa forma, a regra essencial de que o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei (art. 406.º/1 do CC).
Com efeito, só o comodato configura contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir (art. 1129.º do CC), ao passo que na locação uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, necessariamente, mediante retribuição (art. 1022.º do CC).
Em acréscimo, como reconhece a recorrente, para que seja “invocada validamente”, a excepção do não cumprimento do contrato por parte do excipiens depende do seu exercício “em conformidade com a boa fé” (cfr. J. Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, p. 335).
O que supõe, desde logo, o respeito pelo princípio da proporcionalidade no cumprimento das obrigações contratuais.
Razões pelas quais, no âmbito da modalidade da locação que constitui o arrendamento, mesmo perante a alegação e a prova de que existam problemas no prédio locado (respeitantes, como sucede no caso dos autos, à garagem, à caixa do correio, à qualidade de várias das suas componentes móveis e das condições de utilização), que perturbem em parte, sem o comprometer, o uso pelo arrendatário, este apenas poderá reduzir proporcionalmente o montante da renda a pagar ao senhorio.
Trata-se, de resto, de uma orientação com manifestação legal no regime previsto no art. 1040.º/1 do Cód. Civil, pois se, por motivo não atinente à sua pessoa ou à dos seus familiares, o locatário sofrer privação ou diminuição do gozo da coisa locada, haverá lugar a uma redução da renda ou aluguer proporcional ao tempo da privação ou diminuição e à extensão desta.
E cuja defesa se mostra consolidada na doutrina e na jurisprudência.
Explicando-se, a este respeito, que quando “o locatário paga a renda e o locador não repara as deteriorações do imóvel que é obrigado a garantir, aquele pode suspender o pagamento da renda (de toda a renda) quando se trate de não cumprimento do locador que exclua totalmente o gozo da coisa; no caso de privação parcial do gozo, imputável ao senhorio, o locatário apenas poderá suspender o pagamento de parte da renda” (cfr. J. Calvão da Silva, Ob. cit., p. 332, citando o Acórdão do STJ de 11/12/1984).
Tal como se afirma que “no caso do cumprimento parcial ou defeituoso, o alcance da exceptio deve ser proporcionado à gravidade da inexecução. Daqui decorre que a inexecução parcial ou à execução defeituosa de uma das partes de um contrato bilateral só poderá normalmente ser oposta uma recusa de prestar também em termos meramente parciais” (cfr. José João Abrantes, A Excepção de não cumprimento do contrato, p. 118).
Ao passo que a jurisprudência vem decidindo que:
● “para que o inquilino possa deixar de pagar a renda com base na excepção de não cumprimento do contrato pelo senhorio, tem de alegar e provar que ficou privado do gozo do locado e que existe um nexo de causalidade entre a privação desse gozo e a falta de pagamento da renda” (cfr. Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 1/6/2023, processo 6928/22.0T8VNG-A.P1, relator Ana Vieira, disponível na citada base de dados);
● “não existe privação do gozo da coisa locada se o inquilino continua a utilizá-la para sua habitação permanente, ainda que sem condições de habitabilidade” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4/6/2013, processo 858/12.0TJPRT.P1, relator Maria Amália Santos, acessível em jurisprudência.pt);
● “em matéria de locação, mantendo-se o inquilino no gozo e fruição plena do locado, a exceção do não cumprimento do contrato resulta dificilmente aplicável”, pois “a prossecução do princípio de proporcionalidade, na procura de um equilíbrio das prestações a cargo dos contratantes, aponta, em termos gerais, para a primazia da opção por uma redução da renda a pagar caso o locatário sofra de privação ou diminuição do gozo da coisa, nos termos do artigo 1040.º do Código Civil” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/5/2021, processo 10990/18.1T8PRT.P1, relator José Igreja Matos, disponível na base de dados da DGSI em linha);
● “no contexto de um contrato de arrendamento para habitação, a invocação da exceção de não cumprimento por parte do inquilino para sustentar a recusa do pagamento da renda pressupõe a demonstração da total impossibilidade de residir no locado, por falta de condições de habitabilidade do mesmo”, pelo que, “não se verificam os pressupostos da mencionada exceção se se demonstrou que não obstante a verificação de deficiências no locado, o inquilino ali se manteve a residir” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/9/2024, processo 6150/23.8T8SNT-A.L1-7, relator Diogo Ravara);
● “a circunstância de o locado, por força de vícios ou patologias supervenientes, não vier a proporcionar boas condições de habitabilidade, a exceptio apenas é de admitir se o arrendatário ficar privado, total ou parcialmente, do gozo do locado, mas já não o será se, a despeito de tais patologias ou vícios, o arrendatário permanecer no gozo do mesmo, designadamente se aí continuar a habitar, assim como o respectivo agregado familiar”, visto que, em tais condições, a falta de pagamento da renda por parte do arrendatário, a coberto da alegada exceptio, mostra-se injustificada e constitui justa causa de resolução do contrato de arrendamento por parte do senhorio” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 3/3/2016, processo 328/14.2T8VCT.G1, relator Jorge Seabra, disponível na citada base de dados);
● “No caso de privação parcial do gozo do prédio, por causa não imputável ao locatário, tem este o direito de ver reduzida a parte proporcional da renda”, como “afloração do princípio de excepção de não cumprimento do contrato”, e daí que “a exceptio pode ser invocada pelo locatário quando ocorra incumprimento parcial da correspectiva obrigação por parte do locador. Agora o que se exige também, o que a boa fé postula é que a privação parcial do uso seja relevante e que haja adequação entre a ofensa do direito e o exercício da excepção” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/9/2009, processo 375/1999.C1.S1, relator Alberto Sobrinho, disponível na mesma base de dados).
À luz destas regras, verifica-se no caso dos autos que foram alegadas várias deficiências na prestação a cargo do senhorio, desde a impossibilidade de acesso à garagem e à caixa do correio, até à falta de funcionamento do ar condicionado e do frigorifico, passando pelas avarias sistemáticas na placa de indução e na caldeira, tal como a crescente humidade nas paredes e no tecto.
Reconhecendo a R. e recorrente, no entanto, que até ao momento não conseguiu arranjar outra habitação, não obstante já tenha feito inúmeros esforços nesse sentido (art. 85 da contestação), nada excluindo, pois, que ela permaneça na fruição do imóvel arrendado nas componentes essenciais de habitação, de alimentação e de descanso.
Em consequência, ainda que lograsse demonstrar todos os defeitos que imputou à prestação a cargo do senhorio, sempre lhe estaria vedada, atento o princípio da boa fé, subjacente à excepção do não cumprimento do contrato, deixar de pagar a totalidade da renda, ininterruptamente, durante cerca de um ano, com o pretexto do disposto no art. 428.º do Cód. Civil e como se tivesse outorgado um contrato de natureza gratuita.
Improcedem, por isso, as conclusões 13 a 73 do recurso.
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SOBRE A COMPENSAÇÃO COM O VALOR DA CAUÇÃO.
Pretende a recorrente, em último lugar, que este Tribunal da Relação do Porto decida que o pagamento da caução de € 2.800,00 pela R. seja considerado para efeitos de acerto de contas entre as partes.
Dois motivos essenciais, porém, concorrem no sentido da inviabilidade de semelhante pretensão.
Em primeiro lugar, para fazer valer o seu eventual crédito, a R. teria, no âmbito da contestação, de apresentar o seu pedido mediante reconvenção, nos termos do art. 266.º/2, al. c), do CPC.
Com efeito, quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor, deve exercer esse direito através de pedido reconvencional, de acordo com aquele preceito legal.
Para além disso, e decisivamente, porque a R. não suscitou, por essa ou por qualquer via, a questão do acerto de contas com o crédito por rendas da contraparte perante o tribunal recorrido, nada referindo a esse respeito nos seus articulados em primeira instância.
Razão pela qual, ao apresentar essa pretensão, pela primeira vez, em sede de tribunal de recurso, está a suscitar uma questão nova.
Todavia, os recursos não constituem meio processual próprio para a invocação e resolução de questões novas.
Como salienta a jurisprudência, “as questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos: destinam-se a reapreciar questões e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprir um ou mais graus de jurisdição, prejudicando a parte que ficasse vencida” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/10/2020, processo 4261/12.4TBBRG-A.G1.S1, relator Juiz Conselheiro Ilídio Sacarrão Martins, acessível na base de dados da DGSI em linha).
Tal como vem preconizando este Tribunal da Relação do Porto: “na medida em que os recursos visam por via da modificação de decisão antes proferida, reapreciar a pretensão dos recorrentes por forma a validar o juízo de existência ou inexistência do direito reclamado, está vedado ao tribunal de recurso apreciar as questões novas antes não suscitadas nem apreciadas pelo tribunal a quo, nos termos do artigo 608º nº 2 do CPC, salvo se de conhecimento oficioso” (cfr. Acórdão de 10/1/2022, processo nº725/17.1T8VNG.P1, relator Fátima Andrade, também disponível em dgsi.pt).
Na verdade, no caso dos autos, estão verificados os dois fundamentos materiais subjacentes à proibição de invocação e conhecimento de matérias novas, que não sejam de conhecimento oficioso, no âmbito do recurso: o princípio da preclusão, impedindo a parte de suprir faltas de acção, no momento processual próprio, imputáveis à sua negligência, por um lado e, por outro, a finalidade associada aos recursos, que se destinam a reapreciar questões, com o propósito de impedir a supressão do duplo grau de jurisdição, com a inerente perturbação no princípio basilar do contraditório, nas decisões judiciais.
Em consequência, improcedem também as últimas conclusões do recurso.
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DECISÃO:
Pelo exposto, negando provimento à apelação, confirma-se a decisão recorrida.
Custas do recurso pela R., sem prejuízo do apoio judiciário, atento o seu decaimento (art. 527.º do CPC).
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SUMÁRIO
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(o texto desta decisão não segue o Novo Acordo Ortográfico)

Porto, d. s. (26/06/2025)
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
José Eusébio Almeida
José Nuno Duarte