REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
ESTADO DAS PESSOAS
LEGITIMIDADE PASSIVA
Sumário

I - Os processos de revisão de sentenças estrangeiras proferidas em processos relativos ao estado das pessoas em que não existem réus (um processo de adopção ou um processo de divórcio por mútuo consentimento, por exemplo) e em que a revisão se destina a determinar o averbamento do novo estado no registo civil português, não têm de ser propostos contra os requerentes daqueles processos, nem contra o Estado.
II - Os requerentes dos processos de estado que não tenham interesse em tal registo não têm de ser requerentes nos processos de revisão, até porque não podem ter interesse legítimo em pôr em causa uma sentença que deu procedência a uma pretensão por eles deduzida (estando assim vinculados por ela sob pena de abuso de direito por agirem contra facto próprio: art. 334 do CC; tal como o estão os seus sucessores enquanto tais).
III – A revisão da sentença estrangeira com vista ao averbamento do registo civil do novo estado da pessoa, imposta pelo art. 7/1 do CRC, basta-se com intervenção do MP para garantia da não contraditoriedade aos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado (art. 982/1 e 985/2 do CPC) e com o controlo oficioso pelo tribunal da verificação dos requisitos exigidos pelo art. 980 do CPC, previsto no art. 984 do CPC.
IV – Em suma, um adoptado maior pode pedir sozinho a revisão de uma sentença estrangeira de adopção em que foi parte apenas o casal de pais adoptivos, sem ter de estar acompanhado dos pais adoptivos (ou dos seus herdeiros se aqueles entretanto tiverem falecido) e sem ter de deduzir o pedido de revisão contra os pais adoptivos ou contra os seus herdeiros ou contra o Estado.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

KAR, cidadã portuguesa, intentou contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, a presente acção especial, pedindo que seja revista e confirmada a sentença de 30/06/1967, transitada em julgado, proferida nos Estados Unidos da América, por Juiz do Tribunal do Condado de B, do Estado de NJ, que concedeu a adopção da requerente por JGR e sua mulher MR, determinando que, desde então, a requerente A passasse a ser conhecida pelo nome de KR e que os direitos, deveres, obrigações e relações entre ela e os seus pais por adopção, incluindo o direito de herdar, fossem a partir de então os mesmos que ela teria se tivesse nascido de ambos no matrimónio legítimo, e os existentes entre ela e os pais naturais e a Associação referida a seguir terminassem; isto depois do Tribunal ter constatado que i\ o cuidado, custódia e controlo sobre a requerente tinha sido transferido pela sua guardiã, a Irmã ML, em 19/06/1964, para o Comité Católico da Conferência […] com o fim de adopção, sendo que tal Conferência tinha transferido a custódia da requerente para a Associação de NJ […] com o fim de adopção e esta associação tinha consentido que a adopção fosse decretada; bem como que ii\ os melhores interesses da criança seriam promovidos pela adopção, sendo que os requerentes da adopção tinham a requerente ao seu cuidado desde 16/02/1966. Isto num processo em que não houve parte contrária ou réu.
A requerente acrescenta que “No momento do nascimento, foi registada apenas e tão-só com o nome A, sem indicação de progenitores, constando na respectiva certidão de nascimento como filha de “pais incógnitos” e alega entre o muito mais que “a presente acção visa […] colmatar a omissão registal […] descrita e assegurar o cumprimento do que já foi judicialmente decidido no país de origem da adopção, permitindo, por fim, o alinhamento entre os dados registais portugueses e a realidade jurídica e pessoal da requerente, em conformidade com os princípios da segurança jurídica, assim como da dignidade da pessoa humana.”
A requerente juntou para prova dos referidos factos, para além de outros documentos, a sentença dos EUA, com tradução, e o assento do seu nascimento na Conservatória do Registo Civil de M., n.º 0/1964, nascimento que ocorreu em 00/00/1964, em M. Juntou também o Bilhete de Identidade onde consta como AR; passaporte dos EUA onde consta como KAR. E o cartão de cidadã português onde consta como A, sem apelidos.
Facultado o processo à Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta para alegações, a mesma veio dizer, em síntese: o Estado Português é parte ilegítima nesta acção, por não ter interesse em contradizer (já que não foi parte na relação jurídica subjacente à decisão revidenda); quem tinha de estar na acção, ou no lado passivo (como requeridos) ou no lado activo (como requerentes), eram os pais adoptivos ou, no caso de estes terem falecido, os seus herdeiros, pois que, aqueles que foram parte no processo onde foi proferida a sentença a rever, também têm de ser partes no processo onde se vai rever a sentença; desde que isto aconteça (serem requerentes) não tem de haver requeridos (por exemplo, não é preciso que a acção seja intentada contra os pais biológicos, pois esta acção não é uma repetição da que decretou a adopção e o que se pretende é que aquela sentença tenha efeito útil no nosso país relativamente ao adoptado e pais adoptivos. Estes últimos, sim, terão de estar na acção. O pedido deve ser formulado em face de quem possa ser directamente atingido pelo deferimento, mas nem sempre a atribuição de eficácia à sentença estrangeira visa a possibilidade de a fazer impor a outrem). Verifica-se, assim, a excepção dilatória da ilegitimidade passiva, que é de conhecimento oficioso e implica o indeferimento liminar da petição e a absolvição da instância do réu Estado Português – artigos 576.º, n.ºs 1 e 2; 577.º/e; 578.º e 278.º/1d, do CPC.
A requerente veio responder, dizendo, em síntese, que: a requerente, actualmente com mais de 60 anos, visa apenas a regularização da sua situação pessoal e jurídica junto das autoridades portuguesas, nos termos da sentença de adopção proferida em 1967, cuja eficácia se pretende ver reconhecida em território nacional; não está em causa qualquer litígio tradicional nem existe oposição de terceiros, sendo o objectivo exclusivo a obtenção de segurança jurídica, coerência documental e respeito pela sua identidade legal e familiar; o Estado Português é parte legítima para integrar o polo passivo da presente acção, atendendo ao efeito jurídico pretendido: a produção de efeitos internos da sentença estrangeira de adopção, com reflexo em matéria de registo civil, nacionalidade e identidade pessoal, domínios estes sob tutela do Estado Português; quando a eficácia da sentença estrangeira dependa de averbamentos ou registos a efectuar em Portugal, designadamente nos serviços do registo civil, o Estado – através da sua representação institucional – tem interesse directo na acção, para assegurar a conformidade dos actos jurídicos com os princípios estruturantes do ordenamento jurídico português: neste sentido, o ac. do TRL de 21/11/2024, proferido no processo 2588/24.1YRLSB-2; no que tange à legitimidade passiva neste processo especial, não é imprescindível a existência de demandados, porquanto, conforme se afirma na decisão singular do TRL de 04/10/2011, proc. 529/11.5YRLSB-1: Nem sempre a atribuição de eficácia à sentença estrangeira visa a possibilidade de a fazer impor a outrem; de a fazer valer contra outrem. Com efeito, situações há em que com atribuição de eficácia à sentença estrangeira apenas se pretende tornar efectivas no território nacional as situações definidas na sentença estrangeira em favor do próprio peticionante, sem que haja qualquer confronto com terceiro; nesta mesma esteira, vide ac. do TRL de 18/05/2023, proc. 1223/23.0YRLSB [não se encontrou a publicação deste acórdão - TRL]; a legitimidade passiva numa acção de revisão de sentença estrangeira determina-se tendo em conta quem teria interesse directo na causa caso esta tivesse sido proposta em Portugal, que seria o MP, pelo que o Estado Português tem legitimidade para participar nesta acção de revisão; não obstante, mesmo que assim não se entenda, sempre se dirá que a excepção dilatória da ilegitimidade activa é suprível, devendo o tribunal, no exercício do poder-dever que lhe é conferido pelos artigos 6.º/2 e 590/2-a do CPC, convidar a parte a suprir a excepção invocada; isto, sob pena de incorrer na nulidade prevista no artigo 195 do CPC, na medida em que, caso tal diligência não fosse, eventualmente, levada a cabo, então estar-se-ia inexoravelmente diante da omissão de formalidade que a lei prescreve, com cabal influência no exame e decisão da causa; termos em que, caso se conclua, de facto, pela existência de ilegitimidade passiva do Estado Português, por preterição de litisconsórcio necessário, se requer, ao abrigo do disposto nos artigos 316.º/1, 318.º/1a e 319.º/1 do CPC, o chamamento aos presentes autos para intervenção, enquanto corequeridos, dos demais herdeiros dos falecidos pais adoptivos da requerente, devendo os mesmos ser citados para ao efeito, em harmonia com o disposto nos artigos 6.º e 590.º/2-a do CPC. Para estes efeitos, declara-se que os demais herdeiros dos falecidos pais adoptivos da requerente são: [a requerente identifica 7 irmãos].
A 20/05/2025 foi julgado que os factos relevantes para a decisão são os acima consignados – são os factos do 1.º e 3.º §§ deste acórdão - e estão provados pelos documentos referidos e foi proferida decisão singular julgando procedente a excepção da ilegitimidade passiva do Estado, que foi absolvido da instância, e procedente a pretensão da requerente e, em consequência, decidiu-se rever e confirmar a sentença supra-referida, na qual foi julgada procedente o pedido de adopção da requerente pelo casal de adoptantes, que assim passará a ter eficácia na ordem jurídica portuguesa.
Isto com os seguintes fundamentos, na parte que mantém interesse e com algumas correcções:
O MP tem razão quanto à falta de legitimidade do Estado para ser réu nesta acção. O Estado não foi parte na acção onde foi proferida a sentença a rever e não tem interesse directo em contradizer. O Estado português tem interesse no respeito pelos princípios fundamentais da sua ordem pública internacional e daí a necessidade da revisão da sentença estrangeira, onde o MP intervém para garantia desse respeito (artigos 7/1-2 do Código do Registo Civil e 980/f, 982/1 e 985/2 do CPC). Mas é só esta a intervenção que a lei exige do MP, e portanto está afastada a intervenção do Estado como réu nos casos em que ele não tenha interesse directo em contradizer. De outra perspectiva, diga-se que as razões adiantadas em sentido contrário pela requerente só apontam para a necessidade da intervenção do MP como garante do respeito pela ordem pública internacional do Estado português, mas esta intervenção já acontece sempre e necessariamente neste tipo de processo, sem que o Estado tenha de participar nele como réu.
Isto deve levar à absolvição do Estado enquanto réu, por falta de legitimidade passiva. Note-se que este tribunal não determinou a citação do Estado na pessoa do MP. Na linha do entendimento da desnecessidade do Estado ser réu, considerou irrelevante a indicação dele como tal pela requerente e determinou que se facultasse o processo ao MP para alegações.
Mas o MP foi mais longe e veio defender também que os adoptantes, ou os seus herdeiros, tinham de ser parte no processo.
Note-se que o MP reconhece que neste tipo de processos nem sempre tem de haver um demandado, o que aliás representa uma posição consensual na jurisprudência dos tribunais da relação, na sequência do ac. do TRP de 12/06/1984, com sumário publicado no BMJ 338, pág. 471, Recurso n.º 18710 (com 2 votos de vencido em 5): I - A lei não prevê a hipótese de a confirmação da sentença estrangeira ser pedida por todos os interessados na decisão a rever, mas também a não proíbe. II - O tribunal limita-se a fiscalizar o preenchimento dos requisitos legais necessários à confirmação, não importando que as partes estejam de acordo ou em desacordo quanto a essa confirmação. III - Assim, não obsta à confirmação de sentença estrangeira de divórcio, o facto de a mesma ter sido requerida por ambos os cônjuges.
A este acórdão seguiram-se outras decisões, entre elas a decisão singular do TRL de 04/10/2011, proc. 529/11.5YRLSB-1, para um tipo de situação paralelo: “1\ Na acção de revisão de sentença estrangeira não é imprescindível a existência de demandados. 2\ Os adoptantes e adoptado devem requerer em conjunto, e sem indicação de requerido, a revisão e confirmação da sentença estrangeira de adopção.” Assim, nesta decisão singular, tinham sido demandados os pais biológicos, a decisão singular julgou-os parte ilegítima (ficando sem réu na acção), absolveu-os da instância e facultou o processo ao MP para alegações.
A questão que o MP coloca é diferente e tem a ver com a necessidade de participação dos pais adoptivos como requerentes. Ou seja, todos os que participaram no processo de adopção teriam que participar também neste. Caso algum deles já tenha falecido teriam de participar no lugar deles os seus herdeiros.
Portanto, a requerente, maior de idade, não podia pedir sozinha a revisão da sentença estrangeira que decretou a sua adopção a pedido dos pais adoptivos. Estes, ou os herdeiros deles, teriam que vir também pedir ao tribunal português o reconhecimento da sentença proferida nos EUA, ou então eles teriam que ser demandados como réus.
Isto ainda na linha da decisão singular do TRL de 2011, citada acima, agora na 2.ª parte do sumário.
A posição dessa decisão singular, nesta parte, quanto ao lado activo, baseia-se no seguinte, no essencial: se as partes no processo base não estiverem presentes no processo de revisão, este traduzir-se-á numa imposição da sentença contra o seu interesse, pelo que então terão de ser partes requeridas.
Portanto, o que está em causa é uma questão de aparente interesse, o que aliás está de acordo com o critério do art. 30/1 do CPC, válido até demonstração da falta de interesse.
Ora, no caso dos autos, em que a sentença foi decretada num processo em que só eram partes os adoptantes, sem contraparte, o reconhecimento da sentença estrangeira de adopção num país diferente, não pretende impor nenhum dos efeitos da adopção aos adoptantes, pretende apenas que os efeitos da adopção já produzidos sejam feitos valer num país diferente. Assim sendo, os adoptantes não são prejudicados em nada pela aplicação da sentença de adopção noutro país, porque os efeitos da adopção não resultam da sentença de revisão mas da sentença de adopção, sentença que criou o estado de filiação entre uns e outros, por vontade dos adoptantes. Em Portugal, mesmo que a sentença de adopção não fosse revista, o estado da filiação podia ser provado – e por isso podia ser feito valer – contra eles, com o uso da sentença (art. 978/2 do CPC: Não é necessária a revisão quando a decisão seja invocada em processo pendente nos tribunais portugueses, como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa) ou com a certidão do registo estrangeiro de adopção que faz prova em Portugal do mesmo modo que o fariam as certidões do registo civil português (art. 365/1 do CC).
No ac. do STJ de 25/03/2025, proc. 3260/24.8YRLSB.S1 (que se pronunciou contra a desnecessidade de os pais biológicos serem parte no processo de revisão, num processo em que só eles tinham sido demandados, pelo que, em consequência, o processo também seguiu sem réus) lembra-se que Castro Mendes dizia que:
Não se pode confundir o processo de revisão de sentença estrangeira com o processo onde esta foi proferida. São processos distintos, de índole e natureza diversa; particularmente, com objecto diverso: pedido diferente, diferente causa de pedir.
O objecto ou mérito da causa no processo de revisão não é substantivo; não é um litígio sobre certo bem material, coisa ou pretensão, litígio cuja composição judicial se pede. É um litigio mas sobre um bem de natureza já processual: uma sentença, favorável (um bem) para certa parte, desfavorável a outra, e cuja eficácia se discute. No processo onde foi proferida a sentença revidenda compôs-se um litigio material, mas no processo de revisão não está em causa em vigor a composição do mesmo litigio; e sim, noutro plano (mais totalmente processual, digamos) certa composição do litigio (sentença) a que se chegou, e cuja aplicabilidade em território nacional se discute.
Assim, a causa de pedir na acção onde foi proferida a sentença revidenda é um acto substantivo — mútuo, adultério, ilícito civil, compra e venda, mandato. Mas a causa de pedir na acção de revisão de sentença estrangeira já não é este acto substantivo, mas um acto processual — é a própria sentença. E o facto de existir a favor de alguém uma sentença (de tribunal estrangeiro) que dá a esse alguém a pretensão de a fazer rever e confirmar em Portugal — a sentença apresenta-se assim como a causa de pedir na acção de revisão de sentença estrangeira, nos termos exactos do artigo 498.º, n.º 4 [=> 581/4 na redacção depois da reforma de 2013].
E o pedido do autor na acção de revisão de sentença estrangeira tem índole diversa e objecto diferente do pedido na acção que poderíamos chamar subjacente. Tem índole diversa: este segundo é meramente declarativo, ou condenatório ou constitutivo na ordem material (solicita a autorização duma mudança da ordem substantiva existente). O primeiro é, em nossa opinião, constitutivo na ordem processual (solicita uma mudança na ordem processual existente, onde toma eficácia de caso julgado e título executivo um acto que até aí só tinha forca de meio de prova livre — artigo 1094.º [=> 978/2]). E tem objecto diferente — não uma relação substantiva de propriedade, ou crédito, ou família, mas a eficácia de uma sentença, nos termos do mesmo artigo 1094.º [=> art. 978] (Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1965, páginas 133 e segs., especialmente páginas 145-146).
Assim sendo, a revisão desta sentença de adopção, nesse caso, não é feita valer contra um interessado (alguém que pudesse ter uma pretensão de contrariar a pretensão de revisão): os pais adoptivos (ou os seus herdeiros, no lugar deles), se se opusessem à pretensão da filha de a sentença de adopção ser feita valer noutro pais, estariam a agir contra facto próprio (por isso ilegitimamente: art. 334 do CC: para um caso paralelo, veja-se o ac. do STJ de 29/02/2024, proc. 2985/22.7YRLSB.S1: IV. Age em abuso do direito, na modalidade do venire contra factum proprium, o requerido ao afirmar que estava no seu direito ao ter intentado a acção de divórcio nos tribunais competentes, tendo de seguida requerido o Talaq, pretendendo com isso salvaguardar “as suas convicções religiosas”, e, simultaneamente, deduzindo oposição ao reconhecimento dessa mesma decisão Talaq.; foi confirmado o ac. do TRL de 06/07/2023, proc. 2985/22.7YRLSB-6). Foram eles que manifestaram a vontade da adopção, que criou a relação de filiação, de pais e filhos, que é absoluta, sem limites territoriais, por isso com aplicação em qualquer lado. Eles não podem querer que ela se aplique só num dado país ou que não se aplique apenas num certo país.
Demonstrado que, no caso, não há réu, porque não há ninguém que pudesse ter um interesse legítimo em contradizer, fica a questão da necessidade de os adoptantes serem requerentes.
Mas os pais adoptivos também não têm de ser requerentes porque eles não são parte na relação que está em causa neste processo especial, pois que essa relação tem um pedido e uma causa de pedir que não são um pedido e uma causa de pedir respeitantes à relação de adopção. A procedência da revisão da sentença, ou a sua improcedência, não afecta a relação de adopção (art. 30/2 e 3 do CPC). Até se pode conceber que os pais adoptivos ou os irmãos da requerente pudessem ter um interesse contra a relação de filiação estabelecida, mas nunca seria na acção de revisão da sentença estrangeira que a poderiam pôr em causa (teriam que pôr directamente em causa a sentença de adopção, num processo autónomo, nos EUA).
E sem aquilo, não há qualquer razão para impor aos adoptantes (ou aos seus herdeiros) que estejam do lado da requerente da revisão. A legitimidade depende de um interesse (art. 30/1 do CPC) e esse interesse tem de existir na pessoa, não pode ser imposto pelos tribunais. Se a filha, portuguesa, quer que a sentença de adopção seja feita valer em Portugal e os pais adoptivos (ou os seus herdeiros), estrangeiros não têm ou nunca tiveram interesse nisso ou tal lhes é indiferente, não há razão para que se lhes exija que estejam do lado da sua filha ou irmã a pedir esse reconhecimento.
O relevo do interesse para a existência de um réu (ou de autor), também se pode retirar de um dado comparativo: Os artigos 960 a 965 do CPC de 2015 tratam da homologação de sentença estrangeira no Brasil. Nunca é feita referência à necessidade de uma contraparte ou de um réu. O art. 960, § 2º, dispõe que a homologação obedecerá ao que dispuserem os tratados em vigor no Brasil e o Regimento Interno do STJ. Por sua vez, neste RI do STJ, a homologação está regulada nos artigos 216-A a 216-N [https://www.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index.php/Regimento/issue/view/1/showToc]. Também aqui não há um único artigo que fale na existência de um réu. Prevê-se a situação de um interessado (Art. 216-H: A parte interessada será citada para, no prazo de quinze dias, contestar o pedido.) Ora, a exigência de um interessado tem com pressuposto a existência de um interesse. Pelo que, naturalmente, demonstrado pelos elementos existentes no processo que não há (ou não pode haver) um interessado (legítimo) na não aplicação da sentença no Brasil, não há quem possa ser citado e portanto o processo terá de seguir sem ele.
Por fim, não havendo parte contrária, isto é, interessado com interesse legítimo em contradizer, não faz falta garantir a possibilidade de contestar a verificação dos requisitos exigidos pelo art. 980 do CPC, sendo que, de qualquer modo, caberá ao MP (em parte) e ao tribunal, oficiosamente, a verificação desses requisitos.
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O MP reclamou para a conferência, para que a decisão singular seja revogada e substituída por acórdão que (i) mantenha a declaração de ilegitimidade passiva do Estado Português e a sua absolvição da instância; e (ii) convide a requerente a proceder ao chamamento à acção dos pais adoptivos (ou dos seus outros herdeiros caso já sejam falecidos) nos termos o artigo 316/1 do CPC; ou, (iii) caso se considere que tal é extemporâneo (art. 318 do CPC), determine a absolvição da instância por preterição de litisconsórcio necessário (artigos 30, 33/1, 278/1-d, 576/1 e 2, 577/e e 578 do CPC).
Isto com a seguinte fundamentação:
Concordamos que a ação de revisão de sentença não é uma repetição da ação cuja sentença se pretende ver reconhecida.
Concordamos que, atentas as características da ação, cujo objetivo é o de verificação e conformação formal das decisões revidendas, se possa admitir a substituição do mecanismo do chamamento à ação nos termos do artigo 316.º e 319.º do CPC por um convite ao aperfeiçoamento da petição inicial fazendo uso dos artigo 6.º, n.º 2 do CPC.
Concordamos com a jurisprudência que tem vindo a defender que neste tipo de ações é indiferente que as partes figurem todas no lado ativo, sem existência de requeridos (por haver coincidência de interesses), ou que figurem umas no lado ativo e outras no lado passivo (neste sentido, ver a decisão singular do TRL de 04/10/2011, proc. 529/11.5YRLSB-1).
O importante é que que todos os afetados estejam na ação, como também se defende nessa jurisprudência.
A legitimidade é o pressuposto processual através do qual a lei seleciona os sujeitos de direito admitidos a participar em cada processo, e afere-se pelo interesse em demandar ou contradizer a ação (artigo 30.º, n.º 1 e 2 do CPC).
A legitimidade afere-se por um juízo ex ante, feito em abstrato, em face da ação tal como o autor a configura.
Neste caso, tal como a requerente configurou a ação, têm interesse na demanda e/ou em contradizê-la, as partes que figuraram na ação que se pretende rever e que podem ser, de alguma forma, “afetadas” pelo seu reconhecimento, independentemente de na ação original terem sido autores ou réus, requerentes ou requeridos.
O vínculo da adoção diz respeito, neste caso, a 3 pessoas e são essas pessoas que têm de figurar nesta ação, salvo melhor opinião (ou caso os pais adotivos já tenham falecido, os seus restantes herdeiros).
Em suma, verifica-se, neste caso, uma situação de litisconsórcio necessário, que exige a intervenção no processo de todos os titulares da relação material em questão - adotado e adotantes - sendo a falta de algum deles motivo de ilegitimidade, nos termos dos art. 30.º e 33.º/1 do CPC, uma vez que todos foram parte no processo onde foi proferida a sentença cuja revisão é requerida e a sua revisão e confirmação em território português é algo que diz respeito a todos (adotando e adotantes), não lhes sendo indiferente.
Tal ilegitimidade processual pode ser suprida através do incidente de intervenção d e terceiros (artigo 316.º do CPC) ao qual não nos opomos caso seja determinado, tendo em atenção os princípios da economia e celeridade processual.
A requerente contrapõe, no essencial, aquilo que já dizia na resposta à anterior posição do MP, sintetizada acima.
Apreciação:
Réu na acção de revisão de sentença estrangeira “é a pessoa contra a qual se pretende fazer valer a sentença a rever e confirmar, e que é, naturalmente, a parte contra quem foi proferida a sentença (ou a pessoa que lhe sucedeu).” (Alberto dos Reis, Processos especiais, vol. II, Coimbra Editora, 1982, pág. 197).
Mas, se nem sempre a sentença é proferida contra alguém – assim, por exemplo, num processo sem réus, como o processo de divórcio por mútuo consentimento (em Portugal, artigos 994 a 999 do CPC) - não tem de haver sempre um réu num processo de revisão de sentença estrangeira.
É esta, de há muito, a posição consensual da jurisprudência das relações (depois de se ter estabilizada a posição proferida no ac. do TRP de 1984 já citado; para além do outro citado pela requerente, veja-se ainda, por exemplo, o TRL de 24/10/2024, proc. 2202/24.5YRLSB-2, com um voto de vencido mas não sobre esta questão; a decisão sumária do TRC de 06/10/2020, proc. 136/20.1YRCBR, o ac. do TRC de 03/10/2006, proc. 11/06.2YRCBR; os acs. do TRE de 13/03/2025, proc. 3/25.2YREVR, e de 07/11/2024, proc. 198/24.2YREVR; e o ac. do STJ de 2025, citado acima), isto porque, como se diz na decisão singular de 2011, “nem sempre a atribuição de eficácia à sentença estrangeira visa a possibilidade de a fazer impor a outrem; de a fazer valer contra outrem. Com efeito, situações há em que com atribuição de eficácia à sentença estrangeira apenas se pretende tornar efectivas no território nacional as situações definidas na sentença estrangeira em favor do próprio peticionante, sem que haja qualquer confronto com terceiro. Ora, nesses casos, a acção de revisão não se estabelece numa relação processual antagónica, em termos de autor/réu, requerente/requerido, mas numa simples demanda ao Estado de atribuição de eficácia à sentença estrangeira; ao reconhecimento da situação por ela definida. Pelo que a mesma não terá qualquer sujeito a ocupar o lado passivo da relação processual (abstraindo aqui do papel do MP enquanto defensor da legalidade e dos princípios de ordem pública)”.
Isto é assim apesar da posição de Alberto dos Reis que diz que naqueles casos, apesar de não haver propriamente um vencido nem um vencedor, continuaria a haver um réu, que é a pessoa contra quem a revisão é pedida (mesma obra e local citados acima). Ou seja, este Professor pressupõe que tem de haver sempre um réu, e por isso força a qualificação do réu, que, afinal, deixa de ser aquele contra quem se pretende fazer valer a sentença, para passar a ser aquele contra quem é requerida a revisão, mesmo que a sentença não tenha sido proferida contra ele, mas não demonstra a necessidade de assim ser e, por isso, como se disse, a posição em causa não tem sido considerada obstáculo à tese da desnecessidade de réu (de qualquer modo, a posição deste autor teria sentido para outras situações, pois que na maior parte dos casos de divórcio por mútuo consentimento, para mais no tempo em que a obra em causa foi escrita – 1955 -, a sentença não decreta só o divórcio, decidindo outras questões, em relação às quais se pode facilmente dizer que haverá normalmente interesse em fazer valer tal sentença contra com o outro ex-cônjuge).
E visto que há processos sem réus, como por exemplo, já se viu, o processo de divórcio por mútuo consentimento, não pode ser uma posição de princípio a impor a tese de que tem de haver sempre réus, esquecendo-se a realidade de que o processo de revisão de sentença estrangeira pode dizer respeito a sentenças proferidas sem réus ou seja, sentenças que não são proferidas contra ninguém. Ou dito de outro modo, não há razão para que não se aceite que um processo de revisão de sentença diga respeito a sentenças obtidas em processos de jurisdição voluntária, caso em que se impõem as devidas adaptações, no caso, a desnecessidade da existência de réu, se for o caso.
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Se nem sempre tem de haver um réu, porque a sentença pode ser obtida num processo sem parte contrária e, portanto, nem sempre se pretende fazer valer essa sentença contra alguém, a obrigatoriedade de impor a presença de alguém como autor/requerente da revisão, só pode decorrer da existência de uma norma, um negócio ou a natureza da relação a impor essa intervenção (art. 33 do CPC).
Tem-se entendido (é a posição do MP com apoio na jurisprudência das relações) que quem quer que tenha sido parte no processo que deu origem à sentença a rever é necessariamente parte na relação que está em causa no processo que tenha por objecto a revisão dessa sentença e que, por isso, tem de ser parte nesta acção, como requerente, isto certamente com base no raciocínio, de que, se assim não for, a sentença de revisão não produz o seu efeito útil normal, ou seja não regula definitivamente a situação daquele que pediu a revisão, porque não vincula os outros interessados nessa relação (ou seja, haveria um litisconsórcio activo necessário natural).
Aceitando-se que assim é, para não se fugir ao entendimento comum que a jurisprudência tem tido sobre o assunto, no caso do tipo de sentenças que está em causa, tal entendimento não deve levar à necessidade da intervenção dos participantes no processo que levou à sentença da adopção.
É que estes participantes estão vinculados pelo comportamento que assumiram no processo de adopção e por isso não podem ter interesse legítimo em pôr em causa a pretensão do requerente da revisão da sentença de adopção em a fazer valer noutro país. O interesse que pudessem ter nisso seria ilegítimo e não poderia ser invocado, por abuso de direito (art. 334 do CC). E o mesmo se diga dos sucessores daqueles, já que estes apenas interviriam neste processo nessa qualidade, de sucessores, pelo que não poderiam defender interesses diferentes daqueles a quem sucederam.
Assim, a sentença de revisão, no caso de sentenças de adopção, proferidas num processo sem réu, produz o seu efeito útil normal mesmo sem a intervenção daqueles que participaram no processo que levou à sentença de adopção.
Afastado o único argumento do MP, que é o único que poderia ser oposto à desnecessidade da intervenção dos pais adoptivos neste processo, não deixe se dizer que se entende que se pode ir mais longe.
O que a requerente quer neste processo é a revisão da sentença de adopção proferida nos EUA para a fazer valer no nosso país. Nesta relação processual, os pais ou os irmãos da requerente não têm qualquer posição, nem têm qualquer interesse. A necessidade desta acção resulta do disposto no art. 7/1-2 do Código do Registo Civil e, por confronto com o art. 6/1 do CRC, tem em vista a comprovação de que a decisão não contraria os princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português (pois que se a requerente, com o registo estrangeiro de adopção, poderia pedir o averbamento desse acto no seu registo de nascimento português, comprovando a não ofensa àqueles princípios, não faria sentido uma exigência diferente em relação a uma sentença). A não contrariedade àqueles princípios é garantida pela intervenção do MP e pela actividade oficiosa do tribunal (art. 984 do CPC). A lei não exige que haja ainda a intervenção de qualquer outra parte.
Assim, neste tipo de processos e casos (em que é feito valer um estado da pessoa resultante de uma sentença proferida num processo sem partes), é apenas a pessoa que tiver interesse na revisão da sentença que tem de intervir na acção, não qualquer outro participante na relação subjacente para o qual o registo e a eficácia da sentença noutro país lhe é indiferente.
Isto deve levar ao entendimento, por exemplo, de que nos processos de divórcio por mútuo consentimento, em que a sentença diga respeito exclusivamente ao divórcio e se pretenda a revisão apenas para o registo da sentença no registo civil português, também não é necessária a intervenção dos ex-cônjuges que não têm qualquer interesse na revisão ou para quem é indiferente a revisão. O que acaba por coincidir com o resultado a que se chegou pela outra via: por falta de interesse, os participantes no processo que levou à sentença a rever não têm de ser réus nem autores nestes processos. Basta a presença daquele que quer fazer valer uma pretensão baseada nessa sentença.
Tudo isto leva, naturalmente, à posição mais correcta e mais simples do CPC brasileiro que, diferentemente do que dispõe para as outras sentenças estrangeiras, dispõe, no art. 961 § 5º, que “A sentença estrangeira de divórcio consensual produz efeitos no Brasil, independentemente de homologação pelo Superior Tribunal de Justiça.”, pelo que pode ser registada no registo civil sem mais nada. Neste sentido, veja-se a notícia de 19/05/2016 publicada no sitio do STJ brasileiro: “A sentença estrangeira de divórcio consensual, que não precisa mais ser homologada pelo STJ, deve ser levada diretamente ao cartório de registro civil, pelo próprio interessado, para averbação. O procedimento dispensa a assistência de advogado ou defensor público.” (a notícia para além do mais remete para o Provimento n.º 53, de 16/05/2016, que “Dispõe sobre a averbação direta por oficial de registro civil das pessoas naturais da sentença estrangeira de divórcio consensual simples ou puro, no assento de casamento, independentemente de homologação judicial.”)
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Pelo exposto, mantém-se a decisão singular.
Reclamação sem custas (o MP está isento delas, dada a posição que assume nos autos).

Lisboa, 26/06/2025
Pedro Martins
Rute Sobral
Arlindo Crua