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PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
INDEFERIMENTO LIMINAR
VEÍCULO AUTOMÓVEL
ENTREGA
Sumário
Sumário: (art.º 663.º n.º 7 do CPC) 1. O indeferimento liminar de procedimento cautelar comum previsto no art.º 368.º n.º 1º do CPC, com fundamento na sua manifesta improcedência, exige que o tribunal chegue a um juízo fundamentado de que, mesmo a resultarem indiciados todos os factos alegados pelo Requerente, a sua pretensão improcede, por não serem suficientes para permitir concluir pela integração dos pressupostos da providência. 2. Pedindo a Requerente a entrega de veículo automóvel, pretendendo acautelar com a providência o seu direito de propriedade sobre o mesmo e não o direito de crédito que para si resulta do incumprimento do contrato de aluguer de veículo celebrado com o Requerido, o periculum in mora que deve ser avaliado é o que resulta do risco de afetação grave e dificilmente reparável de tal direito de propriedade. 3. A permanência do veículo de que é proprietária na posse do Requerido, num contexto de incumprimento contratual da sua parte, que leva a Requerente a resolver o contrato, impede que esta exerça os direitos inerentes ao direito de propriedade sobre o bem, por não pode usar, fruir ou dispor do automóvel locado, sendo o risco do mesmo desaparecer, de perecer ou de se deteriorar que deve ser avaliado.
Texto Integral
Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório
Vem a Santandar Consumer Services, S.A. instaurar o presente procedimento cautelar comum contra AA, pedindo a apreensão e entrega do veículo automóvel, de marca CITROEN, modelo Jumper 2.2 Blue Hdi, com a matrícula AB-..-HI e respetivos documentos.
Alega em síntese, que celebrou com o Requerido um contrato de Aluguer Operacional de Veículos Automóveis, em que este se obrigou ao pagamento de 48 alugueres mensais de €228,86, acrescidos de Serviços e Gestão de Parque mensal de €123,73, perfazendo o valor de €352,59 ao qual acresce IVA à taxa legal. Refere que deu de aluguer o veículo automóvel em questão, que foi entregue ao Requerido, que não pagou os alugueres vencidos a 25/05/2024, 25/06/2024, 25/07/2024, 25/08/2024, 25/09/2024, 25/10/2024 e 25/11/2024, o que levou a Requerente a interpelar o mesmo, por carta registada datada de 28.01.2025, para proceder ao pagamento dos alugueres em falta, acrescidos dos respetivos juros de mora, sob pena de não o fazendo no prazo de 15 dias, proceder à resolução do contrato, não tendo a até à presente data o Requerido efetuado qualquer pagamento, nem entregue a viatura. Conclui que está impossibilitada de dispor do veículo e dele tirar qualquer rendimento no âmbito do seu comércio, sendo que o mesmo está a desvalorizar-se e a depreciar-se rápida e significativamente por cada dia que passa, além de que o Requerido se furtou a todos os contactos telefónicos e pessoais que promoveu para a regularização da situação de incumprimento, pelo que a viatura corre risco de desaparecer, ou de perecer, com o decurso do tempo até a Requerente obter uma sentença em ação declarativa.
Juntou documentos e arrolou testemunhas, requerendo que a providência seja decretada sem audição do Requerido de modo a não a colocar em risco sério o fim da providência.
Foi proferida decisão que indeferiu liminarmente a providência cautelar requerida, com fundamento na sua manifesta improcedência, considerando que a Requerente não logrou alegar factos, ainda que indiciariamente, que permitam dizer que a conduta omissiva do Requerido lhe causa “lesão grave ou dificilmente reparável" ao seu direito (de crédito).
Refere-se a dada altura na decisão recorrida: “O facto de ser normal que a continuação do uso do veículo pelo Requerido lhe causa depreciação, só por si nada diz, até porque também é certo que o Requerido continua obrigado a pagar as prestações do aluguer durante o período de utilização – ou, pelo menos, as correspondentes indemnizações. O incumprimento pelo Requerido das prestações pecuniárias acordadas no contrato de Aluguer Operacional de Veículos Automóveis, não faz aumentar o risco de deterioração física e de desvalorização comercial do veículo. É certo que o incumprimento das prestações passa a assumir um indício muito forte de que algo de negativo se pode passar. Se ele for reiterado aumentam legitimamente as suspeitas. E, se passar a assumir foros de recusa de entrega do veículo, ainda mais é de suspeitar. Qualquer cidadão normal colocado no lugar da Requerente teria receio de não obter mais o veículo automóvel. O risco de perda ou deterioração da viatura é um risco do próprio negócio, risco inerente ao próprio gozo da viatura. Nada se alega e demonstra que, in casu, se vá além do risco normal. Alegou a Requerente que o Requerido continuará a usar o veículo, com a crescente desvalorização do mesmo, depreciando e diminuindo o seu valor. Sem dúvida que tal corresponde à verdade, e indicia a existência de prejuízos para a Requerente. Porém, o que a Requerente tinha de alegar – e não alegou – era que a conduta do Requerido ia tornar impossível ou muito difícil o ressarcimento pela Requerente dos prejuízos havidos com a demora na entrega do veículo.(…) No caso dos autos, a Requerente para qualificar tal lesão grave e de difícil reparação limitou-se, como acima referimos, a alegar que o passar do tempo aliado ao uso e fruição do veículo pelo Requerido, redunda no desgaste, deterioração e inevitável desvalorização do mesmo. Daqui poderíamos dizer que o prejuízo decorrente do incumprimento do Requerido pode ser grave, mas não poderemos dai concluir que o mesmo prejuízo seja de difícil reparação, pois nada foi dito quanto à impossibilidade de aquele prejuízo poder vir a ser ressarcido pelo Requerido, devendo assim improceder o pedido da Requerente.”
É com esta decisão que a Requerente não se conforma e dela vem interpor recurso, pedindo a sua revogação, apresentando, para o efeito, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
a) O presente recurso vem interposto da douta sentença proferida pelo Meritíssimo Juiz de Direito do Juízo Local Cível de Sintra – Juiz 5 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, processo n.º 5776/25.0T8SNT que julgou totalmente improcedente o procedimento cautelar comum requerido pelo ora recorrente.
b) O tribunal a quo não decretou a providência cautelar por considerar que não estavam verificados os requisitos para que fosse decretada a providência cautelar, porquanto entendeu que não se encontrava preenchido o requisito “fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável”, uma vez que os restantes requisitos se mostram preenchidos.
c) Salvo o devido respeito, o tribunal a quo cometeu um erro na apreciação da norma de Direito aplicável ao presente caso, nomeadamente com a violação do disposto no artigo 362.º n.º 1 CPC, ao não considerar verificado o requisito de periculum in mora (requisito determinante para decretamento de providência cautelar comum não especificada).
d) O Recorrente no exercício da sua actividade comercial, celebrou com o Requerido o Contrato de Aluguer Operacional de Veículos Automóveis nº ... (contrato Quadro) composto de "Condições Gerais" do qual derivou o contrato de Aluguer Operacional nº 2020....composto de "Condições Particulares" tendo por objecto viatura automóvel de marca Citroen, modelo Jumper 2.2 Blue Hdi, com a matrícula AB-..-HI.
e) O referido contrato foi incumprido.
f) Perante o incumprimento foi o contrato legalmente resolvido pelo Recorrente.
g) A viatura objecto do contrato de Aluguer Operacional celebrado e de propriedade plena do Recorrente nunca lhe foi devolvida, sendo que, não houve contato ulterior por parte do Recorrido
h) O contrato celebrado com o Recorrido foi um aluguer de Aluguer Operacional e não um mútuo com reserva de propriedade em que a viatura é vendida a prestações e em que o montante decorrente da sua recuperação e venda serviria para abater ao valor em divida. Ao invés, estando-se perante um Aluguer Operacional, a viatura cuja restituição se requer é do Recorrente e há uma separação clara entre, por um lado, os valores de resolução peticionados e por outro, a entrega da viatura.
i) O Recorrente deu entrada em tribunal de uma providência cautelar para recuperação de um veículo de sua propriedade, não de uma acção declarativa de condenação para recuperação do valor em divida.
j) O que se pretende com o procedimento cautelar não é o ressarcimento dos valores advenientes do incumprimento contratual, mas antes a apreensão do veículo propriedade do Requerente.
k) O tribunal a quo considerou não verificado o conceito de periculum in mora tal como disposto no artigo 362.º n.º 1 CPC, pois segue uma visão de que a depreciação do bem locado não pode per si ser suficiente para fundar o perigo na demora e de que não foram alegados factos suficientes do preenchimento desse requisito, designadamente, a incapacidade financeira do Requerido em solver as suas obrigações.
l) Os procedimentos cautelares constituem medidas judiciais preventivas e urgentes com a finalidade de evitar o “periculum in mora”, isto é, o perigo de que a morosidade própria de uma normal acção judicial acabe por inviabilizar, na prática, o direito de que o Recorrente da providência se arroga.
m) Humildemente, aquando da instauração da providência cautelar respetiva, entende o Recorrente que alegou factos suficientes para preenchimento daquele normativo.
n) No entanto o Tribunal a quo é claro ao entender “Repare-se que, sendo o prejuízo sofrido apenas de natureza patrimonial, naturalmente que, atenta a possibilidade de reconstituição natural ou em dinheiro (vide art.º 566.º do Código Civil), sempre pode a Requerente ser ressarcido daquele prejuízo com recurso a outros meios patrimoniais oferecidos pelo devedor /requerido”
o) Destarte, segue-se nesta matéria o entendimento do douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18.11.2010 (relatora Teresa Prazeres Pais) in www.dgsi.pt onde se dispõe que “o periculum in mora tem que ser analisado e apreciado relativamente ao direito que é invocado pelo requerente, e não já em relação a qualquer outro direito que daquele seja sucedâneo ou substitutivo, como o direito à indemnização pelos prejuízos daí decorrentes”.
p) De facto, como bem salienta outro ilustrativo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 26.02.2015, para um caso similar ao presente em que estávamos perante um pedido de entrega judicial de viatura propriedade do Recorrente e que pode ser aferido em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/961ad184defcd9ac80257e0c0030945a?OpenDocument, “Para aferir daquele fundado receio o que interessa é poder ser afectado o atual direito de propriedade da requerente ao uso, fruição e disposição do veículo automóvel”.
q) No presente caso o fundado receio de perda grave e dificilmente reparável não se refere ao direito de crédito (que consiste em obter o pagamento das rendas vencidas e não pagas pelo Recorrido bem como o pagamento da indemnização devido pelo incumprimento contratual) mas antes o seu direito de propriedade que incide sobre o veículo não restituído e para o qual se teme, seriamente, que o Recorrido esteja a fazer várias manobras de ocultação para nunca chegar a entrega-la, com o grave prejuízo daí adveniente
r) Efectivamente, defende o Recorrente que no presente caso o fundado receio de perda grave e dificilmente reparável não se refere ao direito de crédito (que consiste em obter o pagamento das rendas vencidas e não pagas pelo Recorrido bem como o pagamento da indemnização devido pelo incumprimento contratual) mas antes o seu direito de propriedade que incide sobre o veículo não restituído e para o qual se teme, seriamente, que o Recorrido esteja a fazer varias manobras de ocultação para nunca chegar a entrega-la, com o grave prejuízo daí adveniente.
s) Como é expresso no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 26.02.2015 in www.dgsi.pt “Por conseguinte, a continuação da utilização do veículo por parte da Recorrida, sem que a mesma tenha título legítimo para o efeito, pode causar danos patrimoniais graves à Recorrente, bastando a matéria de facto indiciariamente provada nos presentes autos para se considerar preenchido o requisito de verificação de uma situação de lesão grave e de difícil reparação do direito de propriedade da Recorrente. (…) O que interessa e é relevante, para aferir do fundando receio de lesão grave e dificilmente reparável, é poder ser afectado o atual direito de propriedade da requerente. Claro que as consequências daquela eventual acção do requerido “serão meramente patrimoniais” como se invoca na decisão recorrida. Mas então, levando ao limite esse raciocínio, de que os danos “serão ressarcíeis por via de uma adequada indemnização em dinheiro”, teríamos de concluir que só quando estivessem em causa bens eminentemente pessoais é que poderia ocorrer o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável e mesmo aí poderia objetar-se que também tais danos serão indemnizáveis” (bold e sublinhados nossos).
t) Ou seja, nos termos do supra referido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 26.02.2015, ao qual se adere na íntegra, uma posição de Direito (que nada tem a ver com a factualidade provada) quanto à noção do conceito de periculum in mora como a que é defendida pelo tribunal a quo, inviabilizaria que, no limite, qualquer providência cautelar comum não especificada para recuperação da viatura viesse a ser sempre indeferida, exceto quando estivesse em causa a lesão de bens iminentemente pessoais (que nem serão a regra).
u) Ainda no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa 26.02.2015, “Resultando das regras de experiência comum que quanto mais tempo o requerido tiver a viatura na sua posse e a usar maior é o risco de a mesma se estragar e, consequentemente, o direito da requerente à propriedade do veículo poder ser irremediavelmente colocado em causa, podendo até extinguir-se tal direito, pelo perecimento da viatura, deve concluir-se pela verificação do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável.”
v) Uma posição de Direito (que nada tem a ver com a factualidade provada) quanto à noção do conceito de periculum in mora como a que é defendida pelo tribunal a quo, inviabilizaria que, no limite, qualquer providência cautelar comum não especificada para recuperação da viatura viesse a ser sempre indeferida, exceto quando estivesse em causa a lesão de bens iminentemente pessoais (que nem serão a regra).
w) Algo com o que não se pode concordar.
x) De facto, entende o ora Recorrente que o fundamental nesta matéria é a adequação da providência solicitada a fazer cessar o perigo de lesão do direito, e que tal foi alegado pelo Recorrente na sua petição inicial e corroborado e provado documentalmente.
y) Dir-se-á que é notório e de conhecimento geral que a utilização do veículo por parte do Recorrido acarretará necessariamente a deterioração e desvalorização do mesmo, mas mais ainda, impedirá que o Recorrente, como proprietário, de dispor dos seus próprios bens na plenitude das faculdades que integram o direito de propriedade.
z) Sucede que, o Recorrente embora tendo alegado tais factos na sua petição inicial não se limitou aos mesmos para justificar o fundado receio de grave lesão de dificuldade na reparação do Direito.
aa) Nem sequer se limitou à circunstância de alegar o incumprimento contratual, as interpelações efetuadas, a resolução operada com as cartas recebidas e ignoradas e o valor em divida. Sem prejuízo de o ter demonstrado e provado.
bb) Na verdade, foi-se mais longe, ao contrário do referido pelo tribunal a quo.
cc) Na petição inicial o Recorrente faz alusão ao facto de empresa de recuperação externa ter tentado recuperar a viatura locada, sem sucesso.
dd) A viatura é propriedade do Recorrente, registada em seu nome (pois estamos perante um aluguer Operacional), e este não consegue exercer o controlo sobre aquela.
ee) O Recorrente tem fundado receio na ocultação da viatura e tem ainda mais receio que a mesma possa ser envolvida em acidente ou manobra menos clara.
ff) Uma acção executiva não resolveria o problema, pois sendo a viatura propriedade da Recorrente a mesma não poderia ser penhorada.
gg) É incontestável que bens como o que é objecto do procedimento cautelar intentado têm uma vida económica limitada, sendo o prejuízo causado ao Recorrente gradual e consideravelmente mais elevado com o decorrer do tempo.
hh) A verdade é que quanto mais tempo o Recorrido tiver a viatura na sua posse (se é que ainda a tem e não a dissipou já), maior é o risco do veículo se estragar e, consequentemente, o direito do Recorrente à propriedade do veículo poder ser irremediavelmente colocado em causa, podendo até extinguir-se tal direito, pelo perecimento/desaparecimento do bem.
ii) A factualidade alegada e provada pelo Recorrente é suficiente para considerar verificado o requisito de periculum in mora nos termos do artigo 362.º n.º 1 CPC.
jj) Termos em que, deverá ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, sendo em consequência decretado o procedimento cautelar para apreensão da viatura de marca Citroen, modelo Jumper 2.2 Blue Hdi, com a matrícula AB-..-HI.
kk) Desta forma, a douta sentença recorrida ao indeferir o presente procedimento cautelar viola o disposto no Art.º 381º do C.P.C.
Foi determinada a citação pessoal do Requerido para os termos do recurso e da ação, o que veio a verificar-se, e o mesmo nada veio dizer.
II. Questões a decidir
É apenas uma a questão a decidir, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Recorrente nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do CPC- salvo questões de conhecimento oficioso- art.º 608.º n.º 2 in fine:
- do (indevido) indeferimento liminar da providência requerida.
III. Fundamentos de Facto
Os factos relevantes para a apreciação do presente recurso são os que constam do relatório elaborado.
IV. Razões de Direito - do (indevido) indeferimento liminar da providência requerida
Defende a Recorrente que alegou os factos suficientes para demonstrar a existência do requisito do pericullum in mora, referindo que o fundado receio de perda grave e dificilmente reparável não se refere ao direito de crédito resultante do incumprimento do contrato, mas antes ao seu direito de propriedade sobre o veículo automóvel.
A decisão recorrida indeferiu liminarmente a providência requerida, por manifestamente improcedente, afirmando que a Requerente não alegou os factos bastantes que a resultarem indiciados revelam a existência de um prejuízo de difícil reparação.
Quanto ao procedimento cautelar comum, prevê o art.º 362.º n.º 1 do CPC: “Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave ou dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência, conservatória ou antecipatória, concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado.”
Como é pacífico, os procedimentos cautelares em geral constituem instrumentos jurídicos, de natureza incidental, destinados a acautelar o efeito útil das ações ou execuções de que são dependência, visando, designadamente, evitar prejuízos graves através da consumação de uma lesão grave ou dificilmente reparável de um direito em face do decurso de tempo necessário à composição definitiva do litígio, de modo a obter-se a conciliação possível, entre o interesse da celeridade e o da segurança jurídica, como se infere do art.º 362.º do CPC. Têm assim como objetivo obviar ao periculum in mora.
Como ensinam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora in Manual de Processo Civil, pág. 24: “Exatamente porque se destina a prevenir o perigo da demora inevitável no processamento normal da ação, o procedimento cautelar necessita de ter uma estrutura bastante mais simplificada, em consonância com o seu fim específico. Ao apreciar os pressupostos da providência, o juiz não poderá exigir, na prova da existência e da violação do direito do requerente, nem na demonstração do perigo de dano que o procedimento se propõe evitar, o mesmo grau de convicção que naturalmente se requer na prova dos fundamentos da ação.”
É assim que o art.º 368.º n.º 1 do CPC vem estabelecer que: “A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.”
O procedimento cautelar comum, previsto no art.º 362.º do CPC pressupõe a existência provável do direito ameaçado – fumus boni juris – bastando-se o legislador com a sua aparência ainda que séria, sem necessidade de um juízo de certeza, o que é justificado pela exigência de celeridade que está subjacente aos procedimentos cautelares, a par da circunstância de não determinarem, em regra, uma resolução definitiva do litígio, uma vez que se apresentam como dependentes de uma ação já proposta ou a propor, apresentando um caracter instrumental em relação a esta, visando acautelar o seu efeito útil.
O receio de lesão grave e de difícil reparação – periculum in mora - supõe que o titular do direito se encontre perante uma ameaça. Pretendendo acautelar-se um prejuízo, se este já se produziu, a providência carece de razão de ser. Diz-nos, no entanto, o Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil anotado, 3ª ed. pág. 684 que é necessário não exagerar no alcance desta doutrina que tem de ser entendida em termos razoáveis. É que pode haver um dano já consumado, mas haver outros danos previsíveis e iminentes. A lesão cometida pode determinar o justo receio de lesões futuras. Refere este Ilustre Prof. que: “Quando isto suceda, o titular do direito pode invocar a lesão efectuada como fundamento do justo receio de outras lesões idênticas e pedir, consequentemente, a providência adequada para evitar que essas lesões se produzam.”
O indeferimento liminar do procedimento cautelar é admitido pelo art.º 590.º n.º 1 do CPC quando o pedido seja manifestamente improcedente, o que exige que o tribunal faça uma avaliação fundamentada, na realização de um juízo em que, mesmo a provarem-se todos os factos alegados pela Requerente a sua pretensão improcede, por não serem suficientes para integrar os pressupostos da providência requerida.
É a luz do que se expôs que importa avaliar o caso concreto, no sentido de saber se os factos alegados pelo Requerente, a provarem-se, são suficientes para mostrar um fundado receio do Requerido causar uma lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, sendo que, atentando no pedido e na causa se pedir, o direito que a Recorrente pretende acautelar com a presente providência é o seu direito de propriedade sobre o veículo e não o direito de crédito que para si resulta do incumprimento do contrato celebrado.
Como se refere no Acórdão do TRE de 05-12-2024 no proc. 1881/24.8T8PTM.E1 in www.dgsi.pt : “Discute-se, todavia, se tal pressuposto se tem por verificado face à constatação de que as viaturas automóveis são bens de fácil e rápida depreciação, atingindo-se por presunção natural a existência do risco de ocultação e até de perecimento, ou antes, estando em causa um dano puramente patrimonial, carece a requerente de alegar e provar a insuficiência económica do obrigado à restituição, sem o que não resulta suficientemente indiciado o perigo do dano sofrido não obter ressarcimento mediante a atribuição de uma indemnização por equivalente (cfr., sobre a questão, a título meramente exemplificativo e com recenseamento de diversas decisões num e noutro sentidos, os acórdãos do TRC de 28/11/2018, no processo n.º 3440/17.2T8LRA.C1, e deste TRE de 13/7/2022, processo n.º 973/22.2T8LLE.E1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt). (…) Pois bem, sendo o direito à restituição da viatura aquele que a requerente visa acautelar com a presente providência, é por referência a este mesmo direito que se deverá aferir se ocorre “lesão grave e dificilmente reparável”, caso a mesma não seja deferida.”
A permanência do veículo na posse do Requerido, num contexto de incumprimento contratual que leva a Requerente a resolver o contrato, impede que esta exerça os direitos inerentes ao direito de propriedade sobre o veículo, já que não pode usar, fruir ou dispor do automóvel locado, sendo que, por regra, o mero decurso do tempo é um elemento desvalorização de um veículo automóvel.
Invoca-se aqui pela sua clareza o Acórdão do TRL de 16-12-2021 no proc. 21664/21.6T8LSM.L1 que incide sobre situação idêntica, que a relatora subscreveu como adjunta, para o qual se remete, que fundamenta bem este entendimento: “Qualquer pessoa colocada na posição da Requerente tenderia a considerar o seu direito de propriedade gravemente afetado e suscetível de ser irremediavelmente perdido quanto aos veículos automóveis em causa. É certo que tal pode ser compensado por indemnização, mas não é o direito creditício que ora está em causa, mas o direito de propriedade da Requerente sobre os referidos veículos que se pretende salvaguardar com a presente providência cautelar. Como refere Teixeira de Sousa, in https://blogippc.blogspot.com/, no seu post de 18.10.2017, jurisprudência (707): «A requerente da providência não é apenas titular de um direito de crédito é também e antes de mais titular do direito real de propriedade sobre o veículo cuja entrega reclama. E a finalidade da providência requerida não é acautelar o direito de crédito (composto pelo valor dos alugueres vencidos e não pagos e pelo montante das indemnizações pelo incumprimento do contrato de aluguer de veículo), mas sim acautelar o direito de propriedade sobre o veículo e o conteúdo próprio desse direito (o direito ao uso e fruição conforme o proprietário entender)». «Pretender que se o veículo não for entregue à requerente esta terá o direito de reclamar a correspondente indemnização e consequentemente o direito da requerente é ainda e sempre um direito de crédito é, com todo o devido respeito, misturar e confundir o conteúdo do direito (real) que existe com o conteúdo do direito (obrigacional) que passará a existir se aquele for violado, mas como sucedâneo do não respeito devido por aquele direito e não como substituto do direito». «A requerente é proprietária do veículo, logo tem a faculdade jurídica de o utilizar e de dispor dele conforme entender, da mesma forma que goza do poder jurídico de impor a qualquer pessoa o respeito por esse direito e a abstenção de o colocar em risco. Ao alugar o veículo à requerida a requerente fez uso desse poder, mas o direito de gozo do veículo que a requerida adquiriu é meramente obrigacional e o seu regime acompanha as vicissitudes da relação contratual que lhe está na génese, de modo que extinto o contrato cessa esse direito ao gozo do bem alheio e o respectivo proprietário recupera na íntegra as faculdades de gozo, fruição e disposição do bem que lhe pertence». «O proprietário cujo direito de propriedade é violado ilicitamente por um terceiro pode reclamar deste a indemnização dos danos causados pelo comportamento do terceiro, mas também pode, em simultâneo e cumulativamente, exigir do terceiro que cesse a violação e que se abstenha de afectar o conteúdo jurídico do seu direito de propriedade. Um direito não prejudica nem substitui o outro; cada um deles tem a sua própria natureza jurídica, o seu regime de tutela e pode ser defendido de forma autónoma». «Quando a requerente pede a entrega do veículo está a defender o seu direito de propriedade sobre o veículo, não o seu direito de crédito decorrente do não cumprimento do contrato de aluguer, sendo certo que o direito à restituição é o direito de recuperar o bem como coisa íntegra, útil e utilizável, e não como coisa imprestável, inutilizável ou já apenas sucata». «Não resulta da ordem jurídica e o tribunal não pode impor à requerente o sacrifício do direito real e a substituição involuntária pela indemnização sucedânea! Por conseguinte, o que cabe ao tribunal decidir não é se a requerente pode por outra via obter um valor que a compense da privação do veículo e da afectação do conteúdo do seu direito real de propriedade, mas apenas se a tutela provisória do direito real está justificada porque a requerente tem o direito de obter do tribunal a tutela do direito de que é titular, não do direito que lhe querem impor». «Nessa medida, o periculum in mora exigível não é aquele que se prende com o risco de satisfação do direito de indemnização (se a devedora tem património para pagar) mas apenas o que se reporta ao risco de afectação grave e dificilmente reparável do direito de propriedade».
Também neste sentido, para além dos acórdãos citados e apenas a título de exemplo, pronunciaram-se ainda o recente Acórdão do TRL de 26-02-2015 no proc. 1617/14.1T8SNT.L1-6 ou o Acórdão do TRP 20-04-2017 no proc. 575/17.5T8VNG.P1, ambos inwww.dgsi.pt referindo-se neste último: “Pretender que se o veículo não for entregue à requerente esta terá o direito de reclamar a correspondente indemnização e consequentemente o direito da requerente é ainda e sempre um direito de crédito é, com todo o devido respeito, misturar e confundir o conteúdo do direito (real) que existe com o conteúdo do direito (obrigacional) que passará a existir se aquele for violado, mas como sucedâneo do não respeito devido por aquele direito e não como substituto do direito. (…) O proprietário cujo direito de propriedade é violado ilicitamente por um terceiro pode reclamar deste a indemnização dos danos causados pelo comportamento do terceiro, mas também pode, em simultâneo e cumulativamente, exigir do terceiro que cesse a violação e que se abstenha de afectar o conteúdo jurídico do seu direito de propriedade. Um direito não prejudica nem substitui o outro; cada um deles tem a sua própria natureza jurídica, o seu regime de tutela e pode ser defendido de forma autónoma. (…) Nessa medida, o periculum in mora exigível não é aquele que se prende com o risco de satisfação do direito de indemnização (se a devedora tem património para pagar) mas apenas o que se reporta ao risco de afectação grave e dificilmente reparável do direito de propriedade.”
À luz deste entendimento que se defende, no sentido de que ao pretender a entrega do veículo é o direito de propriedade sobre o mesmo que a Requerente procura acautelar, é manifesto que foram alegados os factos bastantes que, resultando indiciados, permitem sustentar a verificação do requisito do periculum in mora necessário ao decretamento da providência, atenta a natureza do bem em causa e o risco da sua permanência nas mãos de terceiro que continua a dar-lhe uso sem título legítimo para o efeito.
Impõe-se, em conformidade, a revogação da decisão proferida que indeferiu liminarmente o procedimento requerido, por não poder concluir-se sem mais que o mesmo é manifestamente improcedente, determinando-se o prosseguimento dos autos.
V. Decisão:
Em face do exposto, julga-se procedente o recurso interposto pelo Requerente, revogando a decisão recorrida e determinando que o procedimento prossiga os seus termos legais.
Custas pela Recorrente – art.º 527.º n.º 1 in fine.
Notifique.
*
Lisboa, 26 de junho de 2025
Inês Moura
Ana Cristina Clemente
Rute Sobral