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SOCIEDADE INSOLVENTE
GERÊNCIA
LEGITIMIDADE ACTIVA
RESPONSABILIDADE CIVIL
CREDOR
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
Sumário
SUMÁRIO (art. 663º, n.º7, do CPC): A norma contida no art. 82º, n.º3, al. b), do CIRE, não tem aplicação nas acções que se destinem à indemnização dos prejuízos causados directamente a algum credor, em que se invoque que o património deste diminuiu sem que a sua causa directa seja uma diminuição do património da massa insolvente, antes se reconduzindo a um comportamento ilícito dos demandados.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO.
AA – Sociedade de Distribuição de Leveduras e Melhorantes, Lda., intentou a presente acção, com a forma de processo comum, contra:
1 - BB,
2 – CC,
3 – Aromas Cobiçados, Unipessoal, Lda.
Formulou o seguinte pedido:
a. serem todas as Rés condenadas, solidariamente, a título de responsabilidade civil por factos ilícitos, a pagar-lhe a quantia de € 40 734,25, acrescida de juros de mora à taxa de 8 %, desde a data da citação para contestar a presente acção até efectivo e integral pagamento, bem como nas custas do processo e demais legal;
subsidiariamente, caso assim não se entenda,
b. serem as Rés BB e CC solidariamente condenadas, por via do mecanismo da desconsideração da personalidade jurídica, a pagarem à Autora a quantia de € 40 734,25, acrescida de juros de mora à taxa de 8 %, desde a data da citação para contestar a presente acção até efectivo e integral pagamento, bem como nas custas do processo e demais legal;
subsidiariamente, caso assim não se entenda,
c. ser a Ré BB condenada, por violação do dever de apresentação da sociedade que geria à insolvência, a pagar à Autora a quantia de € 40 734,25, acrescida de juros de mora à taxa de 8 %, desde a data da citação para contestar a presente acção até efectivo e integral pagamento, bem como nas custas do processo e demais legal;
subsidiariamente, caso assim não se entenda,
d. ser a Ré BB condenada, por violação do dever de convocação de assembleia geral em face da perda de metade do capital social, a pagar à Autora a quantia de € 40 734,25, acrescida de juros de mora à taxa de 8 %, desde a data da citação para contestar a presente acção até efectivo e integral pagamento, bem como nas custas do processo e demais legal;
subsidiariamente, caso assim não se entenda,
e. serem as Rés «Aromas Cobiçados» e CC condenadas, por concorrência desleal, a pagar à Autora a quantia de € 40 734,25, acrescida de juros de mora à taxa de 8 %, desde a data da citação para contestar a presente acção até efectivo e integral pagamento, bem como nas custas do processo e demais legal.
Alegou, em síntese, que:
- a primeira ré foi gerente de direito e a segunda ré gerente de facto da sociedade “Aliança Panificadora do Cacém, Lda.”;
- a ré sociedade é detida e gerida pela segunda ré, CC;
- a sociedade “Aliança Panificadora do Cacém, Lda.” apresentou-se à insolvência em 27 de Janeiro de 2020, a qual foi declarada por sentença proferida em 5 de Fevereiro de 2020 e transitada em julgado em 27 de Fevereiro de 2020;
- reclamou créditos na insolvência no valor de € 36 017,58, os quais foram reconhecidos e que, atendendo ao valor presumível do activo a liquidar (€ 1 030 958,94) e ao valor total de todos os créditos reclamados e reconhecidos (€ 2 590 807,00), e aos demais elementos dos autos de insolvência, não se vislumbra qualquer possibilidade de a autora ver satisfeito o seu crédito;
- de acordo com a respectiva petição de apresentação à insolvência, a sociedade insolvente havia já muito tempo que vinha a enfrentar dificuldades financeiras, apresentando dívidas desde 2007, nomeadamente ao Instituto da Segurança Social, I.P., apresentando resultados líquidos do exercício negativo e, não obstante o conhecimento deste estado de factos pela gerência, a sociedade persistiu durante vários anos, através do(s) respectivo(s) gerente(s), em não se apresentar à insolvência, continuando a acumular dívidas e a agravar a sua situação financeira;
- nesse contexto, a respectiva gerente não convocou a realização de qualquer assembleia geral a fim de deliberar, nomeadamente, sobre a dissolução da sociedade, a redução do seu capital social para montante não inferior ao capital próprio (inferior a metade do seu capital social desde, pelo menos, 2016), ou a realização de entradas para reforço da cobertura do capital, medidas que, tão-pouco, foram adoptadas;
- em Dezembro de 2019, a insolvente, por intermédio das primeira e segunda rés, fez encomendas de produtos em grandes quantidades, designadamente à autora, apesar de, em finais de Dezembro de 2019, antecipando a sua apresentação à insolvência, ter, por intermédio da ré BB, respectiva sócia-gerente, feito cessar os contratos de arrendamento relativos aos seus estabelecimentos;
- em 27 de Setembro de 2019, a sociedade insolvente, por intermédio da ré BB, respectiva sócia-gerente, procedeu, ainda, à venda de uma fracção autónoma, de que era proprietária pelo valor, segundo consta da escritura, de € 50 000,00, valor esse que não deu entrada na contabilidade da empresa, tendo dado entrada numa conta bancária pessoal que crê ser da ré BB, sendo que a mesma utilizava uma conta pessoal para fazer e receber pagamentos da sociedade insolvente;
- em Outubro e Novembro de 2019, a sociedade insolvente, por intermédio das rés BB e CC, encomendou a execução de obras de reabilitação relativamente ao estabelecimento sito na Estrada de Algueirão de que a sociedade insolvente era arrendatária, tendo pago, pelo menos, o montante de € 23 000,00, o que, também, não consta de qualquer elemento contabilístico da sociedade insolvente;
- a ré BB, veio a fazer cessar o arrendamento do estabelecimento em finais de Dezembro de 2019;
- vários dos estabelecimentos que eram explorados pela sociedade insolvente mantiveram-se e mantêm-se, todavia, em funcionamento, passando porém, a ser explorados pela ré “Aromas Cobiçados”, de que a Ré CC é sócia-gerente, nomeadamente aquele onde foram efectuadas as aludidas obras de reabilitação, tornando-se inequívoco que as referidas obras apenas aproveitaram às rés CC e “Aromas Cobiçados”;
- um dos contratos de arrendamento foi, inclusivamente, celebrado, pela ré “Aromas Cobiçados” por intermédio da ré CC, em 30 de Novembro de 2019 – ainda a sociedade insolvente nele laborava – e onde ficou convencionado situar-se o seu domicílio;
- o equipamento que se encontrava nos estabelecimentos da insolvente bem como os produtos encomendados em quantidades excessivas estarão, agora, a ser utilizados pela ré “Aromas Cobiçados”, que deu continuidade ao funcionamento daqueles estabelecimentos sem qualquer interrupção visível, mantendo instalações, equipamentos, clientela, fornecedores, mercadorias e, segundo suspeita, trabalhadores;
- a transferência, pelo menos, das instalações, de equipamentos, da clientela, de fornecedores e de mercadorias da sociedade insolvente para a ré “Aromas Cobiçados”, constituída em Outubro de 2019, consubstanciou um plano prévio entre as primeira e segunda rés, que tinham grande relação de proximidade, com vista a subtrair património da sociedade insolvente, e a prosseguir a respectiva actividade através de uma nova sociedade comercial, tomando decisões prejudiciais para a sociedade comercial insolvente e vantajosas para as rés “Aromas Cobiçados” e CC, desta forma defraudando, ademais, os credores da sociedade insolvente;
- aquando da realização das encomendas a si (Autora), e, particularmente, aquando das encomendas a que aludem as facturas que elenca, em face das respectivas datas, as rés BB e CC bem sabiam que a sociedade insolvente iria encerrar portas - posto que inclusivamente já tinha acordado na cessação dos contratos de arrendamento dos estabelecimentos – e apresentar-se à insolvência e que a segunda ré através da terceira ré, iria passar a explorar os estabelecimentos da insolvente;
- nesse contexto, as rés BB e CC bem sabiam que a sociedade insolvente jamais conseguiria pagar, nas datas dos respectivos vencimentos, as encomendas que fizeram à autora, não podendo deixar de estar, também, cientes de que, dessa forma, causariam, como causaram, prejuízos aos seus credores e particularmente a si (à autora), que, em face do referido, forneceu matéria-prima à sociedade insolvente acreditando que a mesma iria proceder ao respectivo pagamento, o que não sucedeu, vendo-se impossibilitada de recuperar o seu crédito;
- a actuação das rés foi adequada a agravar substancialmente a situação da sociedade insolvente e a causarem-lhe prejuízo (à autora) que, assim, se viu impossibilitada (ou, pelo menos, que, assim, viu agravar a impossibilidade) de recuperar os seus créditos, em face da insuficiência patrimonial da sociedade devedora, pelo que recai sobre as rés a obrigação de indemnizar a autora, nos termos do disposto nos artigos 562.º, e ss., do Código Civil;
- o crédito que (a autora) se vê impossibilitada de recuperar é no montante de € 35.619,43 (relativo ao valor das facturas em dívida), acrescido de juros de mora à taxa de 8%, os quais, na data de entrada da presente acção (15/07/2021), ascendem a € 5 114,82, perfazendo, assim, o montante total de € 40 734,25.
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As rés CC e Aromas Cobiçados, Unipessoal, Lda., apresentaram contestação a 20-12-2021, onde, além de impugnarem a factualidade alegada na petição inicial e defenderem a improcedência do pedido, requereram a suspensão da instância por verificação de uma questão prejudicial para o conhecimento da pretensão formulada na petição inicial.
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A 26-01-2022, a é BB apresentou contestação onde, além de impugnar factualidade alegada pela autora, arguiu a excepção dilatória de litispendência, pugnando, com fundamento na mesma, a sua absolvição da instância no que respeita ao primeiro pedido formulado na petição inicial, e concluiu pela improcedência dos demais pedidos deduzidos no mesmo articulado.
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A 13-09-2023, foi proferido despacho que determinou a notificação da autora para, querendo, se pronunciar sobre a matéria de excepção alegada nas contestações.
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A 28-09-2023, a autora apresentou resposta defendendo a improcedência das excepções alegadas nas contestações.
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Em sede de audiência prévia, realizada a 09-01-2024, proferiu-se despacho onde, além do mais, se determinou a notificação das partes para, no prazo nele fixado, se pronunciarem sobre a excepção dilatória de ilegitimidade activa, considerando o art. 82º, n.º3, al. b), do CIRE.
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A 19-01-2024, a autora respondeu concluindo que se encontra dotada de legitimidade para intentar a presente acção.
Em síntese, alegou que:
- o processo de insolvência ainda não terminou, encontrando-se, desde 2020, em liquidação;
- o prazo de prescrição da acção de responsabilidade civil nos casos da responsabilização dos gerentes e dos administradores das sociedades é de cinco anos, nos termos do art. 174.º n.º 2 do CSC;
- lançou mão deste procedimento porque a Exma. Senhora. Administradora de Insolvência não o fez;
- o que levaria à prescrição do seu direito, por culpa imputável a um terceiro;
- não obstante, a Administradora de Insolvência tem legitimidade para intentar acções como representante da massa insolvente, e não como representante da generalidade dos credores sociais;
- assim, e no caso em apreço, tem legitimidade para intentar a presente acção visto que não se trata de uma acção da massa insolvente (que aqui sim, deveria de estar representada pela Administradora de Insolvência), mas sim de uma acção onde pretende fazer valer o seu direito.
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A 31-01-2024, a ré BB pronunciou-se no sentido da verificação da excepção de ilegitimidade suscitada pelo Tribunal, por força do disposto no art. 82º, n.º3, al. b), do CIRE.
Em síntese, alegou que:
- ainda que no corpo do petitório a autora se refira, por vezes, a si como sócia-gerente da sociedade insolvente, a verdade é que aquela giza a acção (na sua totalidade) na actuação da ré como gerente, no exercício de cujas funções lhe imputa o alegado na petição inicial;
- no processo do incidente de qualificação de Insolvência, foi condenada, como gerente de direito e de facto, a indemnizar os credores da devedora insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património, cujo montante concreto se remete para liquidação posterior, em função do valor do produto da liquidação apurado;
- estando em causa comportamentos dos gerentes, estamos no campo da aplicação do n.º 1 do art.º 78º do Código das Sociedades Comerciais e, estando a decorrer, ainda, o processo de insolvência, esta pendência afasta a legitimidade dos credores, incluindo a ora autora, para a acção autónoma no âmbito daquela disposição legal.
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Na mesma data, 31-01-2024, as rés CC e Aromas Cobiçados, Lda., apresentaram articulado onde também defenderam a verificação da excepção dilatória mencionada.
Alegaram, em síntese, que:
- estando em causa alegados comportamentos de gerentes, está-se sempre no campo da matéria comercial, mais concretamente o art. 78.º, n.º 1 do CSC;
- o facto de se encontrar a decorrer uma Insolvência, impede os credores, designadamente a autora, de poderem propor a presente acção, por força do disposto no art.º 82 n.º 3, al. b), do CIRE.
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A autora respondeu a 13-02-2024, reiterando o já por si defendido no articulado apresentado a 19-01-2024, no sentido da não verificação da excepção dilatória mencionada.
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A 31-08-2024, foi proferida decisão que julgou verificada a excepção de ilegitimidade activa da autora e, em consequência, absolveu as rés da instância, com fundamento nos arts, 30º, 576º, n.º1 e 2, 577º, al. c), 578º, todos do CPC, e 82º, n.º3, al. b), e 90º do CIRE.
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A 07-10-2024, a autora interpôs recurso da decisão referida, apresentando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
I. A Recorrente não se conforma com a decisão revidenda, pois que a ação declarativa sub judice não se subsumirá a uma ação cuja competência para a propositura pertença exclusivamente ao administrador de insolvência, não tendo cabimento a aplicação da norma especial,
II. ou, pelo menos, não tendo cabimento por referência ao concreto circunstancialismo em apreço.
III. Está a Recorrente convicta de que Vossas Excelências, considerando a matéria jurídica sob escrutínio, apreciando devidamente a factualidade resultante dos autos e subsumindo-a efetivamente às normas jurídicas aplicáveis, tudo no mais alto e ponderado critério, não deixarão de revogar a decisão proferida e substituí-la por uma outra que judicie pela não verificação da exceção de ilegitimidade ativa, com a necessária prossecução dos autos.
Contemplemos,
A. Da errada interpretação e aplicação das normas jurídicas ínsitas nos artigos 82.º n.º 3 b) e n.º 6 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (doravante CIRE), e do artigo 9.º do Código Civil:
IV. Mal andou o Tribunal a quo ao perpetrar pela aplicação in casu das normas jurídicas constantes dos artigos 82.º n.º 3 b) e n.º 6 do CIRE, vedando a continuidade da ação declarativa por considerar ser o administrador de insolvência detentor da competência exclusiva para recorrer a tal expediente processual.
V. Não obstante o Tribunal a quo frisar que a aqui Autora terá alegado que, com tal atuação, as Rés terão defraudado os credores da sociedade insolvente e em particular a Autora, a realidade é que, devidamente compulsada a petição inicial, dúvidas não quedam de que a Autora pretende fazer valer um direito próprio, e em seu próprio benefício, e não o direito de uma generalidade de credores.
VI. Basta atentarmos no elemento literal, que, de acordo com as regras de interpretação previstas no artigo 9.º do Código Civil, fazem residir na norma escrita um mínimo de correspondência, ainda que imperfeito, com a sua ratio, para concluirmos que o intuito do legislador passaria por destinar tal competência às ações que visassem a generalidade dos credores, e não a credores individualmente considerados.
VII. Compaginando tal elemento literal da norma jurídica em apreço, e integrando-a devidamente no presente circunstancialismo em que os factos alegados extravasam o domínio insolvencial, as Rés são distintas da sociedade insolvente, e em que assiste o direito à Autora de se ver ressarcida dos prejuízos sofridos em virtude da conduta das mesmas,
VIII. facilmente constatamos que a situação sub judice não se subsume a nenhuma das hipóteses contempladas para a competência exclusiva dos administradores de insolvência.
IX. Resultou, de igual forma, olvidada a ratio legis da aplicação de tal artigo, pois que esta visa a sua aplicação quando esteja em causa a generalidade dos credores, e não credores individuais - vide, a este propósito, o entendimento verberado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo n.º 23994/16.0T8LSB-E.L1-1, no Acórdão de 19-03-2024, pela relatora Isabel Fonseca, ao qual aderimos «(…) 3. Justifica-se, pois, uma interpretação que tenha em conta o sistema em que o preceito se insere, em ordem a considerar que assiste ao credor a faculdade de instaurar a ação judicial contra o responsável legal pelas dívidas do insolvente, agindo, pois, em defesa dos seus interesses e exercendo o direito que, substantivamente, a lei lhe confere, nos casos em que se patenteia a inércia do administrador da insolvência em exercer os poderes que lhe são conferidos pelo referido artigo, quando não a sua oposição; agindo, então, em substituição do administrador, não deixa de defender apenas o seu direito – nem sequer está em condições, obviamente, de pugnar pelos direitos de outros credores –, aproveitando-lhe, pois, exclusivamente, o resultado da ação e não já a todos os credores, como aconteceria se fosse o administrador da insolvência a atuar.»
X. O princípio par conditio creditorum visa salvaguardar a satisfação proporcional de todos os credores perante a insolvência do devedor e no âmbito dessa insolvência, não sendo aplicável in casu, em que estamos no âmbito de uma ação de responsabilidade civil proposta contra terceiros solventes, tendo em vista a obtenção de um benefício individual da Autora, enquanto credora.
XI. A presente ação declarativa nunca poderia ser enquadrada em qualquer alínea do artigo 82.º do CIRE, não assistindo, por conseguinte, qualquer legitimidade exclusiva do administrador de insolvência para a sua propositura.
XII. Pelo que, ao decidir como decidiu, interpretou e aplicou erradamente o Tribunal a quo as normas jurídicas consagradas nos artigos 82.º n.º 3 b) e n.º 6 do CIRE, e, bem assim, o artigo 9.º do Código Civil, devendo ter interpretado tais normas no sentido de não se subsumir a situação sub judice às previsões de competência exclusiva do administrador, considerando a letra da lei, a sua ratio e o circunstancialismo inerente.
Para além disso, e ainda que assim não se concebesse,
XIII. Antagonicamente ao verberado pelo Tribunal a quo, não se verifica uma integral coincidência entre os fundamentos do incidente de qualificação de insolvência e os fundamentos da presente ação declarativa, pois que, é alegado em sede de petição inicial, mormente nos seus artigos 57) a 59), que apesar da situação em que a sociedade ora insolvente se encontrava, as Rés mantiveram e criaram uma relação de confiança, levando a aqui Autora a providenciar fornecimentos cujos preços ficaram por liquidar, causando-lhe prejuízos.
XIV. Os pressupostos da responsabilidade civil verberados em sede de petição inicial extravasam a alegação em que se funda a mera expectativa de ressarcimento dos valores atinentes ao crédito da Autora no âmbito insolvencial, afigurando-se perfeitamente legítima a possibilidade de a satisfação do prejuízo da Autora ser realizada por sua iniciativa própria - sobre tal conspecto, atente-se no entendimento propalado pelo Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do processo n.º 81/20.0T8PVZ.P1, no Acórdão de 23-09-2021, pelo relator Aristides Rodrigues de Almeida, nos termos do qual «Por a ação não integrar a previsão das alíneas a) ou b) do artigo 82.º, n.º 2, do CIRE, são os próprios credores e não o Administrador da Insolvência que têm legitimidade para instaurarem contra o gerente da sociedade devedora declarada insolvente acção de responsabilidade civil destinada a obter o ressarcimento dos danos que este lhes causou ao esconder a situação de insolvência e criar as condições para os credores continuaram a fazer fornecimentos à devedora na expectativa assim criada de que esta pagaria.».
XV. Não se poderá confundir os pressupostos da qualificação da insolvência como culposa e os pressupostos da responsabilidade civil e dos subsequentes institutos jurídicos subsidiários, pois que, as suas ratio legis e naturezas jurídicas se afiguram manifestamente distintas.
XVI. Nessa medida, também por tal via não se deveria ter verificado a exceção de ilegitimidade da Autora em virtude da almejada competência exclusiva do administrador de insolvência, por tal ação assumir um fado dissemelhante.
XVII. Pelo que, e de todo o modo, ao decidir como decidiu, interpretou e aplicou erradamente o Tribunal a quo, as normas jurídicas ínsitas nos artigos 82.º n.º 3 e n.º 6 do CIRE, normas jurídicas que deveriam ter sido interpretadas no sentido de a situação sub judice não se enquadrar na previsão de tais normas, por extravasar o âmbito insolvencial e os danos e a conduta alegados e apreciados nessa sede, nos termos expostos supra.
Ainda que se judicie por entendimento distinto, o que apenas por mero dever de patrocínio se concebe,
B. Da transgressão das normas jurídicas ínsitas nos artigos 78.º e 174.º do Código das Sociedades Comerciais, 483.º e 498.º do Código Civil, e 20.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa:
XVIII. Ainda que se considerasse que a presente ação declarativa se subsume às situações contempladas no artigo 82.º do CIRE, isto é, às ações de competência exclusiva do administrador de insolvência, o que apenas por mera hipótese se concebe, sempre haveria de ponderar-se se os interesses substantivos e direitos materiais dos credores em verem-se ressarcidos dos danos por si sofridos, bem como a prevenção do decurso de eventuais prazos de prescrição ínsitos nos artigos 498.º do CC e 174.º n.º 1 do CSC.
XIX. Tais riscos de prescrição foram precisamente referidos pela Autora nos seus articulados, fazendo inclusivamente referência à inércia do administrador de insolvência.
XX. Permitir-se que, de forma centralizada, o administrador de insolvência afira da necessidade de propositura de ações judiciais contra terceiros, em representação de determinados credores, tendo apenas em mente o princípio par conditio creditorium, e olvidando os direitos materiais dos credores a verem-se ressarcidos dos danos sofridos, não acautelando, inclusive, questões de prescrição, poderá colidir diretamente com o direito constitucional de acesso ao direito e à justiça, consagrado no artigo 20.º n.º 1 e n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.
XXI. Nessa medida, haveria de equacionar-se a preponderância do interesse da Autora, considerando o circunstancialismo do caso concreto e a possibilidade de perda do seu direito em virtude de prescrição, sobre o princípio par conditio creditorum. - atente-se na sapiência propalada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do processo n.º 1006/15.0T8LRA-D.C1, no Acórdão de 09-05-2017 pelo relator António Carvalho Martins, nos termos do qual «11.- O princípio da igualdade dos credores “par conditio creditorum” não confere, aos que deles beneficiam, um direito absoluto. Esse direito de crédito pode sofrer afrouxamento ou restrição como decorre do texto constitucional que contempla, a par do princípio da igualdade, o princípio da proporcionalidade e da proibição do arbítrio coenvolvidos na legalidade do exercício de direitos e deveres.»
XXII. Pelo que, ao decidir como decidiu, transgrediu o Tribunal a quo as disposições jurídicas constantes dos artigos 78.º e 174.º do Código das Sociedades Comerciais, 483.º e 498.º do Código Civil, e 20.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, devendo ter interpretado e aplicado tais normas no sentido de dever prevalecer, in casu, o direito material da Autora individualmente considerada a aceder à justiça e a fazer prevalecer o seu direito e obter o ressarcimento dos seus danos, considerando, inclusive, a inércia do administrador de insolvência e o risco inerente de prescrição.
Assim,
C. Da errada interpretação e aplicação das normas jurídicas ínsitas nos artigos 30.º, 576.º n.º 1 e n.º 2, 577.º e) e 578.º do CPC:
XXIII. Não se preenchendo os pressupostos para a verificação de qualquer ilegitimidade nos moldes supra expostos, não deveria ter sido verificada qualquer exceção nem absolvidas as Rés da instância, pelo que, ao decidir como decidiu, interpretou e aplicou erradamente o Tribunal a quo as normas jurídicas contempladas nos artigos 30.º, 576.º n.º 1 e n.º 2, 577.º e) e 578.º do CPC, devendo ter interpretado e aplicado tais normas no sentido de não se verificar, in casu, qualquer exceção de ilegitimidade, devendo ter a ação prosseguido os seus normais trâmites processuais.
Assim,
XXIV. Judiciando pela revogação da decisão revidenda, e substituindo-a por uma outra que judicie pela não verificação de qualquer ilegitimidade ativa, e determinando a prossecução dos autos, farão Vossas Excelências inteira e sã Justiça.
*
Não foi apresentada resposta ao recurso.
*
A 21-05-2025, o recurso foi admitido, com subida nos autos e com efeito devolutivo, o que não foi alterado neste Tribunal.
*
II.
1.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635º, n.º4, 636º e 639º, n.º1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608º, n.º2, parte final,ex vi do art. 663º, n.º2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Tendo isto presente, no caso, atendendo às conclusões transcritas, a intervenção deste Tribunal de recurso é circunscrita à seguinte questão:
- Saber se a decisão impugnada incorre em erro de direito ao afirmar a excepção dilatória de ilegitimidade activa com fundamento no art. 82º, n.º3, al. b), do CIRE, e, em consequência, absolver as rés da instância.
*
2.
A factualidade a ponderar na presente decisão é a que resulta da marcha do processo, acima descrita, que aqui se dá por reproduzida, bem como a seguinte, constante da decisão recorrida:
1. No decurso do processo, foi apurada a pendência do processo de insolvência – proc. n.º 1665/20.2T8SNT - Juízo Comércio de Sintra - Juiz 4 – encontrando-se pendente a liquidação e tendo sido proferida sentença no incidente de qualificação de insolvência, impulsionado pela ora autora, aí na qualidade de credora, em 10.04.2022, transitada em julgado em 29.04.2022, que decidiu: “Em face do exposto, decide-se:
a) Qualificar como culposa a insolvência de “Aliança Panificadora do Cacém, Lda.”, com sede em Rua...Freguesia de Agualva, Concelho de Sintra;
b) Declarar BB, com domicílio na Rua ..., São Pedro de Sintra, afetada pela qualificação da insolvência como culposa, na medida em que foi a sua responsável;
c) Declarar BB inibida da administração do património de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, por um período de 3 (três) anos;
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, que BB detenha sobre a sociedade insolvente;
e) Condenar BB a indemnizar os credores da devedora insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património, cujo montante concreto se remete para liquidação posterior, em função do valor do produto da liquidação apurado; (…)” Cfr. certidão junta a 13.02.2024 sob ref.ª CITIUS 25023742.
2. Foram considerados provados, nessa decisão, os seguintes factos:
“1. Por sentença proferida em 05.02.2020, transitada em julgado, foi declarada a insolvência da sociedade comercial “Aliança Panificadora do Cacém, Lda.”, com sede em Rua...Freguesia de Agualva, Concelho de Sintra, na sequência de apresentação mediante requerimento entrado em juízo a 27.01.2020.
2. A Insolvente é uma sociedade por quotas constituída em 27 de abril de 1959 (por sócios ainda familiares da maioria dos atuais titulares das 27 quotas) que teve sempre a sua sede na Rua...Freguesia de Agualva, Concelho de Sintra, Freguesia de Agualva, Concelho de Sintra, Distrito de Lisboa.
3. O capital social da Insolvente, de € 16.621, composto por 27 quotas de valor e titularidades diversas.
4. O cargo de gerência é exercido pela sócia BB, licenciada em farmácia, desde 20/03/2009, exercendo sozinha tal cargo desde 2011, vinculando-se a sociedade com a assinatura do único gerente.
5. O técnico oficial de contas da Insolvente é a Dra. DD, que desde janeiro de 2014 que executa a contabilidade da Insolvente – NIF: ... – n.º membro: ... e funcionária da empresa “Marketconta – Auditoria, Estudos e Contabilidade, Lda.” – NIPC: ....
6. Esta contabilista renunciou ao cargo junto da Autoridade Tributária em 27/01/2020.
7. A sociedade “Aromas Cobiçados, Unipessoal, Lda.” é detida e gerida por CC (sócia da insolvente em representação do pai EE), sociedade esta constituída em 11 de Outubro de 2019, que passou a explorar as lojas sitas nas seguintes moradas, imediatamente após a declaração de insolvência:
• Av..., Agualva – Cacém,
• Praceta ..., Agualva – Cacém
• Estrada..., Algueirão.
8. Mesmo havendo cessado os contratos de arrendamento e tendo fechado as suas portas a 02 de janeiro de 2020, apresentando-se de seguida à Insolvência, que foi decretada a 05/02/2020, veio a Insolvente em dezembro de 2019 fazer encomendas de matérias primas no valor de 13.811,62 €.
9. Foi emitida uma nota de crédito no valor de 2.578,09 € em 4 de janeiro de 2020, correspondente a mercadoria devolvida.
10. A sócia gerente, BB, munida de autorização obtida em assembleia geral, procedeu à venda de um imóvel da propriedade da Insolvente, a Fração autónoma designada pela letra “E”, que corresponde ao 2º andar esquerdo para habitação, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na Praceta ..., Rio de Mouro, Sintra, descrito na Conservatória do Registo Predial com o n.º 2246 e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 1719 mediante contrato de compra e venda, cuja escritura foi celebrada em 27/09/2019, pelo valor de €50.000,00.
11. BB utilizava uma conta pessoal, que destinou para fazer e receber pagamentos da Insolvente, com fundamento no facto de as contas da Insolvente se encontrarem penhoradas a partir do ano de 2015 (no âmbito de processo instaurado pelo IGFSS, para cobrança de dívidas à Segurança Social), tendo o valor do produto da venda do imóvel entrado nesta conta titulada por si, com o IBAN PT ... 062 (CGD, SA), em 14.05.2019.
12. Do produto da venda do Imóvel, a gerente estimou que cerca de 23.000,00 € seriam utilizados em obras de reabilitação, cuja identificação e valores concretos utilizados não se logrou apurar, da loja arrendada na Estrada..., Algueirão, como forma de incremento do espaço para alavancar a atividade da Insolvente.
13. Em 23 de outubro de 2009 foram levantados € 10,000,00 em numerário da conta CGD de que BB é titular, identificada em 11 supra.
14. O contrato de arrendamento referente a essa loja foi cessado em dezembro de 2019, pela própria gerente – BB - o que sucedeu pouco tempo após a conclusão das obras.
15. Em inícios de fevereiro de 2020, volvidos que ficaram 2 meses após o encerramento de todos os seus estabelecimentos, (próprios e arrendados) a Insolvente apresenta-se à Insolvência apenas com património imóvel onerado com hipotecas ou contratos de locação financeira, dado que o único imóvel desonerado foi vendido em 27/09/2019 e os bens móveis apreendidos na sede da Insolvente, na sua grande maioria, pertencentes às lojas por esta detidas.
16. CC auferia € 2.000,00 de remuneração e fazia um trabalho bastante alargado e em várias áreas de atividade, sendo ela que para além da supervisão, fazia as encomendas/compras para todas as lojas da Insolvente, auxiliando ainda a gerente – BB – em todas as demais tarefas.
17. Nos presentes autos foi reclamado pela Segurança Social (IGSFF, IP), crédito no valor de 1.515.560,66 € – sendo que, parte do mesmo, foi constituído nos 12 meses antes da declaração de insolvência.
18. BB conhecia a situação de extrema debilidade económica da Insolvente, conhecendo também que o único património desonerado que a Insolvente detinha era o imóvel alienado, e que ao vendê-lo e ao utilizar parte do dinheiro para obras que previsivelmente nada adiantariam, estava a contribuir, de forma inevitável, para o agravamento da situação de impossibilidade de pagamento das dívidas da sociedade em apreço, diminuindo o seu património e prejudicando os credores.
19. BB teve ao longo dos anos, e pelo menos desde 2009, a perfeita noção da situação deficitária da empresa, refletida nas contas aprovadas anualmente, quase sempre com resultados negativos, e que incluíam os montantes da elevada dívida da empresa à Segurança Social.
20. Relativamente aos 15 últimos exercícios (2003 a 2018) - os Serviços de Contabilidade não encerraram as Contas de 2019 -, diga-se que, em linha com o que sempre aconteceu, a empresa quase não apresentou resultados positivos: 2003 (- € 132.744,69), 2004 (+ € 67.040,25), 2005 (- 155.531,00), 2006 (+ € 34.813,54), 2007 (- € 119.693,72), 2008 (- € 218.025,89), 2009 (- € 103.031.05), 2010 (- € 137.956,94), 2011 (+ € 47.917,65), 2012 (- €197.458,12), 2013 (-€135.083,25), 2014 (- €91.640,00), 2015 (+ € 2.317,00), 2016 (- €12.055,00), 2017 (-131.224,00) e 2018 (- 15.043,54).
21. Sendo que os lucros de 2004, 2006 e 2011 tiveram causas externas à atividade social, respetivamente, a paragem da fábrica para obras, o recebimento de uma indemnização do Polis e a venda de um imóvel em Albarraque em 2010 – só o resultado de 2015 adveio do exercício.
22. Desde 2014 que constava da ordem de trabalhos das assembleias gerais de apresentação de contas, nos termos do artigo 35º do Código das Sociedades Comerciais, a necessidade deliberar sobre as medidas a tomar, tendo as deliberações tomadas quanto a esse ponto sido : “(…) foi deliberado que a gerência estudaria o assunto com vista a fornecer uma proposta de solução em tempo oportuno.”
23. No Relatório de Gestão do exercício de 2017, datado de 12.10.2018, depois de quantificar dívida da insolvente à Segurança Social em 31.12.2017 (€ 1.151.898,25) e em 30.05.2018 (€ 1.300.949,91) e de referir a condenação da sociedade no pagamento de € 125.272.71 no processo judicial intentado pela EE, Lda, em recurso interposto de uma primeira decisão que tinha declarado extinta a execução, a gerência declarou o seguinte: “Encarando a situação real da empresa, e que já se prolonga há vários anos, em termos técnicos podemos afirmar que a mesma se encontra em estado de falência e que, assim sendo, se deveria propor a sua insolvência. Esta decisão será deixada ao critério dos sócios.”
24. No Relatório e Gestão de 2018, datado de 15.06.2019, depois de igualmente consignar as informações referentes à dívida à Segurança Social e ao processo da EE, Lda, a gerência declarou o seguinte:
”As dificuldades por conta da dívida à Segurança Social mantêm-se. O novo acordo solicitado ainda aguarda decisão por parte da entidade referida. Como é do conhecimento de todos os sócios, face à situação real da empresa, e que já se prolonga há vários anos, deveríamos propor a sua insolvência. Esta decisão será deixada ao critério dos sócios”.
25. No processo de insolvência foram apreendidas 44 verbas, respeitando 2 a bens imóveis e 42 a bens móveis.
26. Os bens imóveis apreendidos foram os seguintes:
a) Prédio em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, no n.º 29, 29-A, 29-B, 29-C, 31, 31-A e 31-B sito no n.º 29 da Rua...Freguesia de Agualva, Concelho de Sintra, freguesia da União das Freguesias de Agualva e Mira-Sintra, do concelho de Sintra e distrito de Lisboa, descrito na CRP de Agualva Cacém sob o n.º 1771, freguesia de Agualva correspondente aos seguintes artigos inscritos na respetiva matriz predial urbana:
- Artigo n.º 959 - Edifício de r/c, 1.º, 2.º e 3.º andares, com lados direito e esquerdo, com 152,50 m2, com o valor patrimonial de € 297.486,54;
- Artigo n.º 960 - Edifício de r/c para fábrica, 1.º, 2.º e 3.º andares com lados direito e esquerdo, com 648 m2, com o valor patrimonial de € 450.048,83;
b) Fração autónoma designada pela letra “B”, composta por loja destinada a comércio, no r/c do Prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Praceta ..., Rio de Mouro, Sintra, do concelho e distrito de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2246, freguesia de Rio de Mouro, concelho e distrito de Sintra, inscrito na matriz predial urbana correspondente ao artigo 1719 da freguesia de Rio de Mouro e concelho e distrito de Sintra, com o valor patrimonial de € 139.807,45.
27. Foram reclamados créditos, já definitivamente reconhecidos e graduados por sentença transitada em julgado, no valor total de € 2.590.807,00, correspondendo € 385.271,96 a créditos de natureza garantida, € 485.240,66 de natureza privilegiada, € 1.720.122,63 de natureza comum e € 171,75 de natureza subordinada.
28. A liquidação do ativo da insolvente encontra-se ainda a decorrer, não sendo possível apurar, nesta data, os montantes dos créditos que ficarão por satisfazer.”
3. Na mesma decisão, foram considerados não provados os seguintes factos:
“a) A insolvente fez as encomendas referidas em 8 supra já sabendo que as não iria utilizar, uma vez que cessou a sua atividade;
b) A contabilista certificada da insolvente não forneceu os elementos solicitados, inviabilizando o apuramento da realidade da insolvente;
c) CC exercia funções de gerente de facto da insolvente;
d) Existiu um plano engendrado pelas duas senhoras gerentes, de direito e de facto, para esta última vir a beneficiar após o fecho de atividade da Insolvente, das obras de beneficiação das lojas, realizadas com a dissipação do património da insolvente e que ela iria tomar de arrendamento em nome da sociedade “Aromas Cobiçados, Unipessoal, Lda.”;
e) A Administração Tributária reclamou a quantia global de 8.513,10 € relativa a IMI, IVA e IRC, juros e custas, cujo vencimento reporta a 2018, mas a realidade é que o cumprimento atempado das demais obrigações deixou de se verificar em 2017;
f) O produto da venda do imóvel permitiu pagar uma parte considerável das quotizações que estavam em atraso na altura;
g) Os € 10,000.00 levantados em numerário da conta CGD de que BB é titular, em 23.10. 2019 (extrato de outubro/2019), destinaram-se às obras referidas em 12., tendo-os colocado no cofre da empresa para ir fazendo pagamentos ao empreiteiro que as realizou (Sr. GG), conforme fossem progredindo.”
*
3.
Na apreciação da questão acima enunciada, importa reter que, como decorre do acervo factual assumido como provado na decisão impugnada, a sociedade Aliança Panificadora do Cacém, Lda., foi declarada insolvente, por sentença transitada em julgado, estando o respectivo processo de insolvência pendente, a aguardar liquidação.
Releva, ainda, que a insolvência foi qualificada como culposa, tendo a ré BB sido declarada afectada por tal qualificação e condenada a indemnizar os credores da devedora insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património, cujo montante concreto se remete para liquidação posterior, em função do valor do produto da liquidação apurado.
Releva, também, que, na decisão impugnada, se assume que a aqui autora reclamou e viu reconhecido, no aludido processo de insolvência, um crédito sobre a devedora (a insolvente), de valor correspondente ao montante reclamado nos presentes autos.
De acordo com o disposto no art. 30º, n.º1, do CPC, o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar, o qual, segundo o número 2 do mesmo artigo, se exprime pela utilidade derivada da procedência da acção.
Por força do disposto no art. 30º, n.º3, do CPC, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito de legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurado pelo autor.
Resulta do acervo normativo acima elencado que a legitimidade processual activa deve ser aferida, em regra, pela titularidade dos interesses directos (e não indirectos, reflexos ou mediatos) em causa no processo, sendo o de demandar exprimido pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da acção.
Assim, o autor é parte legítima se, considerando a relação jurídica que invoca no processo, figurar nela como sujeito susceptível de beneficiar directamente do efeito jurídico pretendido (cf.: Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, CPC Anotado, vol. 1º, 1999, p. 51; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, CPC Anotado, vol. I, 3ª edição, 2024, p. 64).
A regra mencionada não se aplica quando exista preceito legal que a afaste, como decorre no n.º 3 do artigo 30º do CPC, parte inicial.
Atendendo à causa de pedir e à pretensão vertidas na petição inicial, tem-se que a autora se assume como lesada pela actuação ilícita das rés, enquanto gerentes de direito e de facto da sociedade devedora, visando na presente acção o reconhecimento da responsabilidade civil fundada nessa actuação e o ressarcimento, a seu favor, pelas rés, do prejuízo que sofreu com a insatisfação do seu crédito.
Perante o referido, a autora mostra-se titular da relação material controvertida e beneficiária directa da procedência da acção, pelo que, em princípio, está dotada de legitimidade activa, ou seja, de legitimidade para instaurar a presente acção. Tal só assim não será se houver norma legal que prive a autora dessa legitimidade.
Na decisão recorrida assume-se o entendimento de que a norma contida no art. 82º, n.º3, al. b), do CIRE, priva a autora da legitimidade activa para deduzir a presente acção, atribuindo-a ao Administrador da Insolvência, com o que a mesma discorda.
De acordo com a norma acabada de referir, durante a pendência do processo de insolvência, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir as acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência.
A norma em referência, como refere Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência, 2021, 2ª edição Livraria Almedina, Coimbra, p. 174), reveste carácter processual e respeita às acções destinadas à indemnização de danos ou prejuízos causados à generalidade dos credores pela diminuição do património da massa insolvente, sendo necessariamente propostas pelo administrador da insolvência, durante a pendência do processo de insolvência. O objecto dessa acção destina-se a “incrementar o património activo da massa insolvente, em relação ao qual concorrem todos os credores”, sendo que a indemnização obtida por essa via ingressará na aludida massa e só depois será distribuída aos credores (Maria Elisabete Gomes Ramos, “A Insolvência da sociedade e a responsabilização dos administradores no ordenamento jurídico português”, p. 19, acessível em https://periodicos.ufpb.br/index.php/primafacie/article/view/4548), assim se dando concretização ao princípio da par conditio creditorum, segundo o qual, na ausência de factos que determinem a aplicação de regras especiais, os credores estão em pé de igualdade perante o devedor, tendo o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos (art. 604º, n.º1, do Cód. Civil).
Na esteira do referido no acórdão do TRP de 23-09-2021, processo 81/20.0T8PVZ.P1 (acessível em dgsi.pt), invocado pela recorrente, entende-se que a norma contida no art. 82º, n.º3, al. b), do CIRE, “não se refere a todas as actuações do administrador que sejam contrárias ao interesse dos credores e passíveis de o fazerem responder para com a sociedade e/ou os credores e motivarem a qualificação da insolvência, a norma apenas tem por objecto as actuações que hajam provocado a diminuição (por desvio, destruição, extravio ou escamoteamento) da massa insolvente. É precisamente por isso que para delimitar o seu âmbito a norma usa igualmente a expressão «prejuízos causados à generalidade dos credores»”.
A norma mencionada não tem aplicação nas acções que se destinem à indemnização dos prejuízos causados directamente a algum credor, em que se invoque que o património deste diminuiu sem que a sua causa directa seja uma diminuição do património da massa insolvente, antes se reconduzindo a um comportamento ilícito dos demandados (cf. Catarina Serra, obra citada, p. 176). No mesmo sentido parece seguir Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, vol. I, 2022, 4ª edição, Livraria Almedina, Coimbra, p. 226, nota 90.
Nessa perspectiva, os credores que se consideram lesados por actos que apenas tenham causado danos na sua esfera jurídica, conservam legitimidade para intentar as acções destinadas a efectivar a responsabilidade civil, posto que o art. 82º, n.º3, al. b), do CIRE, apenas reserva legitimidade exclusiva ao administrador da insolvência para a interposição de acções destinadas a reparar danos que tenham sido causados à generalidade dos credores” (Ana Prata, CIRE Anotado, p. 242 e 243, citado por Marco Carvalho Gonçalves, Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, 2023, Livraria Almedina, Coimbra, p. 306-307, nota 753).
A autora instaurou a presente acção para obter a condenação das rés no pagamento de uma indemnização em seu benefício particular.
Para sustentar o pedido formulado na presente lide, a autora, além dos factos que legitimaram a qualificação da insolvência como culposa, alegou, além do mais, que as rés pessoas físicas, no exercício da gerência, de direito e de facto, da sociedade declarada insolvente, quando tinham conhecimento da situação de insolvência e da impossibilidade de esta sociedade cumprir as suas obrigações, criaram e mantiveram uma relação de confiança consigo (autora), levando-a a continuar a fazer fornecimentos, na convicção de que os respectivos preços seriam pagos, o que não ocorreu (cf., designadamente, os artigos 126º a 130º da petição inicial).
Pode-se, pois, afirmar que não existe integral correspondência entre os fundamentos da qualificação da insolvência e os fundamentos da presente acção, posto que estes importam factualidade distinta, referente ao relacionamento concreto entre as rés pessoas físicas demandas e a autora, credora, que esta entende legitimar a responsabilidade civil daquelas e da sociedade demandada.
Face ao referido, entende-se legítimo assumir que a mesma não se subsume no âmbito de previsão da norma constante do art. 82º, n.º 3, al. b), do CIRE, ao invés do entendimento perfilhado na decisão recorrida.
Como acima se referiu, a norma mencionada reporta-se às acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência decorrente da diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência, tendo por finalidade incrementar o património activo da massa insolvente, em relação ao qual concorrem todos os credores, sendo que a indemnização obtida por essa via ingressará na aludida massa e só depois será distribuída aos credores.
No caso em apreço, o fundamento da acção não respeita à diminuição da massa insolvente, antes se reconduz ao comportamento das rés pessoas físicas de criação e manutenção da relação supra mencionada.
Tenha-se presente, como se mencionou no acórdão do TRP de 23-09-2021 (supra referido), que a questão que cumpre decidir respeita ao pressuposto processual de legitimidade activa, alheia do mérito da pretensão formulada pela autora, designadamente da questão de saber se a mesma pode obter para si (de forma individualizada, à margem do interesse dos outros credores e por isso ficando em melhor posição que os demais) a indemnização que tenha como causa adequada o comportamento imputado às rés.
Considerando a regra geral sobre legitimidade activa consagrada no art. 30º do CPC, a que se fez referência, a autora tem legitimidade para intentar a presente acção.
A situação dos autos não integra o âmbito de previsão da norma contida no art. 82º, n.º3, al. b), do CIRE (sendo certo que, estando em causa norma excepcional, a mesma não admite interpretação extensiva, não podendo a sua estatuição abranger situações distintas, ainda que análogas, por força do disposto no art. 11º do Cód. Civil).
Em consequência do referido, conclui-se que a autora, na presente lide, está dotada de legitimidade processual activa.
Responde-se, assim, afirmativamente à questão acima identificada.
A decisão impugnada deve ser revogada e substituída por outra que julgue a autora parte dotada de legitimidade processual activa e, em consequência, determine o prosseguimento da tramitação do processo.
Face ao referido, mostra-se prejudicada a apreciação da demais argumentação expendida no recurso.
*
Conclui-se, assim, pela procedência do recurso.
*
4.
Face à procedência do recurso, as recorridas deverão suportar as custas do recurso (art. 527º, n.º1, do CPC), sem prejuízo do decidido sobre apoio judiciário.
*
III.
Em face do exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o Colectivo desta 2ª Secção em julgar o recurso procedente e, em consequência:
a. Revogam a decisão recorrida;
b. Julgam a autora dotada de legitimidade processual activa;
c. Determinam o prosseguimento da tramitação do processo.
Custas do recurso pelas recorridas, sem prejuízo do decidido sobre apoio judiciário.
Notifique.
*
Lisboa, 26 de Junho de 2025.
Os Juízes Desembargadores, Fernando Caetano Besteiro Rute Sobral Arlindo Crua