LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
MANDATÁRIO JUDICIAL
Sumário

I - Litiga de má fé a parte que, num recurso, alega que um declarante disse algo sobre uma dada questão quando tal não é verdade (art. 542/2b do CPC).
II - O facto de, no caso, a litigância de má-fé se revelar numa peça processual elaborada por um mandatário judicial, não é suficiente para se imputar a má fé a esse mandatário (art. 545 do CPC).

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

Este acórdão completa o anterior, de 08/05/2025, quanto à questão da litigância de má fé.
A ré foi notificada para se pronunciar, em 10 dias, querendo, sobre a sua eventual condenação, em multa, como litigante de má fé (art. 542/2-b do CPC), eventualmente da responsabilidade da sua mandatária (art. 545 do CPC) - por ter escrito em 4 que “Como referido pelo representante legal da ré, as obras ocorridas não foram solicitadas pela ré mas sim pelo seu filho que trabalha no ramo de cabeleireiro” quando se constata, na audição das declarações de parte, que o legal representante da ré não fez tal afirmação -, e veio fazê-lo nos seguintes termos:
1\ Impugna-se veementemente qualquer imputação de litigância de má-fé, quer à Ré, quer à sua mandatária, porquanto inexiste qualquer conduta dolosa ou gravemente negligente que preencha os pressupostos legais da sanção processual.
2\ Em causa está a expressão utilizada no artigo 4º do recurso interposto pela Ré que refere que “Como referido pelo representante legal da Ré, as obras ocorridas não foram solicitadas pela Ré mas sim pelo seu filho que trabalha no ramo de cabeleireiro.”.
3\ Ora, a referida expressão contém, de facto, dois erros objetivos, cuja natureza é meramente redacional e que se assumem com clareza.
4\ O primeiro erro respeita à identificação do sujeito da declaração: quem mencionou, em sede de audiência, que a obra se destinaria ao filho do sócio-gerente da Ré foi o representante legal da autora, e não da Ré como inicialmente redigido.
6\ O segundo erro prende-se com a ação descrita: o que foi efetivamente afirmado é que a obra se destinava ao filho - e não que teria sido por ele solicitada. A expressão correta seria, pois, “para o seu filho” e não “pelo seu filho”.
7\ Trata-se, assim de um erro de escrita e imputação, num ponto isolado do recurso interposto, sem qualquer impacto na coerência argumentativa da peça processual referida nem qualquer intenção de enganar, deturpar ou ocultar os factos.
8\ Neste sentido, a expressão “em crise” não pode ser analisada de forma isolada ou descontextualizada do restante teor das alegações de recurso.
9\ De uma leitura sistemática e integral do recurso, verifica-se que a tese da Ré é clara e consistente: a obra foi solicitada pelo sócio gerente da Ré, a título pessoal, para fins alheios ao objeto social da sociedade, mais concretamente, para o seu filho.
10\ Aliás, várias são as referências expressas de que a obra foi, sim, solicitada pelo sócio-gerente da Ré ao longo do recurso: vide artigo 10º e 20º do articulado e IV, VI e XI das conclusões de recurso.
11\ Todo o recurso é absolutamente coerente neste sentido, sem contradições internas, à exceção do claro lapso constante do artigo 4º; em nenhum outro momento se tentou sustentar, alegar ou impingir que a obra teria sido contratada pelo filho do sócio-gerente.
12\ Ou seja, em momento algum tentou a Ré, ou a sua mandatária, alegar factos falsos para deturpar a realidade ou se favorecer, está no contexto de todo o recurso que SIM a obra FOI SOLICITADA PELO SÓCIO-GERENTE DA RÉ, a título pessoal, e PARA o seu filho.
13\ A referência ao filho surge apenas para reforçar a ideia de que a obra não se destinava à atividade empresarial da Ré, mas sim ao interesse pessoal do sócio-gerente e do seu agregado familiar – o que é juridicamente relevante na tese de inexistência de vinculação contratual da sociedade.
14\ Portanto a expressão redigida no artigo 4º, além de isolada, é contraditória com toda a tese jurídica do recurso - o que, por si só, demonstra que não foi usada com intenção de manipular ou ocultar a verdade, de má-fé processual.
15\ Nem a Ré, nem a sua mandatária, formularam qualquer afirmação falsa com intenção de obter vantagem indevida, nem adotaram comportamento que se possa reputar de desleal ou temerário.
16\ A jurisprudência é clara ao exigir, para que haja lugar a condenação por litigância de má-fé, a verificação de dolo ou negligência grave, traduzida em conduta processual consciente e abusiva – o que manifestamente não ocorre.
17\ A sanção prevista no artigo 542.º do Código de Processo Civil visa reprimir o uso abusivo do processo, e não erros redacionais pontuais, assumidos, isolados e incongruentes com o próprio conteúdo da peça em que se inserem.
18\ Não crê a Ré, nem a sua mandatária, que 1 artigo mal redigido, na parte inicial de todo o corpo de um recurso, possa servir como fundamentação para aplicação da sanção processual de má-fé, quando todo o restante recurso demonstra claramente o seu argumento, que não é de todo falso.
19\ E que é, efetivamente, contraditório com o artigo 4º.
20\ Nestes termos, não se verificando os requisitos legais, deve ser afastada qualquer condenação da Ré ou da sua mandatária a título de litigância de má-fé.
Apreciando:
O art. 542/2 dá a noção de má fé, sendo que, na parte que interessa ao caso, “Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: […] b) Tiver alterado a verdade dos factos […].
A norma não exige o dolo, que pode assumir três formas: directa, necessária e eventual, correspondendo esta última à situação em que alguém prevê o resultado ilícito não como resultado certo mas apenas possível e não tem a intenção de o produzir, mas não se preocupa com que eventualmente venha a acontecer, aceitando-o e portanto querendo-o para essa hipótese (utilizámos a posição de Galvão Telles, Direito das obrigações, 7.ª edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 348).
Ou seja, a norma não exige nem aquela forma diminuída de dolo. A norma basta-se com a negligência grave. O que está de acordo com a lógica do legislador que alterou a norma em 1995-1996, para que ela passasse a incluir a litigância temerária, isto é, quando as regras são violadas com culpa grave ou erro grosseiro, de modo a atingir uma maior responsabilização das partes (utilizou-se a lição de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, 2017, pág. 456).
A negligência grave consiste em não fazer o que faz a generalidade das pessoas, em não observar os cuidados que todos em princípio adoptam (utilizou-se a definição de Antunes Varela, nota 1 da pág. 598 Das obrigações em geral, vol. I, 9.ª edição, Almedina, 1998). Ou, noutros termos, na actuação que configure uma diligência inferior àquela que até os homens medianamente negligentes adoptam (de Vaz Serra, citado por Henrique Sousa Antunes, na anotação 7 ao art. 487 do Comentário ao CC, Direito das Obrigações, das obrigações em geral, UCP/FD/UCE, 2018, páginas 302-303).
A ré, relativamente a uma questão essencial do objecto do processo, escreveu, nas alegações de recurso, que “como referido pelo representante legal da ré, as obras ocorridas não foram solicitadas pela ré mas sim pelo seu filho que trabalha no ramo de cabeleireiro.”
Esta afirmação tinha como consequência evidente, a ser verdadeira, que fosse afastado um dos factos constitutivos da obrigação que a autora lhe estava a exigir, com a inerente absolvição do pedido.
Mas a verdade é que o legal representante da ré não disse o que a ré lhe imputava, como se constatou com a audição de tais declarações.
O comportamento da ré preencheu com isso a previsão do art. 542/2b do CPC, porque alterou a verdade dos factos e, a não o ter feito com dolo, nalguma das modalidades referidas acima, fê-lo necessariamente com negligência grave.
As partes, num recurso, estão representadas por mandatários judiciais, profissionais com a obrigação legal de conhecer a lei.
Mesmo um advogado, mediamente negligente, não teria escrito, numas alegações de recurso, que uma pessoa tinha dito algo que ela não disse, porque não pode deixar de saber que as afirmações que faz sobre um dado facto num recurso não podem alterar a verdade do que se realmente passou e, por isso, tem que actuar com o mínimo de cuidado necessário a não fazer afirmações que não correspondam ao que na realidade aconteceu. É diferente estar a falar de factos que ocorreram num processo ou a fazer construções jurídicas mais ou menos discutíveis.
Tanto mais que, por força do art. 640/2b do CPC, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso […]
Pelo que, se tivesse sido cumprido este ónus legal, tal seria mais uma razão para que, mesmo aquele advogado medianamente negligente, não tivesse feito afirmações que não estavam de acordo com a realidade.
O que antecede não tem nada a ver com erros de escrita que no caso não estão minimamente indiciados.
A tese da ré, no recurso, não se reconduz linearmente ao que ela agora diz.
Pelo contrário, as alegações de recurso eram compostas de inúmeras afirmações que não eram congruentes e que só um esforço de interpretação permitia aproveitar, de tal modo que para facilitar, depois, a leitura das alegações da ré, o ac. do TRL teve logo que esclarecer, na transcrição do primeiro artigo útil do corpo das alegações, que a ré estava a falar de MVR.
Também foi a falta de linearidade da argumentação da ré que levou à necessidade, para demonstrar que a interpretação das alegações era a correcta e possibilitar a confirmação desse juízo, da transcrição do corpo das alegações em vez das conclusões do recurso.
Veja-se também que a ré no artigo 4 não diz só o que até agora foi referido, mas ainda que as obras ocorridas não foram solicitadas pela ré (facto pessoal contrário ao que ficou provado como resulta, entre outros, do ponto 3 dos factos provados); no artigo 10 utiliza o plural de um sujeito não identificado quando está a falar da celebração do contrato pela autora que é outra sociedade comercial; no artigo 12 usa o género feminino para se referir ao representante legal da autora que é um homem; no artigo 14 fala do seu representante legal ou da ré como se fosse uma senhora de idade avançada e com dificuldades de locomoção, levando, novamente, à dúvida sobre de quem é que estava a falar; o que diz nos artigos 15 e 16, novamente no contexto e tendo em conta o que dizia no artigo 4, sugere de novo que a pessoa que contratou foi o filho e que o pai se limitava a acompanhar/fiscalizar a obra.
Não se trata, pois, de erros de redacção ou de outros erros menores, que é inevitável irem acontecendo a todos, mas da alteração objectiva da verdade dos factos, num contexto de afirmações não lineares, num âmbito de um recurso que, se tivesse tido procedente, levaria à absolvição do pedido.
Aliás, os erros de redacção que acontecem têm, normalmente, o efeito infeliz de prejudicar, enfraquecendo-a, a argumentação dos que os cometem e não, como no caso poderia ocorrer, de vir a beneficiar os seus agentes.
Não se aceita, pois, a justificação apresentada. É uma mera construção que aproveita a não linearidade das alegações do recurso; falta de linearidade que, aliás, já corresponde, de algum modo, a falta de cooperação das partes com a justiça (e que também poderia ter sido enquadrada como litigância de má fé: art. 542/2c do CPC).
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Tendo em conta que: os serviços prestados já ocorreram há mais de 2 anos e meio; o valor dos mesmos; a argumentação de má fé pôs em causa a obtenção desse valor; apenas se pode considerar a culpa grave da ré (e não o dolo); a ré é uma sociedade com um objecto social muito variado e capacidade de realização de várias obras; entende-se que o valor da multa, pela litigância de má fé, deve ser fixado perto do limite mínimo, mas afastado dele, isto é, em 5 UC (art. 27, n.ºs 3 e 4 do RCP).
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Um advogado é um mandatário com poderes representativos da parte (por exemplo: art. 44/1 do CPC).
Como regra, a actividade do representante, nos limites dos poderes que lhe competem, apenas produz os efeitos na esfera jurídica do representado (art. 258 do Código Civil).
Oliveira Ascensão lembra que “o contraponto da imputação do comportamento ao representado está na imunização do representante ao acto praticado. Sobre ele não se repercutem os efeitos desse acto”. Isto embora não deixe de lembrar que “uma coisa é o representante ficar vinculado, outra é ele poder ser responsável.” Essa responsabilidade, para Oliveira Ascensão, decorrerá de o representante, embora no exercício da sua função, ter causado dolosamente lesão nos direitos de terceiro, ultrapassando os limites que são toleráveis na sua conduta como representante (Direito Civil, Teoria Geral, Coimbra Editora, vol. II, 1999, páginas 250 a 255, e vol. I, 1997, páginas 244-249).
O facto de, no caso, a litigância de má-fé se revelar numa peça processual que é elaborada por um mandatário judicial, não é suficiente para se dizer que ela é da responsabilidade pessoal e directa desse mandatário (art. 545 do CPC). Teria que haver algo mais - embora no exercício da sua função, o mandatário teria de ter actuado dolosamente e ultrapassado os limites que são toleráveis na sua conduta como representante – o que no caso não se pode demonstrar.
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Condena-se a ré em 5 UC de multa como litigante de má fé.

Lisboa, 26/06/2025
Pedro Martins
Laurinda Gemas
Susana Maria Mesquita Gonçalves