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LIVRANÇA
NÃO À ORDEM
CESSÃO DE CRÉDITOS
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
TÍTULO EXECUTIVO
Sumário
I - Se de uma livrança consta a cláusula “não à ordem” a livrança só é “transmissível pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos” (art. 11/2 da LULL), pelo que não vale, na esfera do adquirente, como livrança, mas apenas como “quirógrafo da relação fundamental”. II - Uma cessão de créditos (art. 577 do CC) não é uma cessação da posição contratual (art. 424 do CC). III - Na cessão de créditos não se transmitem para o cessionário os direitos potestativos ligados ao contrato (entre eles o da resolução); logo, por falta de legitimidade, o cessionário de um crédito não pode resolver o contrato. IV - Se a exequente está a exercer um direito resultante da resolução de um contrato, resolução que foi ela a fazer e não tinha legitimidade substantiva para o efeito, o título executivo (contrato + resolução ineficaz) é insuficiente, pelo que o requerimento executivo devia ter sido, como foi, indeferido liminarmente (art. 726/2-a do CPC). V - Para além disso, a exequente não tem legitimidade processual activa porque não sucedeu no contrato a que diz respeito o direito que está a pretender executar (artigos 53/1 e 54/1 do CPC).
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados
Cabot Securitisation Europe Limited requereu uma execução sumária para pagamento de uma livrança de 20.487,05€ [sem qualquer discriminação/liquidação de valores de capital e juros] + 38,25€ de taxa de justiça contra A.
Alegou para o efeito que em 10/05/2022, mediante contrato de cessão de créditos, o BNP Paribas Personal lhe cedeu, em conjunto com outros, o crédito que agora está a executar, vencido, contra a executada, de que era titular. Tal cessão foi notificada à executada [não foi junto documento]. A referida cessão incluiu a transmissão à exequente, relativamente a este crédito, de todos os direitos, garantias e direitos acessórios a eles inerentes [o contrato refere só: garantias e acessórios do crédito], nos termos do disposto no artigo 582.º do Código Civil, tendo esta o direito de receber, exigir e recuperar quaisquer montantes, principais ou acessórios, bem como o direito de exercer todos os poderes do cedente em relação aos créditos objecto de cessão, na qualidade de actual titular dos créditos ora em causa; o crédito resultava de um contrato celebrado em 09/07/2019, referente a um crédito automóvel; verificou-se o incumprimento do respectivo contrato, tendo a exequente procedido à resolução do contrato e preenchimento de livrança, cfr. doc.3. Assim, a exequente é portadora de livrança no valor de 20.487,05€, vencida em 20/02/2023 e não paga, subscrita pela executada, cfr. doc.4.
Do contrato principal junto resulta que se tratou inicialmente de um empréstimo de 23.000€ a pagar com juros em 96 mensalidades, para compra de um veículo (sendo a quantia mutuada a entregar ao fornecedor do bem), garantido com reserva de propriedade a favor do BNP e uma livrança com a cláusula não à ordem.
Depois de o processo, tendo em conta o valor dado à execução, ter sido remetido ao juiz pelo agente de execução para despacho liminar, passando a execução a seguir a forma ordinária, e de a exequente na sequência de despachos nesse sentido, ter junto uma lista incluindo o crédito cedido e reafirmado que foi ela que preencheu a livrança, a 24/05/2024 foi proferido o seguinte despacho:
Uma vez que a exequente não foi parte no contrato e no “pacto de preenchimento”, e não existiu cessão da posição contratual, não tinha legitimidade para declarar resolvido o contrato, e preencher a livrança – motivos por que se conclui que o documento apresentado (sem prejuízo da eventual existência do crédito alegado – embora não liquidado) não pode valer como título executivo (CPC 726.º/2-a)), e se indefere liminarmente o requerimento executivo.
Custas pela exequente.
Registe e notifique. A exequente recorre deste despacho – para seja revogado e proferido despacho de citação do executado de acordo com o artigo 726.º/6 do CPC - terminando as suas alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem na parte útil:
II – É apresentada à execução livrança com a menção “não à ordem” preenchida em conformidade com o pacto de preenchimento.
[…]
IV – A legitimidade activa do exequente para a presente demanda, afere-se primeiramente em função do contrato de cessão de créditos celebrado em 14/03/2022 entre o BNP (cedente) e a Cabot (cessionária) no qual se integra o crédito antes detido pela cedente sobre o aqui executado.
V – Convencionaram cedente e cessionário além da aquisição do crédito as garantias e acessórios deste.
VI – O exequente tornou-se legítimo portador da livrança garantia do crédito cedido por via do mencionado contrato de cessão de créditos.
VII – Na falta de convenção (o que não sucede no caso em apreço) determina o artigo 582.º do CC que a cessão “importa a transmissão para o cessionário das garantias e outros acessórios do direito transmitido, que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente.”.
VIII – Atendemos ainda ao prescrito no parágrafo 2º do artigo 11.º da LULL ex vi do artigo 77.º “Quando o sacador tiver inserido na letra as palavras “não à ordem”, ou uma expressão equivalente, a letra só é transmissível pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos” [ac. do TRG de 03/11/2022, proc. 4496/20.6T8VNF-A.G2].
IX – O cedente preencheu a livrança (garantia) do crédito cedido de acordo com o pacto de preenchimento.
X – Do estipulado no pacto de preenchimento não se pode sustentar o carácter intuitu personae deste.
XI – Com a transmissão do crédito e garantia associada (livrança) é igualmente transmitido ao cessionário o direito ao preenchimento da livrança em conformidade com o estipulado no pacto de preenchimento [ac. do STJ de 06/12/2018, proc. 653/14.2TBGMR-B.G1.S2].
[…]. A executada foi citada a 13/09/2024 para a execução e para os termos do recurso, pediu apoio judiciário e não apresentou contra-alegações.
O recurso foi remetido a este TRL a 11/04/2025 e foi autuado a 22/04/2025.
* Questão que importa decidir: se o requerimento de execução não devia ter sido liminarmente indeferido. Apreciação:
O que importa do despacho recorrido é a questão da legitimidade para a resolução do contrato e não propriamente o preenchimento da livrança em branco. Este é um acto subsequente, dependente daquele, pois que o preenchimento, na lógica da exequente, ocorreu depois da resolução do contrato e de acordo com o que resultava desta.
Posto isto,
De um contrato obrigacional nascem direitos de créditos.
A posição de uma parte num contrato pode ser cedida (cessão da posição contratual – art. 424 do CC) ou pode ser cedido só o crédito (cessão de créditos (art. 577 do CC).
A resolução de um contrato diz respeito, logicamente, ao contrato, não ao crédito.
Tendo-lhe sido cedido só o crédito, a exequente não pode resolver o contrato. Quem o podia fazer seria só a parte no contrato que continuava a ser o BPN.
É por isso que o artigo 582 do CC tem sido lido unanimemente de modo a excluir do seu âmbito os direitos potestativos ligados ao contrato, ou seja, não englobando, nas garantias e outros acessórios do direito transmitido, tais direitos potestativos, entre eles o de resolução do contrato (neste sentido, lembrados através de Ana Taveira da Fonseca, no Comentário ao CC, Direito das Obrigações, Das obrigações em geral, UCP/UCE/FD, Dez2018, páginas 606-607, anotação 6V ao artigo 582, que também defende o mesmo, veja-se Mota Pinto, Cessão da posição contratual, Almedina, 1982, páginas 234-257, especialmente a partir de 240; Antunes Varela, Das obrigações em geral, 4.ª edição, Almedina, págs. 313-314; Menezes Leitão, Direito das obrigações, vol. II, 2014, 9.ª edição, Almedina, página 25, e Cessão de Créditos, Almedina, 2005, págs. 342-347, defendendo a manutenção do direito de resolução do contrato na esfera do cedente; veja-se ainda: Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil, IX, 3.ª edição, Almedina, 2017, páginas 787-789 com referência aos direito potestativos autónomos, diferentes dos direitos potestativos ligados ao crédito; e Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, vol. II, Almedina, 2023, páginas 441-442; Pestana Vasconcelos, A cessão de créditos em garantia e a insolvência, Coimbra Editora, 2007, págs. 485-503, também referido por aquela autora, acaba por chegar, nas páginas 502-503, a uma posição particular, de negar que ao cedente, salvo verificando-se determinadas circunstâncias, caiba o direito de resolução do contrato, mas não atribui tal direito ao credor cessionário; havia uma voz discordante, que era a de Galvão Telles, mas era anterior ao CC).
Não podendo resolver o contrato, não tinha legitimidade para preencher subsequentemente a livrança com o montante subsequente à resolução.
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Note-se que não se está perante uma execução cambiária. Como diz a própria exequente, a cláusula “não à ordem” aposta numa livrança, faz com que a livrança só seja “transmissível pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos” (art. 11/2, aplicável por força do art. 77, ambos da LULL). Portanto o direito que foi transmitido à exequente não é um direito cambiário (Pinto Furtado, Títulos de crédito, Almedina, 2000, pág. 84 e 166-167: “uma letra que circula através desta cessão escapa ao regime jurídico e aos caracteres dos títulos de crédito – e, não podendo ser então tida como um verdadeiro título de crédito, só conservará da letra o nome, não passando, afinal, de um mero quirógrafo da relação fundamental”). A livrança não pode, por isso, depois de transmitida a terceiro, estar a ser accionada por ele como título de crédito, mas apenas como quirógrafo e apenas vale como tal, isto é, como uma promessa de pagamento que consta do documento (art. 703/1-c do CPC), mas com referência aos factos constitutivos da relação subjacente que foram alegados no requerimento executivo e que têm correspondência no contrato de empréstimo junto com o requerimento executivo. Por tudo isto, para além de a execução não dever ter sido requerida como sumária, o título dela não é uma livrança, mas o quirógrafo com referência ao contrato. Aliás, como diz Lebre de Freitas, A acção executiva, 8.ª edição, Gestlegal, 2024, página 82, “[a] invocação da causa da obrigação subjacente introduz esta como objecto do processo executivo […].”
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O direito que a exequente está a exercer é o direito resultante da resolução do contrato. Quer isto dizer que o título executivo tem de constar do contrato e da resolução do mesmo. A resolução de um contrato só pode ser feita por quem é parte nesse contrato. A falta de legitimidade para a resolução provoca a ineficácia da resolução (sobre a ilegitimidade em geral, segue-se Carlos Ferreira de Almeida, Contratos VI, Almedina, 2019, páginas 11 a 53; sobre as consequências, especificamente, págs. 51-52). Um título executivo que tem de constar de um contrato e de uma resolução, sendo a resolução ineficaz, é um título insuficiente ou incompleto para os efeitos do art. 726/2-a do CPC, pelo que se justifica a conclusão a que o despacho recorrido chegou.
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A questão ainda podia ser vista do prisma da legitimidade processual activa, a apurar, no caso, segundo as regras dos artigos 53/1 do CPC -: A execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor - e 54/1 do CPC -: Tendo havido sucessão no direito […], deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor […].
Ora, o direito que a exequente está a exercer é o direito decorrente da resolução do contrato de empréstimo, sendo que ela não é parte nesse contrato, nem sucedeu à parte activa nesse contrato.
Pelo que a exequente não tem legitimidade processual para exercer os direitos que resultam do contrato que é a base do título executivo e que não lhe foram transmitidos.
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No acórdão do STJ referido pela exequente não se discutiu qual era o título executivo – aceitando-se que era uma livrança -, não existia uma cláusula “não à ordem” e existia uma cessação da posição contratual. Tudo isto torna o caso distinto relativamente ao dos autos. No ac. do TRG não se discutiu a não transmissibilidade dos direitos potestativos, nem que fosse a livrança o título executivo.
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Por último, o requerimento executivo é analisado tal como existe, com referência à pretensão formulada pela exequente e com base na causa de pedir por ela invocada. Se a exequente podia ou não ter formulado outra pretensão, com base noutra causa de pedir, não é objecto do despacho recorrido nem deste acórdão.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
A exequente perde a taxa que pagou para o recurso (não há outras custas).
Lisboa, 26/06/2025
Pedro Martins
Laurinda Gemas
Inês Moura