PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ARROLAMENTO
DISSIPAÇÃO DE BENS
PROCESSO ESPECIAL DE ACOMPANHAMENTO DE MAIORES
LEGITIMAÇÃO DA DECISÃO
LEGITIMIDADE
Sumário

I – Tendo como desiderato eliminar o risco de extravio, ocultação ou dissipação de bens litigiosos, a providência cautelar de arrolamento visa especificamente assegurar a permanência ou salvaguarda de bens que devem ser objecto de especificação nos autos principais;
II - subjaz ao presente procedimento cautelar a existência de uma pluralidade de bens que se pretende acautelar, numa intencionalidade de conservação da coisa que é objecto da acção da qual o arrolamento depende;
III - no conceito de dissipação de bens, enquanto perigo que se pretende eliminar através de tal medida cautelar, inserem-se os actos que implicam o desbaratamento, esbanjamento, desperdício ou prodigalização dos bens;
IV - a legitimidade para a dedução do presente procedimento cautelar pertence a quem se afirme titular de um interesse na conservação dos bens, o qual é, em geral, directo, admitindo-se, todavia, uma legitimidade indirecta ou extraordinária;
V - tendo como objectivo a conservação de bens, o arrolamento pode traduzir-se através da relacionação dos bens do interdito ou inabilitado, funcionando, assim, presentemente, através do relacionamento dos bens do beneficiário no âmbito do processo especial de acompanhamento de maior (cf., o nº. 1, do artº. 902º, do Cód. de processo Civil), e funcionando como interessado quem, nesta acção, se apresente a defender os interesses do beneficiário;
VI - pelo que, o requerente de acompanhamento de maior, estando os bens sob o poder ou disponibilidade de outrem, e receando o seu extravio, ocultação ou dissipação, pode requerer o arrolamento.
Sumário elaborado pelo Relator – cf., nº. 7 do artº. 663º, do Cód. de Processo Civil

Texto Integral

ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte 1:

I – RELATÓRIO
1 – AA propôs, por apenso à Ação de Acompanhamento de Maior à margem referenciada, relativamente à Beneficiária BB, Procedimento Cautelar de Arrolamento, ao abrigo dos art.ºs 403 e segs e 364, 3/CPC, fazendo constar no requerimento inicial o seguinte:
“I – DOS FACTOS
1) Da Requerente
1. A Requerente é filha da Beneficiária do acompanhamento (doc. 1), não tendo esta mais filhos, nem herdeiros, para além do seu marido CC, com quem está casada desde 1985 (doc. 2).
2. Pelo que a Requerente tem interesse em salvaguardar o bem estar e o património da Beneficiaria, sua mãe, dada a manifesta incapacidade desta para salvaguardar o seu património, em virtude das suas anomalias psíquicas e de saúde, como à frente se demonstrará.
3. Tanto mais que a Requerente também é herdeira legitimária da Beneficiária.
2) Do estado psíquico da Beneficiária do Acompanhamento
4. A Beneficiária do Acompanhamento tem 75 anos de idade (doc. 2) e sofreu dois acidentes vasculares cerebrais AVCs; um em 18/12/2020 e outro em 30/09/2021 (doc. 3).
5. Que deixaram sequelas no foro físico e psicológico.
6. Tendo a ficado num acentuado estado de confusão mental e de alucinações.
7. A ora Beneficiária, está a ser seguida no Hospital …, pelo médico Neurologista Dr DD, o qual emitiu, em 21/01/2025, um Relatório clínico, segundo o qual (cfr.doc. 3):
“Em janeiro de 2024 iniciou um quadro de declínio cognitivo, tendo-se apurado a presença de confabulações, alucinações visuais, e ideias delirantes, acreditando p. ex. que a sua mãe já falecida ainda vivia na sua casa e que a tinha de alimentar.
Ao exame neurológico, para além das sequelas vascular focais já descritas, verificava-se desorientação temporal marcada.
Foi feito o diagnóstico de demência, de provável etiologia multifactorial.
Iniciou terapêutica com rivastigmina”.
8. Estando a ora Beneficiária a ser medicada com Rivastigmina.
9. Que é um medicamento para a demência e/ou doença de Alzheimer, segundo a Bula (Doc. 4).
10. Acresce que a Beneficiária tem registado na Autoridade Tributária um grau de incapacidade de 93% (Doc. 5).
11. Esta situação tem vindo a degradar-se progressivamente.
12. Tendo ocorrido um episódio em que chegou ao ponto de não reconhecer o próprio marido.
13. Falando ao telefone com a filha, disse a esta que estava lá em casa um homem que não conhecia e perguntou ao marido: “O senhor como se chama?”.
14. E, acabando por reconhecer que era o seu próprio marido, após este ter respondido aos gritos.
15. A título exemplificativo, é recorrente a Beneficiária falar da mãe e do pai como se estivessem vivos.
16. Já ligou á filha às 5.00 da manhã, desesperada, á procura da mãe.
17. Chegando a dizer à filha, ora A.: “fui ontem ao centro comercial com o meu pai…”.
18. E perguntou se podia trazer o pai dela a casa da filha, ora A.
19. Às vezes, diz que a mãe dela vive lá em casa e que o pai também, quando ambos já morreram há cerca de 35 anos
20. Esta situação tende a agravar-se com a opressão e controlo que o marido exerce sobre a ora Beneficiária.
21. A filha tenta ligar á Mãe, mas, com grande dificuldade, só após várias tentativas consegue.
22. E, o marido da Beneficiária impede-a, sequer, de sair e conviver com a filha.
23. Apesar das várias tentativas da filha, ora A., para sair com a mãe e irem almoçar juntas.
24. Ou para a levar a uma consulta médica.
25. Que o marido da Beneficiária sempre proíbe.
26. Este controlo e opressão do marido sobre a Beneficiária causam a esta ansiedade e provocam um agravamento das suas deficiências cognitivas.
27. Todavia, a mãe liga bastantes vezes à filha, quando está sozinha.
3) Do comportamento do marido da Beneficiária
28. Conforme atrás referido, o marido da Beneficiária, CC, exerce sobre esta um comportamento opressivo.
29. Controlando todos os seus movimentos e impedindo-a de conviver com as suas amigas e com a própria filha.
30. Qualquer telefonema, o marido ouve as conversas e interfere agressivamente.
31. E, impede a filha, ora A., de visitar a mãe na casa desta.
32. O que provocou que a ora A. apresentasse queixa no Ministério Público por maus tratos, processo que ainda está a decorrer (Doc. 6).
33. Assim como, idêntica queixa tenha sido apresentada por EE e EE.
34. Situação essa que é agravada pelo facto de o marido da Beneficiária não trabalhar e estar sempre em casa, controlando todos os seus contatos.
35. Porém, este domínio do marido da Beneficiária estende-se, também, no âmbito patrimonial.
36. Dispondo o marido da Beneficiária, a seu belo prazer, de todo o património da Beneficiária.
4) Dos riscos a que está sujeita a Beneficiária
37. Conforme atrás referido, o marido da Beneficiária dispõe livremente do património da Beneficiária, sem que esta esteja em condições de o controlar.
38. Neste momento, o marido da Beneficiária está a promover, em plataformas de Imobiliário, a venda de um prédio, sito em Cascais, pelo preço de € 2.250.000,00 (doc.s 7 e 8)
39. Composto por um prédio urbano, com 4 parcelas rústicas, sito em Cascais (Doc. 9):
a) - Terreno para construção, sito nos ..., inscrito na matriz predial sob o artigo … da freguesia de Cascais e Estoril e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º ….
e
b) - 4 parcelas de terreno rústico, compostos de mato, cultura arvense de sequeiro e terreno estéril sito nos ..., em Cascais, na freguesia de Cascais e Estoril, inscrito na matriz predial sob o artigo …, da secção …, não descrito na CRP de Cascais.
40. Que é um bem próprio da Beneficiária (Doc. 10).
41. Sendo, atualmente, o único bem da Beneficiária.
42. E, há o risco de dissipar o produto da venda.
43. Tanto mais que, no final de 2021, já foi alienado outro prédio, pertencente à Beneficiária, com cerca de 3000 metros quadrados, em Cascais, pelo valor de 700.000€ (doc. 11).
II – DO DIREITO
44. Dispõe o art.º 403/CPC:
45. “1 - Havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, pode requerer-se o arrolamento deles.
46. 2 - O arrolamento é dependência da ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas”
47. Ora, como resulta do atrás exposto, verifica-se um risco sério de extravio do prédio atrás identificado.
48. O que constitui um prejuízo grave e dificilmente reparável, uma vez que são os únicos bens da Beneficiária.
49. A qual não está em condições psíquicas para dar o seu consentimento.
50. E, o produto da venda poderia ser facilmente extraviado, em prejuízo da ora Beneficiária.
51. Por outro lado, conforme atrás demonstrado, verificam-se todos os requisitos para ser decretado o estatuto de Maior Acompanhado relativamente à BB.
52. Porém, mesmo que sejam decretadas medidas provisórias no processo de Acompanhamento, as mesmas têm um âmbito diferente e podem não evitar eficazmente a alienação dos referidos bens.
53. Em suma, verificam-se todos os requisitos, nos termos dos art.ºs 362 e 403 e segs/CPC, para ser decretado a arrolamento dos bens acima identificados pertencentes à BB, do processo de Maior Acompanhado, de que esta providência é apensa”.
Conclui, no sentido de procedência da acção, devendo, consequentemente:
ser determinado o arrolamento dos seguintes prédios:
- Terreno para construção, sito nos ..., inscrito na matriz predial sob o artigo … da freguesia de Cascais e Estoril e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º ….
e
- 4 parcelas de terreno rústico, compostos de mato, cultura arvense de sequeiro e terreno estéril sito nos ..., em Cascais, na freguesia de Cascais e Estoril, inscrito na matriz predial sob o artigo …, da secção …, não descrito na CRP de Cascais.
Mais se requer, que o presente procedimento cautelar seja decretado sem audiência prévia da Beneficiária do Acompanhamento, a qual, aliás, não está em condições psicológicas de expressar a sua vontade e existe o risco do marido da Beneficiária antecipar a venda dos referidos prédios”.
2 – Em 10/04/2025, foi proferido Despacho liminar com o seguinte teor:
Despacho liminar:
AA, instaurou por apenso ao processo de maior acompanhado instaurado a favor de BB, o presente procedimento cautelar de arrolamento requerendo que o Tribunal, sem audiência prévia da beneficiária do acompanhamento, ordene o arrolamento dos seguintes prédios:
- Terreno para construção, sito nos ..., inscrito na matriz predial sob o artigo … da freguesia de Cascais e Estoril e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º …, e
- 4 parcelas de terreno rústico, compostos de mato, cultura arvense de sequeiro e terreno estéril sito nos ..., em Cascais, na freguesia de Cascais e Estoril, inscrito na matriz predial sob o artigo …, da secção …, não descrito na CRP de Cascais.
Alegou em suma que é filha da Requerida e instaurou um processo de acompanhamento de maior, a favor da mesma, porquanto a mesma apresenta um quadro de progressivo declínio cognitivo, agravado pelo comportamento do marido, que a impede de se deslocar a uma consulta médica e de conviver com a filha, o que motivou a apresentação de uma queixa-crime, dispondo o mesmo do património da mesma a bel prazer, sem que a mesma esteja em condições de a controlar, existindo neste momento um processo de venda de um terreno de € 2.500.000,00 euros em curso, existindo ainda um justo receio de dissipação deste valor, tanto mais que no final de 2011, já foi alienado um outro prédio, pertencente à beneficiária, com cerca de 3000 metros em Cascais, pelo valor de € 700.000,00 euros.
Cumpre apreciar e decidir:
Os procedimentos cautelares são o meio idóneo a acautelar o efeito útil da ação em curso ou que se pretenda instaurar, para que no normal tempo da tramitação não se venha a perder de forma definitiva e irrecuperável o direito da parte.
A providência a conceder representa assim uma antecipação ou garantia em relação ao resultado do processo principal e assentam numa análise indiciária da situação de facto, que permita concluir pela existência provável do direito, e pelo requisito geral de que tal direito possa esperar pela ação comum, existindo um perigo na demora (art. 362.º CPC) e um risco de lesão grave do direito (art. 368.º CPC).
O arrolamento é a providência cautelar adequada a obstar ao justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis ou documentos, sendo requerido por dependência à ação a qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos a coisas arroladas (art. 403.º CPC).
Cumpre assim, face à matéria alegada, verificar indiciariamente os requisitos deste tipo de providência cautelar especificada:
No caso vertente, apreciando o requerimento apresentado e a prova que lhe serve de suporte, verifica-se no atestado do Centro Hospitalar … datado de 21.01.2025 que a Requerida desde o dia 20.04.2021, isto é, desde há quatro anos a esta parte, na sequência de acidente vascular cerebral e posterior crise epilética é seguida em consulta de neurologia, tendo no inicio de 2024 começado a apresentar um quadro de declínio cognitivo, com a presença de confabulações e alucinações e ideias delirantes.
Mais indicou que à data da última consulta presencial, a mesma apresentava desorientação temporal e necessitava de apoio de terceira pessoa para a marcha.
Mais consignou ainda que a Requerida é acompanhada nas consultas pelo marido, e do seu conhecimento o marido é o principal cuidador.
Do quadro supra exposto, resulta manifestamente que a Requerida não se encontra impedida de ir ao médico e que o marido, cujo comportamento a Requerente carateriza de opressivo, se constitui na verdade, como o seu principal cuidador.
Quanto à alegada opressão que a Requerente sustenta, mostra-se algo difícil de apreciar o facto com alguma objetividade e relevância jurídico-civil, quando pela mesma foi inclusivamente apresentada uma queixa-crime contra o mesmo, o que indica uma pré-apreciação negativa de um comportamento, não objetivo das competências do mesmo no exercício dos seus deveres de cooperação, que seria na realidade, o que carecia de ser alegado no presente caso.
Na verdade, a Requerente não reside com a Requerida, não se constitui como a sua cuidadora, não alega como são prestados os seus cuidados diários, não alegra em que medida o seu marido não logra cooperar com a mesma, ou em que medida o quadro de ideias delirantes e confabulação não conduz a um relato dos factos de forma inexata e deturpada, o que acontece amiúde em quadros clínicos como o atual.
Quanto à alegada medida de arrolamento, com vista à obstaculização do receio de justo extravio, convém relembrar que na pendência do matrimónio existem regras específicas para a administração de bens do casal (art. 1678.º Cód. Civil), onde se incluem o poder do cônjuge administrar os bens próprios do outro cônjuge que por qualquer motivo se encontre impossibilitado de o fazer (art. 1678.º, n.º 1, alínea f) Cód. Civil), sendo que qualquer venda de imóveis, comuns ou próprios carece do consentimento de ambos (art. 1682.º-A Cód.Civil).
Logo, assiste ao cônjuge o direito de administrar os bens próprios da Requerida na pendência do casamento, não sendo tal administração contra o interesse da Requerida, nem existindo qualquer tutela jurídica das pretensões dos herdeiros legitimários, em vida do cônjuge que por qualquer motivo se encontre impossibilitado de o fazer e que possa justificar a derrogação deste regime e legitimando a intromissão de um terceiro nesta administração.
Por conseguinte, o arrolamento cautelar dos bens da Requerida é um direito que manifestamente não assiste à Requerente, nem na ação principal que é a de acompanhamento de maior, nem no presente procedimento, sendo a que a alegação de uma vontade de dissipação desde 2011, isto é, dez anos antes de a Requerida começar a ter problemas e quando a mesma se encontraria saudável, não se nos afigura em nexo temporal com o momento presente de modo a poder fundamentar uma alegação.
Na verdade, o que se afigura com a presente alegação, é que a Requerente parece pretender, sob o pretexto de razões de saúde da Requerida, afastar o regime jurídico matrimonial da mesma, e instituir uma administração para salvaguardar os seus direitos legitimários, quando a Requerida ainda é viva e ainda é casada.
Ora, tal desiderato não constitui a expressão de um direito juridicamente tutelado, sob pena de a coberto da tutela cautelar se proceder à restrição não fundamentada de direitos do regime patrimonial dos cônjuges, com base numa alegação subjetiva de eventual prejuízo para interesses de vocação sucessória, que nesta sede ainda não têm tutela legal.
De igual modo, também o alegado o justo receio de extravio ou dissipação não veio objetivamente demonstrado, sendo que face ao despacho de indeferimento liminar do processo de maior acompanhado hoje proferido, também não se afigura provável a procedência do pedido de acompanhamento de maior formulado (art. 405.º CPC), não sendo o risco para os interesses sucessórios da Requerente tutelados através do presente procedimento.
Por conseguinte, o presente requerimento inicial de arrolamento não preenche os requisitos, que da existência de risco tutelado, quer de justo receio de extravio para ser decretado.
Pelo supra exposto, nos termos conjugados do art. 403.º, n.º 1 e art. 405.º do CPC, indefiro liminarmente o requerimento inicial de arresto, por falta de preenchimento do requisito legal de existência de risco para interesse tutelado e justo receio de extravio ou dissipação.
Custas pelo Requerente.
Notifique.
3 – Inconformada com o decidido, a Requerente interpôs recurso de apelação, por referência ao despacho prolatado.
Apresentou, em conformidade, a Recorrente as seguintes CONCLUSÕES:
“I. A presente providência cautelar de arrolamento foi requerida por apenso à ação de acompanhamento de maior relativamente à Beneficiária BB, dada a manifesta incapacidade de exercer, plena, pessoal e conscientemente os seus direitos, conforme relatório clínico junto aos autos.
II. Para além de ter reportado, na Autoridade Tributária, uma incapacidade de 93%.
III. Quanto ao justo receio de extravio ou dissipação de bens, o marido da Beneficiária dispõe livremente do património da Beneficiária, sem que esta esteja em condições de o controlar, conforme alegado nos art.ºs 37 e segs. do R.I.
IV. E, ficou alegado que o cônjuge da Beneficiária exerce um controlo total sobre ela, impedindo-a de contatar com a própria filha e, não obstante as incapacidades cognitivas da Beneficiária, está, neste momento, a promover a venda de um prédio, bem próprio da Beneficiária, sito em Cascais, pelo preço de € 2.250.000,00.
V. Entende a sentença recorrida que assiste ao cônjuge o direito de administrar os bens próprios da Beneficiária do acompanhamento e que a Requerente parece pretender, sob o pretexto de razões de saúde da Requerida, afastar o regime jurídico matrimonial da mesma, e instituir uma administração para salvaguardar os seus direitos legitimários, quando a Requerida ainda é viva e ainda é casada.
VI. Salvo o devido respeito, para além de não ser certo que ao cônjuge caiba o direito de administrar os bens próprios do outro cônjuge, sempre prevaleceriam os direitos pessoais da Beneficiária e de salvaguarda do seu património, face á sua incapacidade cognitiva, inclusive ao abrigo do art.º 26, n.º 1 da Constituição.
VII. Como resulta inequivocamente dos R.Is, quer da ação principal, quer do procedimento cautelar, o que a Requerente pretende é salvaguardar os interesses patrimoniais da sua mãe, contra o extravio e dissipação de bens pelo seu cônjuge, dada a sua incapacidade cognitiva.
VIII. Como é evidente, existe um fundado e justo receio de que o marido da Beneficiária concretize esta venda do bem próprio desta e assim dissipe extravie o património próprio da Beneficiária, que, dada a sua deficiência cognitiva, está impossibilitada de exercer e controlar os seus direitos.
IX. E, esta providência cautelar torna-se necessária, porquanto a morosidade da tomada de medidas de proteção, no processo de acompanhamento, pode não ser suscetível de evitar a alienação do referido bem imóvel, bem próprio da Beneficiária, tanto mais que foi interposto recurso do despacho liminar de indeferimento no processo de acompanhamento.
X. Verificam-se, portanto, todos os requisitos do procedimento cautelar de arrolamento, nomeadamente:
- Fumus boni juris, ou seja, os fundamentos para o prosseguimento da ação de acompanhamento de maior, como resulta do R.I. da ação de acompanhamento e das alegações de recurso, de que se junta cópia e se dão por reproduzidas (doc. 1);
- Periculum in mora, ou seja, o justo receio de extravio do imóvel, bem próprio da Beneficiária, pelo seu cônjuge, conforme atrás demonstrado.
XI. Nesta conformidade, o despacho que indeferiu liminarmente o procedimento cautelar de arrolamento, violou o art.º 403/CPC, assim como o art.º 138 do Código Civil”.
Conclui, no sentido de ser dado provimento ao recurso, “revogando-se o despacho de indeferimento liminar e substituindo-se por outro que determine o arrolamento dos seguintes prédios:
a) - Terreno para construção, sito nos ..., inscrito na matriz predial sob o artigo … da freguesia de Cascais e Estoril e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º ….
b) - 4 parcelas de terreno rústico, compostos de mato, cultura arvense de sequeiro e terreno estéril sito nos ..., em Cascais, na freguesia de Cascais e Estoril, inscrito na matriz predial sob o artigo …, da secção …, não descrito na CRP de Cascais”.
4 – Tal recurso foi admitido como apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Consignou-se não se determinar a citação da Requerida, nos termos da causa e do recurso, nos termos do nº. 7, do artº. 641º, do Cód. de processo Civil, em virtude da Requerente indicar não pretender a audição da mesma antes do decretamento do procedimento – cf., despacho de 23/04/2025.
5 – Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.
**
II – ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO
Prescrevem os nºs. 1 e 2, do artº. 639º do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:
1 – o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 – Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do artº. 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação da recorrente Apelante que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Pelo que, no sopesar das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede determina o conhecimento da questão de saber se os factos aduzidos no requerimento inicial preenchem todos os requisitos ou pressupostos necessários ao decretamento da providência cautelar de arrolamento, ou se, ao invés, será de manter o juízo de indeferimento liminar do mesmo requerimento inicial, em consequência deste não ser susceptível de preencher tais requisitos, nomeadamente a existência de um risco da Requerente merecedor de tutela e justo receio de extravio ou dissipação dos bens.
**
III - FUNDAMENTAÇÃO
A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria factual a considerar é a que resulta do iter procedimental supra exposto.
**
B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
I. DO ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA CAUSA
O despacho apelado enunciou, basicamente, o seguinte:
- face á matéria alegada, urge verificar indiciariamente acerca dos requisitos necessários ao decretamento da providência cautelar especificada de arrolamento;
- in casu, resulta da prova junta que o marido da Requerida (beneficiária) constitui-se como o seu principal cuidador;
- relativamente à opressão alegada pela Requerente, que alegadamente sofre a Requerida, há uma pré-apreciação negativa do comportamento daquele cuidador;
- com efeito, tal apreciação, relativamente ao imputado comportamento daquele, não é objectivo das competências do mesmo no exercício dos seus deveres de cooperação;
- que seria o que carecia de ser alegado no presente caso;
- efectivamente, a Requerente:
a. Não reside com a Requerida;
b. Não se constitui como a sua cuidadora;
c. Não alega como são prestados os seus cuidados diários;
d. Não alega em que medida o seu marido não logra cooperar com a mesma;
e. Não alega em que medida o quadro de ideias delirantes e confabulação conduz a um relato dos factos de forma inexacta e deturpada;
- quanto à alegada medida de arrolamento ora pretendida, na pendência do matrimónio existem regras específicas para a administração de bens do casal (artº. 1678º, do Cód. Civil), onde se incluem o poder do cônjuge administrar os bens próprios do outro cônjuge, que por qualquer motivo se encontre impossibilitado de o fazer (artº. 1678º, nº. 1, alín. f), do Cód. Civil), sendo que qualquer venda de imóveis, comuns ou próprios, carece do consentimento de ambos (artº. 1682º-A, do Cód. Civil);
- logo, assiste ao cônjuge o direito de administrar os bens próprios da Requerida na pendência do casamento, não sendo tal administração contra o interesse da Requerida;
- nem existindo qualquer tutela jurídica das pretensões dos herdeiros legitimários, em vida do cônjuge, que por qualquer motivo se encontre impossibilitado de o fazer;
- e que possa justificar a derrogação deste regime, legitimando a intromissão de um terceiro nesta administração;
- donde, o arrolamento cautelar dos bens da Requerida é um direito que manifestamente não assiste à Requerente, nem na acção principal, que é a de acompanhamento de maior, nem no presente procedimento;
- sendo que a alegação de uma vontade de dissipação desde 2011, ou seja, cerca de 10 anos antes da Requerida começar a ter problemas e quando a mesma se encontrava saudável, não se afigura em nexo temporal com o momento presente de modo a poder fundamentar uma alegação ;
- assim, o que parece pretender a Requerente, sob o pretexto de razões de saúde da Requerida, é afastar o regime jurídico matrimonial desta;
- e instituir uma administração para salvaguardar os seus direitos legitimários, quando a Requerida ainda é viva e ainda é casada;
- não constituindo tal desiderato a expressão de um direito juridicamente tutelado;
- por outro lado, também o alegado justo receio de extravio ou dissipação não está objectivamente demonstrado;
- face ao proferido despacho de indeferimento liminar do processo de maior acompanhado, também não se afigura provável a procedência do pedido de acompanhamento de maior formulado (artº. 405º, do Cód. de Processo Civil);
- o risco para os interesses sucessórios da Requerente não são tutelados através do presente procedimento;
- com efeito, o presente requerimento inicial de arrolamento não preenche os seguintes requisitos:
a) a existência de risco tutelado;
b) o justo receio de extravio ou dissipação;
- determinando, nos termos dos artºs. 403º, nº. 1 e 405º, ambos do Cód. de Processo Civil, o indeferimento liminar do requerimento inicial de arrolamento.
- Do procedimento cautelar de Arrolamento
Estatuindo acerca do fundamento do arrolamento, enuncia o artº. 403º, do Cód. de Processo Civil, que “havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, pode requerer-se o arrolamento deles.
2 - O arrolamento é dependência da ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas”.
Acrescenta o nº. 1 do normativo seguinte – 404º -, que prevê acerca da legitimidade, poder o arrolamento “ser requerido por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens ou dos documentos”.
Referencia o artº. 405º, nos seus nºs. 1 e 2, equacionando acerca do processo para o decretamento da providência, que:
“1 - O requerente faz prova sumária do direito relativo aos bens e dos factos em que fundamenta o receio do seu extravio ou dissipação; se o direito relativo aos bens depender de ação proposta ou a propor, tem o requerente de convencer o tribunal da provável procedência do pedido correspondente.
2 - Produzidas as provas que forem julgadas necessárias, o juiz ordena as providências se adquirir a convicção de que, sem o arrolamento, o interesse do requerente corre risco sério”.
O presente procedimento cautelar, como medida de natureza ou carácter conservatório, pode apresentar-se “sob duas vertentes:
a) Como medida destinada a assegurar a manutenção de certos bens litigiosos, enquanto a titularidade do direito sobre eles estiver em discussão na acção principal;
b) Como medida destinada a garantir a persistência de documentos necessários para provar a titularidade do direito sobre as coisas arroladas”.
Na enunciada primeira vertente ou modalidade, “apresenta algumas semelhanças com o arresto, tendo em conta a latitude dos bens sobre que pode incidir e o modo de execução, dele diferindo quanto á situação de perigo que visa prevenir: em lugar do perigo de perda da garantia patrimonial, tende a eliminar o risco de extravio, de ocultação ou de dissipação de bens litigiosos. Por outro lado, ainda que no procedimento cautelar comum se possam inserir providências gerais que consistam na apreensão de bens ou na sua entrega a um fiel depositário, o arrolamento visa especificamente assegurar a permanência de bens que devem ser objecto de «especificação» no processo principal (…)” 2.
Deste modo, “se uma pessoa tem ou pretende ter direito a determinados bens e mostra que certos factos ou circunstâncias fazem nascer o justo receio de que o detentor ou possuidor deles os extravie ou dissipe antes de estar judicialmente reconhecido, de forma definitiva, o seu direito aos mesmos bens, estamos perante a ocorrência que justifica o uso (…) do arrolamento” 3.
Subjaz ao presente procedimento cautelar a “existência de uma pluralidade de bens que se pretenda acautelar”, estando em causa “conservar a coisa, diversa de dinheiro, que é objecto, mediato ou imediato, da ação da qual o arrolamento depende”.
E, conforme decorre do nº. 2, do transcrito artº. 403º, sendo o arrolamento dependente de acção à qual interessa a especificação dos bens, ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas, não levantando particularidades dificuldades a primeira situação, na segunda, “é ainda a especificação dos bens – e não a prova da sua titularidade – que, embora indirectamente, para essas acções tem interesse” 4.
Assim, tratando-se “de bens que já pertencem, no todo ou em parte, ao requerente, devem ser alegados factos que permitam concluir pela probabilidade da existência desse direito. Mas se o arrolamento for dependente de acção cujo objectivo seja o reconhecimento do direito sobre os bens, cumpre alegar os factos que, uma vez apurados, possibilitem a afirmação da probabilidade da procedência dessa acção”.
E, no que concerne à petição inicial e ónus que incidem sobre o requerente, “não existem regras especialmente diversas das que vigoram para a generalidade dos procedimentos. O maior ou menor labor na alegação de factos em que se funda a providência será o correspondente à especificidade de cada situação” 5.
Para o deferimento da pretensão accional, basta “a formulação de um juízo de verosimilhança quanto à existência actual ou futura de um direito de conteúdo patrimonial, sobre determinados bens situados na esfera de actuação do requerido e cuja realização efectiva esteja dependente da sua persistência”, ressalvando-se, porém, que “só deve ser decretado o arrolamento quando se adquira a convicção de que o interesse do requerente está em situação de risco, por se mostrar fundado o receio de insatisfação do seu direito” 6.
Todavia, “na formação da convicção judicial não deixará de influir a consideração de regras de experiência que levem a que, em alguns tipos de situações, o juiz seja menos exigente do que noutros”, tendo tal entendimento conduzido à consagração legal do regime prescrito no nº. 3, do artº. 409º, do Cód. de Processo Civil, no qual se dispensa, aos arrolamentos especiais aí previstos, o periculum in mora específico do arrolamento – o justo receio de extravio, ocultação ou dissipação dos bens ou documentos 7.
Ora, como providência ou procedimento típico, o arrolamento visa “esconjurar uma específica situação de perigo relacionada com o «extravio, ocultação ou dissipação» de bens ou documentos”, sendo este o “concreto perigo que constitui o elemento verdadeiramente integrante da causa de pedir”.
Concretizando o conceito de dissipação, “cujo perigo também se pretende eliminar com o arrolamento, poderão inserir-se os actos que impliquem o desbaratamento, esbanjamento, desperdício ou prodigalização dos bens”.
Desta forma, tal justo receio, qualificadora da situação de periculum in mora, “deve ser perspectivado objectivamente, e apresentar-se com um fundamento real que não corresponda a uma mera fantasia do requerente”.
Deve, porém, abranger igualmente as situações em que o extravio ou ocultação dos bens já se tenha concretizado, ajustando-se, assim, o arrolamento “também aos casos em que se visa a recuperação de bens que aparentemente se encontrem perdidos, maxime, por terem sido colocados em locais inacessíveis ao requerente” 8.
Relativamente à sua instrumentalidade e dependência, o arrolamento, inicialmente atinente às acções de dissolução de sociedade e de divórcio, viu “alargada a esfera de influência a todas as acções em que esteja presente a discussão da titularidade de certos bens”, nomeadamente à acção de “interdição e habilitação, tendo em conta que se prevê a possibilidade de apresentação de relação de bens, nos termos do art. 956º, n.º 1, al. a)” 9 (a que corresponde, presentemente, no processo de acompanhamento de maior, o nº. 1, do artº. 902º, do Cód. de Processo Civil).
Acerca das situações em que o direito do requerente do procedimento cautelar aos bens se configura como eventual, referencia Alberto dos Reis 10 como exemplo o “caso de arrolamento como acto preparatório da acção de interdição por demência ou surdez-mudez”.
Assim, “o direito é eventual, porque está dependente da sorte da acção. Se o autor triunfar na acção, fica por isso mesmo com direito aos bens cuja conservação pretende assegurar mediante o arrolamento ; se decair, nenhum direito virá a ter a esses bens. No caso de interdição o direito tem uma feição ainda mais aleatória, porque a procedência da acção não garante necessariamente ao autor o direito aos bens do interdito: cria-lhe unicamente uma expectativa”.
Deste modo, “exactamente porque o direito aos bens está dependente do êxito da acção, a lei exige nestes casos mais alguma coisa do que no caso de ser certo o direito ; exige que o requerente, além dos requisitos gerais (interesse na conservação dos bens e justo receio de extravio ou dissipação) faça a prova da viabilidade da acção” (sublinhado nosso).
Acrescenta Abrantes Geraldes 11que “apesar de no Ac. da Rel. de Coimbra, de 12-1-93, CJ, tomo I, pág. 11, se ter indeferido uma providência requerida por herdeiros legitimários destinada a impedir a alienação de bens, por se ter considerado que eram titulares de uma mera expectativa, neste momento nada impediria o tribunal de convolar a pretensão para a de arrolamento dependente de acção em que se invocasse a prodigalidade” (sublinhado nosso).
Ainda no que se reporta à legitimidade para a dedução do presente procedimento cautelar, aduzem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa 12assumir o transcrito nº. 1, do artº. 404º, do Cód. de Processo Civil, “o critério geral determinativo da legitimidade processual, segundo a qual a legitimidade pertence a quem se afirme titular de um interesse na conservação dos bens ou documentos, interesse que, como sucede em geral, terá de ser direto, mas que não exclui a legitimidade indirecta ou extraordinária, como a que é atribuída ao cabeça de casal”.
Acrescentam José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre 13 que “tratando-se de conservar bens, o arrolamento especifica o objeto da atribuição ou mera relacionação de bens a ter lugar na ação ou processo principal (inventário), liquidação de património social, partilha do património comum dos cônjuges, prestação de contas ; relacionação dos bens do interdito ou inabilitado, nos termos do art. 903-1-a) (….). É nele interessado quem invoque direito aos bens ou à universalidade que os integra, ou ainda, quem, na ação de interdição, se apresente a defender os interesses do interditando. Assim, conforme os casos, o autor na ação, o credor da prestação de contas, o requerente na interdição ou qualquer interessado na adjudicação dos bens, estando estes em poder de outrem e receando o seu extravio, ocultação ou dissipação, pode requerer o arrolamento.
(….)
Este é requerido contra o possuidor ou detentor dos bens (….), que o requerente receie que os oculte, dissipe ou deixe extraviar, a menos que não exista, estando eles ao abandono” (sublinhado nosso).
Aqui chegados, podemos enunciar ou seguintes princípios ou critérios:
• Tendo como desiderato eliminar o risco de extravio, ocultação ou dissipação de bens litigiosos, a providência cautelar de arrolamento visa especificamente assegurar a permanência ou salvaguarda de bens que devem ser objecto de especificação nos autos principais ;
• Subjaz ao presente procedimento cautelar a existência de uma pluralidade de bens que se pretende acautelar, numa intencionalidade de conservação da coisa que é objecto da acção da qual o arrolamento depende ;
• No conceito de dissipação de bens, enquanto perigo que se pretende eliminar através de tal medida cautelar, inserem-se os actos que implicam o desbaratamento, esbanjamento, desperdício ou prodigalização dos bens ;
• A legitimidade para a dedução do presente procedimento cautelar pertence a quem se afirme titular de um interesse na conservação dos bens, o qual é, em geral, directo, admitindo-se, todavia, uma legitimidade indirecta ou extraordinária ;
• Tendo como objectivo a conservação de bens, o arrolamento pode traduzir-se através da relacionação dos bens do interdito ou inabilitado, funcionando, assim, presentemente, através do relacionamento dos bens do beneficiário no âmbito do processo especial de acompanhamento de maior (cf., o nº. 1, do artº. 902º, do Cód. de processo Civil), e funcionando como interessado quem, nesta acção, se apresente a defender os interesses do beneficiário ;
• Pelo que, o requerente de acompanhamento de maior, estando os bens sob o poder ou disponibilidade de outrem, e receando o seu extravio, ocultação ou dissipação, pode requerer o arrolamento.
Transpondo o vertido para o caso concreto, podemos enunciar o seguinte:
- contrariamente ao aduzido na decisão sindicada, não se configura pertinente afirmar que o arrolamento cautelar dos bens da Requerida/beneficiária é um direito que manifestamente não assiste à Requerente filha, pois, conforme aduzimos, admitindo-se uma legitimidade indirecta na dedução do presente procedimento cautelar, a Requerente do acompanhamento de maior, apresentando-se a defender os interesses da beneficiária mãe, pode requerer o arrolamento ;
- acresce que, nesta mesma data, por decisão colegial prolatada nos autos principais, determinou-se a revogação da decisão recorrida de indeferimento liminar do requerimento inicial, ali proferida, e a sua consequente substituição por decisão que determine o prosseguimento dos ulteriores termos processuais da proposta acção de acompanhamento de maior ;
- por outro lado, resulta alegado no requerimento inicial apresentado estamos perante bens imóveis da exclusiva propriedade da Requerida, putativa beneficiária nos autos principais de acompanhamento de maior ;
- pelo que, também não logramos corroborar o entendimento feito constar da decisão apelada de que o alegado justo receio de extravio ou dissipação não está objectivamente demonstrado na factualidade aduzida no requerimento inicial apresentado ;
- com efeito, para além do quadro opressivo e de controlo que alegadamente exerce sobre a Requerida mulher – cf., os artigos 20 a 34 do requerimento inicial -, é ainda alegado que este controlo e opressão causam um quadro de ansiedade na mesma Requerida, provocando-lhe mesmo “um agravamento das suas deficiências cognitivas” ;
- aditando-se, ainda, a alegação de que tal domínio ou controlo do marido da Requerida estende-se ao âmbito patrimonial, dispondo o mesmo, “a seu belo prazer, de todo o património da Beneficiária”, e sem que “esta esteja em condições de o controlar” ;
- o que factualiza, concretizando a publicitação e venda de um prédio, bem próprio e alegadamente único da Requerida – pelo valor de 2.250.000,00 € -, quando, em 2021 (e não em 2011, conforme refere a decisão sob apelo) já foi alienado um outro imóvel, igualmente bem próprio da Requerida mãe, pelo preço de 700.000,00 € ;
- pelo que, não surge como correcta a argumentação fundada numa alegada vontade de dissipação desde 2011, ou seja, cerca de 10 anos antes da Requerida começar a ter problemas, e quando a mesma se encontrava saudável, como demonstrativa de não correspondência com o momento presente, de modo a poder fundamentar uma alegação ;
- acrescendo, ainda, a alegação de que a Requerida mãe não se encontra “em condições físicas e psicológicas de reagir ao domínio do marido”, e que este “age em proveito próprio, contra os interesses da Beneficiária, nomeadamente, suspeitando-se que utiliza procurações que esta lhe passa sem ter consciência dos seus efeitos” – cf., artigos 54, 55 e 66 do requerimento apresentado nos autos principais ;
- ademais, ainda que se considerasse como insuficiente ou deficitária a alegação factual relativamente a este pressuposto, sempre poderia o Tribunal a quo promover competente convite ao aperfeiçoamento do mesmo, no âmbito do cumprimento do dever de gestão processual que lhe incumbe – cf., os artº 590º, nºs. 2, alín. b), 4 e 5, 549º e 6º, todos do Cód. de Processo Civil.
Donde, perante tal quadro alegacional, não cremos poder concluir-se, nesta temporalidade liminar, pela aludida falta e preenchimento dos requisitos legais de existência de risco para o interesse tutelado e de justo receio de extravio ou dissipação dos identificados bens.
Com efeito, e ao invés, conforme já referenciado nos autos principais, atento o mesmo quadro alegacional, assume premente acuidade a salvaguarda e tutela do património próprio da Requerida, ou seja, impõem-se cuidados de defesa dos seus interesses de ordem patrimonial, o que surge com potenciada premência quando não estamos perante a outorga de meros negócios patrimoniais da vida corrente.
Argumenta-se, ainda, na decisão recorrida parecer pretender a Requerente, sob o pretexto de razões de saúde da Requerida, afastar o regime jurídico patrimonial desta e, consequentemente, instituir uma administração para salvaguardar os seus direitos legitimários, quando a Requerida mãe ainda é viva e ainda é casada, não traduzindo tal objectivo a expressão de um direito juridicamente tutelado.
Ora, tal como referenciado na decisão proferida por este Colectivo relativamente ao recurso interposto do despacho de indeferimento liminar prolatado nos autos principais de acompanhamento de maior, inexiste qualquer colisão com o invocado direito do cônjuge da Requerida na administração dos bens próprios desta, na pendência do casamento.
Com efeito, a “aludida administração dos bens próprios do outro cônjuge, enunciada na citada alínea f), do nº. 1, do artº. 1678º, do Cód. Civil, não se reportará às situações em que aquele se encontre impossibilitado de poder exercer, plena, pessoal e conscientemente os seus direitos ou cumprir os seus deveres, por razões de saúde, justificativa da aplicabilidade de uma medida de acompanhamento.
E, ademais, estando-se perante a putativa alienação de bem imóvel próprio da Requerida, sempre o livre, incondicionado e são consentimento desta seria necessário nos quadros da alínea a), do nº. 1, do artº. 1682º-A, do mesmo diploma.
Todavia, de acordo com o quadro alegacional presente no requerimento inicial, a presente situação da Requerida/beneficiária não permite concluir por um putativo consentimento com aqueles predicados, o que é concludente quanto à necessidade de tutela dos seus interesses pessoais patrimoniais”.
Por fim, sempre se anotará, ainda, o seguinte: decorre do entendimento adoptado por Lebre de Freitas e Isabel Alexandre 14 que “nem sempre o arrolamento é a providência cautelar adequada à finalidade de conservação dos bens que estão em causa na ação. Se estes estiverem identificados e apenas se discutir a titularidade do direito (real ou de propriedade intelectual) sobre eles, ou se são ou não devidos (como objeto de obrigação de dare ou de facere), a providência adequada é inominada, cabendo ao caso o procedimento cautelar comum. Não importa já descrever ou especificar os bens, mas apenas apreendê-los e depositá-los ou entrega-los, a título provisório, ao autor”.
Procedendo a tal citação, onde decorre o entendimento de que o arrolamento apenas pode dirigir-se a uma diversidade de bens e não a um bem concreto e determinado, ressalva Abrantes Geraldes 15 “que uma eventual recusa da providência de arrolamento com este fundamento não é suficiente para eliminar a tutela cautelar, a qual deve buscar-se no leque das providências não especificadas (de natureza inibitória e antecipatória) que, na prática, acabam por produzir efeitos semelhantes”.
Ora, atenta a especificidade do caso sub judice, em que o pretendido arrolamento surge por dependência da acção de acompanhamento de maior, em que não está em causa a discussão da titularidade do direito real sobre os identificados bens imóveis arrolandos, ou se são ou não devidos a terceiro, pensamos ainda justificar-se o recurso ao presente procedimento cautelar nominado.
Por todo o exposto, no acolhimento das conclusões recursórias, decide-se:
• Revogar a decisão recorrida de indeferimento liminar do requerimento inicial, a qual deverá ser substituída por decisão que determine o prosseguimento dos ulteriores termos processuais do procedimento cautelar de arrolamento (nomeadamente, decidindo acerca da solicitada dispensa de audiência prévia da Requerida e eventual produção da prova apresentada).
------
Relativamente à tributação, as custas da presente apelação serão suportadas pela(s) parte(s) vencida(s), a final.
***
IV. DECISÃO
Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em:
I. Julgar procedente a presente apelação, em que figura como Recorrente/Apelante AA e como Recorrida/Apelada BB ;
II. Consequentemente, decide-se:
• Revogar a decisão recorrida de indeferimento liminar do requerimento inicial, a qual deverá ser substituída por decisão que determine o prosseguimento dos ulteriores termos processuais do procedimento cautelar de arrolamento (nomeadamente, decidindo acerca da solicitada dispensa de audiência prévia da Requerida e eventual produção da prova apresentada) ;
III. Relativamente à tributação, as custas da presente apelação serão suportadas pela(s) parte(s) vencida(s), a final.

Lisboa, 26 de Junho de 2025
Arlindo Crua
Higina Castelo
João Paulo Raposo
_______________________________________________________
1. A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.
2. António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. IV, Almedina, 2003, pág. 264 e 265.
3. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3ª Edição, Coimbra Editora, pág. 105.
4. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª Edição, Almedina, pág. 183, 184 e 186.
5. António Santos Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 271.
6. Idem, pág. 272.
7. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit., pág. 191 e 192.
8. António Santos Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 273 e 274.
9. Idem, pág. 268.
10. Ob. cit., pág. 113.
11. Ob cit., pág. 268, nota 502.
12. Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2019, Reimpressão, pág. 477.
13. Ob. cit., pág. 188 e 189.
14. Ob. cit., pág. 184.
15. Ob. cit., pág. 265, nota 489.