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PASSIVO
VERIFICAÇÃO
PROVA DOCUMENTAL
CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE PERPÉTUA
RENÚNCIA
PARTILHA
PROMESSA DE DOAÇÃO
EX-CÔNJUGES
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
Sumário
Sumário (elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC): I – Em processo de inventário, as dívidas relacionadas ou reclamadas que não sejam impugnadas consideram-se reconhecidas pelos interessados, operando a cominação plena para a ausência de impugnação do passivo prevista nos artigos 1106º, nº 1 e 1104º, nº 1, alínea e), CPC. II – Embora os interessados se devam obrigatoriamente pronunciar quanto às dívidas passivas na fase dos articulados, a verificação do passivo deve ocorrer na conferência de interessados, desde logo para assegurar a presença do credor e eventuais deliberações de legatários e donatários – cfr. artigos 1111º. nº 3 e 1106, nºs 5 e 7 e 1107º, CPC. III – A verificação do passivo pelo juiz restringe-se à ponderação da posição dos interessados expressa nos articulados e à prova documental junta aos autos, aferindo se esta permite ou não resolver a questão com segurança – cfr. artigo 1106º, nº 3, CPC. IV – Revelam-se insuficientes para o apuramento de um alegado crédito da interessada sobre o cabeça de casal os extratos bancários de conta por ambos titulada, desprovidos de outros meios de prova que esclareçam a razão de ser dos fluxos financeiros ali documentados. V – Nessa hipótese, apesar de não verificado em processo de inventário, não fica precludido o direito do interessado/credor reclamar o seu crédito nos meios comuns - cfr- artigo 1105º, nº 7, CPC. VI – Apurado que o cabeça de casal e a interessada haviam celebrado acordo com vista à respetiva separação e que ulteriormente se reconciliaram, restabelecendo a comunhão de cama, mesa e habitação inerentes ao casamento, deverá entender-se que a reconciliação extinguiu tal programa contratual que, consequentemente, não pode ser repristinado em caso de nova rutura. VII – Tal acordo, ao vincular o cabeça de casal e a interessada a não vender determinado imóvel “em momento algum” consagra uma cláusula de inalienabilidade perpétua, legalmente inadmissível perante a faculdade de livre disposição dos bens inerente ao direito de propriedade – cfr. artigo 1305º, CC. VIII – Também a cláusula pela qual os ex-cônjuges renunciam – sem qualquer limite temporal - à partilha de determinado imóvel sempre seria inválida, porque o direito à partilha é irrenunciável – cfr. artigo 2101º, 2, CC. IX – A cláusula pela qual os ex-cônjuges prometem transmitir, no futuro, o direito de propriedade sobre imóvel para os filhos de forma gratuita não é suscetível de execução específica, atenta a natureza do vínculo assumido (promessa de doação) e a possibilidade de desistência do doador antes da celebração do contrato prometido. X – O relacionamento do imóvel objeto de tal cláusula pelo cabeça de casal no processo de inventário para separação de meações expressa a vontade – legítima – de não concretizar a doação.
Texto Integral
Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo:
I – RELATÓRIO
O requerente A instaurou processo de inventário para separação de meações, em 22-12-2023, contra a requerida B.
Logo no requerimento inicial, o requerente solicitou a sua nomeação como cabeça de casal e apresentou relação de bens, na qual incluiu as seguintes verbas:
- Verba nº 1 - Fração autónoma para habitação, correspondente ao 3º andar, do prédio urbano sito na Rua … Lisboa, freguesia de São Domingos de Benfica, concelho de Lisboa, descrita na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº …, e inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o nº … da freguesia de São Domingos de Benfica;
Passivo
Verba 1 – dívida ao Banco BPI, relativa ao crédito a habitação para aquisição do imóvel identificado supra, na quantia atualizada à data de € 213.547,45;
Verba 2 – dívida ao Banco BPI, relativo ao crédito pessoal, na quantia atualizada à data de € 24.177,85;
O requerente alegou ainda integrar o acervo de bens comuns o recheio da casa de morada de família (correspondente à verba nº 1), que avaliou em € 5.150,00, declarando não lograr discriminá-lo por se encontrar na habitação, em poder da requerida, tendo solicitado a sua notificação para que apresente relação discriminada de tal recheio.
O requerente foi nomeado cabeça de casal, e foi citada a requerida, que deduziu reclamação contra a relação de bens na qual, no essencial considerou que:
- A verba um relacionada no ativo deve ser excluída, porquanto não obstante seja um bem comum do casal, em 10 de maio de 2021, após a separação de facto do casal, entre o cabeça de casal e a requerida foi celebrado um “Acordo de Separação”, com reconhecimento presencial de assinaturas, pelo qual assumiram a obrigação de transferirem a propriedade dessa verba para os filhos do ex-casal, C e D, constituindo uma promessa de doação;
- Caso não se reconheça validade/eficácia ao referido contrato, subsistindo a verba nº 1 da relação de bens, então deverá ser incluído no passivo um crédito a favor da requerida no valor de metade do total das despesas que suportou com a casa de morada de família, desde a separação de facto (março de 2022) até à data em que foi decretado o divórcio (novembro de 2023), que ascenderam, no total, a € 29.103,43, reconhecendo-se à reclamante um crédito sobre o cabeça de casal de € 14 551,72;
- O recheio da casa de morada de família é composto de seis verbas no valor global de € 3.425,00;
- Impõe-se a remoção das duas verbas do passivo pelos seguintes fundamentos:
« a verba n.º 1 é da exclusiva responsabilidade da Requerida, nos termos do acordo de separação celebrado;
« a verba n.º 2 respeita a um crédito pessoal contraído pelos ex-cônjuges junto do banco BPI, no valor global de € 50.000,00, em 21 de Setembro de 2021 (após a separação de facto do casal), quantia que foi dividida entre o cabeça de casal e a requerida; assim, se perante o banco a responsabilidade pelo pagamento do crédito permanece solidária, certo é que a reclamante já pagou a sua parte, pelo que o pagamento do valor remanescente é da exclusiva responsabilidade do cabeça de casal.
Pronunciando-se sobre a reclamação, o cabeça de casal pugnou pela manutenção da verba nº 1 do ativo, tendo por base os seguintes fundamentos:
- Não é válido o “acordo de separação”, nem em termos formais, nem quanto ao conteúdo, pois não foi sujeito a termo de autenticação, além de que o Cabeça de Casal não o assinou livre e conscientemente, tendo-o subscrito, acreditando ainda numa hipótese de reconciliação, sem que correspondesse a uma forma de partilha ou de regulação de responsabilidades parentais;
- Após a assinatura daquele acordo, em 10 de maio de 2021, o ex-casal reconciliou-se tendo mantido o seu casamento e a comunhão de leito, mesa e habitação até março de 2022, altura em que se separaram de facto, pelo que o acordado, se alguma validade tivesse, deixou de produzir qualquer efeito;
- O “acordo” viola a lei, designadamente o previsto no artigo 1730º, nº 1, CC, ao prever que as partes “abdicam” da venda do imóvel de que ambos são proprietários, beneficiando a Requerida, ao afetá-lo à sua residência, sendo nulas as manifestações de vontade ali inseridas;
- O referido documento também não pode servir como uma promessa de doação do imóvel aos filhos dos ex-cônjuges, porquanto não respeita os requisitos formais, e sempre seria uma promessa unilateral, não estando assinada pelos donatários, incidindo sobre um bem futuro, já que o bem não pertence a qualquer dos elementos do casal, mas sim a ambos, sem determinação de parte ou direito;
- Um dos filhos do casal não tem, nem poderá vir a ter, capacidade para aceitar a eventual doação;
- Ainda que de tal acordo de separação se possa extrair uma promessa unilateral de doação, tal promessa não é passível de execução específica podendo as partes desistir do contrato definitivo até à sua celebração, pelo que, com o pedido de partilha dos bens comuns do casal, o Cabeça de Casal teria desistido da sua promessa, o que lhe é sempre legítimo fazer, pugnando para que seja mantida na relação de bens o imóvel identificado como verba nº1.
O cabeça de casal manifestou discordância quanto ao alegado crédito da Requerida, invocando os seguintes fundamentos:
«Não se mostram comprovados os alegados pagamentos;
«O Cabeça de casal contribuiu para o pagamento das despesas comuns;
«Foi acordado entre ambos que o uso da casa de morada de família ficaria atribuída em exclusivo à Requerida até à partilha, e que esta suportaria todos os encargos com a mesma;
«O cabeça de casal teve de arrendar imóvel para onde foi viver e onde passou a receber os seus filhos, que teve de mobilar e equipar com os bens necessários para nele poder habitar, tendo despendido cerca de € 25.000,00 para esse efeito, sendo-lhe incomportável financeiramente manter-se a pagar os encargos com o imóvel comum;
«O cabeça de casal e a reclamante quiseram conferir ao pagamento integral da prestação bancária pela Requerida a natureza de contrapartida pela utilização exclusiva desse bem comum.
«A relação dos bens móveis indicada pela Requerida peca por defeito, faltando relacionar bens, mas também peca por excesso pois ali foram relacionados bens próprios do cabeça de casal;
« Relativamente à verba nº 2 do passivo, não contesta que a Requerida procedeu à amortização de 50% do crédito inicialmente contratado por ambos, mas tal foi efetuado com verbas disponíveis na conta ainda titulada por ambos, e por isso também comum, além de que tal passivo se encontra em nome de ambos, pelo que deverá manter- se a verba relacionada.
Alcançado acordo parcial quanto a alguns dos bens móveis que haviam sido objeto de reclamação, consignado na ata de 03-10-2024, foi produzida a prova indicada, após o que foi proferida decisão que julgou improcedente a reclamação deduzida pela interessa B.
Não se conformando com a decisão proferida, a interessada da mesma interpôs recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“A. Na reclamação à relação de bens, a aqui recorrente apresentou pedido subsidiário, relativo a crédito da requerida sobre o cabeça de casal no valor de metade das despesas já incorridas com a casa de morada de família desde a separação de facto até ao decretamento do divórcio, mais a metade do valor mensal das despesas com prestações bancárias, seguros, condomínios, obras no condomínio e IMI até que se proceda à partilha do bem comum.
B. A Mma. Juíza a quo, ao decidir sobre tal matéria, limitou-se a emitir pronúncia sobre as despesas já incorridas, nada dizendo quanto ao peticionado relativo aos créditos vincendos, ou seja, a metade do valor mensal das despesas com prestações bancárias, seguros, condomínios, obras no condomínio e IMI até que se proceda à partilha do bem comum.
C. Assim, a decisão recorrida é nula, por omissão de pronúncia, conforme decorre do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.
II. DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
D. Nos artigos 43.º a 47.º da resposta à reclamação à relação de bens, o cabeça de casal admitiu que a requerida, aqui recorrente, pagou sozinha, com a casa de morada de família, desde a separação de facto (março de 2022), até à data em que foi decretado o divórcio (novembro de 2023), as despesas comuns referentes a prestações do crédito à habitação, seguros, condomínio, obras no condomínio e IMI.
E. Factos igualmente atestados pelos extratos bancários, que a aqui recorrente juntou aos autos, provando-se através das entradas e saídas do vencimento do cabeça de casal, creditado pelos CTT, sua entidade empregadora, na conta n.º …189, do BPI, à qual está associado o crédito habitação, conforme detalhado nas alegações supra.
F. Pois entre os meses de março de 2022 e julho de 2023 (mês a partir do qual cessou a respetiva domiciliação nesta conta), após ser creditado na referida conta bancária o vencimento do CC, a aqui recorrente transferia o respetivo montante para a conta n.º ...996 do Banco CTT, titulada pelo CC.
G. Com a ressalva de, até ao mês de setembro de 2022, a aqui recorrente ter recebido a quantia mensal de € 300,00 do CC, por força do cumprimento da cláusula quarta, ponto xii, do Acordo de Separação (com a redução em € 100,00 do aí previsto), acrescida do pagamento da sua parte do crédito identificado nos pontos 46 e 50 supra, e de serem feitos pequenos acertos de contas entre o ex-casal nas aludidas transferências relativos a despesas com os filhos.
H. Igualmente decorre dos extratos bancários juntos aos autos, que os pagamentos do crédito habitação entre março de 2022 e novembro de 2023, tal como desde então até ao presente, foram exclusivamente assegurados pela aqui recorrente, uma vez que apenas o seu vencimento se mantinha na conta bancária associada ao crédito, nas datas e montantes indicados nas alegações supra, totalizando € 20.095,98.
I. Igualmente decorre dos extratos bancários juntos aos autos, que os pagamentos dos seguros deste crédito habitação entre março de 2022 e novembro de 2023, tal como desde então até ao presente, foram exclusivamente assegurados pela aqui recorrente, uma vez que apenas o seu vencimento se mantinha na conta bancária associada ao crédito, nas datas e montantes indicados nas alegações supra, totalizando € 4.354,11.
J. Igualmente decorre dos extratos bancários juntos aos autos, que os pagamentos do condomínio do prédio, do qual constitui fração a casa de morada de família, entre março de 2022 e novembro de 2023, tal como desde então até ao presente, foram exclusivamente assegurados pela aqui recorrente, uma vez que apenas o seu vencimento se mantinha na conta bancária associada ao crédito, nas datas e montantes indicados nas alegações supra, totalizando € 1.609,15.
K. Mais despendeu, entre aquelas datas, o valor global de € 929,16 devido pela realização de obras no condomínio em 2022, conforme o documento emitido pela respetiva administração e junto com a reclamação à relação de bens.
L. Despendeu ainda a aqui recorrente, nas datas indicadas supra, o valor global de € 992,84, referente ao IMI dos anos de 2022 e 2023, conforme resulta dos extratos bancários juntos.
M. Deve, pois, ser dado como provado o seguinte facto (com acertos devido a lapsos de escrita / cálculo da reclamação à relação de bens):
- A requerida pagou sozinha, por referência à casa de morada de família, desde a separação de facto (março de 2022), até à data em que foi decretado o divórcio (novembro de 2023), despesas comuns que ascenderam, no total, a € 27.981,26, referentes a prestações do crédito à habitação: € 20.095,98; seguros:€ 4.354,11; condomínio: € 1.609,15; obras no condomínio em 2022: € 929,16 e IMI: € 992,86.
N. Mais deu a Mma. Juíza como não provado que:
- o crédito pessoal contraído em 21/09/2021 pelos ex-cônjuges junto do banco BPI, no valor global de € 50.000,00, tenha sido logo dividido entre o cabeça de casal e a requerida, na proporção de 50% para cada, pois, à altura, ambos já se encontravam separados de facto;
- a requerida pagou a sua parte do empréstimo ao banco BPI, € 25.000,00, com dinheiro próprio.
- o cabeça de casal teve de gastar € 25.000,00 para mobilar e equipar a casa que arrendou, quando saiu da casa de morada de família.
O. Trata-se de factualidade admitida pelo cabeça de casal, vejam-se os artigos 45.º a 47.º e 68.º a 71.º da resposta à reclamação à relação de bens.
P. Ademais, corroborada pelos extratos bancários juntos aos autos com a reclamação à relação de bens e pela prova testemunhal produzida, infra descritos nos pontos Q a U.
Q. Revelam estes extratos bancários com toda a clareza a divisão do crédito, com 50% do valor transferido para outra conta do Cabeça de Casal no Banco CTT entre os dias 25/10/2022 e 02/11/2022, que assumiu desde sempre o pagamento integral da sua parte, conforme supra detalhado.
R. Mais, ao contrário do vertido na motivação da fundamentação de facto, o depoimento de E revelou-se desapegado e claro, merecedor de crédito, depondo com todo o sentido de verdade.
S. Atente-se neste depoimento, do minuto 04:45 ao minuto 6:36, em que a testemunha E se pronúncia com toda a clareza sobre o empréstimo em questão e a sua divisão a dois, entre o CC e a aqui recorrente, supra transcrito.
T. Mais se atente que, conforme se atesta através dos extratos bancários juntos, foi esta testemunha E quem ajudou a aqui recorrente no pagamento da sua parte do crédito, através da transferência por si realizada no dia 05/09/2022, no valor de € 10.120,00, para a conta associada ao crédito habitação.
U. Conforme resulta dos extratos bancários juntos, a recorrente mobilizou esse montante e os montantes na sua posse ainda relativos à sua parte do crédito, e nessa mesma data, 05/09/2022, procedeu à sua amortização total.
V. Deve, pois, ser dado como assente que:
- o crédito pessoal contraído em 21/09/2021 pelos ex-cônjuges junto do banco BPI, no valor global de € 50.000,00, foi logo dividido entre o cabeça de casal e a requerida, na proporção de 50% para cada, pois, à altura, ambos já se encontravam separados de facto;
- a requerida pagou a sua parte do empréstimo ao banco BPI, € 25.000,00, com dinheiro próprio.
W. Quanto às despesas do CC no valor da sua parte do crédito, trata-se de confissão do próprio, que a aqui recorrente não disputa, aliás, sabe que corresponde à verdade, pelo que deve ser dado como provado que o cabeça de casal teve de gastar € 25.000,00 para mobilar e equipar a casa que arrendou, quando saiu da casa de morada de família.
X. A latere, dir-se-á ainda quanto à divisão do crédito, que a Mma. Juíza deu ao CC mais do que ele na verdade sempre se achou no direito, pois desde que o mesmo foi contraído, em setembro de 2021, sempre procedeu ao pagamento mensal da sua parte do empréstimo, como devia, conforme se retira dos extratos bancários juntos.
Y. Isto até ao momento em que foi notificado da decisão de que aqui se recorre, passando agora a entender, à margem, pelo menos, de qualquer valor moral e ético, que apenas devia pagar metade da sua parte do empréstimo.
Z. Termos em que se afigura inequívoco deverem ser dados como provados os seguintes factos:
- o crédito pessoal contraído em 21/09/2021 pelos ex-cônjuges junto do banco BPI, no valor global de € 50.000,00, foi logo dividido entre o cabeça de casal e a requerida, na proporção de 50% para cada, pois, à altura, ambos já se encontravam separados de facto;
- a requerida pagou a sua parte do empréstimo ao banco BPI, € 25.000,00, com dinheiro próprio.
- o cabeça de casal teve de gastar € 25.000,00 para mobilar e equipar a casa que arrendou, quando saiu da casa de morada de família.
AA. Deve ainda ser dado como provado que o CC, com a assinatura do acordo, a 10/05/2021, quis vincular-se à partilha da casa de morada de família, que ficaria atribuída em exclusivo à aqui recorrente.
BB. Conforme resulta do depoimento da testemunha F, o melhor amigo do CC, que foi quem acompanhou mais de perto a separação do casal, do minuto 2:00 ao minuto 2:10, supra transcrito.
CC. Do minuto 5:05 ao minuto 5:20 quanto à mediação do acordo e do minuto 8:28 a 9:00, quanto ao CC querer resolver o assunto, apesar da testemunha sentir que podia ficar prejudicado, e do minuto 17:10 ao minuto 17:15, quanto ao CC estar assessorado por advogada aquando da elaboração do acordo, tudo supra transcrito, sendo a conduta do CC probatoriamente expressiva, era o que ele queria, o seu comportamento é concludente.
DD. Termos em que se afigura inequívoco dever ser dado como provado o seguinte facto:
- o CC, com a assinatura do acordo de separação, a 10/05/2021, quis vincular-se à partilha da casa de morada de família, que ficaria atribuída em exclusivo à aqui recorrente.
II. DA DECISÃO DA MATÉRIA DE DIREITO
EE. No que concerne ao enquadramento jurídico, entende-se que a Mma. Juíza novamente incorreu em erro ao concluir, assente no facto do ex-casal se ter reconciliado e voltado a viver em comunhão de leito, mesa e habitação até março de 2022, que o acordo perdera a sua validade, porque subscrito por ambas as partes no pressuposto de que iriam àquela data separar-se, o que não ocorreu.
FF. Sem atentar que esta reaproximação do casal, intermitente e precária, em nada colidiu com os termos do acordo de separação antes celebrado, tendo a recorrente mantido a sua parte do pagamento das despesas da casa, e o CC a sua parte, ajudando-a em cumprimento da cláusula quarta, ponto xii, do Acordo de Separação.
GG. É válido o acordo celebrado entre os cônjuges prevendo os termos da partilha do bem comum, conforme jurisprudência unânime do Supremo Tribunal de Justiça que a própria decisão recorrida invoca.
HH. Validade que se mantém, regulando o destino da casa de morada de família, atribuindo-a à aqui recorrente, com a contrapartida de ter passado ela a responsabilizar-se pelo pagamento das respetivas despesas.
II. Impõe-se, assim, a bem da justiça e do direito, a remoção da verba 1 da relação de bens.
JJ. Caso assim não se entenda, o que se admite como mera hipótese académica, deve ser aditada uma nova verba no passivo com o teor seguinte:
“Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do Artigo 1689.º do Código Civil, crédito da requerida sobre o cabeça de casal no valor de metade das despesas por esta incorridas com a casa de morada de família desde a separação de facto (março de 2022) até ao decretamento do divórcio (novembro de 2023), no valor global de € 27.981,26, ao qual acrescerá ainda mensalmente metade do valor mensal das despesas com prestações bancárias, seguros, condomínios, obras no condomínio e IMI até que se proceda à partilha do bem comum”.
KK. Mais deve a verba n.º 1 do passivo ser removida, o que apenas não ocorrerá em caso de improcedência do pedido de remoção da verba n.º 1 do ativo, caso em que deverá ser incluída a verba indicada no ponto anterior.
LL. Devendo ainda ser removida a verba n.º 2 do passivo.
MM. A decisão recorrida, ao decidir como decidiu, violou as seguintes normas jurídicas:
Artigos 574.º, n.º 1 e n.º 2, ex vi 549.º, n.º 1, e 46.º do Código de Processo Civil
Artigos 373.º, 374.º e 376.º, n.º 1, do Código Civil
Artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil
Artigo 1730.º, n.º 1, do Código Civil
Artigo 405.º, n.º 1, do Código Civil
Termos em que se requer a Vossas Excelências a alteração da decisão que recaiu sobre a matéria de facto nos termos indicados, a revogação da decisão ora objeto de recurso, e, consequentemente, ser julgada procedente a reclamação à relação de bens:
I - Com a remoção da verba n.º 1 do Ativo;
II - Caso assim não se entenda, o que se admite como mera hipótese académica, deve ser aditada uma nova verba no passivo com o teor seguinte:
“Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do Artigo 1689.º do Código Civil, crédito da requerida sobre o cabeça de casal no valor de metade das despesas por esta incorridas com a casa de morada de família desde a separação de facto (março de 2022) até ao decretamento do divórcio (novembro de 2023), no valor global de € 27.981,26, ao qual acrescerá ainda mensalmente metade do valor mensal das despesas com prestações bancárias, seguros, condomínios, obras no condomínio e IMI até que se proceda à partilha do bem comum, no valor.”
III. Mais deve a verba n.º 1 do passivo ser removida, o que apenas não ocorrerá em caso de improcedência do pedido de remoção da verba n.º 1 do ativo, caso em que deverá ser incluída a verba indicada no ponto anterior.
IV. Deve ainda ser removida a verba n.º 2 do passivo. assim se fazendo a devida Justiça”.
O cabeça de casal apresentou resposta às contra alegações, suscitando, como questão prévia, a extemporaneidade do recurso interposto, e pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
O tribunal a quo indeferiu a nulidade arguida pela recorrente, considerando que a matéria em questão foi dada como não provada, além de que a decisão foi expressamente motivada, não incorrendo em qualquer omissão.
Foi admitido o recurso, como apelação, com subida imediata e nos próprios autos, e efeito suspensivo.
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação de Lisboa e aqui autuados em 29-05-2025, inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.
II – QUESTÃO PRÉVIA – Extemporaneidade do recurso
Considera o recorrido que tendo sido a decisão recorrida notificada às partes no dia 30-12-2024, o prazo de 40 dias (atendendo à reapreciação da prova gravada) para interpor recurso terminou no dia 12-02-2025. Assim, embora a recorrente pudesse ainda apresentar o seu recurso até 17-02-2025, que seria o 3º dia útil após terminus do prazo, tal dependeria do pagamento da multa devida nos termos do nº 5 do artigo 139º CPC, o que não sucedeu.
Acresce que a alegada reapreciação da prova testemunhal mais não serviu que o propósito de dilatar em 10 dias o prazo de recurso, dado que a matéria que a recorrente pretende alterar não resultou de nenhum depoimento testemunhal, demonstrando-se apenas por prova documental.
Não acompanhamos o recorrido na arguição da intempestividade do recurso.
Relativamente à última questão suscitada, devem convocar-se as disposições gerais do processo de declaração, por força do artigo 1123º, nº 1, CPC. Assim, dispõe o artigo 638º, nº 1, CPC, que o prazo geral para interposição de recurso é de 30 dias. Porém, estipula o nº 7 desta norma: “Se o recurso tiver por objeto a reapreciação da prova gravada, ao prazo de interposição e de resposta acrescem 10 dias.” Como refere Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 173) “Pretendendo o recorrente impugnar a decisão da matéria de facto com invocação de meios de prova gravados, resulta do nº 7 um acréscimo de 10 dias ao prazo geral fixado para as alegações e contra alegações (…) porém, o recorrente apenas poderá beneficiar deste prazo alargado se integrar no recurso conclusões que envolvam efetivamente a impugnação da decisão da matéria de facto tendo por base depoimentos gravados, nos termos do art. 640º, nº 2, al. a, independentemente da verificação dos demais requisitos legais da impugnação ou sequer da apreciação do respetivo mérito”. No mesmo sentido, refere-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-04-16, (proferido no processo nº 1006/12, disponível em www.dgsi.pt): “A extensão do prazo de 10 dias previsto no artigo 638º, nº 7, para apresentação do recurso de apelação quando tenha por objeto a reapreciação da prova gravada depende unicamente da apresentação de alegações em que a impugnação da decisão da matéria de facto seja sustentada, no todo ou em parte, em prova gravada, não ficando dependente da apreciação do modo como foi exercido o ónus de alegação.”
Ora, compulsadas as alegações apresentadas pela recorrente, verifica-se que reage ao não apuramento dos factos não provados sob os nºs 4, 5, 6 e 7 mencionados na decisão recorrida. Como fundamento de tal impugnação, invoca vários meios de prova, não só documentais mas também testemunhais (cfr. conclusões S, BB, CC). Assim, independentemente do acerto de tal impugnação, o facto de, na perspetiva da recorrente, o recurso que interpôs envolver a reapreciação da prova gravada determina que se pondere o acréscimo de 10 dias previsto no nº 7 do artigo 638º, CPC.
Assente que a recorrente dispunha do prazo de 40 dias (30 dias relativos ao prazo geral e 10 dias decorrentes da impugnação da matéria de facto por suscitar a reapreciação de prova gravada), confirma-se que a decisão da reclamação de bens foi efetivamente proferida em 30-12-2024.
Porém, da consulta dos autos resulta que a sua notificação, quer ao cabeça de casal, quer à reclamante, foi remetida por via eletrónica em 03-01-2025. Consequentemente, devendo considerar-se efetuada no 3º dia útil posterior ao seu envio – cfr. artigos 219º, nº 6 e 138º, nº 2, CPC –, a notificação da decisão recorrida ocorreu no dia 06-01-2025. Ora, ponderado o prazo do recurso (40 dias) contado desde o dia subsequente – 07-01-2025 – conclui-se que terminaria em 15-02-2025 (sábado), transferindo-se para o dia útil seguinte: 17-02-2025. Consequentemente, dado que foi nessa precisa data que foi apresentado, não pode deixar de considerar-se tempestivamente interposto o recurso, não estando a sua tempestividade dependente do pagamento da multa prevista no º 5 do artigo 139º, CPC.
Pelo exposto, indefere-se a arguição da intempestividade do recurso.
III – QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC.
Consequentemente, nos presentes autos, constituem questões a decidir:
- Nulidade da Sentença (defendendo a recorrente que incorreu em omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea d), CPC);
- Impugnação da matéria de facto;
- Manutenção da verba nº 1 da relação de bens (subsidiariamente, remoção das verbas nº 1 e 2 do passivo, e aditamento de nova verba de crédito da requerida sobre o cabeça de casal).
IV – FUNDAMENTAÇÃO
A – Nulidade da sentença
A recorrente aponta à sentença o fundamento de nulidade previsto no artigo 615º, nº 1, alínea d), CPC, com a seguinte redação:
“1. É nula a sentença quando: (…) d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;”
Apreciando o vício invocado, interessa salientar que, em rigor, constitui fundamento de anulabilidade da sentença, relacionado com os seus limites, ocorrendo quando o juiz não esgotou todas as questões que lhe incumbia conhecer ou conheceu de outras indevidamente – José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, Volume 2º, 3ª edição, página 735
Na realidade, ao juiz incumbe o conhecimento de todas as questões “que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada (…)” – cfr. artigo 608º, nº 2, CPC. Consequentemente: “(…) o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção (…) constitui (…), reconduz-se ao apontado vício.
É certo que na reclamação apresentada, a reclamante deduziu pedido subsidiário (para a hipótese de não ser removida da relação de bens a verba nº 1), solicitando o reconhecimento de crédito por si titulado sobre o cabeça de casal. Transcrevendo os termos de tal reclamação (artigo 8º), verifica-se que a reclamante solicitou: “(…) a inclusão no passivo da relação de bens de um crédito a favor da ora requerida no valor de metade do total das despesas suportadas por esta, com a casa de morada de família, desde a separação de facto (março de 2022) até à data em que foi decretado o divórcio (novembro de 2023) as quais ascenderam, no total, a Euros 29.103,43 assim discriminadas: - Prestações do crédito à habitação: Euros 21.191,37; - Seguros: Euros 4.376,90; - Condomínio: Euros 1.610,00; - Obras no condomínio em 2022: Euros 929,16 e - IMI: Euros 996,00”.
Depois de indicar os meios de prova em que fundamenta tal reclamação, referiu a reclamante no artigo 10º da reclamação:
“Consequentemente, acaso a Verba n.º 1 do ativo da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal se mantenha (…) deve então ser aditada uma nova verba no passivo com o teor seguinte: “Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do Artigo 1689.º do Código Civil, crédito da requerida sobre o cabeça de casal no valor de metade das despesas por esta incorridas com a casa de morada de família desde a separação de facto (Março de 2022) até ao decretamento do divórcio (Novembro de 2023),à qual acrescerá ainda mensalmente metade do valor mensal das despesas com prestações bancárias, seguros,condomínios, obras no condomínio e IMI’s até que se proceda à partilha do bem comum, no valor de Euros 14.551,72 (catorze mil quinhentos e cinquenta e um euros e setenta e dois cêntimos)”.
Constatando a requerida que o tribunal recorrido deu como não provado que tenha assegurado, sozinha, as despesas com a casa da morada de família desde a separação de facto em março de 2022 até à data em que foi decretado o divórcio em novembro de 2023, considera que não foi objeto de decisão “o peticionado quanto aos créditos vincendos, ou seja a metade do valor mensal das despesas com prestações bancárias, seguros, condomínios, obras no condomínio e IMI até que se proceda à partilha do bem comum”.
Nos termos da alegação da recorrente, a pretensão que deduziu quanto à verba do passivo supra referida radica no artigo 1689.º, CC que estabelece, sob a epígrafe: “Partilha do casal. Pagamento de dívidas”: “1. Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património. 2. Havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum, e só depois as restantes. 3. Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.”
A propósito desta questão não podemos deixar de acompanhar a resposta do cabeça de casal ao considerar que se mostra dúbia a formulação do pedido pela recorrente, dado que da leitura do artigo 10º da reclamação poderia concluir-se que contabiliza a verba em questão no valor de € 14.551,72. Porém, esse caráter dúbio decorre, a nosso ver, da menor correção linguística empregue na formulação do pedido, pois o valor de € 14.551,72 deve ser relacionado com a frase (anterior) “valor de metade das despesas por esta incorridas com a casa de morada de família desde a separação de facto (Março de 2022) até ao decretamento do divórcio (Novembro de 2023)”. Acrescendo a esse pedido a frase seguinte: “à qual acrescerá ainda mensalmente metade do valor mensal das despesas com prestações bancárias, seguros, condomínios, obras no condomínio e IMI’s até que se proceda à partilha do bem comum”. Frase esta que contém um pedido ilíquido, não relacionado com o valor líquido que se segue na formulação do pedido.
De todo o modo, decorre da decisão proferida que o Tribunal recorrido apreciou a existência dessa dívida na sua totalidade (alegados créditos vencidos e créditos vincendos), concluindo que não resultou provada, e assim indeferindo a alegação da sua existência, passada e futura, bem como a reclamação na sua integralidade (incluindo todas as parcelas do pedido).
Pelo exposto, por não ter incorrido em qualquer omissão de pronúncia, indefere-se a arguição de nulidade da sentença recorrida.
B - Impugnação da matéria de facto
A reapreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso implica que o recorrente, nas alegações em que a impugna, cumpra os ónus que o legislador estabeleceu a seu cargo, enunciados no artigo 640º CPC, com a seguinte redação:
“1 -Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2-No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Incumbe, pois, ao recorrente, por forma a cumprir o que tem vindo a designar-se por “ónus primário de alegação”, e sob pena de rejeição do recurso, identificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (640º, nº 1, alínea a), CPC), os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa (640º, nº 1, alínea b), CPC) e indicar a decisão que deve ser proferida quanto aos factos impugnados (640º, nº 1, alínea c), CPC). Já o designado “ónus secundário” reporta-se à especificação dos meios de prova que implicariam, na perspetiva do recorrente, diversa decisão da matéria de facto, gerando o seu incumprimento a rejeição do recurso apenas se ficar gravemente dificultado o exercício de contraditório ou o exame pelo tribunal de recurso – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-03-2019, proferido no processo 3683/16.6T8CBR.C1.S2, disponível em www.dgsi.pt
Assim, na exigência do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no citado artigo 640º, “os aspetos de ordem formal (…) devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-03-2019 (proferido no processo nº 3683/16.6T8CBR.C1.S2, disponível em www.dgsi.pt)
Acresce que nesse âmbito haverá ainda que ponderar o AUJ do STJ de 17-10-2023 (acórdão nº 12/2023 de 14 de novembro, publicado no Diário da República nº 220/2023, Série I de 2023-11-14) que uniformizou a seguinte jurisprudência: “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.” Aplicando tal entendimento, o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 08-02-2024, (proferido no processo n.º 7146/20.7T8PRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt) considerou que “a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto apenas deve verificar-se quando falte nas conclusões a referência à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, através da referência aos «concretos pontos de facto» que se considerem incorretamente julgados (alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º), sendo de admitir que as restantes exigências (alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo. 640.º), em articulação com o respetivo n.º 2, sejam cumpridas no corpo das alegações”.
No caso, a recorrente impugnou a matéria de facto, cumprindo os ónus a seu cargo, pelo que se procede à respetiva apreciação.
A recorrente impugnou o não apuramento do facto enunciado sob o nº 4, considerando que o mesmo deve transitar para os factos provados, tendo por base a seguinte fundamentação:
- Trata-se de matéria confessada pelo cabeça de casal (artigos 43º a 47º da resposta à reclamação), pelo que o seu não apuramento viola o regime dos artigos 574º, nºs 1 e 2, ex vi artigo 549º e 46º, CPC;
- Os extratos bancários que a reclamante juntou aos autos comprovam tal factualidade.
A tal facto, o tribunal recorrido conferiu a seguinte redação:
“Que a requerida pagou sozinha, com a casa de morada de família, desde a separação de facto (Março de 2022), até à data em que foi decretado o divórcio (Novembro de 2023), despesas comuns que ascenderam, no total, a Euros 29.103,43, referentes a Prestações do crédito à habitação: Euros 21.191,37;- Seguros: Euros 4.376,90;- Condomínio: Euros 1.610,00;- Obras no condomínio em 2022: Euros 929,16 e IMI: Euros 996,00”
Na motivação da decisão, a tal propósito, foi referido o seguinte:
“Também nenhuma prova testemunhal foi produzida quanto às despesas alegadamente suportadas com a casa de morada de família, desde a separação de facto (março de 2022), até à data em que foi decretado o divórcio (novembro de 2023), sendo insuficiente a junção dos extratos bancários de uma conta comum do ex-casal”.
Ora, tratando-se de questão relativa ao passivo, ou seja, a dívidas, importa distinguir as dívidas ativas (quando alguém deve ao património comum), que são bens do património comum, das dívidas passivas (quando o património comum deve a alguém, interessado ou terceiro).
Quanto às dívidas passivas relacionadas ou reclamadas (pelo respetivo credor), o atual CPC introduziu alterações de regime significativas face ao regime anterior. Devem agora os interessados pronunciar-se a seu respeito, no prazo de oposição (artigo 1104º, nº 1, al. e), introduzindo-se uma cominação plena no artigo 1106º, nº 1: “As dívidas relacionadas que não hajam sido impugnadas pelos interessados diretos consideram-se reconhecidas (…)”.
Daí o relevo atual da pronúncia dos interessados em sede de oposição e dedução de questões incidentais.
Desta forma, o legislador antecipou a pronúncia dos interessados quanto às dívidas passivas (anteriormente, essa pronúncia era efetuada em sede de conferência de interessados ou de conferência preparatória – cfr. artigos 1353º, nº 3, do CPC anterior à revisão da Lei nº 29/2009, de 29-06, e 48º, nº 3, do Regime Jurídico do Processo de Inventário – Lei 23/2013, de 05-03) para a fase dos articulados (incidentes da instância). Porém, continua a remeter a fase da verificação do passivo (pelo julgador) para a conferência dos interessados (artigo 1111º, nº 3, CPC), desde logo para assegurar a presença do credor e a eventual deliberação de legatários e donatários (artigos 1106º, nº 5 e 7, e 1107º).
Todavia, a sentença recorrida pronunciou-se (precocemente) sobre o passivo, pelo que importa apreciar o recurso, também nesta parte.
Importa, contudo, salientar que a verificação do passivo pelo juiz se restringe legalmente à prova documental: “(…) o juiz deve apreciar a sua existência e montante quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados” – artigo 1106º, nº 3, CPC (em consonância plena com os regimes legais anteriores).
Por conseguinte, a apreciação do recurso nesta parte (impugnação da matéria de facto quanto ao passivo) apenas poderá ter em consideração;
- A posição dos interessados expressa nos seus articulados (dada a cominação legal acima mencionada);
- A prova documental junta aos autos. Mas não bastará qualquer documento, pois a lei exige que a questão seja “resolvida com segurança”, não admitindo a conjugação com outros meios de prova.
Assim, o cabeça de casal recorrido alegou nos artigos 43º a 47º da sua resposta:
“43º Por outro lado, “esquece-se” a Requerida de informar que, não obstante a saída do Cabeça de casal da casa de morada de família, não foi esta quem se manteve a pagar todas as despesas inerentes à mesma, porquanto o Cabeça de casal contribuiu com o montante mensal para ajudar ao cumprimento das obrigações assumidas por ambos, tudo conforme se pode comprovar pelos documentos (extratos bancários que a própria Requerida juntou, 44º Assim sendo, verifica-se claramente que o Cabeça de Casal continuou a contribuir para os encargos e despesas comuns, não podendo de forma nenhuma ser considerado o valor indicado pela Requerida. 45º Por outro lado, e como a Requerida também certamente saberá, e pese embora não se tenha verificado integralmente, pois conforme acima referido o Cabeça de Casal manteve-se a contribuir durante vários meses para os encargos do imóvel, foi acordado entre ambos os ex cônjuges que, o uso da casa de morada de família ficaria atribuída à Requerida até à partilha e que esta suportaria todos os encargos 46º Tal situação teve por base o facto de a Requerida passar a usufruir exclusivamente de um bem comum, ao invés do Cabeça de Casal que, por seu turno teve de arrendar imóvel para onde foi viver e passou a receber os seus filhos, ter tido de o mobiliar integralmente e adquirir bens necessários para nele poder habitar (atoalhados, lençóis, cobertores, utensílios de cozinha, eletrodomésticos, etc.), tendo despendido cerca de € 25.000,00 para esse efeito, 47º Sendo-lhe incomportável financeiramente, manter-se a pagar os encargos com o imóvel propriedade comum (e do qual não usufruiu desde a separação de facto) e ainda outro onde pudesse habitar.”
Ora, embora no artigo 47º o cabeça de casal alegue que lhe era incomportável assegurar as despesas da nova habitação e as da casa de morada de família, o certo é que nos artigos antecedentes, designadamente nos artigos 43º e 44º, alega expressamente que se manteve a contribuir para as despesas da casa de morada de família.
Consequentemente, tal alegação não configura propriamente o reconhecimento do alegado facto, em termos subsumíveis ao disposto no artigo 1106º, nº 1, CPC, revelando-se insuficiente para o seu apuramento.
Por outro lado, da análise dos extratos bancários não é possível afirmar a referida factualidade dado que, como refere o tribunal recorrido, trata-se de uma conta titulada pelo cabeça de casal e pela recorrente, documentando os respetivos movimentos.
Tais extratos contêm informação percetível para os titulares da conta em questão (o cabeça de casal e a reclamante), mas que não reúne níveis de certeza e objetividade que permitam comprovar os factos da reclamação.
Veja-se, a título exemplificativo, que está de facto documentado que a 25-08-2022 foi creditado o valor de € 2.596,36 com o seguinte código: TRF CR SEPA+… DE CTT-DF. A 31-08-2022 foi transferida para o cabeça de casal (expressamente mencionado como destinatário da transferência) a quantia de € 2.125,29. A reclamante refere que a diferença se reporta ao pagamento de um determinado crédito e acertos relativos a despesas com os filhos de ambos.
A 23-09-2022 foi creditada a quantia de € 2.155,99 com o seguinte código: TRF CPSAPA+… DE CTT-DF. Em 23-09-2022 foi transferida para o cabeça de casal (expressamente mencionado no código da transferência) a quantia de € 1786,70, dizendo a reclamante que a diferença se deve “ao cumprimento da cláusula quarta, ponto xii, do Acordo de Separação, pagamento da sua parte do crédito identificado nos pontos 46 e 50 infra, e acertos entre o ex-casal relativos a despesas com os filhos”.
Confirma-se que ocorreram no período documentado nos extratos movimentos similares, e que existem vários meses em que valores creditados, que a reclamante afirma corresponderem ao salário do cabeça de casal, foram na própria data ou em data próxima para ele transferidos.
Porém, tal não é suficiente para documentar, com segurança, que a reclamante assumiu, sem qualquer contributo do cabeça de casal, as despesas alegadas (amortização de capital, juros de empréstimo, seguros). Na verdade, os extratos relativos à conta titulada por ambos não permitem apurar com rigor a razão de ser dos fluxos financeiros ali documentados.
Como resulta da própria alegação da recorrente, no período ali documentado houve meses em que transferiu para o cabeça de casal o valor do seu salário, e outros em que tal transferência não ocorreu no montante total do salário, por forma a assegurar o pagamento de determinadas quantias.
Desta forma, a prova documental junta aos autos não permite apurar, com a segurança pressuposta pelo regime legal, o crédito reclamado pela recorrente.
Isso não significa que a recorrente fique privada desse (alegado) crédito, pois é certo que o não reconhecimento ou aprovação da dívida em sede de processo de inventário não preclude o direito do credor de reclamar o seu pagamento nos meios comuns – ver, a propósito, o artigo 1105º, nº 7, e a posição de Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, p. 93.
Pelo exposto, improcede a impugnação quanto ao facto não provado nº 4.
Impugnou ainda a recorrente o não apuramento dos factos enunciados sob os números 5, 6 e 7, defendendo que devem transitar para os factos provados, invocando os seguintes fundamentos:
- Trata-se de matéria admitida pelo cabeça de casal (artigos 45 a 47º e 68º a 71º da resposta à reclamação de bens);
- Resulta dos extratos bancários juntos aos autos;
- Resulta da prova testemunhal.
A tais factos não provados foi conferida a seguinte redação:
“5. Que o crédito pessoal contraído em 21 de setembro de 2021 pelos ex-cônjuges junto do banco BPI, no valor global de Euros 50.000,00, tenha sido logo dividido entre o cabeça de casal e a requerida, na proporção de 50% para cada, pois, à altura, ambos já se encontravam separados de facto; 6. Que a requerida pagou a sua parte do empréstimo ao banco BPI, Euros 25.000,00, com dinheiro próprio. 7. Que o cabeça de casal teve de gastar €25.000,00 para mobilar e equipar a casa que arrendou, quando saiu da casa de morada de família.”
Foi a seguinte a motivação do tribunal recorrido:
“Quanto à matéria que se deu como não provada, entendeu o Tribunal que a prova foi insuficiente, face à razão de ciência do depoimento da primeira testemunha indicada pela Requerente, a relação tão próxima da primeira testemunha com a interessada, de mãe e filha e porque baseada nas conversas que teve com esta, sem outros elementos probatórios, designadamente documental. Também nenhuma prova testemunhal foi produzida quanto às despesas alegadamente suportadas com a casa de morada de família, desde a separação de facto (março de 2022), até à data em que foi decretado o divórcio (novembro de 2023), sendo insuficiente a junção dos extratos bancários de uma conta comum do ex-casal. A segunda testemunha, pese embora revelando isenção e depondo de forma clara, apenas pode esclarecer sobre o estado emocional dos ex-conjuges, os problemas do filho comum, a vontade destes de protegerem os filhos dos efeitos de uma separação, que na altura estava iminente, mas não se concretizou”.
Os artigos 45º a 47º da resposta à reclamação mostram-se transcritos no ponto anterior.
Nos artigos 68º a 71º foi a seguinte a alegação do cabeça de casal:
“68º - Alega a Requerida que deverá ser excluído do passivo a verba nº1 indicada pelo Cabeça de Casal, mais uma vez não assiste razão à Requerida, 69º- De facto, e não obstante ter a Requerida assumido perante o Cabeça de casal o pagamento de tal dívida pela utilização exclusiva da casa de morada de família, a verdade é que tal passivo é da responsabilidade de ambos os ex cônjuges, devendo a mesma ser tida em conta na partilha do bem imóvel, pelo que deverá a mesma manter-se na relação de bens apresentada. 70º - Relativamente à verba nº2 do passivo, e não havendo contestação de que a Requerida procedeu à amortização de 50% do crédito inicialmente contratado pelos ex cônjuges, 71º- A verdade é que o fez com verbas disponíveis na conta ainda titulada por ambos, e por isso também comum, e que tal passivo se encontra também em nome de ambos, pelo que deverá manter-se o mesmo relacionado”.
Tal alegação não configura o reconhecimento da factualidade em causa, podendo apenas demonstrar que o cabeça de casal gastou € 25.000,00 para equipar a sua nova habitação, sem que do mesmo resulte qualquer relevo para a matéria e questão controvertidas.
Os extratos bancários apresentam as dificuldades de valoração já mencionadas no ponto anterior da impugnação, valendo aqui os mesmos considerandos quanto ao alcance e extensão do conhecimento da questão pelo juiz.
Embora, como se disse, não seja admissível a ponderação de outra prova que não a documental, sempre se dirá que, mesmo assim, se procedeu à audição do depoimento de E, mãe da reclamante. Este depoimento, contudo, nada de relevo poderia aportar à decisão desta questão, dado que se baseou exclusivamente no que a interessada (parte na causa), sua filha, lhe disse, não demonstrando, portanto, ter conhecimento direto e admissível da situação de facto em apreço.
Ora, do extrato relativo ao período respetivo, confirma-se uma transferência da depoente para a referida conta titulada pelo extinto casal, em 05-09-2022, de € 10.120.00. Também documentada nessa mesma data um débito de 25.000,00 com o seguinte código: “Reforço BPI poupança reserva 431/001”.
Porém, daí não resulta que a reclamante tenha amortizado, exclusivamente com dinheiro seu (e não do casal), o crédito em € 25.000,00, ou sequer que tivesse acordado com o cabeça casal que essa seria a medida da sua responsabilidade no mútuo.
Acresce que não reveste relevância exarar nos factos provados que o cabeça de cal teve que gastar € 25.000,00 para a equipar a casa que arrendou.
Consequentemente, nesta parte, revela-se igualmente improcedente a impugnação.
Prosseguindo na apreciação da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, pretende ainda a recorrente que seja consignado um facto provado com a seguinte redação:
“O cabeça de casal, com a assinatura do acordo de separação, a 10-05-2021, quis vincular-se à partilha da casa de morada de família que ficaria atribuída em exclusivo à aqui recorrente”.
Fundamenta tal impugnação no depoimento da testemunha F, a cuja audição integral se procedeu. A testemunha efetuou um relato consistente, informado e objetivo, evidenciando proximidade ao extinto casal, e conhecimento e acompanhamento dos diversos passos do processo que conduziu à separação e divórcio.
Relatou que numa primeira fase, em abril de 2021, o cabeça de casal o contactou informando que se iria separar da recorrente, e que o pretendia fazer de forma consensual. O depoente interveio na mediação entre ambos, razão pela qual teve conhecimento de um acordo em maio de 2021. Quanto à intenção do cabeça de casal, referiu que o cabeça de casal queria ver as coisas resolvidas o quanto antes para prosseguir a sua vida. Mesmo assim, nega que o cabeça de casal pretendesse prescindir dos seus direitos sobre o imóvel. A ideia foi sempre de a casa ser partilhada por ambos, tendo até pensado inicialmente numa partilha de uso. Houve propostas no sentido de a casa ser vendida ou passar para o nome dos filhos. Falou-se também que a casa poderia reverter a favor dos filhos. O cabeça de casal acabou por assinar o acordo mencionado nos autos sem prévio conhecimento do depoente.
Posteriormente, em setembro 2021, o depoente recebeu uma mensagem do cabeça de casal em que relatava uma reconciliação do casal, voltando os seus elementos a viver juntos. Perto do final do ano chegou a dizer-lhe que estavam bem, tinham feito projetos futuros e contraído um empréstimo bancário com vista à aquisição de uma segunda habitação (férias), para o que andavam a ver terrenos.
Porém, em fevereiro de 2022, o cabeça de casal informou-o de nova separação, que deu a entender ser definitiva. Foram estabelecidos novos contactos de mediação (do depoente e duma amiga da recorrente), visando um segundo acordo. O cabeça de casal disse sempre que não aceitava mais nenhum acordo e queria um divórcio oficial.
Na perspetiva do depoente, aquele acordo inicial não tinha já qualquer validade. E tanto assim era que a recorrente tentou um segundo acordo, rejeitado pelo cabeça de casal, que queria um divórcio oficial. Na perspetiva do depoente, o acordo em questão nos autos ficou sem efeito, aludindo mesmo a que “foi cancelado” ou que “ficou sem validade”, o que também resulta sustentado dos termos do acordo de 10-05-2022. Efetivamente, na sua cláusula 5 menciona-se, expressamente “Não será realizado um divórcio formal”, pelo que a intenção de formalizar o negócio evidencia que o cabeça de casal deixou de anuir nos termos da separação ali enunciados.
Resulta, portanto, deste meio de prova testemunhal (aqui plenamente admissível, por se referir a um bem ativo do património comum) a infirmação da pretensão da recorrente. Ou seja, este depoimento não confirma que o cabeça de casal, com a assinatura do acordo de separação, a 10-05-2021, quisesse vincular-se indefinidamente à partilha da casa de morada de família, atribuindo-a em exclusivo à recorrente. Pelo menos, tal vontade não subsistia no momento da segunda separação e divórcio do extinto casal. Improcede, pois, a impugnação deduzida.
C – FACTOS PROVADOS
São os seguintes os factos provados a considerar:
3.1. Requerente e Requerida contraíram casamento em 30.09.2005, sem convenção antenupcial.
3.2. Por decisão da Conservatória do Registo Civil de Lisboa, no processo de divórcio por mútuo consentimento nº …/2023, foi decretado o divórcio entre os interessados em 29.11.2023, decisão que transitou de imediato em julgado.
3.3. No divórcio, as partes chegaram a acordo relacionando como bens comuns, no ativo, como verba n.º 1 a casa de morada de família descrita como “Fração autónoma designada pela letra Q que correspondente ao 3º andar, letra A, para habitação, do prédio urbano sito na Rua … Lisboa, freguesia de São Domingos de Benfica, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº … e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o nº … da freguesia de São Domingos de Benfica, à qual os ex-cônjuges atribuíram o valor de € 552.000,00 (quinhentos e cinquenta e dois mil euros), e cujo valor patrimonial é de € 211.907,03 (duzentos e onze mil, novecentos e sete euros e três cêntimos),
3.4. E relacionaram como Passivo: “Verba 1 :Deve o ex-casal ao Banco BPI, relativo ao crédito a habitação para aquisição do imóvel identificado supra, a quantia atualizada à presente data de € 213.547,45 (duzentos e treze mil, quinhentos e quarenta e sete euros e quarenta e cinco cêntimos), Verba 2: Deve o casal ao Banco BPI, relativo ao crédito pessoal, aquantia atualizada à presente data de € 24.177,85 (vinte e quatro mil, cento e setenta e sete euros e oitenta e cinco cêntimos).”
3.5. Acordaram ainda sobre o destino da casa de morada de família que “para efeitos do processo de divórcio que vão instaurar na Conservatória do Registo Civil de Lisboa, que o direito de uso e habitação da casa de morada de família, situada na Rua … Lisboa, a qual é propriedade de ambos os cônjuges, seja atribuída à cônjuge mulher até à partilha.”
3.6. Tais acordos foram homologados pela decisão que decretou o divórcio entre as partes.
3.7. Por documento particular assinado a 10 de maio de 2021, com reconhecimento presencial das assinaturas no Cartório Notarial da Dr.ª G, em Lisboa, foi declarado pelas partes que celebram “acordo de separação”, com o seguinte introito:
“O presente acordo, estabelecido entre B, portadora do cartão de cidadão n.º …, valido ate …/…/2029, e A, portador do cartão de cidadão n.º …, valido ate …/…/2030, visa definir as regras acordadas entre ambos para a sua separação formal.”
E sujeito às seguintes cláusulas:
“Cláusula 1; Ambos concordam que a sua relação terminou mas que o futuro dos seus filhos D e C deverá ser sempre salvaguardado, quer a nível patrimonial quer a nível emocional e em termos de educação, reconhecendo ambos a importância do papel do outro no desenvolvimento dos seus filhos. A AA será sempre equiparada aos filhos biológicos, exceto na garantia de património;
Cláusula 2: De forma a garantir o património e meios de subsistência futuros para os dois filhos mencionados, ambos se comprometem a não vender, em momento algum, a atual residência com morada na Rua … Lisboa, mantendo-se a mesma como a residência da B, assumindo esta a totalidade do empréstimo bancário;
Cláusula 3: A B e o A abdicam de definir, a priori, qualquer modelo de partilha de lucros de uma eventual venda da casa por ambos se oporem determinantemente à venda da mesma;
Cláusula 4; De forma a garantir o saudável desenvolvimento dos filhos D e C, assim como da jovem H, foi decidido que ambos partilharão as responsabilidades inerentes ao seu crescimento saudável, em particular no que toca a saúde e educação. A guarda será partilhada entre ambos, em função das reavaliações reconhecidas como necessárias e de acordo com o seguinte modelo:
i) O C permanecerá uma semana em casa de cada um dos pais, até existirem sinais claros de que o modelo em causa põe em causa a sua estabilidade emocional ou física, a rever de seis em seis meses;
ii) O C permanecerá uma semana em casa de cada um dos pais, até ao momento em que este modelo não proporcione o garante logístico de todas as necessidades inerentes às especificidades físicas do C, a rever de seis em seis meses;
iii) A D e a H poderão decidir onde pretendem ficar e em que moldes, devendo a B e o A aceitar a sua decisão;
iv) Sempre que por algum motivo um dos pais necessite de um cuidador para os menores indicados, seja qual for a duração do período em causa, deverá sempre, em primeiro lugar, recorrer ao outro elemento do casal;
v) Nos aniversários do C, D e H, quer a B, quer o A deverão estar presentes, salvo motives de força maior;
Quer a B quer o A, caso não seja o seu período de guarda, terão direito a celebrar os seus aniversários com os seus filhos;
vii) 0 período de férias deverá ser alinhado anualmente entre ambos de forma a garantir que existe sempre apoio de um dos pais para o período de encerramento da escola do C;
viii) Relativamente ao Natal, ambos se comprometem a celebrar o mesmo juntos, na residência da Rua …, enquanto esta situação for possível para ambos. Quando uma das partes entender que não estão reunidas as condições necessárias para esta celebração em conjunto, deverá ser definido um calendário rotativo em que num ano um fica com a guarda no dia e noite de 24 de dezembro e o outro fica com a guarda no dia e noite de 25 de dezembro;
ix) Ambos se comprometem a comunicar e acompanhar as reuniões escolares, consultas médicas ou qualquer outro evento que implique a participação dos seus filhos ou da jovem H, devendo partilhar entre ambos todas as informações referentes a aspetos relacionados com a saúde e educação dos menores indicados;
x) Para todos e quaisquer efeitos de contactos institucionais ou outros, a morada de residência a considerar como habitação da D, da H e do C deverá ser a residência da Rua … Lisboa;
xi) Os custos com educação e saúde serão partilhados pela B e pelo A na proporção dos seus vencimentos líquidos. Sempre que existirem alterações de vencimento, a proporção de contributo de cada um deverá ser revista;
xii) O A assume o pagamento de 400 euros mensais de ajudas de custo. Este valor será pago parcialmente pelo valor depositado mensalmente no cartão refeição emitido em seu nome e o valor remanescente ficará depositado na atual conta aberta no BPI, onde existe o empréstimo bancário. Caso deixe de haver cartão refeição, a transferência será no valor total assumido. Este contributo será efetuado de forma mensal até à data em que a B assuma coabitação com outra pessoa;
xiii) Relativamente à alínea anterior, quer a B quer o A concordam que em caso de alterações das suas situações financeiras, os pagamentos das ajudas de custo e participação nas despesas acordadas deverá ser revisto;
xiv) 0 A continuará a pagar o seguro de saúde existente em nome da B enquanto esta possibilidade for legalmente exequível.
xv) A B assumirá as despesas decorrentes do empréstimo bancário em curso, assim como outras despesas associadas a casa e a vivência de todos os menores na sua residência;
xvi) À exceção das despesas de saúde ou de educação, partilhadas de igual modo entre os dois adultos, as despesas de alimentação, higiene, outros cuidados ou extras, serão assumidas na totalidade pelo pai que tiver os filhos sob a sua guarda;
Cláusula 5; Não será realizado um divórcio formal. Não obstante, nenhum levantara obstáculos quando o outro requerer que se avance neste sentido. Aquando da formalização do divórcio, os princípios definidos neste acordo relativamente à não venda da casa, não poderão ser alterados, devendo sempre respeitar-se a salvaguarda do futuro do C e da D.
Cláusula 6: A declaração anual de IRS deverá ser preenchida de acordo com o cenário que for mais vantajoso para ambos, sendo o montante de reembolso a receber dividido em partes iguais. Esta situação será obrigatoriamente revista aquando do divórcio formal.
Cláusula 7: Na impossibilidade de ser no imediato, assim que legalmente possível, ambos se comprometem em transferir a propriedade do imóvel sito na Rua … para nome dos seus filhos C e D, não podendo nenhum dos dois usufruir de qualquer beneficio de qualquer transação comercial realizada com a casa;
Cláusula 8: Aquando do processo de interdição do C, e na impossibilidade da nomeação de dois tutores legais, a B será formalmente a sua tutora. Não obstante, este papel formal haverá sempre o compromisso de defesa do modelo de guarda que, à data, melhor defenda os interesses do C reconhecendo-se sempre a importância do A na vida do C, mantendo-se o A com os mesmos direitos e obrigações que a B. Em caso de ser possível a nomeação de dois tutores, deverão ser ambos nomeados para este papel;
Cláusula 9: A B e o A comprometem-se a respeitar-se mutuamente e a tratarem-se de forma cordial e educada, não denegrindo a imagem do outro junto de ninguém, evitando ofensas verbais e comentários sobre a atuação do outro junto de terceiros;
Cláusula 10: Aquando da sua saída de casa, o A levará consigo a lista dos seguintes bens comuns:
• Duas fotografias (foto em anexo)
• Piano
• Guitarra
• Amplificador e colunas
• CDs, DVDs e Livros
• Um candeeiro de secretaria (foto em anexo)
• 3 serigrafias (fotos em anexo)
• 1 escultura (foto em anexo)
Relativamente aos livros, fica acordado que, numa primeira fase, parte dos livros, CDs e DVDs do A permanecerão na Rua … podendo o mesmo aceder aos mesmos por acordo prévio com a B e, futuramente, poderá vir buscá-los de forma definitiva.
Todos os restantes bens permanecerão na residência da Rua …, para usufruto de todos os que utilizam a residência.
Cláusula 11: Ambos se comprometem a não colocar em causa, em momento algum, este projeto conjunto de salvaguardar o futuro dos filhos apos a sua morte ou incapacidade;
Cláusula 12; Ambos se comprometem a manter o seguro de vida já existente no banco Montepio, garantindo-se este pagamento com o atual subsídio de apoio a terceira pessoa atribuído ao jovem C.
3.8. Após a assinatura do acordo, a 10 de maio de 2021, o ex-casal reconciliou-se, tendo mantido o seu casamento e a comunhão de leito, mesa e habitação até março de 2022, altura em que se separaram de facto definitivamente.
3.9. Os interessados chegaram a um Acordo Parcial de partilha de alguns dos bens móveis do recheio da casa de morada de família, na diligência de 3.10.2024, o qual ficou exarado em ata nos seguintes termos:
“1 - Todas as serigrafias descritas na resposta à reclamação à relação de bens, junta a fls. 137 sob o art.º 64, à exceção daquelas que se encontram no quarto do filho C e de uma serigrafia com uma orquestra Jazz a tocar, com moldura laranja, no valor de €250,00, ficam atribuídas ao cabeça de casal. ---
2 – Todos os eletrodomésticos existentes na CMF ficam atribuídos à interessada. –
3 – Todos os livros, DVDs, CDS e ainda uma mesa de apoio ficam atribuídos ao cabeça de
casal. --
4 - Os bens pertencentes ao cabeça de casal serão recolhidos da CMF por um amigo em comum, Sr. º Eng. F, aqui presente, que se compromete a acordar com a interessada um dia para a recolha desses bens, a agendar até ao final do mês de outubro, e após proceder à sua entrega ao cabeça de casal, em circunstância de tempo e lugar a acordar com este.” ---
D – São os seguintes os factos não provados:
1. Que o Cabeça de Casal, quando assinou o supra referido documento designado de “acordo de separação”, acreditava ainda numa hipótese de reconciliação;
2. Que não assinou aquele documento livre e conscientemente, mas que foi forçado à assinatura do acordo;
3. Que quando assinou o supra referido documento, o cabeça de casal nunca tivesse a intenção que o que nele ficou expresso correspondesse a uma forma de partilha e de regulação de responsabilidades parentais;
4. Que a requerida pagou sozinha, com a casa de morada de família, desde a separação de facto (março de 2022), até à data em que foi decretado o divórcio (Novembro de 2023), despesas comuns que ascenderam, no total, a Euros 29.103,43, referentes a Prestações do crédito à habitação: Euros 21.191,37;-
Seguros: Euros 4.376,90;- Condomínio: Euros 1.610,00;- Obras no condomínio em 2022: Euros 929,16 e IMI: Euros 996,00;
5. Que o crédito pessoal contraído em 21 de setembro de 2021 pelos ex-cônjuges junto do banco BPI, no valor global de Euros 50.000,00, tenha sido logo dividido entre o cabeça de casal e a requerida, na proporção de 50% para cada, pois, à altura, ambos já se encontravam separados de facto;
6. Que a requerida pagou a sua parte do empréstimo ao banco BPI, Euros 25.000,00, com dinheiro próprio.
E - Reapreciação da decisão de mérito
A questão de direito que resta apreciar traduz-se na manutenção ou exclusão da verba nº 1 da relação de bens:
Fração autónoma para habitação, correspondente ao 3º andar, do prédio urbano sito na Rua … Lisboa, freguesia de São Domingos de Benfica, concelho de Lisboa, descrita na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº …, e inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o nº… da freguesia de São Domingos de Benfica.
Sendo indiscutivelmente comum este bem imóvel, afirma a recorrente que não deve constar da relação de bens e ser objeto de partilha por força do acordo celebrado no dia 10 de maio de 2021.
Das diversas cláusulas desse acordo, são as seguintes as que se referem ao referido bem imóvel:
Cláusula 2: De forma a garantir o património e meios de subsistência futuros para os dois filhos mencionados, ambos se comprometem a não vender, em momento algum, a atual residência com morada na Rua … Lisboa, mantendo-se a mesma como a residência da B, assumindo esta a totalidade do empréstimo bancário;
Cláusula 3: A B e o A abdicam de definir, a priori, qualquer modelo de partilha de lucros de uma eventual venda da casa por ambos se oporem determinantemente à venda da mesma;
Cláusula 7: Na impossibilidade de ser no imediato, assim que legalmente possível, ambos se comprometem em transferir a propriedade do imóvel sito na Rua …. para nome dos seus filhos C e D, não podendo nenhum dos dois usufruir de qualquer benefício de qualquer transação comercial realizada com a casa.
Antes de se proceder à análise destas cláusulas, desde já se deve referir que se acompanha o raciocínio do Tribunal recorrido ao afirmar que o acordo em questão não é convocável no presente litígio.
Na verdade, decorre do princípio da liberdade contratual, plasmado no artigo 405º, nº 1, CC, que as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, neles incluindo as cláusulas que entendam. Em termos simples, um contrato é um acordo entre duas ou mais partes, com efeitos jurídicos, que visa criar, modificar ou extinguir direitos e obrigações. É um negócio jurídico que estabelece as regras e responsabilidades de cada parte envolvida, criando, portanto, um programa de prestações que ambas devem cumprir.
Mas esse programa assenta num acordo destinado a regular uma situação concreta, mantendo-se vigente enquanto esta não se extinguir. Ora, no caso em apreço, e como as partes expressamente consignaram no introito do contrato, o acordo visava “definir as regras (…) para a sua separação formal”. Separação essa que então se verificava (10 de maio de 2021), mas que entretanto findou, por vontade de ambos os contraentes, pois provou-se que após a assinatura do acordo, o ex-casal reconciliou-se, tendo mantido o seu casamento e a comunhão de leito, mesa e habitação (até março de 2022, altura em que se separaram de facto definitivamente).
Por conseguinte, a separação regulada no acordo de 10 de maio de 2021 findou, assim se extinguindo também as diversas cláusulas e obrigações dele decorrentes. Podemos, pois, dizer que o objeto desse acordo ou contrato (enquanto descrição detalhada do que as partes acordaram realizar ou fornecer, estabelecendo a finalidade e o objetivo do contrato) se extinguiu.
Conclui-se, portanto, que as referidas cláusulas do acordo de 10 de maio de 2021 não são aqui convocáveis, não por invalidade, mas por extinção (por ato extintivo voluntário de ambas as partes – a reconciliação).
Não obstante, o recurso não poderia proceder por força do conteúdo do referido acordo (as cláusulas acima elencadas).
Com efeito, as cláusulas 2 e 3 configuram uma cláusula de inalienabilidade perpétua, dado que as partes se vincularam a não venderem o imóvel “em momento algum”, logo para sempre. Essa limitação impediria as partes, sob pena de violação do contrato e consequente sujeição a responsabilidade patrimonial, de livremente exercerem um dos poderes inerentes ao conteúdo da propriedade: a sua livre disposição (artigo 1305º do Código Civil).
Ora, como refere Almeida Costa (“Cláusulas de Inalienabilidade”, R.L.J., Ano 124º, pp. 329 a 333, 356 a 359, Ano 125º, pp. 8 a 10 e 43 a 46), “não pode haver a mínima dúvida de que o direito português se revela hostil às cláusulas de inalienabilidade perpétua. Elas violam, desde logo, o princípio da ordem pública, da livre circulabilidade ou da livre disposição dos bens, a que o legislador subordina o estatuto da propriedade”. Ainda segundo o referido autor, “o poder ou faculdade de alienação, sempre que a lei não estabeleça diretamente restrições, faz parte do estatuto da propriedade. E mais: é imprescindível à efetivação de um outro princípio subjacente ao nosso ordenamento jurídico - o princípio da livre comercialidade ou da livre disponibilidade dos bens” (obra citada, Ano 125º, p. 8).
Assim sendo, por força desses princípios, e perante a redação do artigo 1305º, CC, as cláusulas de inalienabilidade perpétua têm de considerar-se inadmissíveis e nulas. Neste sentido, veja-se, entre outros, os Acórdãos do STJ de 31-03-2004 (Revista nº 670/04 – 6ª Secção, sumário disponível em https://pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=16943) e de 16-04-2013 (proferido no processo nº 230/08.7TBPNH.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt)
Do exposto sempre resultaria, pois, a ineficácia das referidas cláusulas, não podendo sustentar a reclamação contra a relação de bens.
Mesmo que assim não fosse, sempre se deveria perspetivar que as referidas cláusulas 2 e 3 apenas consagram um impedimento de venda, e não de partilha, que é o que se efetua no processo de inventário. Ora, como decorre claramente do artigo 2101º, nº 2, CC, o direito à partilha é irrenunciável, de forma imperativa, ou seja, não podendo ser afastado por vontade das partes.
Desta forma, não poderiam as referidas cláusulas impedir a partilha do bem imóvel neste processo de inventário.
Mas o acordo firmado no dia 10 de maio de 2021 contém uma outra cláusula aqui invocada pela recorrente: a cláusula 7, que configura uma promessa de doação, pois as partes comprometem-se a transmitir, em ato futuro, a propriedade do imóvel para o património dos filhos de forma gratuita (“não podendo nenhum dos dois usufruir de qualquer benefício de qualquer transação comercial realizada com a casa”).
Ora, como defendem Cunha Gonçalves (Tratado de Direito Civil, VIII, p. 52), “não é possível, ou não tem valor algum (…) uma promessa de doar. A doação ou existe ou não existe. Sendo um favor, ela não pode ser exigida, sob pena de perdas e danos; teríamos, assim, uma doação forçada; e um benefício não se impõe. Faltaria à doação o seu caráter de espontaneidade (…). O doador, não fazendo a doação prometida, poderá causar uma deceção ao donatário; mas não comete um ato ilícito. As promessas só são exigíveis nos contratos a título oneroso, que são negócios com prestações recíprocas”. Também Batista Lopes (“Das Doações”, Almedina, 1970, p. 28) sustenta o mesmo entendimento: “o contrato promessa é uma convenção que obriga (artigo 410º), que vincula (artigo 411º), o que está em absoluto desacordo com o caráter de liberalidade que é a essência do contrato de doação”.
Daí que, mesmo sendo debatida a validade dessa promessa, a jurisprudência tenha vindo a decidir que a promessa de doação não é suscetível de execução específica, atenta a natureza do vínculo assumido e a possibilidade de desistência do doador até à celebração do contrato prometido – cfr. Acórdãos do STJ de 01-07-2010 (proferido no processo nº 8091/04.9TBMAI.S1, disponível em www.dgsi.pt), da Relação de Lisboa de 25-06-2009 (proferido no processo nº 2431/04.8TVLSB.L1-6, disponível em www.dgsi.pt) e da Relação de Coimbra de 11-12-2024 (proferido no processo nº 2937/22.7T8CBR.C1, disponível em www.dgsi.pt).
E assim sendo, o cabeça de casal, ao incluir o imóvel na relação de bens, expressa claramente a sua vontade legítima de não concretizar a referida doação.
Concluindo, os factos provados, incluindo o acordo firmado no dia 10 de maio de 2021, não implicam a exclusão do imóvel que constitui a verba 1 da relação de bens, como bem decidiu a sentença recorrida.
Por fim, quanto aos pedidos subsidiários, relativos ao passivo, resulta do acima referido na apreciação da impugnação de decisão quanto à matéria de facto que a recorrente não logrou cumprir o ónus probatório que sobre si impendia.
Em consequência, o recurso que interpôs improcede totalmente.
Em face dessa improcedência, a recorrente suportará as custas do recurso – artigo 527º, CPC.
*
III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 2ª secção cível julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela interessada B, mantendo a decisão recorrida.
Custas do recurso pela interessada recorrente – cfr. artigo 527º, CPC.
D.N.
Lisboa, 26 de junho de 2025
Rute Sobral
António Moreira
Fernando Alberto Caetano Besteiro