SIGILO BANCÁRIO
LEVANTAMENTO
Sumário

Sumário: (art.º 663.º n.º 7 do CPC)
1. Atento o disposto no art.º 417.º n.º 3 al. c) do CPC é legítima a recusa da CGD em fornecer elementos relativos a movimentos bancários de uma conta titulada pelo falecido marido da A., com fundamento no dever de sigilo a que está sujeita, nos termos do art.º 78.º do RGICSF.
2. No âmbito de um processo judicial que questiona a validade de um negócio de compra e venda de um imóvel alegadamente simulado, celebrado entre o marido da A. já falecido e os RR., sendo invocado que o vendedor não recebeu efetivamente o preço do bem que declarou vender, não obstante o depósito de um cheque numa conta bancária de que era titular, aberta no próprio dia em que o cheque foi depositado, torna-se necessário saber qual o destino daquele dinheiro que dali foi retirado poucos dias depois e por quem.
3. É adequado e proporcional o levantamento do sigilo bancário quando a A. não consegue identificar o ordenante e beneficiário da transferência de valor equivalente ao preço de venda do imóvel, elemento necessário para avaliar se o negócio de compra e venda foi simulado, visando retirar do património do falecido aquele bem, em prejuízo da A. sua mulher e herdeira, o que vai ao encontro do interesse público na boa administração da justiça.

Texto Integral

Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
O presente incidente de levantamento/quebra de sigilo vem suscitado pelo tribunal a quo, no âmbito da ação declarativa intentada por AA contra os RR. BB, CC e DD, pedindo que se declare a nulidade do contrato de compra e venda do imóvel que identifica, celebrado entre EE, seu marido, falecido a 26.03.2023 e os RR., alegando que o preço do imóvel nunca foi pago e que tal negócio visou prejudicá-la enquanto herdeira, retirando tal bem do património do seu marido.
Os RR. vêm contestar, impugnando os factos alegados e concluindo pela improcedência da ação, referindo que o preço do imóvel que adquiriram foi pago através do cheque de € 34.500,00 cuja cópia juntam aos autos, não tendo existido simulação, sendo o negócio válido.
A A. vem responder que tal cheque foi depositado numa conta bancária solidária aberta para o efeito em 27.05.2013, em nome do falecido e de FF, irmão da 1ª R., no mesmo dia em que nela foi depositado o cheque, que em 05.06.2013 foi transferido o valor de € 1.000,00 e em 07.06.2013 o valor de € 33.500,00 para uma conta bancária do referido FF, tendo aquela conta bancária sido encerrada mais tarde sem que tivesse registado outros movimentos.
A pedido do A. o tribunal a quo, em sede de despacho saneador, entre outras diligências probatórias, veio a determinar o seguinte:
“Oficie o Banco de Portugal, solicitando que identifique as contas bancárias – singulares, conjuntas ou solidárias, tituladas por FF, casado com GG, com o contribuinte fiscal ..., residente na Urbanização...Horta Bica Leão, Moura, conforme requerido pela A..
Oficie a CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS para, por referência à conta ..., identificar a conta e o titular destinatário da transferência bancária do dia 07/06/2013, no valor de € 33.500,00, assim como o ordenante da mesma, conforme requerido pela A..
Oficie CAIXA AGRÍCOLA para, por referência à conta bancária PT(…)20, identificar os titulares da conta, o titular destinatário da transferência bancária - identificada no extrato bancário com a conta ... -, da quantia de € 1.000,00, datada do 5 de junho de 2013, e quem foi o titular ordenante desta transferência, conforme requerido.
Os RR. vieram juntar autorização para que as instituições bancárias pudessem juntar aos autos os elementos bancários requeridos pela A.
Entre outros ofícios enviados, foi solicitado à CGD que prestasse as informações referidas, ao abrigo do princípio da colaboração.
Por ofício de 01.08.2024 veio a CGD invocar o art.º 78.º do DL 298/92 de 31 de dezembro - Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF) - para fundamentar a sua recusa em prestar os elementos solicitados, informando que só o poderá fazer mediante autorização expressa dos interessados titulares dos dados ou mediante decisão de levantamento de sigilo bancário.
A A. veio requerer que se providenciasse pela quebra do sigilo bancário.
O tribunal a quo, reconhecendo como legítima a escusa da CGD em prestar as informações requeridas, encaminhou para este tribunal a apreciação e decisão de dispensa do sigilo.
II. Questão a decidir
- da verificação dos pressupostos que permitem o levantamento do sigilo bancário invocado pela CGD.
III. Fundamentos de facto
A factualidade relevante para a decisão do incidente é aquela que resulta do relatório elaborado.
IV. Razões de Direito
- da verificação dos pressupostos que permitem o levantamento do sigilo bancário invocado pela CGD
Vejamos sumariamente o regime legal a ter em conta, para de seguida se ponderar se deve ou não haver lugar à quebra do sigilo invocado pela CGD para se escusar a prestar as informações que lhe foram solicitadas, relativas à identificação e movimentações da conta bancária onde foi depositado o cheque e retirado o dinheiro correspondente ao preço do imóvel objeto do negócio de compra e venda, que aqui é questionado pela A.
No domínio bancário coloca-se muitas vezes a questão da dispensa ou quebra de segredo, estando esta matéria prevista expressamente nos art.º 78.º e 79.º do DL 298/92, de 31 de dezembro, diploma que contém o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF).
O art.º 78.º dispõe relativamente ao segredo profissional:
1 - Os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
2 - Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.
3 - O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços.”
Sobre esta questão importa ainda ter em conta o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ de 13-02-2008 com o n.º 2/2008, publicado no DR de 31/03/2008 in www.dgsi.pt que fixou jurisprudência nos seguintes termos:
1. Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, nformação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário.
2. Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do nº 2 do art. 135º do Código de Processo Penal.
3. Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do nº 3 do mesmo artigo.
As exceções ou limites ao dever de segredo bancário são contemplados no art.º 79.º do diploma mencionado que, no seu n.º 1, prevê que a instituição bancária possa fornecer ou revelar os elementos das relações do cliente com a instituição, mediante a autorização daquele. Na falta de tal autorização os factos cobertos pelo segredo apenas podem ser transmitidos às entidades elencadas no n.º 2, entre as quais as autoridades judiciárias no âmbito de um processo penal, na previsão da al. e) ou quando exista disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.
No processo civil, no âmbito da instrução do processo, é o art.º 417.º que rege sobre o dever de cooperação de todas as pessoas para a descoberta da verdade, sejam ou não parte no processo, prevendo que a recusa de colaboração com o tribunal possa ser sancionada com multa- art.º 417.º n.º 1 e 2 do CPC.
Já o n.º 3 deste art.º 417.º estabelece os casos em que a recusa de colaboração com o tribunal é legítima, nos quais se integram, designadamente, de acordo com a previsão da al. c) a violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4, que acrescenta: “Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.”
Remetendo o processo civil para o regime previsto no processo penal, há que ter em conta o art.º 135.º do CPP que, reportando-se ao segredo profissional, começa por prever, no seu n.º 1 que, entre outros, os membros das instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei impuser ou permitir que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre factos por ele abrangidos. De acordo com o n.º 3 deste artigo, o tribunal superior àquele em que o incidente tiver sido suscitado, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.
O direito ao sigilo bancário, tal como o direito ao sigilo de supervisão bancária, não é um direito absoluto. Como se diz no Acórdão do TRP de 10-01-2012 no proc. 5336/10 in www.dgsi.pt : “Embora protegido constitucionalmente, o direito ao sigilo bancário não é um direito absoluto, cedendo perante outros direitos ou interesses igualmente consignados na lei fundamental, cuja tutela imponha o acesso a informações cobertas pelo segredo bancário.”
A dispensa ou quebra de sigilo bancário é uma situação que judicialmente apenas se coloca quando estamos perante dois interesses em conflito, importando determinar em cada caso qual deles deve prevalecer.
De um lado, temos o segredo bancário que deve ser visto não só na perspetiva de um dever da instituição para com o cliente, numa tutela do princípio da confiança no âmbito da relação estabelecida entre eles e a proteção da vida privada, como também numa perspetiva social, assente em razões de ordem pública e de tutela da confiança no sistema bancário.
Do outro lado, temos também um interesse de ordem pública que se traduz na boa administração a justiça e no alcance da descoberta da verdade material, que impõe a todos o dever de cooperação com o tribunal, conforme decorre dos art.º 7.º e 417.º do CPC, que em regra surge associado ao interesse particular de uma das partes no processo.
Defendendo que o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrados no art.º 20.º da CRP pode prevalecer sobre o segredo bancário, diz-nos o Acórdão do TRL de 09-02-2017 no proc. 19498/16.9T8LSB-A.L1-2 in www.dgsi.pt : “(…) esse direito ao sigilo, embora com cobertura constitucional, não é um direito absoluto, e desde logo por isso que pela sua referência à esfera patrimonial, não se inclui no círculo mais íntimo da vida privada das pessoas, embora com ele possa manter relação estreita. Podendo assim ter que ceder perante outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, cuja tutela imponha o acesso a informações cobertas pelo segredo bancário.”
Para a superação deste conflito de interesses, o art.º 135.º n.º 3 do CPP faz apelo ao princípio do interesse preponderante, devendo levar-se em consideração, de acordo com o disposto nesta norma, com as necessárias adaptações, fatores como a imprescindibilidade dos elementos para a descoberta da verdade e a natureza e âmbito dos bens em discussão.
Importa ainda ter em conta o art.º 335.º do C.Civil que sobre a colisão de direitos iguais ou da mesma espécie estabelece que os titulares devem ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito.
Como nos diz o Acórdão do TRL de 23-09-2021 no proc. 1172/21.6T8AMD.L1-2 in www.dgsi.pt : “Tendo presente a finalidade e a importância do sigilo bancário, é claro que a quebra do mesmo não poderá ser determinada sem uma criteriosa avaliação da sua necessidade e proporcionalidade, sob pena de se transformar em regra aquilo que deve ser uma exceção. Assim, para que possa ser ordenada a prestação da colaboração (determinada no quadro da administração da justiça) com quebra do dever de sigilo profissional é indispensável que tal se justifique segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, ponderando a imprescindibilidade da colaboração para o apuramento dos factos, a relevância do litígio e a necessidade de proteção de bens jurídicos, conceitos legais que têm sido densificados pela jurisprudência dos tribunais superiores.”
Ensina Lopes do Rego, in Código de Processo Civil Anotado, pág. 363: “cumpre ao Tribunal actuar segundo critérios prudenciais, realizando uma cautelosa e aprofundada ponderação dos delicados e relevantes interesses em conflito: por um lado, o interesse na realização da justiça e a tutela do direito à produção da prova pela parte onerada; por outro lado, o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de sigilo, “máxime” o interesse da contraparte na reserva da vida privada, a tutela da relação de confiança que a levou a confiar dados pessoais ao vinculado pelo sigilo e a própria dignidade do exercício da profissão.”
Passando ao caso concreto, constata-se que a CGD fundamentou a sua recusa em prestar as informações pedidas pelo tribunal, no dever de segredo a que está sujeita, nos termos do art.º 78.º do RGICSF e no art.º 417.º n.º 3 al. c) do CPC, não havendo dúvidas, atento o disposto nestas normas, em considerar legítima a sua recusa em prestar os elementos bancários requeridos.
Na situação em presença temos de um lado o direito ao sigilo bancário e do outro lado o interesse público na boa administração da justiça e o direito das partes a uma tutela jurisdicional efetiva, impondo-se então saber se aquele deve prevalecer ou não perante estes, sendo em função do caso concreto e da ponderação dos direitos e dos interesses em confronto que vai resultar a resposta a tal questão.
Estamos no âmbito de um processo judicial que questiona a validade de um negócio de compra e venda de um imóvel celebrado entre o marido da A. já falecido e os RR., alegadamente simulado por não ter sido pago ao vendedor o preço do bem, sendo por isso necessário determinar com verdade, se o negócio em questão correspondeu efetivamente a um contrato de compra e venda, ou antes se foi simulado, visando retirar do património do falecido aquele bem, em prejuízo da A. sua mulher e herdeira.
Não obstante os RR. invoquem o pagamento do preço através de cheque, depositado em conta bancária do falecido, aberta no mesmo dia em que o cheque foi depositado, importa saber quem podia movimentá-la e efetivamente movimentou, designadamente dela retirando poucos dias depois o valor pago pelo imóvel, como alega a A. (e documento bancário já junto aos autos revela), sendo necessário saber qual o destino daquele dinheiro da venda.
Para a boa decisão da causa importa saber se o dinheiro da venda do imóvel foi efetivamente pago ao falecido, integrando o seu património, ou se teve outro destino e apenas foram realizados alguns procedimentos ou diligências bancárias, pelos RR. ou pessoas delas próximas, de forma a dar essa aparência de pagamento, designadamente com a abertura de conta bancária que apenas serviu para esse efeito.
A cópia do cheque junto aos autos pelos RR. com a sua contestação e os documentos bancários já juntos aos autos com a autorização dos RR. indiciam que:
- com vista ao pagamento do preço do bem foi emitido cheque pela 1ª R. em nome do falecido pelo valor de € 34.500,00 que foi depositado na conta dele ... aberta no mesmo dia em que o cheque foi depositado;
- pouco antes da data do cheque, foi transferida para a conta bancária da 1ª R. esse mesmo valor de € 34.500,00;
- os valores de € 1.000,00 e € 33.500,00 foram transferidos poucos dias depois, não se sabendo o seu destino.
Em face do alegado por ambas as partes e com vista à boa decisão da causa e descoberta da verdade, torna-se necessário identificar o destinatário da transferência bancária do dia 07-06-2013, no valor de € 33.500,00 a partir da conta da CGD com o n.º ... assim como o ordenante da mesma, única forma de determinar o destino de tal dinheiro, o que se apresenta como relevante para a boa administração da justiça.
A informação solicitada pela A. tem em vista uma finalidade legítima que corresponde à averiguação da validade de um negócio que em última análise pode influenciar na determinação do património do falecido, do qual é herdeira, não correspondendo a uma mera intenção de devassa da vida privada, mas ao apuramento da verdade, não se vislumbrando que exista outra forma de obter tais elementos, apresentando-se por isso como adequado e proporcional a quebra do sigilo.
As circunstâncias referidas e a situação avaliada em concreto, impõem a conclusão de que não obstante as informações pedidas à CGD se encontrem abrangidas pelo segredo bancário, se assumem não só como importantes mas como necessárias para a defesa dos direitos e interesses legítimos da A. no processo, pelo correto apuramento dos factos com vista a avaliar a validade/eficácia do negócio realizado, com influência na determinação do acervo hereditário do falecido, a par da relevância para o interesse público numa boa administração da justiça.
Desta forma, consideram-se verificados os pressupostos legais que admitem a quebra do segredo bancário, por proporcional e adequado na ponderação dos vários interesses em presença, devendo ser levantado o sigilo bancário invocado pela CGD, o que se determina, de modo a que possam ser prestados os elementos/informações solicitados pelo tribunal.

V. Decisão:
Em face do exposto, julga-se procedente o incidente suscitado, considerando-se justificado o levantamento do sigilo bancário invocado pela CGD, que se dispensa, devendo por referência à conta ..., ser identificada a conta e o titular destinatário da transferência bancária do dia 07/06/2013, no valor de € 33.500,00, assim como o ordenante da mesma.
Custas do incidente pela Requerente – art.º 527.º n.º 1 CPC.
Notifique.
*
Lisboa, 26 de junho de 2025
Inês Moura
Higina Castelo
Susana Gonçalves