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OFENSA A PESSOA COLECTIVA
DIFAMAÇÃO
Sumário
Sumário: (da responsabilidade da Relatora) No crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, p. e p. pelos arts. 182º, 183º, nº 1, al. a) e 187º, todos do Cód. Penal, como decorre do que se diz aqui, está em causa a protecção da confiança e prestígio da pessoa colectiva quanto à afirmação ou prolacção de factos inverídicos susceptíveis de atingirem tal dimensão, sendo sempre exigível que o agente se encontre de má-fé. Ou seja, é sempre necessário que o agente não esteja convencido da verdade do que afirma, pois que só assim se pode entender, perante a manifestação de um acto ilegal cuja malícia foi interiorizada pelo seu autor, que seja ele censurado criminalmente.
Texto Integral
Acordam os juízes da 3ª Sec. Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
Relatório
Pelo Juízo de Instrução Criminal de Cascais – J1 – foi proferida decisão instrutória que decidiu do seguinte modo: (…) AA, Sociedade de Advogados, constitui-se na qualidade de assistente e deduziu acusação particular contra BB (…) umcrime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, p. e p. pelos artigos 182.º, 183.º, n.º 1., alínea a) e 187.º, todos do Código Penal (…) II – Fundamentação Os factos fortemente indiciados, porque admitidos expressamente, quer pelo assistente quer pelo arguido, consistem em crítica postada pelo arguido no motor de busca ... na sequência de contactos que havia tido com o serviço de advocacia corporizado na sociedade aqui assistente: “Lisboa ... de ... de 2024. O que ganhei ao procurar este escritório de advocacia? – R: Nada O que perdi? – R: tempo e dinheiro Não me ajudaram em nada, além de demonstrarem / zero empatia), ainda gastei 100+23 IVA = 123 euro por 01 hora de consulta), Outrossim, só emitiram a fatura do Pagamento, porque reclamei depois de uma semana e ameacei denunciá-los a autoridade tributária. Jamais contrataria novamente este escritório e tão pouco o recomendaria a alguém. Atenciosamente, BB” III – Análise crítica e enquadramento jurídico De acordo com o disposto no artº 286º, do CPP, a instrução tem como finalidade específica a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. A decisão de deduzir acusação deve ocorrer, conforme disposto no artº 283º, nº 1, do CPP, se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente. Analisados os fatos verifica-se que o arguido manifestou o seu descontentamento pela forma como decorreu uma determinada consulta ocorrida com o assistente e assim o declarou no local público destinado a críticas e opiniões sobre os serviços que ali podem ser encontrados. Em síntese, ao arguido imputa-se, na acusação particular, a autoria material de um crime previsto no artº 187º, todos do Código Penal aprovado pelo DL nº 48/95, de 15MAR, com a agravação decorrente do artº 183º, do mesmo diploma legal. Tratando-se de pessoa colectiva, entidade abstracta, os conceitos a tratar deverão ser sujeitos às devidas adaptações já que estão originariamente orientados para o sentir próprio de pessoas físicas. Contudo, o “bom nome” é um conceito transponível para o tráfego comercial ou meramente público em que giram as sociedades sejam elas de que natureza jurídica forem. Assim, importa ponderar que, pratica um crime de difamação/ofensa a pessoa colectiva quem dirigindo-se a terceiro, lhe imputar, mesmo sob a forma de suspeita, factos ofensivos da sua honra ou consideração, isto é, susceptíveis de transmitir a terceiros uma ideia pejorativa, que a prejudicará na imagem que procura projectar e que poderá influenciar negativamente todos aqueles que poderiam pretender estabelecer futuros contactos ou negócios com tal pessoa colectiva. No capítulo VI, título I, livro II, do Cód. Penal, local de inserção sistemática do citado dispositivo legal, sob a epígrafe “Dos crimes contra a honra”, o legislador penal pretende tutelar a integridade moral das pessoas, que de acordo com o disposto no artº 25º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, é inviolável. A honra e a consideração apresentam-se como vertentes de um mais vasto campo de qualidades próprias da pessoa humana, a integridade moral, merecedor de protecção legal a vários níveis, como aliás, de modo mais geral, alude o artº 70º do Cód. Civil e que aqui deverão devidamente adaptados. O conceito de honra foi já, com a clareza própria dos seus escritos, enunciado pelo Prof. Beleza dos Santos, como “aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa ter estima por si, pelo que é e vale”, enquanto que a consideração seria “o conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público” – cfr. Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 92, pág. 164 - ou ainda, como referem Leal-Henriques e Simas Santos, Cód. Penal anotado, 1996, pág. 317, “a consideração é o património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros”. As expressões e comportamentos do arguido têm, pois, que ser analisados no real contexto em que ocorreram. Estarão as pessoas colectivas imunes a toda e qualquer crítica desagradável que se lhes queira dirigir, ainda que em meios públicos e de grande audiência? A resposta intuitiva terá que ser negativa. De facto, as pessoas colectivas estão sujeitas a críticas a avaliações subjectivas elaboradas por aqueles com quem estabeleceram contactos. No mundo actual, a publicitação de serviços à escala mundial que a internet permite, também expõe esses mesmos serviços a críticas que poderão ser lidas e conhecidas a nível mundial. Nada há a fazer quanto a isso e, aliás, todos os cidadãos quererão conhecer opiniões de terceiros antes de procurarem um determinado serviço. Todas as críticas serão justas? Isto é, corresponderão a uma verdade absoluta na qual os representantes das pessoas colectivas ou prestadores de serviços se irão rever e identificar? Afigura-se, claramente, que não. As críticas e avaliações, neste contexto, serão sempre subjectivas e corresponderão a uma experiência particular de cada um. Poderão ser mais ou menos agradáveis para o avaliado. Para tentar oferecer alguma objectividade na informação disponibilizada aos interessados em conhecer a qualidade do serviço disponibilizado e criticado, as plataformas digitais que recolhem críticas a serviços, fornecem um sistema de classificação por estrelas, sendo 1 estrela a pior classificação e 5 estrelas a melhor. O equilíbrio das boas e más críticas (que corresponderão a avaliações sempre subjectivas e experiências particulares) fornecerá um parâmetro orientador aos potenciais utilizadores do serviço criticado – por exemplo 3,5 ou 4,4 e há mesmo quem sugira apenas a utilização de serviços que apresentem uma classificação superior a 4,5 estrelas… o que pressupõe a inevitabilidade de más críticas, porque as más experiências são um fenómeno da vida e, o mais das vezes, terão sido originadas por uma química negativa entre os interlocutores, não imputável a qualquer deles, mas simplesmente provocadas por uma incompatibilidade ocasional! Ora, no caso concreto, o arguido avaliou, na sua subjectividade, o contacto que teve com o serviço prestado pela sociedade assistente. Manifestou desagrado, é certo. Mais afirmou que só emitiram a fatura do Pagamento, porque reclamei depois de uma semana e ameacei denunciá-los a autoridade tributária. Porém, não se vislumbra que esta afirmação possa integrar a prática de crime. Se o arguido pensou que a disponibilização de factura pela quantia paga e recebida estava a ser demorada (ainda que assim não fosse) poderá ter afirmado que se não lhe fosse entregue a factura, imediatamente, iria apresentar queixa à Autoridade Tributária. A apresentação de queixas às autoridades é um direito que assiste a todos os cidadãos. Saber se têm ou não razão é tarefa dos respectivos serviços. E o facto de assim ser não tem que se transformar numa questão criminal – a prática de crime de denúncia caluniosa, a que se refere o artº 365º, do Código Penal tem os seus pressupostos próprios, que constituem um critério orientador para a limitação do exercício do direito de queixa. De facto, a circunstância de o arguido ter considerado a sua experiência com os serviços da assistente uma “má experiência” pode até não ser verdadeira ou objectivável. Uma eventual demora na entrega de uma factura pode não significar uma verdadeira demora ou dever-se, simplesmente, a contingências dos serviços. Alguns reagirão de modo mais intempestivo, enquanto que outros serão mais pacientes… Contudo, a fácil criminalização da manifestação pública de meras opiniões é direcção na qual não quereremos seguir enquanto comunidade regulada por um Estado de Direito Democrático, pois os valores contidos neste conceito implicam a tolerância de opiniões diversas daquelas que são sufragadas por alguns, ainda que minoritárias em relação a outras mais do nosso agrado… Na crítica ou opinião subjectiva postada pelo arguido nos serviços da Google não são detectáveis expressões que poderão ser consideradas objectivamente ofensivas da honra. Nem se diga, que o arguido está a sugerir que a assistente não cumpre as suas obrigações fiscais – sendo que ainda assim poderia não integrar os conceitos aqui em análise. Exigir o cumprimento de uma obrigação contratual (entrega de factura/quitação correspondente a quantia paga) sob advertência de que a não ser assim será apresentada queixa às autoridades competentes, pode constituir um modo rude ou desagradável de estabelecer comunicação com o nosso interlocutor mas não constituirá a prática de qualquer crime. Assim, não existem indícios suficientes de que o arguido tivesse praticado tal crime, impondo-se a decisão de não pronúncia. (…)
Inconformada, a assistente interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões: (…) a) O presente recurso vem interposto da decisão instrutória de não pronúncia do arguido BB, a qual padece do vício da falta de fundamentação, já que não elenca os factos que considerou suficientemente indiciados e os que considerou não suficientemente indiciados, o que torna tal decisão nula. b) De facto, a imposição de fundamentação das decisões dos tribunais resulta do disposto no artigo 205.º, n.º 1 da CRP e a fundamentação da decisão instrutória de não pronúncia, quer na vertente de facto como na vertente de direito, resulta do disposto nos artigos 97.º, n.º 5, 283.º, n.º 3, alínea b), aqui aplicável por força dos artigos 285.º, n.º 3 e 308.º, n.º 2, todos do CPP. c) Outro entendimento nos parece contrário a uma interpretação lógica dos citados preceitos legais - artigos 205.º, n.º 1 da CRP, 97.º, n.º 5, 283.º, n.º 3, alínea b), 285.º, n.º 3 e 308.º, n.º 2, estes do CPP) -, interpretação que deverá ser, sempre, subordinada aos princípios que enformam as normas legais e constitucionais aplicáveis, tais como os princípios, da transparência das decisões judiciais, da garantia do direito do acesso aos tribunais, da confiança da comunidade nas decisões judiciais, do processo equitativo, na sua vertente de garantia da imparcialidade e independência, com possibilidade de um correto funcionamento das regras do contraditório, tudo se conjugando para que a decisão instrutória de não pronuncia deva conter, sob pena de nulidade, a enumeração dos factos indiciados e não indiciados, com a suficiência exigida nesta fase processual. d) Ora, lida a decisão em recurso, facilmente se verifica que o Mº JIC não elencou nenhum facto, nem os que considera suficientemente indiciados nem aqueles que entende não estarem suficientemente indiciados, nem fez um exame crítico das provas, como se impunha. e) Além disso, a Assistente não concorda com o Mº JIC quando refere, que não foram reconhecidos indícios suficientes relativamente ao crime de que o arguido vem acusado. f) Ora, a prova que fundamenta a acusação deduzida é abundante, ali estando incluída, não só prova testemunhal e a resultante das declarações do legal representante da Assistente, mas também prova documental á qual o Mº JIC nem sequer aludiu, muito menos analisou. g) E impunha-se que fosse devidamente analisada e ponderada toda aquela prova, documental e testemunhal, após o que, conjugada entre si, levaria à conclusão de que nos autos existem indícios suficientes de o arguido ter praticado os factos e crime que lhe vêm imputados na acusação. h) Não pode, a nosso ver, escamotear-se e reduzir-se a conduta do arguido, a uma suposta manifestação de “…descontentamento pela forma como decorreu uma determinada consulta ocorrida com o assistente e assim o declarou no local público destinado a críticas e opiniões sobre os serviços que ali podem ser encontrados.”, cfr. é referido na decisão recorrida. i) Dessa prova, nos levam a concluir existirem nos autos indícios suficientes da prova que sustenta a acusação que, devidamente conjugada e por apelo às regras da experiência comum, de o arguido ter praticado os factos que lhe foram imputados na acusação. j) Tanto assim é, efectivamente, que o próprio Ministério Público, num primeiro momento e nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 285.º do Código de Processo Penal, veio considerar existirem nos autos indícios suficientes da prática pelo arguido do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, p. e p. pelos artigos 182.º, 183.º, n.º 1., alínea a) e 187.º, todos do Código Penal, resultantes da prova documental e testemunhal junta aos autos. k) E, posteriormente, através do despacho de fls. ___, veio o Ministério Público acompanhar a acusação particular deduzida pela Assistente, com a qualificação do cometimento, pelo arguido, de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, p. e p. pelos artigos 182.º, 183.º, n.º 1., alínea a) e 187.º, todos do Código Penal. l) Porém, o Mº JIC não faz qualquer referência a toda a prova produzida no inquérito, não procede à apreciação da mesma, olvida-a completamente, independentemente da sua natureza e considera inexistirem indícios suficientes de o arguido ter praticado os factos e crime que lhe vêm imputados. m) Acresce que, para que surja uma decisão de pronúncia, a lei não exige a prova no sentido da certeza (convicção da existência do crime). Basta-se com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase de inquérito ou de instrução não constitui pressuposto da decisão de mérito final, trata-se de uma mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase do julgamento. n) Pelo que, o Mº JIC, ao não pronunciar o arguido pela prática dos factos constantes da acusação do MP, violou não só o disposto no artigo 127º, como também o disposto nos artigos 285.º, n.º 3 e 308º n.º s 1 e 2, com referência ao artigo 283º, n.º 2, todos do CPP. o) Pois que, se o Mº JIC tivesse valorado toda a prova produzida no inquérito, nomeadamente o depoimento do legal representante da Ofendida e das testemunhas arroladas, bem como os documentos juntos aos autos, a conclusão teria de ser a de pronúncia do arguido. p) Assim, e concluindo, deve a decisão em recurso ser revogada e substituída por outra que, atendendo ao exposto, pronuncie o arguido pelos factos descritos na acusação. Termos em que deve o presente recurso proceder por provado, devendo ser anulado o despacho recorrido e, consequentemente, substituído por outro que pronuncie o arguido, seguindo o processo os seus demais termos até finale (…)
Apenas o Ministério Público na primeira instância respondeu ao recurso, ainda que sem formular conclusões, mas concluindo pela improcedência do recurso.
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O recurso foi admitido, com forma, modo e efeito devidos.
Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, limitando-se a remeter argumentos para os aduzidos na resposta da primeira instância, razão pela qual se prescindiu do cumprimento do artº 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a Conferência.
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Objecto do recurso
Resulta do disposto conjugadamente nos arts. 402º, 403º e 412º nº 1 do Cód. Proc. Penal que o poder de cognição do Tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
A assistente, nas conclusões do recurso, fixa o objecto de apreciação requerida nas seguintes questões:
- nulidade da decisão instrutória por falta de fundamentação;
- falta de exame crítico das provas;
- existência, ao contrário do decidido, de indícios da prática do crime imputado.
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Fundamentação
A decisão instrutória de não pronúncia ficou transcrita quase integralmente acima.
Vejamos, então, na perspectiva desta Relação se merece acolhimento a pretensão da recorrente.
A instrução é uma fase facultativa do procedimento criminal que visa a comprovação judicial da decisão do Ministério Público em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – artº 286º, ns. 1 e 2 do Cód. Proc. Penal.
A estrutura acusatória do nosso processo penal impõe que o conhecimento do Tribunal esteja limitado pelo objecto processual que coincidirá então com o chamado thema decidendum.
Quanto a essa questão, pronunciou-se o juiz de instrução pela negativa.
Recordamos que foi deduzida no processo acusação particular que o Ministério Público acompanhou.
Quanto à falta de fundamentação e exame crítico da prova:
Quanto ao primeiro ponto suscitado pela assistente, verificamos, de facto, que a decisão instrutória não elenca os factos que considerou indiciados e nem os que considerou não indiciados nos autos.
E se bem que se aceite que a decisão instrutória, não constituindo uma sentença, não esteja sujeita às mesmas exigências de forma a que estas estão sujeitas, o facto de constituir o acto judicial de submissão do feito a julgamento, ou não, acarreta consigo uma responsabilidade que está longe de inspirar qualquer simplificação de forma ou fundamentação.
De facto, ora porque a fase de instrução se converteu em facultativa, ora porque as sucessivas alterações legislativas foram mitigando o poder de apreciação do juiz de instrução, espartilhando-o a um objecto que não é fixado por si ou de acordo com o seu critério técnico, generalizou-se a ideia de que as exigências processuais se aligeiram nessa fase. Muitas vezes porque os visados, normalmente arguidos, pretendem dela retirar apenas uma decisão que anule a de acusar, sendo que, quando ela não vem, logo a irrelevância é reafirmada como mais uma interferência inqualificável na liberdade de exercerem a cidadania sempre exemplar de que se arrogam.
No entanto, não é este o caso.
Neste caso, a acusação particular foi deduzida pela assistente e o Ministério Público secundou essa pretensão.
A pergunta a fazer nesta fase é, como tal, se o juiz de instrução estava obrigado – entendendo-se esta obrigação como acto de validade processual, vindo invocada a nulidade da decisão – a elencar os factos que, saídos daquela peça processual que submetia a julgamento o arguido, considerasse indiciados, e não.
Ora, apesar daquela diferença entre a decisão instrutória e a sentença, na medida que a decisão instrutória põe fim ao processo ou decide levar o arguido a julgamento, não há como não entender que o dever de fundamentação dessa decisão se impõe.
Pode, no entanto, e como o entendemos, colocar-se nos exactos termos em que se coloca para a sentença. Mas existe esse dever.
E não é por acaso, ou porque precise de normativo que expressamente o preveja.
É porque se trata de acto judicial decisório.
Além de ser acto judicial decisório, sujeito, como tal, às exigências de fundamentação desses actos (artº 97º, nº 1, al. b) e nº 5 do Cód. Proc. Penal), é um acto decisório através do qual o juiz tece um juízo sobre a existência [indiciária], ou não, de crime e de agente responsável, fazendo, portanto, um juízo [indiciário] de culpabilidade.
A particularidade de se tratar de acto de juiz, decisório, confere-lhe ainda a importância de ser susceptível de recurso, ainda que dentro dos respectivos limites. E esta susceptibilidade tem outra importância fundamental, conquanto incute na decisão a qualidade de poder ser sindicável e, eventualmente, a importância relativa a caso julgado.
Como se percebe do que antecede, esta matéria está muito longe de nos relegar para um plano de menor importância relativamente ao referido acto.
E precisamente porque assim é, esta decisão tem exigências materiais e de forma de que depende, por um lado, e no caso dos vícios que não importem nulidade, um devir processual sem sobressaltos que deixou para trás um caminho escorreito e, por outro lado, sempre que as faltas importem a nulidade, a possibilidade de exercer o direito ao recurso que possa ser exercido materialmente, assegurando-se ao Tribunal superior a real possibilidade de sindicância da decisão.
O que é que isto implica? Que se atente a que a decisão instrutória não é um mero despacho, na medida em que conforma a primeira fase realmente judicial do processo.
Não estamos no âmbito de influência do artº 410º do Cód. Proc. Penal que está sobretudo pensado para as sentenças.
No entanto, como se disse acima a respeito do objecto processual, enquanto categoria abstracta do ponto de vista jurídico, os vícios aí inumerados são susceptíveis de ser encontrados numa decisão instrutória, devendo ser-lhes conferido o tratamento compatível com essa mesma natureza.
Do mesmo modo, não estamos no âmbito de aplicação do artº 379º do Cód. Proc. Penal, ou mesmo do artº 374º desse diploma, exclusivos para as sentenças, mas a categoria de vícios aí inumerada pode encontrar paralelo na decisão instrutória, bastando para isso que lhe seja reconhecido o regime extensivo decorrente daquela obrigação de fundamentação de todo e qualquer acto decisório produzido por juiz.
Ora, o que se coloca verdadeiramente em decisão no despacho que encerra a instrução é a suficiência ou insuficiência de indícios para levar o processo a julgamento.
A ser assim, toda a averiguação tem de ser feita em torno dessa premissa.
Aliás, se interpretarmos correctamente o disposto no artº 309º do citado diploma, daí retiramos que, se quando seja de pronuncia a decisão está vinculada aos factos alegados no requerimento instrutório, sob pena de nulidade, logo conseguimos perceber que a intenção do legislador, seja de pronúncia ou não a decisão, é que sejam expostos naquela os pressupostos que levaram o juiz a decidir.
Significando isto duas coisas.
Primeira, que o juiz de instrução deve elencar na decisão os factos que, vindos do requerimento instrutório, considera indiciados e não indiciados.
Segunda, que tal elenco deve ser acompanhado de uma fundamentação que explique as razões por que o decisor os considerou de uma ou outra forma.
Ou seja, de harmonia com o que resulta do referido artº 97º, nº 5 do Cód. Proc. Penal que exige que a fundamentação dos actos decisórios seja de facto e de direito.
Aliás, no rigor dos princípios, nem se perceberia que assim não fosse, atento, precisamente, a que estamos perante um acto decisório de um juiz, susceptível de levar o processo a julgamento ou de o terminar.
Por virtude do estatuído pelo artº 97º do Cód. Proc. Penal, maxime nº 5 do preceito, a decisão instrutória deve ser fundamentada, sendo essa fundamentação de facto e de direito. Em 12 de Julho de 2000 deu entrada na AR uma Proposta de Lei do Governo que teve a sorte de Proposta de Lei 41/VIII, publicada no DAR II série A com o nº 59/VIII/1 2000.07.15, a qual teve discussão na generalidade em 12/10/2000 cfr. DAR I série nº 10/VIII/2 de 13/10/2000 e que visava a autorização ao Governo para alterar o CPP. E a exposição de motivos apresentada pelo Governo para tal proposta legislativa, que teria de ser autorizada pela AR, era “…ajustar-se o Código de Processo Penal….a uma das prioridades da politica de Justiça, a saber, o combate à morosidade processual.” No que aqui interessa era apontada como razão do combate à morosidade processual “8-No que diz respeito à instrução e ao julgamento dos processos sumários e abreviados, o despacho de pronúncia ou não pronúncia, e a sentença, serão proferidos no final do debate instrutório ou da audiência, respectivamente, sendo de imediatos ditados para a acta, pois não existem motivos que justifiquem mais uma audiência só para efeitos de leitura do referido despacho ou da sentença. O juiz de instrução criminal pode remeter a fundamentação do despacho de pronúncia para os factos e argumentos enunciados no despacho de acusação do Ministério Público ou na acusação apresentada pelo assistente, ao abrigo dos artigos 284º ou 285º.” Veja-se, desde já, que também a intenção legislativa na autorização pedida apenas pretende dispensar a fundamentação da decisão instrutória que pronuncia. Não fala nessa dispensa para a não pronúncia. (…) Neste sentido procedeu-se à discussão plenária na AR na generalidade da Proposta de Lei, com o discurso do então Ministro da Justiça [nota no original]. O Grupo Parlamentar do PSD [nota no original] levantou várias questões “Há aqui soluções que merecem comentários, como, por exemplo, a de a decisão instrutória poder louvar-se na acusação deduzida pelo assistente ou pelo Ministério Público que mereceu do Professor Germano Marques da Silva este comentário: «Este artigo contém o apelo ao autoritarismo traduzido na validade da decisão por força da autoridade judicial e não da racionalidade dos seus fundamentos. As decisões judiciais devem ser sempre fundamentadas não só para própria disciplina interior de quem as profere mas também para convencimento dos destinatários. A fundamentação é uma exigência do processo burocrático.»”. E que a solução apresentada na Proposta de Lei estava desequilibrada, que não previa também que o juiz, se entendesse não receber a acusação e fazer um despacho de não pronúncia, não se pudesse louvar no requerimento de abertura de instrução. “Porque não introduzir algo de equilíbrio e de igualdade nesta solução, que também é de economia processual e de celeridade? Por quê só poder louvar-se na acusação que tenha sido deduzida pelo assistente e pelo Ministério Público?” O PSD [nota no original] “…preferiria que tivesse sido uma proposta de lei material...o que não sucedeu, sendo por isso até de alguma confusão de alcance que para os fins propostos de combate à morosidade processual tendo o Governo optado pela via legislativa de autorização à AR, concerteza processo legislativo mais demorado.” Pese as diferenças apresentas, a Proposta baixou à 1ª Comissão da AR, procedendo-se à votação, tendo sido aprovado por unanimidade, com os votos favoráveis de todos os partidos políticos. A Proposta de Lei de Autorização foi aprovada e foi publicado o Decreto da Assembleia nº 38/VIII que autorizou o Governo a alterar o CPP, tendo sido publicado em DR59. Legitimado, o Governo legislou e fez publicar o DL nº 320-C/2000, de 15/11, passando o artº 307º, nº1 do CPP a dizer: “ 1- Encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, que é logo ditado para a acta, considerando-se notificado aos presentes, podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura da instrução.”1
Temos aqui duas realidades distintas em apreciação.
Por um lado, o teor literal da norma que prevê a possibilidade, quer na decisão de pronúncia, quer de não pronuncia, de remissão para a acusação ou RAI (artº 307º) e, por outro lado, o princípio do dever de fundamentação (artº 308º), numa aparente esquizofrenia legislativa que serve apenas para confundir o que deve apresentar-se linear a simples.
Simplificando.
A decisão instrutória, enquanto acto judiciário em que se decide alguma coisa, está sujeita ao dever geral de fundamentação de facto e de direito, previsto no referido artº 97º do Cód. Proc. Penal.
Depois disto, temos duas situações a distinguir, uma vez que a própria norma do artº 308º, nº 2 do referido diploma faz essa distinção: se o despacho é de pronúncia, as regras a seguir são as do artº 283º, ns. 2, 3 e 4 do Cód. Proc. Penal [artº 308º, nº 2]; se a decisão é de não pronúncia, as exigências de fundamentação não têm de respeitar tal formalismo [nº 1, pte. final e nº 2, pte. final].
Pensamos que esta é a intenção do legislador, reflectida ainda que em viés no referido normativo, mas com suporte noutros mecanismos legalmente previstos, sem que com isso se oponha ao teor do artº 307º que expressamente prevê a possibilidade de remissão da fundamentação, quanto às razões de facto e de direito, para a acusação ou RAI.
Assim, é de aceitar que aquelas exigências de fundamentação (artº 97º citado) possam ser exercidas de forma diferente num e noutro casos.
Quando seja de submeter alguém a julgamento, ou seja, quando a decisão seja de pronúncia, com os rigores que se impõe à acusação. E nem faria sentido que assim não fosse.
Quando a decisão seja de não pronúncia, a referida fundamentação de facto e de direito pode assumir o figurino diverso, desde que dela se retire exactamente o que se considerou indiciado e porque razão, e o que não se considerou indiciado e porque razão.
Vejamos, então.
A decisão instrutória recorrida, no início do capítulo que designou como FUNDAMENTAÇÃO, começa por dizer o seguinte2: (…) Os factos fortemente indiciados, porque admitidos expressamente, quer pelo assistente quer pelo arguido, consistem em crítica postada pelo arguido no motor de busca Google na sequência de contactos que havia tido com o serviço de advocacia corporizado na sociedade aqui assistente: “Lisboa ... de ... de 2024. O que ganhei ao procurar este escritório de advocacia? – R: Nada O que perdi? – R: tempo e dinheiro Não me ajudaram em nada, além de demonstrarem / zero empatia), ainda gastei 100+23 IVA = 123 euro por 01 hora de consulta), Outrossim, só emitiram a fatura do Pagamento, porque reclamei depois de uma semana e ameacei denunciá-los a autoridade tributária. Jamais contrataria novamente este escritório e tão pouco o recomendaria a alguém. Atenciosamente, BB” (…)
Resulta inequívoco do exposto que o Tribunal a quo considerou que a única factualidade fortemente indiciada era a supra citada, ou seja, que foi postado num motor de busca a mensagem com aquele teor pelo indiciado arguido.
Não deixa dúvidas a afirmação, pelo que também não deixa dúvidas a circunstância nada mais ter resultado fortemente indiciado para o Exmo. juiz de instrução.
Depois disto, discorre sobre a prova, fazendo a sua apreciação crítica, tal como dali mesmo resulta evidente.
Enquadra a questão do ponto de vista formal, e prossegue: (…) Analisados os fatos verifica-se que o arguido manifestou o seu descontentamento pela forma como decorreu uma determinada consulta ocorrida com o assistente e assim o declarou no local público destinado a críticas e opiniões sobre os serviços que ali podem ser encontrados. Em síntese, ao arguido imputa-se, na acusação particular, a autoria material de um crime previsto no artº 187º, todos do Código Penal aprovado pelo DL nº 48/95, de 15MAR, com a agravação decorrente do artº 183º, do mesmo diploma legal. (…)
De facto, era essa a circunstância.
A assistente imputava ao indiciado arguido, na sequência de uma consulta, a prática do crime que ali se identifica, deixando-se aqui também claro que a imputação de tal ilícito implicaria, como é obvio e sempre implicará, que os elementos típicos do mesmo se mostrem, pelo menos, indiciados.
E depois disso, discorre a decisão sobre isso mesmo, explicando as razões de direito que entende subjazerem à incriminação e explicando o tipo legal, desde logo os valores que o tipo visa proteger, pois que disso depende, em substância, a avaliação dos factos, com especial acuidade os relativos ao tipo subjectivo de crime.
Essa fundamentação encontra-se feita e é muito clara na decisão.
E mesmo quando começa por considerar que as pessoas colectivas estão sujeitas a crítica, até aí se deixa a indicação de que há uma distinção de base a fazer entre o que seja crítica e o que seja a expressão que visa atingir a honra do destinatário.
E também quando tece considerações sobre esse que diz ser o direito de crítica, o Tribunal a quo está efectivamente, como aliás indicou, a fundamentar a sua posição relativamente ao que entende estar aqui em causa.
Depois disso, conclui a fundamentação considerando que aquela crítica não chega para preencher o tipo legal por que a assistente pretende a pronúncia.
De facto, nada falta na fundamentação.
Coisa diversa é pensarmos, porque foi esse o figurino que interiorizámos desde sempre, que os factos devem expor-se em articulado.
Mas essa é uma questão de estilo.
Pois que nem o artº 283º citada impõe tal figurino, limitando-se a dizer que a acusação deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos (…) (nº 3, al. b) do citado preceito).
Ora, numa decisão de não pronúncia, o que tem que ficar claro é que factos se mostram indiciados, ou não, e porquê.
E nesta decisão essa factualidade fica muito evidente.
Os factos indiciados são unicamente os referidos logo no início e dessa exacta forma identificados.
Os restantes, aqueles que seriam necessários para a decisão de pronúncia que era a pretendida pelo RAI, ficam explicados, e não apenas por exclusão, quando se prefiguram os essenciais enumerados como exercício de direito de crítica.
Uma coisa é apreciarmos o estilo, outra é encontrar-lhe o vício jurídico.
Não temos de apreciar o estilo. Mas a haver vício jurídico, temos de o declarar e daí retirar as consequências legais.
Porque o estilo não constrange direitos, mas o vício jurídico sim.
Conquanto assim seja, as diferenças entre ambos são diversas.
Neste caso, como decorre do que antecede, a falta de articulado dos factos indiciados e não indiciados não constitui vício da decisão porque dela decorre, claramente, quais os que considerou indiciados e não indiciados.
E o mesmo se diga, como já se adiantou, quanto à existência de apreciação ou juízo crítico sobre a prova.
A partir do momento em que está fixado o objecto do processo, os factos essenciais e que integram o tipo são a prioridade de analise para o decisor.
Não os factos laterais, as considerações. Mas os factos que podem ser relevantes para preencherem o tipo legal que esteja em causa [ou alguma causa de justificação ou exculpação, que aqui não estão em causa].
É através desses factos essenciais que deve ser filtrada a prova e, reduzida a mesma aos meios que podem concorrer para aquela demonstração [o sistema é o da prova legal], então pegar neles e ver se com esses elementos de prova se pode considerar, em julgamento, demonstrada a realidade dos factos que integram o tipo de crime que se pretende imputar ao agente.
Porque é apenas disso que se trata, como se fixa no objecto da instrução, de submeter, ou não, alguém a julgamento. E só se submete alguém a julgamento quando seja previsível que, de acordo com a prova existente, haverá culpabilidade apurada quanto a si no fim da produção de prova.
Neste sistema que assim está consagrado no nosso processo penal, a prova relevante é a que possa ser demonstrativa dos factos que constituam a prática de ilícito.
Ora, o Tribunal a quo esclareceu no primeiro parágrafo da fundamentação, dizendo também porque razão o entendia assim, que factos relevam e podem, com outros, vir a concorrer para essa integração típica.
Quanto aos restantes, explicou porque não se indiciavam, pois que os considerou integrarem o exercício do direito legítimo de crítica, do direito legítimo à facturação, do direito legítimo ao desagrado.
A prova a analisar não se reveste aqui de grande complexidade: trata-se de saber se o teor da publicação é susceptível de atingir a honra e consideração de uma entidade. Pelo que, fundamentalmente, estava em causa a analise do que foi publicado no contexto do quadro de valores actuais a que deve atender-se quanto ao tipo legal em causa.
E foi isso que a decisão fez, como dali decorre claramente: (…) Analisados os fatos verifica-se que o arguido manifestou o seu descontentamento pela forma como decorreu uma determinada consulta ocorrida com o assistente e assim o declarou no local público destinado a críticas e opiniões sobre os serviços que ali podem ser encontrados. (…) Contudo, o “bom nome” é um conceito transponível para o tráfego comercial ou meramente público em que giram as sociedades sejam elas de que natureza jurídica forem. Assim, importa ponderar que, pratica um crime de difamação/ofensa a pessoa colectiva quem dirigindo-se a terceiro, lhe imputar, mesmo sob a forma de suspeita, factos ofensivos da sua honra ou consideração, isto é, susceptíveis de transmitir a terceiros uma ideia pejorativa, que a prejudicará na imagem que procura projectar e que poderá influenciar negativamente todos aqueles que poderiam pretender estabelecer futuros contactos ou negócios com tal pessoa colectiva. (…) No mundo actual, a publicitação de serviços à escala mundial que a internet permite, também expõe esses mesmos serviços a críticas que poderão ser lidas e conhecidas a nível mundial. Nada há a fazer quanto a isso e, aliás, todos os cidadãos quererão conhecer opiniões de terceiros antes de procurarem um determinado serviço. Todas as críticas serão justas? Isto é, corresponderão a uma verdade absoluta na qual os representantes das pessoas colectivas ou prestadores de serviços se irão rever e identificar? Afigura-se, claramente, que não. As críticas e avaliações, neste contexto, serão sempre subjectivas e corresponderão a uma experiência particular de cada um. Poderão ser mais ou menos agradáveis para o avaliado. Para tentar oferecer alguma objectividade na informação disponibilizada aos interessados em conhecer a qualidade do serviço disponibilizado e criticado, as plataformas digitais que recolhem críticas a serviços, fornecem um sistema de classificação por estrelas, sendo 1 estrela a pior classificação e 5 estrelas a melhor. Ora, no caso concreto, o arguido avaliou, na sua subjectividade, o contacto que teve com o serviço prestado pela sociedade assistente. Manifestou desagrado, é certo. Mais afirmou que só emitiram a fatura do Pagamento, porque reclamei depois de uma semana e ameacei denunciá-los a autoridade tributária. Porém, não se vislumbra que esta afirmação possa integrar a prática de crime. (…)
Deixou claras também as razões por que assim entendeu.
Como tal, é de considerar que não existe qualquer vício de falta de fundamentação na decisão recorrida, assim como não falta à mesma o exame crítico das provas que analisou no contexto do que, como deixa também claro, considerou ser relevante no respectivo contexto, razão pela qual é de julgar improcedente este fundamento de recurso.
Quanto à existência de indícios da prática do crime imputado:
A assistente pugna no seu recurso, pela existência de indícios da prática do crime que imputou ao então indiciado arguido - crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, p. e p. pelos arts 182º, 183º, nº 1, al. a) e 187º, todos do Cód. Penal.
Importará, como tal, analisar esta questão.
O artº 187º do Cód. Penal prevê que:
Artigo 187º - Ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva
1 - Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias. 2 - É correspondentemente aplicável o disposto: a) No artigo 183.º; e b) Nos n.os 1 e 2 do artigo 186.º
Com a entrada em vigor em 15.09.2007, a sua versão original permitia concluir que as condutas ofensivas da credibilidade, prestígio ou confiança das pessoas colectivas cabiam na previsão do crime de difamação e injúria.
Havia sido o STJ, na sua decisão de 24.02.1960 [Ac. nº 9/22], que tinha afirmado, por Assento, que as pessoas colectivas podiam ser sujeitos passivos nos crimes de difamação e de injúria.
No domínio da versão de 1982 do Cód. Penal discutia-se se as pessoas colectivas podiam ou não ser ofendidas em crimes contra a honra.
Isto talvez porque, do ponto de vista histórico, também a honra foi tardiamente entendida, mesmo quanto às pessoas singulares, na sua estrita medida, ou seja, despida do conteúdo ético axiológico que lhe inere, pois que o direito penal já constitui, em si mesmo um juízo axiológico que não deve ser confundido, a bem de que se mantenha a integridade valorativa da norma. E isto porque, desde logo, o direito penal não é um direito da ética, mas do mínimo ético, aquele valorativo que permite aportar conteúdo valorativo à acção mas continuando a garantir a generalidade e abstracção da norma.
A honra, que originalmente até se prefigurava como um subproduto da ética, começou a ser pensada para o direito penal precisamente porque se visava a protecção do indivíduo relativamente ao juízo valorativo produzido por terceiros a seu respeito.
E muito embora hoje se não dê importância a essa desvalorização, o facto é que ela é fundamental para o direito. E com diferente recorte, como se compreende, no direito penal e no direito civil.
A honra, para o pensamento relevante histórico, sempre muito associado à filosofia, não era uma qualidade humana, mas o reflexo, em determinado contexto, de uma verdadeira qualidade humana que podia ser a ética ou outra de igual grandeza.
E precisamente porque foi sempre pensada com reflexa é que veio a ser objecto de tutela, desde logo pelo direito penal.
Por reporte ao outro, é-se honrado porque se não tem vergonha dos actos praticados, do percurso feito. Porque se correspondeu, no plano de determinada avaliação feita por terceiros, ao que era exigido socialmente. (…) sempre no texto de Aristóteles, atos nobres ou honrosos opõem-se a atos vergonhosos por meio de uma contraposição absoluta, de tal modo que um ato honroso pode definir-se, negativamente, como um ato que não é vergonhoso e um ato vergonhoso negativamente definir-se como um ato que não é honroso. É, pois, seguro que honra e vergonha são categorias aristotélicas e são-no inclusive no interior de uma correlação, visível sobretudo quando encontramos uma a ser definida em termos da outra, ou de ambas serem derivados predicados opostos para as ações humanas, honrosas aquelas, vergonhosas estas. (…)3
O que significa, e perdoe-se a incursão pela filosofia que aqui serve apenas para contextualizar a ideia ou substância, o que significa, dizia-se, que a honra, nesta dimensão ética, associada à pessoa enquanto tal, é sempre reflexa de alguma coisa que não é, por si mesma, transponível para entidades e criações abstractas ou jurídicas como as pessoas colectivas.
A honra, enquanto tal, é um conceito adstricto à personalidade física, ao indivíduo, atributos das pessoas singulares, por serem valores eminentemente pessoais e ligados à sua condição humana.
O que significa, ainda, que mercê dessa intangibilidade, quando em causa esteja uma pessoa colectiva, e aceitando-se que a tutela lhe seja garantida, este tipo legal, que por isso é específico, tem que reconfigurar os elementos da tipicidade a essa medida. E, de facto, é isso que faz o preceito citado, transpondo aquele que seria o conceito de honra para o âmbito dos entes colectivos.
A pergunta que se faz, então, é qual a extensão exacta dessa transposição?
E a resposta é dada pelo perscrutar daquilo que seja o património mais valioso imaterial do ente colectivo, ou seja, a confiança, credibilidade e prestígio, que são os atributos da pessoa colectiva com identidade semelhante.
Neste horizonte, como se percebe, no entanto, não são absolutas as equivalências. E nem podiam ser.
Por isso, o tipo legal em causa guarda as suas especificidades.
Bem se evidencia no Ac. TRC de 24.01.20244, onde se pode ler que: (…) A teleologia insíta neste artigo, como sustenta o Prof. Figueiredo Dias, Projecto da Comissão de Revisão, 1993, pág. 279 «é criminalizar acções (rumores) não atentatórios da honra, mas sim do crédito, do prestígio ou da confiança de uma determinada pessoa colectiva, valores que não se incluem, em rigor, no bem jurídico protegido pela difamação ou pela injúria». O tipo objectivo de ilícito comporta os seguintes elementos essenciais: a) afirmação ou propalação de factos inverídicos; b) que aqueles precisos factos se mostrem capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança da pessoa colectiva, corporação, organismo ou serviço; c) deve o agente da infracção não ter fundamento para em boa-fé, reputar verdadeiros os factos inverídicos. O bem jurídico protegido pela incriminação é o bom-nome do organismo, serviço ou pessoa colectiva, instituição ou corporação. O bem jurídico protegido não é, portanto, a honra, enquanto interesse essencialmente intrínseco e inerente à dignidade da pessoa, mas antes a credibilidade dos entes aí previstos. (cfr. neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04 de Maio de 2011, disponível in www.dgsi.pt). O tipo objectivo do ilícito previsto no artigo 187º do Código Penal consiste na difusão de factos inverídicos sobre organismo, serviço, ou pessoa colectiva que sejam susceptíveis de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança destas entidades, não tendo o agente fundamento para, em boa-fé, reputar tais factos como verdadeiros. No que concerne ao primeiro elemento do tipo objectivo (afirmação ou propalação de factos inverídicos) e contrariamente ao que sucede nos crimes de difamação e de injúria, o crime do artº 187º apenas contempla a afirmação ouprolação de factos inverídicos e já não a formulação de juízos ofensivos dacredibilidade, do prestígio ou da confiança das entidades. Com feito, se, relativamente a pessoa singular, em sede de difamação ou de injúria, tanto importa fazer uma imputação desonrosa de um facto como formular um juízo, de igual sorte desonroso, já no âmbito da ofensa a pessoa colectiva, apenas releva a imputação de factos. De salientar que a noção de facto “traduz-se naquilo que é ou acontece, na medida em que se considera como um dado real da experiência. Assume-se, por conseguinte, como um juízo de afirmação sobre a realidade exterior, como um juízo de existência. (…) Um facto é, pois, um elemento da realidade, traduzível na alteração dessa mesma realidade, cuja existência é incontestável (…)” (vide Faria Costa, in op. cit., págs. 680 e 681). Um facto é, portanto, um juízo de existência ou de realidade. No que concerne aos factos inverídicos, importa fazer a necessária destrinça entre factos falsos e factos inverídicos. Na verdade, como faz notar o mesmo Autor, a falsidade tem neste contexto um valor de uso, uma carga de desvalor, de negação, que o emprego de inverídico não acarreta. De resto, o universo dos candidatos abarcados pela noção de inverídico mostra-se mais extenso do que o que circunscreve a própria falsidade. Assim, para o preenchimento do tipo objectivo de ilícito, necessário se torna, desde logo, que os factos afirmados e ou propalados sejam inverídicos, ficando de fora “a afirmação ou propalação de factos verídicos, susceptíveis de ofenderem a credibilidade, o prestígio ou a confiança” (vide Conselheiro O. Mendes, in O Direito à Honra e A Sua Tutela Penal, pág. 115, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12 de Maio de 2010 e ainda Acordão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20-02-2019 supra aludido, in www.dgsi.pt). Saliente-se que determinado facto pode, por ter essa natureza, ser declarado falso ou verdadeiro mas diversamente o juízo, por sua vez, traduz não uma apreciação acerca da existência de uma ideia ou de uma coisa mas sim ao seu valor, ao grau de êxito dessa ideia, coisa ou facto, se valorados em função do fim prosseguido, neste sentido Faria Costa, ob. cit. ibidem. Em conformidade existe a imputação de um facto quando alguém diz a outrem que A bateu em B em determinado local e tempo, pelo que se narra apenas um acontecimento situado no espaço e no tempo. Porém, já será a formulação de um juízo quando alguém diz a outrem que A bateu em B por revelar ser pessoa incapaz de resolver as questões a não ser através da força formulando-se um juízo sobre o carácter e a (in)capacidade do A para resolver as questões de forma socialmente adequada. Por sua vez e concordando com Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário ao Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 509), quanto ao segundo elemento que compõe o tipo objectivo de ilícito impõe que os factos inverídicos sejam idóneos a ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança da pessoa colectiva, organismo ou serviço; importando salientar que o tipo de ilícito não exige a ofensa do bom-nome da entidade, sendo suficiente o perigo dessa ofensa ocorrer, em virtude de uma conduta do agente com a potencialidade adequada para causar esse dano. A credibilidade de uma instituição como refere Faria Costa, in op. cit. pág. 681, afere-se pelo comportamento cumpridor, diligente e pontual, mas sobretudo pela sua conduta séria revelada na actuação dos seus órgãos e membros; sendo o prestígio demonstrado pela imposição da pessoa colectiva no seu domínio específico da sua actuação, perante instituições congéneres e, por isso mesmo, perante a própria comunidade que serve e que a envolve; mostrando-se uma instituição digna de confiança quando pela sua génese e actuações posteriores se apresenta, paradigmaticamente, como entidade depositária daquele mínimo de solidez de uma moral social que faz com que a comunidade a veja como entidade em quem se pode confiar. Por fim, e como terceiro requisito em relação ao elemento objectivo é necessário que o agente ao afirmar ou propalar factos inverídicos o faça sem ter fundamento para, em boa-fé, os reputar verdadeiros. Mais uma vez e nesta matéria citando Faria Costa na op.cit, não énecessário, para que se verifique preenchido este elemento típico, que o agentetenha conhecimento do carácter não verídico dos factos, bastando que nãotenha fundamento para, em boa-fé, os reputar verdadeiros. Contudo, se existir o conhecimento da inveracidade da imputação, o crime será perpetrado na suaforma agravada prevista nos artigos 187º, nº 2 e 183, nº 1 alínea b), ambos do Código Penal. Impõe-se, portanto, que o agente actue sem fundamento para, em boa-fé, reputar verdadeiros os factos que afirma ou propala, isto é, que não tenha razões sérias para aceitar o facto ou factos imputados como verdadeiros; não cabendo, pois, ao agente fazer prova da existência da “boa-fé”, uma vez que a inexistência desta é elemento constitutivo do crime”. Por fim, e quanto ao elemento subjectivo do crime em causa, o crime é doloso, bastando, para imputação subjectiva, o mero dolo eventual, como resulta da conjugação do artigo 14º com o artigo 187º nº 1, ambos do Código Penal. (…)
Ora, neste concreto tipo de crime, como decorre do que se cita, está em causa a protecção da confiança e prestígio da pessoa colectiva quanto à afirmação ou prolacção de factos inverídicos susceptíveis de atingirem tal dimensão, sendo sempre exigível que o agente se encontre de má-fé. Ou seja, é sempre necessário que o agente não esteja convencido da verdade do que afirma, pois que só assim se pode entender, perante a manifestação de um acto ilegal cuja malícia foi interiorizada pelo seu autor, que seja ele censurado criminalmente.
Ora, voltando aos factos imputados.
A publicação foi de um comentário com o seguinte teor:
“Lisboa ... de ... de 2024.
O que ganhei ao procurar este escritório de advocacia? – R: Nada
O que perdi? – R: tempo e dinheiro
Não me ajudaram em nada, além de demonstrarem / zero empatia), ainda gastei 100+23 IVA
= 123 euro por 01 hora de consulta),
Outrossim, só emitiram a fatura do Pagamento, porque reclamei depois de uma
semana e ameacei denunciá-los a autoridade tributária.
Jamais contrataria novamente este escritório e tão pouco o recomendaria a alguém.
Atenciosamente,
BB”
Quanto ao primeiro elemento, ou seja, a propalação de factos inverídicos:
A assistente insurge-se contra o facto de o juiz a quo não ter analisado a abundante prova testemunhal.
No entanto, em face do que está concretamente em causa, não se vê onde pode a abundante prova testemunhal acrescentar alguma coisa ao que foi dito.
Não foram as testemunhas que foram atendidas, não foram as testemunhas que quiseram ver a sua situação analisada, não foram as testemunhas que pagaram, ou exigiram factura, ou etc.
E quanto à afirmação daquele conteúdo, uma vez aceite ele pelo então indiciado arguido, como foi e como refere no início da decisão o próprio juiz de instrução, quem mais podia, e para quê, vir dizer algo mais de relevante?
Ninguém.
O facto está assente porque o então indiciado arguido aceitou tê-lo praticado.
Sendo subjacente ao pedido, desde logo pela participação, que a visada aceita que foi esse o autor do facto, pois que é contra ele que procede.
E o teor também não foi discutido.
O que poderiam as testemunhas trazer quanto a isso de mais valia? Nada.
Portanto, quanto à divulgação deste concreto conteúdo, nenhuma falta fizeram as testemunhas para que se tivesse o mesmo como indiciado.
E quanto à falta de veracidade desse conteúdo, também não se percebe o que viram as testemunhas acrescentar, sem ligar este aspecto directamente com a circunstância relativa à má-fé que é exigida.
Ou seja, as testemunhas só trariam algum acrescento se esta combinação de factores dependesse dessa intervenção.
No entanto, não depende.
Em rigor, o único aspecto em que podiam as testemunhas aportar alguma significância é um aspecto que a assistente não contesta e que, como tal, nada havia a aportar por quem era sempre exterior aos factos.
Se atendermos à publicação, na sua maior parte trata-se de manifestar uma opinião. Aquilo que imputa é um tratamento não empático, e o retardamento na emissão de uma factura.
Tudo o mais que se diz é a manifestação de desagrado. E mesmo essas duas questões ainda reflectem apenas uma manifestação de desagrado: dizer-se que sentimos o tratamento como não empático, para além de ser opinativo, do foro emocional do indivíduo, não constitui e nem poderia constituir ofensa; e imputar o retardamento na emissão de factura também não.
Note-se, nunca se diz que houve recusa de serviços ou de emissão de factura, circunstâncias em que sim, a prova testemunhal poderia vir demonstrar o inverso.
Mas aqui o que temos é uma crítica. Uma crítica à forma de tratamento e uma crítica à fora de processamento, melhor, ao tempo de processamento.
E ainda que fosse uma inverdade esse tempo que se refere na emissão da factura, ainda assim essa afirmação não constituiria facto criminalmente tutelado, porque não se imputa nenhum conteúdo desonroso com essa afirmação.
Ao contrário do que afirma a assistente, no comentário em causa não se diz que a mesma foge às suas obrigações fiscais. Em parte nenhuma isso se diz.
E não pode daqui extrapolar-se para se afirmar que isso ali se insinua, porque a insinuação, para além de não conter em si os elementos objectivos de que se retire uma imputação, porque nada se imputa em rigor, é sempre um elemento de tal volatilidade que o direito penal nele não pode penetrar senão pela conjugação de múltiplos factores que têm de ficar inequivocamente afirmados. O que não é o caso.
Mas vejamos ainda.
Dos mails que se mostram juntos com a participação, pode retirar-se, resumidamente, que:
Em ........2023, dia do atendimento, foi emitida a factura junta aos autos que consta como inscrita no portar/AT na mesma data;
Em ........2023 (13h24m) o visado envia um mail à assistente a dizer que procurou on line o livro de reclamações e não encontrou;
Na mesma data (14h48m) a assistente respondeu dizendo que podia dirigir a reclamação por escrito que responderiam;
Em ........2023 (15h24m) o visado enviou à assistente o que chamou de reclamação;
Em ........2023 (13h49m) o visado envia um mail à assistente a saber se iriam atender à reclamação que fizera em ........2023;
Em ........2023 (15h23m) a assistente envia um mail ao visado, como resposta à chamada reclamação, e a dizer, entre o mais, que a factura foi emitida e que lha envia em anexo «para sua consideração»;
Em ........2023 (22h21m) o visado envia um mail à assistente a dizer que pagou e que não lhe emitiram a factura e que no site das finanças a mesma factura não está inscrita;
Em ........2023 (17h49m) é enviado um mail ao visado, em que a assistente lhe diz que, por lapso seu e ao contrário do que afirmara, não lhe enviara a factura mas apenas o recibo, dizendo ainda que o facto de no site das finanças não aparecer a comunicação da factura se deverá a demora desses serviços no processamento e nada mais;
Em ........2023 foi postado o comentário;
Ainda a ........2023 foi enviado ao então indiciado arguido um mail pela assistente em que lhe diz, entre o mais, que a factura emitida naquela data já lhe foi enviada;
Em ........2023 o visado envia um mail à assistente a dizer que a factura lhe devia ter sido entregue aquando do pagamento que fez ao balcão, que a factura só aparece lançada no site da AT em ........2023, que se limitou a exercer o seu direito de reclamação no site onde publicou o comentário e, entre o mais, que aguarda um pedido de desculpas por parte do escritório.
Se analisarmos objectivamente estes factos, resulta deles com manifesta clareza que os Intervenientes aceitam esta correspondência e os marcos temporais dali constantes. As testemunhas, como tal, nada acrescentariam a isto.
Mais resulta que entre o dia da consulta (........2023) e o dia do mail do visado a reclamar a factura que não lhe foi entregue quando pagou a consulta, de ........2023 (a dita reclamação), decorreram 10 dias, portanto, tendo como termo inicial o dia da consulta e pagamento e como termo final o da reclamação por não ter recebido a factura, decorreu mais do que uma semana, de facto.
Portanto, em ........2023, data em que a assistente efectiva, na resposta àquela, a informação ao visado de que a factura fora emitida na data da consulta – que, aliás, o mesmo através da consulta feita da página da AT naquela data não encontrara declarada, como expressa -, por maioria de razão, mais do que uma semana tinha também decorrido.
Mas em ........2023, portanto, 15 dias após a consulta, a assistente envia-lhe um mail a dizer que só nessa data de ........2023 lhe envia a factura que, por lapso, não enviou antes, data esta em que o visado depois lhe diz ter aparecido no portar da AT a factura como só nela tendo sido lançada.
Pelo que o comentário postado em ........2023 não contém nenhuma inverdade objectiva, diga-se, mentira.
Mais do que isso, resulta do último mail indicado que o visado, por causa do ocorrido, disse que aguardava ainda um pedido de desculpas por parte da assistente, numa concreta manifestação de que estava perfeitamente convencido da justeza da sua posição.
Temos, como tal, por assente, que os factos objectivos apontam para a veracidade dos factos também por si considerados que foram postados pelo aqui visado.
Neste aspecto, atento a que se trata de correspondência trocada entre os Intervenientes, também não se vê onde podiam as testemunhas, cujas declarações se diz não terem sido analisadas devidamente pela decisão recorrida, aportado coisa diversa daquela que o juiz de instrução concluiu.
Por outro lado, flui do que antecede que o visado, de facto, não levou factura consigo após o pagamento e não a recebeu na data da alegada emissão e nem nos oito dias posteriores, ou seja, na semana seguinte.
Do que reclamou efectivamente junto da assistente.
Temos como conclusão do que supra se diz que, primeiro, objectivamente os factos [que não correspondem ao sentir intimo do visado, porque desses aqui ainda se não cura] são verdadeiros; segundo, que a factura não lhe foi enviada na semana imediata, mas depois disso; terceiro, que o visado mantinha, no último mail apresentado, a convicção de que estava certo e apenas a reagir a um comportamento que reputou como desadequado.
Este último evidencia, em termos, indiciários ainda que seja como aqui se impõe, a inexistência de má-fé da sua parte à data da publicação do referido comentário.
Não há, coo tal, e como concluiu o juiz a quo, indícios de crime.
Não há, como podemos ver aqui sem reservas, qualquer desconsideração de prova que fosse adequada, pertinente ou competente para afastar esta mesma conclusão.
Coisa diversa desta, mas que já não tange com a natureza de um procedimento de natureza criminal, é saber se o comentário foi justo ou injusto.
Uma coisa temos como certa, porém, que é a de que o direito de crítica é um direto legítimo, a exercer com responsabilidade e, mais do que isso, um potente motor de costumes porque a crítica mantém aguçada a necessidade de melhorar a e vontade de o tentar a cada dia.
A decisão instrutória diz, e bem, como vemos, que o aqui visado se limitou a exercer o seu direito de crítica.
Fê-lo, usando as plataformas informáticas que hoje estão divulgadas e que difundem à velocidade global o conteúdo do que ali se publica.
Em nada disto se verifica a prática, ainda que indiciada, de crime.
Quanto a saber se o comentário é justo ou injusto, deixamos três notas.
Primeira, que o direito criminal só reputa, à luz das suas proibições, injustos os actos que efectivamente penaliza.
Segunda, que a injustiça de um comentário, quando ele seja apenas isso, no direito criminal, por virtude do seu papel de intervenção excepcional, não constitui em si mesma um crime, ainda que, noutra área do direito designadamente, possa constituir um facto ilícito.
Terceira, que a crítica, quando injusta, é sempre um mal, independentemente de ser mais ou menos exercício de liberdade de expressão e na perspectiva, como temos, de que a liberdade de expressão não justifica, nem pode justificar tudo.
A um escritório que exerce advocacia, nobre profissão sem a qual os direitos de cidadania não ficam suficientemente acautelados, dizer-se que teve um tratamento não empático, não sendo isso crime, e caso essa alegação se baseie apenas na não concordância quanto à linha de execução aconselhada, pode ser manifestamente injusto. Até porque, desculpando-se a evidência, aos advogados não se exige empatia, mas patrocínio tecnicamente qualificado.
E quanto a essa prestação, em rigor, nada é criticado no post em causa.
Não se pode consultar um escritório de advogados para que façam o que lhes vamos dizer que façam. O advogado, enquanto técnico qualificado, sabe o melhor caminho a seguir, aconselha-o, projecta-o na vida do cliente para ver o resultado em todas as dimensões.
O advogado não está obrigado - aceitando-se a relação contratual ainda que não escrita existente – a cumprir o que o cliente lhe impõe. Porque no âmbito da sua autonomia técnica, é ele o competente para determinar o caminho, apontando a melhor solução técnica ao cliente, quer esta seja do agrado ou não do mesmo.
O cliente, porém, pode ficar agradado, ou não, com a solução apresentada. Até com a forma como o serviço é prestado, desde logo porque o advogado não tem de cumprir a sua função de forma mais ou menos agradável, pois não é o agrado que constitui objecto da sua prestação.
E o desagrado, quando manifestado, desde logo pela forma como foi, pode ser justo ou injusto.
No entanto, a manifestação de desagrado é só isso mesmo: a crítica a um procedimento que não se apreciou.
E da mesma forma que o advogado pode dizer ao cliente que não segue este ou aquele caminho [por qualquer razão, desde técnica a outra que fique clarificada entre ambos], também ao cliente deve ser assegurado o direito de crítica.
Direito este que, como qualquer outro, deve ser exercido dentro dos limites da legalidade, ou seja, desde que não ultrapasse os limites da licitude, seja ela a relevante do ponto de vista civil ou criminal.
Do ponto de vista criminal, que é que que aqui nos traz, o conteúdo da crítica, quando deixa de ser apenas isso, só constitui, neste caso, crime quando preencha o tipo legal referido.
O que aqui, como é forçoso concluir, não acontece.
Trata-se de uma manifestação de desagrado de uma pessoa relativamente a um serviço que lhe foi prestado, portanto, nos limites do exercício daquele direito de crítica e de opinião.
Tal como refere o juiz a quo, analisados no específico contexto em que foram proferidos os comentários do visado, eles não integram qualquer dos elementos típicos necessários à verificação, ainda que indiciária, do tipo.
Emitir a opinião de que se pagou por um serviço de que se não gostou nada tem de criminoso.
Comentar que a factura foi emitida depois de uma semana e um pedido, correspondendo à verdade objectiva dos factos, também não é insinuação e nem injúria, mas uma descrição de factos.
Aconteceu, no entanto, que, sendo verdadeiros os factos, eles tinham, do ponto de vista a assistente, uma explicação benigna. No entanto, não deixou de passar uma semana, não deixou de ser feito um pedido pelo visado para esse efeito, o que, aliás, permitiu à assistente perceber o lapso de não ter enviado antes a factura, mas apenas o recibo dela.
Portanto, o que o visado postou é objectivamente rigoroso. Muito embora tivesse uma explicação que a assistente acabou por dar nos mails finais.
É importante voltar aqui ao que se disse antes.
Os advogados não têm de agradar aos clientes, muito embora por vezes isto não seja percebido por estes.
Não agradando, é ainda normal que o cliente fique insatisfeito.
E é admissível que reaja a essa insatisfação. Assim como é admissível que, considerando essa reação injusta, o profissional se ressinta dela.
Mas estas vicissitudes não constituem necessariamente crime.
Tal como neste caso não constituem.
Como tal, é tal como refere a decisão recorrida: (…) A decisão de deduzir acusação deve ocorrer, conforme disposto no artº 283º, nº 1, do CPP, se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente. Analisados os fatos verifica-se que o arguido manifestou o seu descontentamento pela forma como decorreu uma determinada consulta ocorrida com o assistente e assim o declarou no local público destinado a críticas e opiniões sobre os serviços que ali podem ser encontrados. (…) As expressões e comportamentos do arguido têm, pois, que ser analisados no real contexto em que ocorreram. Estarão as pessoas colectivas imunes a toda e qualquer crítica desagradável que se lhes queira dirigir, ainda que em meios públicos e de grande audiência? A resposta intuitiva terá que ser negativa. De facto, as pessoas colectivas estão sujeitas a críticas a avaliações subjectivas elaboradas por aqueles com quem estabeleceram contactos. No mundo actual, a publicitação de serviços à escala mundial que a internet permite, também expõe esses mesmos serviços a críticas que poderão ser lidas e conhecidas a nível mundial. Nada há a fazer quanto a isso e, aliás, todos os cidadãos quererão conhecer opiniões de terceiros antes de procurarem um determinado serviço. Todas as críticas serão justas? Isto é, corresponderão a uma verdade absoluta na qual os representantes das pessoas colectivas ou prestadores de serviços se irão rever e identificar? Afigura-se, claramente, que não. As críticas e avaliações, neste contexto, serão sempre subjectivas e corresponderão a uma experiência particular de cada um. Poderão ser mais ou menos agradáveis para o avaliado. (…) De facto, a circunstância de o arguido ter considerado a sua experiência com os serviços da assistente uma “má experiência” pode até não ser verdadeira ou objectivável. Uma eventual demora na entrega de uma factura pode não significar uma verdadeira demora ou dever-se, simplesmente, a contingências dos serviços. Alguns reagirão de modo mais intempestivo, enquanto que outros serão mais pacientes… Contudo, a fácil criminalização da manifestação pública de meras opiniões é direcção na qual não quereremos seguir enquanto comunidade regulada por um Estado de Direito Democrático, pois os valores contidos neste conceito implicam a tolerância de opiniões diversas daquelas que são sufragadas por alguns, ainda que minoritárias em relação a outras mais do nosso agrado… Na crítica ou opinião subjectiva postada pelo arguido nos serviços da Google não são detectáveis expressões que poderão ser consideradas objectivamente ofensivas da honra. (…)
Devendo, pois, concluir-se que a decisão, também quanto a este aspecto, ponderou com acerto a prova e concluiu de direito com igual discernimento e correcção.
Nada havendo, como tal, a apontar ao decidido que, por isso, deve manter-se.
Em conclusão, é de julgar não provido o recurso.
Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso interposto por AA, Sociedade de Advogados, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC’s, a que acrescem os demais encargos legais.
Notifique.
Lisboa, 27 de Junho de 2025
Texto processado e revisto.
Redacção sem adesão ao AO
Hermengarda do Valle-Frias
Alfredo Costa
Rosa Vasconcelos
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1. A fundamentação das decisões penais, em especial a decisão instrutória – Dissertação de Mestrado - Manuel do Nascimento Tomé Padrão – Orientador: Doutor Nuno Brandão, Coimbra, FDUC, 2015, p. 42 e 43 [Fundamentacao%20das%20Decisoes%20Penais%20em%20especial%20a%20decisao%20instrutoria.pd]
2. Destaques nossos.
3. António Pedro Mesquita - Honra e vergonha em Aristóteles, Ensaios Filosóficos, Vol. X – Dezembro/2014 – acessível: efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo10/MESQUITA_A_P_Honra_e_vergonha_em_Aristoteles.pdf.
4. Ac. Tribunal da Relação de Coimbra de 24.01.2024 [Relat. Desembargador Paulo Guerra], disponível em www.dgsi.pt\trc..