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NULIDADES
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
MODIFICAÇÃO DO CONTRATO
ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
COVID 19
Sumário
Sumário (elaborado pela Relatora, nos termos do artigo 663, n.º 7, do Código de Processo Civil, doravante apenas CPC) I – A contradição entre factos provados não integra a nulidade prevista no art.º 615º, n.º 1, c), do CPC, já que não se trata de uma contradição entre os fundamentos e a decisão. II – A omissão de um facto na decisão relativa à matéria de facto não integra a nulidade por omissão de pronúncia prevista no art.º 615º, n.º 1, d), do CPC, pois as “questões” que o juiz deve resolver na sentença são as relacionadas com a definição do âmbito do caso julgado, devendo o juiz apreciar os pedidos deduzidos pelo autor e pelo réu reconvinte e as várias causas de pedir invocadas, bem como as exceções perentórias que tenham sido deduzidas pelo réu ou pelo autor reconvindo. III – Em sede de recurso da decisão relativa à matéria de facto, resulta da conjugação do disposto nos artigos 639º, n.º 1 e 640º do CPC que é exigível ao Recorrente que nas conclusões da alegação do recurso indique, com precisão, os concretos pontos de facto da sentença que são objeto de impugnação, sem o que não é possível ao Tribunal de recurso sindicar eventuais erros no julgamento da matéria de facto. IV – Apesar de ser indiscutível que a pandemia de Covid 19 produziu um impacto significativo no exercício das atividades económicas, o contraente que pretende invocar, com esse fundamento, o regime da resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias, nos termos do art.º 437º do CC, deverá alegar e demonstrar factualmente os pressupostos de que depende a aplicabilidade desse regime.
Texto Integral
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa os Juízes Desembargadores abaixo identificados:
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I. Relatório:
R(…) intentou a presente ação declarativa de processo comum, contra F(…) Lda., A(…), Unipessoal Lda. e AA (…) pedindo:
a) a declaração de resolução do contrato de arrendamento urbano para fins não habitacionais celebrado em 1 de outubro de 2018, entre a 1ª Ré e a anterior proprietária, a qual cedeu a sua posição contratual ao ora Autor, e que diz respeito às frações autónomas designadas pelas letras “A” e “B”, (…), destinadas a comércio, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º (…), e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…);
b) a condenação das 1ª e 2ª Rés a desocuparem e entregarem o locado ao Autor, de imediato, deixando-o livre de pessoas e bens;
c) a condenação da 1ª Ré e do 3º Réu, solidariamente, a pagarem ao Autor as rendas vencidas e não pagas, correspondentes à quantia total de € 46.085,00;
d) a condenação da 1ª Ré e do 3º Réu, solidariamente, a pagarem a quantia pecuniária correspondente às rendas vincendas até efetiva entrega do locado;
e) a condenação da 1ª Ré e do 3º Réu, solidariamente, no pagamento dos juros de mora calculados à taxa legal e até efetivo e integral pagamento, que, na data da petição, totalizam o montante de € 3.150,31.
Para tanto e em síntese alega:
- No dia 1 de outubro de 2018, a 1ª Ré, na qualidade de inquilina, celebrou com a P(…) – Unipessoal Lda., esta na qualidade de senhoria, um contrato de arrendamento urbano para fins não habitacionais, relativamente às frações autónomas designadas pelas letras “A” e “B”, destinadas a comércio, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal que identifica;
- No referido contrato de arrendamento ficou fixado que, caso o mesmo não fosse denunciado, vigoraria por um período de cinco anos, com início a 01/10/2018 e término a 30/09/2023;
- Ficou igualmente fixado que 1ª Ré se obrigava a pagar uma renda mensal no valor de € 2.300,00, sendo que a esse valor seria deduzida a taxa de 25% devida pela retenção na fonte, o que perfazia o montante líquido devido a título de renda de € 1.725,00;
- No dia 1 de outubro de 2018, o Autor adquiriu à P(…) – Unipessoal Lda., através de escritura pública de compra e venda, as frações autónomas acima descritas;
- No dia 24 de outubro de 2018, o Autor enviou comunicação à inquilina, ora 1ª Ré, na qual lhe deu a conhecer que havia adquirido os imóveis e que passaria a assumir a qualidade de senhorio no contrato de arrendamento em causa;
- Em março de 2020 a 1ª Ré não pagou a renda devida pelo arrendamento do locado, tendo apenas pago parcialmente, no dia 7 de abril de 2020, a quantia de € 1.175,00;
- Durante os meses seguintes a 1ª Ré também não pagou as rendas;
- Apesar de interpelada para o efeito, a 1.ª Ré apenas procedeu, no dia 26 de dezembro de 2020, ao pagamento parcial de € 4.440,00, o que lhe permitiu liquidar o parcial da renda de março de 2020, as rendas de abril e maio, e ainda um parcial no valor de € 390,00 da renda devida no mês de junho desse ano;
- Desde tal data a 1ª Ré não mais pagou qualquer renda, estando atualmente em dívida mais de vinte e seis meses de rendas, o que totaliza o valor de € 46.085,00;
- A 1ª Ré não desocupou o imóvel, mantendo-se ainda hoje a usufruir do local arrendado;
- O Autor percebeu, já no final do ano de 2021 e de forma ocasional, que o locado não estaria a ser utilizado para a exploração de um restaurante de comida africana, como até então havia acontecido, mas sim para os fins de exploração de um restaurante de comida típica indiana;
- O Autor tomou então conhecimento de que a entidade que explorava o locado era 2ª Ré, que o Autor desconhece por completo;
- Conforme a cláusula oitava do contrato de arrendamento, a cessão da posição contratual ou subarrendamento não são permitidos;
- Surpreendido, o Autor enviou duas comunicações, uma à inquilina e outra a esta nova entidade, a solicitar cópia do contrato que titulasse o possível contrato de trespasse entre as duas Rés, sendo que ambas as missivas vieram devolvidas por não terem sido levantadas pelos destinatários;
- O Autor não conhece o vínculo que poderá existir entre elas;
- O 3º Réu interveio no contrato de arrendamento em apreço na qualidade de Fiador, renunciando ao benefício da excussão prévia.
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Todos os Réus foram citados.
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As Rés “F(…)” e “A(…)” contestaram, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Invocam a exceção de não cumprimento, referindo:
- Consta na certidão de registo predial e nas finanças que o Autor reside na Alameda (…);
- Vem a Autora dizer que a sua morada é em (…) Antigua;
- Os gerentes da 1ª Ré (primeiro um e depois outro) procuraram a Autora na sua morada, para com ela negociar um plano de rendas durante a epidemia de COVID19.
- Quem quer que fosse, da parte da 1ª Ré, jamais encontrou a aqui Autora na morada da Alameda (…);
- A Autora não reside na morada onde os documentos dizem que reside;
- Assim, a Autora impediu a 1ª Ré de, face à alteração de circunstâncias, exercer o direito decorrente do disposto no art.º 437º do CC, o que a levou a parar o pagamento de rendas para que a Autora a contactasse, o que também nunca se verificou.
Invocam a ilegitimidade da 2ª Ré, referindo:
- A 2ª Ré jamais tomou de trespasse as instalações da 1ª Ré;
- A 2ª Ré não é parte da relação de arrendamento.
Invocam a alteração anormal das circunstâncias, prevista no art.º 437º do CC, pretendendo que a renda mensal seja reduzida em 33%, por força da pandemia do COVID19, seguida da guerra da Ucrânia, que reduziu o negócio da restauração em 33%.
Impugnam a factualidade alegada pelo Autor, referindo, designadamente:
- Não receberam a correspondência remetida pelo Autor;
- Não existe qualquer trespasse ou outra cedência entre a 1ª e a 2ª Ré;
- Não aceitam estar em mora, porquanto o Autor não permite à 1ª Ré um contacto direto consigo, por forma a renegociarem o arrendamento.
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Também o Réu AA (…) contestou, defendendo-se igualmente por exceção e por impugnação, alegando, em súmula:
- O Autor não informou o ora Réu de que se encontravam por pagar rendas e muito menos o interpelou para o seu pagamento;
- Até ter sido citado para a presente ação o ora Réu não tinha conhecimento de qualquer incumprimento por parte da 1ª Ré, nem da quantia alegadamente em dívida;
- Assim não pode o Autor exigir ao ora Réu, na qualidade de fiador, que pague as rendas alegadamente em dívida, porquanto o seu direito ainda não se constitui em relação ao fiador, mas apenas quanto ao devedor;
- Desta forma a falta da referida notificação, exigida por lei, constitui exceção perentória impeditiva do direito de que se arroga o Autor;
- Caso assim não se entenda, apenas se deverá considerar o ora Réu interpelado para o pagamento das rendas em atraso com a citação para a presente ação;
- Na data em que foi celebrado o contrato de arrendamento, o ora Réu tinha uma relação de grande proximidade com os então sócios da 1ª Ré, não só por serem seus familiares, mas também porque com eles priva frequentemente;
- O Réu reconhecia (e reconhece) os então sócios da 1ª Ré como pessoas cumpridoras das suas obrigações e com sentido de responsabilidade;
- Para o ora Réu só fazia sentido prestar a garantia que prestou por serem aqueles os sócios da 1ª Ré, circunstância essa que fez conhecer a todas as partes envolvidas, ficando bem entendido entre as três partes, senhoria, inquilina e fiador, que o ora Réu apenas se constituía fiador nos termos constantes do contrato de arrendamento por ser aquela a inquilina do contrato e com os sócios que à data compunham a sua esfera social;
- E por esse motivo fizeram as partes constar do contrato de arrendamento, na sua cláusula 8.º, que “a inquilina não poderá subarrendar, dar de comodato ou ceder o locado”, não só para proteção dos interesses da então senhoria, mas também do fiador;
- Por outras palavras, qualquer modificação subjetiva contratual relativa ao devedor, seria fundamento para a extinção da fiança, pois esta apenas foi prestada em função da específica pessoa do devedor e dos seus sócios;
- No dia 13.11.2018, através de e-mail, a então mandatária do Autor remeteu à Sr.ª BB (…), funcionária da “P(…)”, cópia da comunicação enviada aos inquilinos a informar do novo proprietário do Locado;
- No seguimento desse e-mail, a Sr.ª BB (…) interpelou a então mandatária do Autor, através de e-mail datado de 23.11.2018, no sentido de saber se o Autor, como novo proprietário do locado, iria fazer alguma adenda ao contrato de arrendamento, para regularização da nova situação;
- A esse e-mail não foi dada qualquer resposta;
- Do que o ora Réu tem conhecimento, o Autor e a 1ª Ré nunca outorgaram qualquer adenda ao contrato de arrendamento em causa nos autos;
- A 31.11.2019 os então sócios da 1ª Ré deliberaram a cessão integral de todas as quotas da 1ª Ré ao Sr. CC (…), desta forma passando a 1ª Ré a ser detida em exclusivo pelo Sr. CC (…), bem como a sua nomeação como gerente, deixando assim os (então) sócios da 1ª Ré de ter qualquer ligação, influência e /ou domínio sobre a 1ª Ré;
- Na referida data foi também entregue toda a documentação relativa ao contrato de arrendamento em causa nos autos e ao estabelecimento comercial denominado “Restaurante (…)”;
- Ao Autor foi dado conhecimento de tal situação pela “P(…)”;
- O ora Réu não mantem qualquer contacto ou ligação com as 1ª e 2ª Rés e não conhece os seus atuais sócios;
- Verificou-se assim uma alteração às circunstâncias essenciais em que foi prestada a fiança;
- Desta forma a mudança da pessoa do devedor, ou seja, a modificação subjetiva da relação contratual (arrendamento) subjacente à fiança, implica a extinção da garantia;
- A partir de 31.10.2019, o ora Réu ficou desobrigado de qualquer responsabilidade pelo (in)cumprimento do contrato de arrendamento celebrado entre a 1ª Ré e a “P(…)”;
- Mesmo que assim não se entendesse, a confirmar-se que quem se encontra a explorar o estabelecimento comercial instalado no locado é a 2ª Ré, estamos perante um trespasse, passando a obrigação de pagamento das rendas a incidir sobre a 2ª Ré;
- Desta forma, o devedor pelo qual o fiador prestou pessoalmente garantia, modificou-se, alterando-se assim a relação fiduciária entre devedor e fiador;
- Assim, o ora Réu sempre se encontraria, desde a data do trespasse a favor da 2ª Ré, desobrigado de qualquer responsabilidade pelo (in)cumprimento do contrato de arrendamento;
- Caso se entenda que a fiança prestada não se extinguiu por virtude da alteração do capital social da 2ª Ré, ou pelo menos desde a data do trespasse do estabelecimento comercial instalado no locado, e a verificar-se que a 1ª ou a 2ª Rés são devedoras da quantia peticionada pelo Autor, desde já o ora Réu se libera da garantia das rendas vincendas, por se tratar de obrigações futuras e a situação patrimonial do devedor se ter agravado em termos de pôr em risco os eventuais direitos do fiador, o ora Réu, contra o devedor, nos termos e para os efeitos do artigo 654º do CC.
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Foi realizada audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador que concluiu pela validade e regularidade da instância, após o que se procedeu à identificação do objeto do litígio e à enunciação dos temas da prova.
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Procedeu-se a julgamento, após o que foi proferida sentença cujo dispositivo se reproduz:
“IV – DECISÃO Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente a presente ação e, em consequência, decide-se: a) resolver o contrato de arrendamento relativo às frações autónomas designadas pelas letras “A” e “B”, (…), destinadas a comércio, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito (…), descritos na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número (…), e inscritos na matriz predial urbana sob o artigo (…), condenando-se a 1ª Ré a despejar imediatamente o locado, deixando-o devoluto de pessoas e bens; b) condenar a 1ª Ré a pagar ao Autor as rendas vencidas e não pagas desde junho de 2020, acrescidas de juros de mora, à taxa legal, devidos desde 01 de maio de 2021 no que se refere às rendas devidas até essa data e desde o vencimento de cada uma das respetivas e restantes rendas até integral pagamento e as que se vencerem até à efetiva entrega do locado. c) condenar o 3º Réu, solidariamente, a pagar ao Autor as rendas vencidas e não pagas desde maio de 2022, acrescidas de juros de mora, à taxa legal, devidos desde o vencimento de cada uma das respetivas rendas até integral pagamento, e as que se vencerem até à efetiva entrega do locado. d) absolver a 2ª Ré do pedido. Custas pelo Autor e pelos 1ª e 3º Réus, na proporção do decaimento. Registe e notifique”.
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Não se conformando com o teor dessa sentença, dela veio recorrer a Ré “F(…)”, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem:
“1. A apelante discorda em absoluto da decisão do doutro tribunal ad quo, motivo pelo qual outra vez da presente apelação reapreciação da matéria de direito, e de facto em primeiro lugar 2. A douta decisão é nula, nos termos do art. 615, nº. alíneas c) e d), pelo qual a referida sentença entra em contradição dando como provada a morada do A, em duas moradas diferentes, uma em Antiqua e outra em Oeiras Portugal. 3. Deve ser considerado que o aqui meritíssimo juiz, devia se ter pronunciado sobre a gerência atual da aqui recorrente, porquanto, a mesma é desempenhada por S(…), e não CC (…), o que resulta da certidão comercial, e que é relevante para o facto de ter sido este que se deslocou a morada de Oeiras, que é sim do representante fiscal do A, e não do próprio A. 4. Assim sendo, é também a douta decisão nula por não ter a Meritíssimo Dra Juiz apreciado, um assunto que lhe era pedido para o fazer nos termos do art. 615, nº. 1, alínea d). 5. Finalmente em matéria de direito, é também a douta sentença nula, nos termos do art. 615, nº 1. alínea c), porquanto, tendo reconhecido a aplicabilidade do artº 437 do Código Civil não o aplicou efectivamente. 6. Deveria a aqui Meritíssima Senhora Juiz, ter absolvido a recorrente, não só pela mora de algumas rendas, mas também pelo capital das rendas em si, principalmente as referentes ao período de 22/03/2020, a 30/04/2021, porquanto, este período estávamos perante a uma situação de alteração anormal das circunstâncias nos termos do artº 437 do Código Civil, devendo assim aplicar-se essa isenção total de pagamento das referidas rendas, o que não foi feito, tendo o meritíssimo juiz apenas tendo concluído pela mora, o que é uma violação no art. 437º do CC. 7. Assim sendo, estamos perante a uma situação de violação do art. 20º da constituição da república portuguesa, porquanto, manda a mesma que se aplique a lei no direito de defesa, a recorrente invocou a alteração substancial das circunstâncias a douta sentença considerou que essa situação anormal das circunstâncias, estava em vigor mas apesar de o ter considerado ao mesmo tempo não aplicou nos seus devidos termos, que dá direito de defesa e o art. 437 está a ser interpretado inconstitucionalmente não dando ao R. a aplicação que a referida constituição quer aplicar. 8. Deve o presente recurso ter efeito suspensivo, mais que não seja nos termos do nº 4 do artº 647º do CPC porquanto a execução da decisão lhe causa prejuízo considerável e oferece-se a prestar caução”.
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O Autor apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:
“A. A Recorrente interpôs recurso da decisão proferida pelo Douto Tribunal por entender: i) que há pontos da matéria de facto, dados como provados pelo Tribunal a quo, que estão em contradição entre si; ii) não terem sido dados como provados, pelo Tribunal a quo, factos alegadamente relevantes para a causa; e iii) já quanto a matéria de direito, por entender que não foi realmente aplicado o regime previsto no artigo 437.º do Código Civil. B. Quer a Requerente fazer crer o Douto Tribunal que ficou provado na sentença que o Recorrido tem residência em duas moradas distintas e muito distantes. C. Porém, a morada de residência habitual do Recorrido é efetivamente em Antígua e a morada que consta da documentação do imóvel locado corresponde à morada do seu representante fiscal em Portugal. D. E tal informação não é entre si contraditória uma vez que o representante em Portugal do Recorrido tem efetivamente a morada constante do ponto 14. dos factos provados. E. Ora, como o Recorrido não reside habitualmente em Portugal, o mesmo é obrigado a nomear um representante fiscal, que resida em Portugal, para aqui assegurar as comunicações entre a autoridade tributária e o Recorrido, obrigação prevista no artigo 19.º, n.º 6 da Lei Geral Tributária. F. Ou seja, a referida morada do representante fiscal do Recorrido sempre seria um ponto de contacto que a Recorrente poderia ter utilizado para comunicar com o Recorrido. G. E, tal contacto não sucedeu porque a Recorrente, ao contrário do que alega (sem lograr provar), nunca se deslocou a tal morada, nem enviou para aquela qualquer comunicação escrita, sendo que era a esta a quem caberia o ónus da prova de tais factos acordo com o disposto no artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil. H. Da prova testemunhal produzida e transcrita nas presentes contra-alegações concluiu-se que a Recorrente teve sempre conhecimento de qual o contacto do Recorrido e/ou dos seus representantes, tanto assim é que em setembro de 2020 as partes tentaram chegar a um acordo que se frustrou porque a Recorrente não mais contactou o Recorrido ou os seus mandatários. I. Mais se diga que os referidos factos não tornam a decisão, agora em prejuízo, ininteligível ou incompreensível, pois que a falta de pagamento das inúmeras rendas por parte da Recorrente em nada se relaciona com a morada do Recorrido, devendo a nulidade alegada pela Recorrente improceder. J. Para além do já referido, é ainda invocada a nulidade de sentença pela Recorrente, mas desta feita, por falta de pronúncia pelo Douto Tribunal quanto à pessoa que desempenha atualmente o cargo de gerente da Ré, ora Recorrente. K. Quando o tribunal se pronuncia quanto às questões que lhe foram submetidas, isto é, sobre todos os pedidos, causas de pedir e exceções que foram suscitadas, ainda que o faça genericamente, não ocorre o vício da nulidade da sentença, por omissão de pronúncia. L. Por isso, é incompreensível que o facto ora suscitado, nomeadamente quem é o gerente da Recorrente, tenha relevância para a causa pois que o contrato de arrendamento, cuja resolução se veio requerer judicialmente nos presentes autos, foi celebrado com a F(…) -LDA., independentemente de quem desempenha ou desempenhou as funções de gerência da referida sociedade ao longo do tempo. M. E mais ficou por provar que o gerente da Recorrente ou outro qualquer seu representante tenha encetado quaisquer esforços para comunicar com o Recorrido, factos cuja prova caberia, como já se disse, à Recorrente segundo o disposto no artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil. N. É por isso de concluir que a nulidade alegada pela Recorrente prevista na alínea d), n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, deve também improceder por falta de fundamento. O. A Recorrente invoca em defesa do seu incumprimento contratual (cabalmente demonstrado e confessado!) que o mesmo só sucedeu por estarmos perante uma alteração das circunstâncias, conforme previsto no artigo 437.º, do Código Civil. P. De facto, é inegável que a situação de epidemia da doença de covid-19 configurou uma alteração das circunstâncias para a maioria dos contratos de arrendamento em vigor. E, por isso, foi publicada a Lei n.º 4-C/2020, de 6 de abril, a qual estabeleceu, de forma equitativa e dentro dos parâmetros da boa fé, que medidas excecionais poderiam ser tomadas pelos arrendatários que tivessem quebra dos seus rendimentos. Q. E, de acordo com o exposto na referida legislação extraordinária, decidiu o Tribunal a quo sobre o caso em apreço nos autos. No entanto, a Recorrente vem pelo presente recurso requerer que se decida em contradição com a lei e o direito, perdoando-se o pagamento de todas as rendas que são devidas durante o período da pandemia. R. Não subjazendo qualquer razão à Recorrente deve, assim, ser julgada improcedente a nulidade invocada”.
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O recurso foi corretamente admitido, com o efeito e modo de subida adequados.
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No despacho em que admitiu o recurso, perante as nulidades invocadas pela Apelante, o Tribunal a quo pronunciou-se, ao abrigo do disposto no art.º 617º, n.º 1, do CPC, nos seguintes termos:
“Não se vê que a invocada nulidade se verifique. O facto de a decisão não ir ao encontro da pretensão da parte não equivale à falta de pronuncia. Refira-se ainda que mal se compreende a referência à “questão” do exercício da gerência da Recorrente. Tal “facto”, em si, não é sequer relevante para a decisão da causa, sendo certo que as invocadas tentativas de contacto (não provadas) não tinham sequer que ser feitas pelo gerente!”.
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II. Questões a Decidir:
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente – art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante apenas designado de CPC) –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal são as seguintes:
- Da nulidade da sentença, nos termos do art.º 615º, n.º 1, alíneas c) e d), do CPC;
- Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- Da modificação do contrato de arrendamento no sentido de não ser exigível a obrigação de pagamento das rendas nos anos de 2020 e 2021, com fundamento na alteração anormal das circunstâncias em que se fundou a decisão de contratar prevista no art.º 437º do Código Civil.
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III. Fundamentação de Facto:
Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos:
“1. No dia 1 de outubro de 2018, a 1ª Ré celebrou, na qualidade de inquilina, com a P(…) Lda., esta na qualidade de senhoria, um “contrato de arrendamento urbano para fins não habitacionais”, relativamente às frações autónomas designadas pelas letras “A” e “B”, (…), destinadas a comércio, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito (…), descritos na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número (…), e inscritos na matriz predial urbana sob o artigo (…). 2. Na cláusula terceira do referido contrato de arrendamento ficou fixado que, caso o mesmo não fosse denunciado, o contrato vigoraria por um período de cinco anos, com início a 01/10/2018 e término a 30/09/2023. 3. A 1ª Ré, na qualidade de inquilina, obrigou-se a pagar uma renda mensal no valor de € 2.300,00, entre o primeiro e o oitavo dia do mês imediatamente anterior ao que dissessem respeito. 4. A esse valor seria deduzida a taxa de 25% devida pela retenção na fonte, perfazendo o montante líquido e devido de € 1.725,00 a título de renda. 5. No dia 10 de outubro de 2018, o Autor adquiriu à P(…) – Unipessoal Lda. as frações autónomas supra descritas. 6. O registo do direito de propriedade sobre as frações supra identificadas a favor do Autor foi feito por AP. n.º 373 de 2018/10/12 e AP. n.º 373 de 2018/10/12. 7. No dia 24 de outubro de 2018, o Autor enviou, para a morada do locado, uma carta dirigida à 1ª Ré, na qual lhe deu a conhecer que havia adquirido os imóveis e que passaria a assumir a qualidade de senhorio. 8. Em março de 2020, a 1ª Ré não pagou a renda, tendo apenas pago, no dia 7 de abril de 2020, a quantia de € 1.175,00. 9. Durante os meses seguintes, a 1ª Ré também não pagou as rendas. 10. A 1ª Ré procedeu, no dia 26 de dezembro de 2020, ao pagamento de € 4.440,00, o que lhe permitiu liquidar o parcial da renda de março de 2020, as rendas de abril e maio e ainda um parcial no valor de € 390,00 da renda devida no mês de junho desse ano. 11. Desde tal data a 1ª Ré não mais pagou qualquer renda. 12. Nos termos da cláusula oitava do contrato de arrendamento, “a inquilina não poderá subarrendar, dar de comodato ou ceder o locado”. 13. O 3º Réu subscreveu o contrato de arrendamento na qualidade de fiador, tendo-se ali constituído como devedor solidário de todas as quantias que a 1ª Ré fosse devedora no âmbito do contrato de arrendamento, renunciando desde logo ao benefício da excussão prévia. 14. A morada do Autor constante do Registo Predial e da caderneta predial é “Alameda (…) Oeiras”. 15. O Autor reside em 1, (…) Antigua. 16. Em 01.10.2018 eram sócios da 1ª Ré: i) DD (…), detentor de uma quota de valor nominal de € 1.500,00, representativa de 30% do capital social; ii) EE (…) detentor de uma quota de valor nominal de € 1.750,00, representativa de 35% do capital social; e iii) FF (…), detentora de uma quota de valor nominal de €1.750,00, representativa de 35% do capital social. 17. No dia 13.11.2018, através de e-mail, a então mandatária do Autor remeteu a BB (…), funcionária da P(…), cópia da carta enviada à inquilina a informar do novo proprietário do locado. 18. No seguimento desse e-mail, BB (…), interpelou a então mandatária do Autor, através de e-mail datado de 23.11.2018, no sentido de saber se o Autor, como novo proprietário do locado, iria fazer alguma adenda ao contrato de arrendamento, para regularização da nova situação. 19. A esse e-mail não foi dada qualquer resposta. 20. A 31.11.2019 os então sócios da Ré F(…) deliberaram a cessão integral de quotas ao Sr. CC (…). 21. Deliberaram igualmente os então sócios a aceitação da renúncia da gerência de DD (…) e a nomeação de CC (…) como gerente. 22. No dia 04.11.2019, BB (…) enviou um e-mail ao escritório de advogados que assessoraram o Autor na aquisição do locado, informando da cessão da totalidade das quotas da Ré F(…) ao Sr. CC (…) e dos contactos do novo sócio. 23. O 3º Réu foi citado em 16 de agosto de 2022”.
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Na sentença recorrida foram considerados como não provados os seguintes factos:
“a) o imóvel encontra-se ocupado e a ser explorado pela 2.ª Ré; * b) a 1ª Ré várias vezes se deslocou à Alameda (…) Oeiras mas nunca lá estava o Autor; c) o gerente da 1ª Ré procurou o senhorio para negociar um plano de rendas durante a epidemia de COVID19; d) a 1ª Ré exerce a atividade de restauração com pessoas que mal sabem escrever português e mal sabem ler o português; e) a 1ª Ré deixou de pagar as rendas para que o senhorio a contactasse; f) o preço da renda da fração está muito inflacionado aos preços que atualmente se praticam; g) o Autor recusou-se sempre a aparecer à gerência da 1ª Ré e esta não sabe quem é a pessoa a quem pagava renda; h) a pandemia do COVID19 seguida da guerra da Ucrânia reduziu o negócio da restauração em 33%; * i) o 3º Réu tinha uma relação de grande proximidade com os sócios da 1ª Ré, não só por serem seus familiares mas também porque com eles priva frequentemente; j) para o 3º Réu só fazia sentido prestar aquela garantia por serem aqueles os sócios da Ré F(…) Lda., circunstância que fez conhecer a todas as partes envolvidas; l) ficou bem entendido entre as três partes, senhoria, inquilina e fiador, que o Réu apenas se constituía fiador nos termos constantes daquele contrato de arrendamento por ser aquela a inquilina do contrato e com os sócios que à data compunham a esfera social da F(…); m) os termos da cláusula 8ª foram para proteção dos interesses também do fiador; n) o 3º Réu estava convencido de que tinha sido desonerado de qualquer responsabilidade pelo (in)cumprimento do contrato de arrendamento, por tal ter sido pressuposto da venda a favor do ora Autor”.
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IV. Mérito do Recurso:
- Da nulidade da sentença, nos termos do art.º 615º, n.º 1, alíneas c) e d), do CPC.
Defende a Recorrente que a decisão proferida é nula, nos termos do art.º 615º, n.º 1, alíneas c) e d), do CPC, porquanto:
- a “sentença entra em contradição dando como provada a morada do A, em duas moradas diferentes, uma em Antiqua e outra em Oeiras Portugal”;
- o Tribunal a quo deveria ter-se pronunciado sobre “um assunto que lhe era pedido para o fazer”, concretamente, sobre a questão relativa à atual gerência da Recorrente, referindo que “a mesma é desempenhada por S(…), e não CC (…), o que resulta da certidão comercial, e que é relevante para o facto de ter sido este que se deslocou a morada de Oeiras, que é sim do representante fiscal do A, e não do próprio A.”; e,
- o Tribunal a quo “tendo reconhecido a aplicabilidade do artº 437 do Código Civil não o aplicou efectivamente”.
Vejamos.
Conforme se refere no Acórdão do STJ de 03.03.2021, processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, é, desde há muito, entendimento pacífico que as nulidades da decisão não incluem o erro de julgamento seja de facto ou de direito. As nulidades típicas da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal. Trata-se de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual (nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma) ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma.
Como ensinava o Prof. José Alberto Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, 1981, Vol. V, páginas 124 a 125, o magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete um erro de atividade quando, na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional. Os erros da primeira categoria são de carácter substancial: afetam o fundo ou o efeito da decisão; os segundos são de carácter formal: respeitam à forma ou ao modo como o juiz exerceu a sua atividade.
E, como salienta o Prof. Antunes Varela, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 686, perante norma do Código de Processo Civil de 1961 idêntica à atual, o erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade com o direito aplicável, não se incluiu entre as nulidades da sentença.
As nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, as ilegalidades ditam a revogação da decisão por estar desconforme ao caso (decisão injusta ou destituída de mérito jurídico) - cfr. neste sentido o Acórdão do STJ de 17.10.2017, Processo nº 1204/12.9TVLSB.L1.S1.
Feito este enquadramento prévio, analisemos cada uma das concretas nulidades que a Recorrente aponta à decisão objeto de recurso.
Começa a Recorrente por referir, como vimos, que a “sentença entra em contradição dando como provada a morada do A, em duas moradas diferentes, uma em Antiqua e outra em Oeiras Portugal”.
Estão em causa os pontos 14. e 15. do elenco de factos provados que aqui se reproduzem: “14. A morada do Autor constante do Registo Predial e da caderneta predial é “Alameda (…) Oeiras”. 15. O Autor reside em 1, (…) Antigua.”
De acordo com o disposto no artigo 615º, nº 1, al. c), do CPC, é nula a sentença quando “Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
A nulidade aqui em causa traduz-se na oposição entre os fundamentos de facto e/ou de direito da sentença e a decisão, e verifica-se quando falta sintonia lógica entre a motivação e a decisão, isto é, quando existe um vício real no raciocínio do julgador, seguindo a decisão num sentido e apontando a fundamentação em sentido oposto; ou quando na decisão se verifica uma ambiguidade ou obscuridade que torna essa ininteligível.
Conforme se refere no Acórdão da RL de 22.06.2023, processo n.º 12225/21.0T8SNT.L1-2, disponível em www.dgsi.pt, “a “decisão” a que se refere este preceito legal não é, obviamente, a decisão da matéria de facto. Na verdade, a lei é muita clara, prevendo que quando a decisão da matéria de facto seja deficiente, obscura ou contraditória sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando se mostre indispensável a sua ampliação quanto a determinados factos ou quando não esteja tal decisão devidamente fundamentada sobre factos essenciais para o julgamento da causa, não é caso para arguição da nulidade da sentença, antes para a impugnação da decisão da matéria de facto e sua modificação, que até pode ser oficiosamente determinada em certas situações, nos termos previstos nos artigos 640.º e 662.º do CPC”.
Atento o exposto, conclui-se que a contradição entre factos provados não integra a nulidade prevista no art.º 615º, n.º 1, c), do CPC, já que não se trata de uma contradição entre os fundamentos e a decisão.
Assim, não enferma a sentença da referida nulidade que a Recorrente lhe aponta.
Defende igualmente a Recorrente a nulidade da sentença, ainda nos termos do citado art.º 615º, n.º 1, c), do CPC, porquanto o Tribunal a quo, “tendo reconhecido a aplicabilidade do artº 437 do Código Civil não o aplicou efectivamente”.
Ora, analisada a sentença, temos por seguro que não estamos perante qualquer oposição entre os fundamentos da sentença e a decisão. O Tribunal a quo, conhecendo das concretas questões sobre as quais foi chamado a pronunciar-se, equacionou a possibilidade de aplicação do regime previsto no art.º 437º do Código Civil, tendo concluído que na situação dos autos “não se vê que se possa aplicar - neste momento, após o incumprimento - o instituto da alteração do contrato por alteração superveniente das circunstâncias”, entendendo, no entanto, “que a situação excecional provocada pela pandemia da doença Covid-19, durante o período de estado de emergência, configura uma catástrofe natural que determinou uma impossibilidade temporária, não devendo a Ré responder pela mora no cumprimento”. Nessa conformidade, decidiu que as rendas eram devidas na totalidade mas que, relativamente às rendas devidas até 01.05.2021, apenas eram devidos juros de mora a partir dessa data.
Assim, porque a fundamentação está em sintonia com a decisão, conclui-se que a sentença recorrida também não padece da nulidade em causa.
Por fim, o Recorrente considera que a sentença é nula por omissão de pronúncia, na medida em que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a questão relativa à atual gerência da Recorrente, referindo para o efeito que “a mesma é desempenhada por S(…), e não CC (…), o que resulta da certidão comercial, e que é relevante para o facto de ter sido este que se deslocou a morada de Oeiras, que é sim do representante fiscal do A, e não do próprio A.”
Nos termos do disposto no art.º 615º, n.º 1, d), 1ª parte, do CPC, a sentença é nula quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…).”
Esta nulidade está diretamente relacionada com o art.º 608º, n.º 2, do CPC, segundo o qual, “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Tal norma reporta-se à falta de apreciação de questões que o tribunal devesse apreciar e não de argumentações, razões ou juízos de valor aduzidos pelas partes, aos quais não tem de dar resposta especificada ou individualizada.
Daí que possa afirmar-se que a nulidade da sentença com fundamento na omissão de pronúncia só ocorre quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão (e cuja resolução não foi prejudicada pela solução dada a outras).
Conforme se refere no Acórdão da RL de 22.06.2023, acima citado, “O conceito de “questões” que o juiz deve resolver na sentença, nos termos conjugados dos artigos 615.º, n.º 1, al. d), e 608.º, n.º 2, ambos do CPC, relaciona-se com a definição do âmbito do caso julgado, devendo o juiz apreciar (sucessivamente) os pedidos deduzidos pelo autor e pelo réu reconvinte (a menos que a apreciação de um esteja prejudicada) e as várias causas de pedir invocadas, bem como as exceções perentórias que tenham sido deduzidas pelo réu ou pelo autor reconvindo (sem prejuízo da possível inutilidade)”.
Revertendo para a situação dos autos, vemos que em ponto algum dos articulados é suscitada qualquer questão relativa à gerência da 1ª Ré/Recorrente da qual o Tribunal deva conhecer, tomando posição quanto à mesma. E a Recorrente, nas conclusões recursivas, também não identifica essa questão. Não o faz porque o que a Recorrente verdadeiramente pretende é ver incluído na decisão relativa à matéria de facto um determinado facto que nela não foi considerado e que entende ser relevante (pese embora se constate que não foi alegado em ponto algum dos articulados juntos aos autos), o que não consubstancia a nulidade por omissão de pronúncia prevista no art.º 615º, n.º 1, d), 1ª parte, do CPC, mas sim fundamento para a impugnação da decisão relativa à referida matéria de facto.
Nesse sentido, concluímos que a sentença recorrida também não enferma de nulidade por omissão de pronúncia.
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- Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Para a impugnação da matéria de facto deve a parte observar os requisitos legais previstos no artigo 640º do CPC, incluindo a formulação de conclusões, pois são estas que delimitam o objeto do recurso.
Preceitua o citado artigo 640º, do CPC:
“1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636º.”
Sobre essa norma pronunciou-se, entre outros, o Acórdão do STJ de 30.11.2023, processo 556/21.4T8PNF.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, referindo que “Como tem sido enunciado pela jurisprudência deste STJ - ver por todos o ac. de 29.10.2015 no processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1 in dgsi.pt – este regime consagra um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida. O ónus primário é integrado pela exigência de concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas als. a), b) e c) do nº1 do citado art.640º, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto. O ónus secundário traduz-se na exigência de indicação das exatas passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na al. a) do nº 2 do mesmo art. 640 tendo por finalidade facilitar a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contém a gravação da audiência. De acordo com esta delimitação entende-se que, não sendo consentida a formulação ao recorrente de um convite ao aperfeiçoamento de eventuais deficiências, deverá ter-se atenção se as eventuais irregularidades se situam no cumprimento de um ou outro ónus uma vez que a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1 do referido art. 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, enquanto a falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, al. a) terá como sanção a rejeição apenas quando essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo do tribunal de recurso – vd. Abrantes Geraldes in “ Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed. , págs. 169 a 175.”
Por seu lado, a respeito do ónus de alegar e formular conclusões, o art.º 639º, n.º 1, do CPC, determina que “O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.”
É conhecida a divergência jurisprudencial existente a respeito da aplicação do art.º 640º do CPC e da sua conjugação com o art.º 639º, n.º 1, do mesmo diploma.
Face a essa divergência, o STJ, por Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2023 (publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I, de 14.11.2023, com Declaração de Retificação n.º 25/2023), proferido a 17.10.2023, no processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt, uniformizou a jurisprudência no sentido de que “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”.
Nesse Acórdão, a propósito dessa temática, é afirmado, designadamente, o seguinte:
“Da articulação dos vários elementos interpretativos, com cabimento na letra da lei, resulta que em termos de ónus a cumprir pelo recorrente quando pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sempre terá de ser alegada e levada para as conclusões, a indicação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, na definição do objeto do recurso. Quando aos dois outros itens, caso da decisão alternativa proposta, não podendo deixar de ser vertida no corpo das alegações, se o for de forma inequívoca, isto é, de maneira a que não haja dúvidas quanto ao seu sentido, para não ser só exercido cabalmente o contraditório, mas também apreendidos em termos claros pelo julgador, chamando à colação os princípios da proporcionalidade e razoabilidade instrumentais em relação a cada situação concreta, a sua não inclusão nas conclusões não determina a rejeição do recurso, conforme o n.º1, alínea c) do art.º 640, (…). Em sínteses, decorre do art.º 640, n.º 1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios de probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada.”
Em face do exposto, conclui-se que da conjugação do disposto nos artigos 639º, n.º 1 e 640º do CPC, resulta que o ónus primário a cargo do recorrente exige que, pelo menos, sejam indicados nas conclusões da alegação do recurso, com precisão, os concretos pontos de facto da sentença que são objeto de impugnação, sem o que não é possível ao Tribunal de recurso sindicar eventuais erros no julgamento da matéria de facto.
Já quanto à alínea a), do n.º 2, do art.º 640º do CPC, a mesma consagra, como vimos, um ónus secundário, cujo cumprimento deverá igualmente ser observado sob pena de rejeição do recurso na parte respetiva, mas que não tem de estar refletido nas conclusões recursivas.
Nesse sentido, entre outros, veja-se o Acórdão do STJ de 12.04.2024, proferido no processo n.º 823/20.4T8PRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se escreveu: “IV- O ónus do artigo 640.º do CPC não exige que todas as especificações referidas no seu n.º 1 constem das conclusões do recurso, sendo de admitir que as exigências das alíneas b) e c) do n.º 1 deste artigo, em articulação com o respetivo n.º 2, sejam cumpridas no corpo das alegações.”
Na presente situação, apesar de o Recorrente referir que pretende a reapreciação da matéria de facto, a verdade é que lidas as conclusões recursivas verifica-se que nas mesmas o Recorrente apenas alude à existência de contradição e de omissão na matéria de facto enquanto fundamentos das nulidades que aponta à sentença e não como fundamentos de impugnação da decisão relativa à matéria de facto. E, mesmo que assim não se entendesse, ou seja, mesmo que se considerasse que ao invocar essa contradição e essa omissão o Recorrente está a impugnar a decisão relativa à matéria de facto, sempre o recurso, nessa parte, teria de ser rejeitado, uma vez que o Recorrente, nas referidas conclusões, não identifica com um mínimo de clareza os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, não dando assim cumprimento ao ónus que lhe é imposto pelo art.º 640º, n.º 1, a), do CPC. Veja-se que no ponto 2. das conclusões recursivas a Recorrente refere que a “sentença entra em contradição dando como provada a morada do A, em duas moradas diferentes, uma em Antiqua e outra em Oeiras Portugal”, sem no entanto identificar qual dos factos pretende impugnar, se aquele em que se afirma que o Autor tem residência em Antiqua ou aquele em que se afirma que o Autor tem morada em Oeiras; e, no ponto 3. das mesmas conclusões recursivas, apesar de referir que o Tribunal “devia se ter pronunciado sobre a gerência atual da aqui recorrente, porquanto, a mesma é desempenhada por S(…), e não CC (…)”, não identifica a concreta alegação desse facto em nenhum dos articulados juntos aos autos.
Atento o exposto, rejeita-se o recurso no que à decisão relativa à matéria de facto se refere.
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- Da modificação do contrato de arrendamento no sentido de não ser exigível a obrigação de pagamento das rendas nos anos de 2020 e 2021, com fundamento na alteração anormal das circunstâncias em que se fundou a decisão de contratar prevista no art.º 437º do Código Civil.
Em causa nos autos está um contrato de arrendamento urbano, celebrado no dia 01.10.2018 entre a Ré “F(…)”, na qualidade de inquilina, e “P(…)”, na qualidade de senhoria, tendo por objeto as frações autónomas designadas pelas letras “A” e “B”, destinadas a comércio, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número (…).
Nos termos desse contrato e no que qui releva, a Ré “F(…)” obrigou-se a pagar uma renda mensal no valor de € 2.300,00, entre o primeiro e o oitavo dia do mês imediatamente anterior àquele a que dissesse respeito, sendo que a esse valor seria deduzida a taxa de 25% devida pela retenção na fonte, perfazendo assim a renda mensal devida o montante líquido de € 1.725,00.
No dia 10.10.2018 o Autor adquiriu à “P(…)” as referidas frações autónomas, aquisição essa que foi objeto de registo em 12.10.2018, pela Ap. 373.
Em março de 2020, a Ré “F(…)” não pagou a renda, tendo apenas pago, no dia 07.04.2020, a quantia de € 1.175,00.
Durante os meses seguintes, a Ré “F(…)” também não pagou as rendas, sendo que no dia 26.12.2020 procedeu ao pagamento de € 4.440,00, o que lhe permitiu liquidar o parcial da renda de março de 2020, as rendas de abril e maio e ainda um parcial no valor de € 390,00 da renda devida no mês de junho desse ano de 2020.
Desde tal data a Ré “F(…)” não mais pagou qualquer renda.
Tudo o que acima se expôs foi dado como provado na sentença objeto de recurso e não foi questionado, em sede e recurso, por nenhuma das partes.
O Autor intentou a presente ação pedindo a resolução do contrato de arrendamento, desde logo, com fundamento na falta de pagamento das rendas, em conformidade com o disposto no art.º 1083º, n.º 3, do Código Civil, pedido esse que obteve provimento, tendo sido proferida sentença que com base nesse fundamento decidiu resolver o contrato de arrendamento.
E, em conformidade decidiu ainda “condenar a 1ª Ré a pagar ao Autor as rendas vencidas e não pagas desde junho de 2020, acrescidas de juros de mora, à taxa legal, devidos desde 01 de maio de 2021 no que se refere às rendas devidas até essa data e desde o vencimento de cada uma das respetivas e restantes rendas até integral pagamento e as que se vencerem até à efetiva entrega do locado”.
É contra este último segmento da decisão que se insurge a Recorrente, defendendo que deveria ter sido absolvida do pedido de pagamento das rendas vencidas, “principalmente as referentes ao período de22/03/2020 a 30/04/2021, porquanto, neste período estávamos perante uma situação de alteração anormal das circunstâncias nos termos do art.º 437 do Código Civil, devendo assim aplicar-se essa isenção total de pagamento das referidas rendas” – cfr. o ponto 6. das conclusões recursivas.
Vejamos.
O art.º 437º do Código Civil, prevendo sobre as condições de admissibilidade da resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias, estabelece o seguinte:
“1. Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afete gravemente os princípios da boa-fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato. 2. Requerida a resolução, a parte contrária pode opor-se ao pedido, declarando aceitar a modificação do contrato nos termos do número anterior.”
Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações”, Vol. II, 10ª edição, pág. 129, refere que constituem requisitos da possibilidade de resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias: “1) A existência de uma alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar; 2) O carácter anormal dessa alteração; 3) Que essa alteração provoque uma lesão para uma das partes; 4) Que a lesão seja de tal ordem que se apresente como contrária à boa fé a exigência do cumprimento das obrigações assumidas; 5) E que não se encontre coberta pelos riscos próprios do contrato”.
Na perspetiva de Romano Martinez, in “Da Cessação do Contrato”, 2005, pág. 155, tais requisitos “são de verificação cumulativa pelo que faltando algum ou alguns deles, não se pode recorrer a este instituto”.
Como se refere no Acórdão da RC de 13.05.2014, processo n.º 1097/12.6T8BMGR.C1, disponível em www.dgsi.pt, “A alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram o contrato pode resultar da alteração da legislação existente à data do negócio, como pode resultar de acontecimentos políticos ou da modificação repentina do sistema económico vigente. Essas situações são aquelas sobre as quais as partes não construíram quaisquer representações mentais (não pensaram nelas, pura e simplesmente), mas que são de qualquer modo imprescindíveis para que, através do contrato, se atinjam os fins visados pelas partes”.
No Acórdão do STJ de 27.01.2015, processo n.º 876/12.9TBBNV-A.L1.S1, também disponível em www.dgsi.pt, salienta-se que o regime do artigo 437º, n.º 1, do Código Civil “(…) confronta dialeticamente dois princípios; o da autonomia privada, que impõe o cumprimento pontual do contrato que mais não é que a execução do programa negocial, e o princípio da boa fé, que visa assegurar o equilíbrio das prestações de modo a que a uma das partes não seja imposta uma desvantagem desproporcionada que favoreça a contraparte”.
Na situação dos autos, a possibilidade de aplicação do regime previsto no citado art.º 437º do Código Civil é equacionada no contexto da situação de emergência sanitária associada à doença Covid-19.
É indiscutível que a pandemia de Covid 19 produziu um impacto significativo no exercício das atividades económicas. No entanto, também é verdade que a situação mereceu, desde logo, reação legislativa de caráter excecional, traduzida na promulgação pelo Estado de medidas legais tendentes a atenuar os seus efeitos.
Assim, não se poderá sem mais concluir, de forma automática, que da pandemia de Covid-19 decorreu a afetação grave da situação negocial de toda e qualquer empresa ou empresário.
De qualquer forma, o certo é que a resolução do negócio ou a sua alteração por juízos de equidade fundada no regime da alteração das circunstâncias, previsto no art.º 437º do Código Civil, exige uma análise casuística dos riscos próprios do contrato e dos riscos que o excedem. A afirmação da relevância jurídica de tal alteração implica que se averigue da sua imprevisibilidade no momento da celebração do contrato, bem como da inviabilidade de adoção pelo lesado de medidas razoáveis para minimizar os danos, concluindo-se pela inexigibilidade do cumprimento do plano contratual – neste sentido, Mariana Fontes da Costa, in “A atual pandemia no contexto das perturbações da grande base do negócio”, disponível em https://observatorio.almedina.net/index.php/2020/04/01/a-atual-pandemia-no-contexto-das-perturbacoes-da-grande-base-do-negocio/).
Ainda a propósito do art.º 437º do Código Civil, refere-se no Acórdão do STJ de 02.07.2024, processo n.º 2864/22.8T8VNG.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, que “Esta norma, integrada no regime legal dos contratos enquanto fonte de obrigações, contém uma exceção ao regime geral da eficácia dos contratos prevista no artigo 406º do Código Civil em termos propositadamente genéricos, por forma a permitir ao julgador a ponderação sobre se, atendendo à base contratual acordada e à boa-fé que deve nortear as partes na sua execução deve ou não ter por relevante a sua resolução ou modificação”.
É manifesto que no momento da vinculação contratual (outubro de 2018), não poderia estar no horizonte mental de qualquer das partes a previsibilidade de ocorrência de uma pandemia como a que veio a verificar-se dois anos depois. Essa pandemia constituiu, efetivamente, um evento anómalo e imprevisível.
Todavia, e sem negar essa realidade, entendemos que na presente situação os factos provados não consentem a afirmação de que foi a ocorrência da pandemia da Covid-19 que inviabilizou o cumprimento do contrato em causa nos autos, concretamente, o cumprimento a cargo do inquilino da obrigação de pagamento das rendas, não logrando assim a Ré, por essa via, afastar a presunção de culpa consagrada no art.º 799º do Código Civil.
Desde logo, não logrou a Ré demonstrar que “a pandemia do COVID19 seguida da guerra da Ucrânia reduziu o negócio da restauração em 33%” (alínea h) do elenco de factos não provados) e a verdade é que pela Ré não foi alegado qualquer outro facto no sentido de demonstrar que o incumprimento da obrigação de pagamento das rendas decorreu da referida pandemia.
Mais, caso estivesse em situação de dificuldade séria no cumprimento do contrato celebrado com o Autor, a Ré, nos termos do artigo 437º do Código Civil, deveria ter suscitado a questão atempadamente perante a contraparte negocial, solicitando a resolução ou modificação do contrato com base nesse facto.
Ora, conforme bem se observa na sentença recorrida, “a Ré não demonstrou ter sido o Autor a furtar-se a um (qualquer) acordo no sentido de baixar a renda, tendo sido a Ré que, sem mais, optou por deixar de proceder ao pagamento de qualquer valor, assim quebrando a confiança do Autor na continuação do contrato”.
Recorde-se que o ónus da alegação e prova dos pressupostos de que depende a aplicação do regime previsto no art.º 437º do Código Civil recaia sobre a Ré/Recorrente – cfr. art.º 342º, n.º 2, do mesmo diploma.
Aqui chegados e considerando tudo quanto acima ficou exposto, conclui-se que não se encontram reunidos os pressupostos exigidos pelo art.º 437º do Código Civil para que se possa isentar a 1ª Ré/Recorrente da obrigação de pagamento das rendas relativas ao período de 22.03.2020 a 30.04.2021.
Face a essa conclusão, não ocorre a violação do art.º 20º da Constituição da República Portuguesa invocada pela Recorrente no ponto 7. das conclusões recursivas.
E, assim sendo, na improcedência do recurso, confirma-se a decisão recorrida.
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V. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo desta 2ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa abaixo identificados em julgar improcedente o presente recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Registe.
Notifique.
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Lisboa, 26/06/2025
Susana Mesquita Gonçalves
Paulo Fernandes da Silva
Pedro Martins