IN DUBIO PRO REO
Sumário

(da responsabilidade da Relatora)
I. A alegada violação do princípio in dubio pro reo, será julgada totalmente improcedente por carecer de fundamentos sustentáveis, quando da leitura da decisão recorrida, designadamente da fundamentação de facto e da indicação e exame crítico das provas em que se baseou a convicção do Tribunal a quo, quanto ao crime de injúria imputado ao arguido, não se vislumbrar que o Tribunal de julgamento tivesse dado como provado, qualquer um dos factos que como tal enumerou na sentença, tendo dúvidas sobre a sua verificação, nem se nos afigurar que tais dúvidas tivessem existido.
II. Não basta que exista um depoimento ou um documento que ao recorrente não mereça credibilidade, para simplesmente se poder concluir que a sua valoração pelo Tribunal a quo redundou na violação do princípio “in dubio pro reo”.
III. Uma coisa é a dúvida do recorrente, outra, a do julgador, e só a dúvida insanável deste, poderá conduzir à necessidade de valoração da prova, com recurso a tal princípio.

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
1 - No processo nº 122/22.7PDVFX, do Juízo Local Criminal de Vila Franca de Xira - Juiz 1, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido AA, casado, natural de ..., nascido em .../.../1964, filho de BB e de CC, reformado por invalidez, residente na ..., iimputando-lhe o ofendido e assistente DD, a prática, em autoria material de um crime de injúria p.p. pelo artigo 181º, nº 1 do Código Penal.
O Ministério Público acompanhou a acusação particular (fls 162).
O assistente deduziu pedido de indemnização civil, peticionando a condenação do demandado na quantia de 3.500,00€, a título de danos não patrimoniais, que foi admitido (fls 152 e segs e fls 196).
O arguido apresentou contestação oferecendo o merecimento dos autos e arrolou testemunhas.
Procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais, conforme se alcança da respectiva acta.
Ao abrigo do disposto no artigo 358º, nº 1 do Código de Processo Penal foi comunicada à defesa, a possibilidade de se proceder a uma alteração não substancial dos factos constantes da acusação, nada tendo sido requerido.
2- Realizado o julgamento, por sentença proferida em ...-...-2025, foi o arguido condenado, nos seguintes (transcritos) termos:
VI- DECISÃO
Nestes termos, tendo em atenção as considerações expendidas e o quadro legal aplicável, decido:
a. CONDENAR AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria, p. e p. pelo artº 181º, nº 1 do Código Penal na pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), num total de €200,00 (duzentos euros);
b. CONDENAR AA nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC, e nos demais encargos previstos na lei (artigos 513º, 514º Código de Processo Penal, 8º, nº 9, 16º e Tabela III Anexa ao Regulamento das Custas Processuais);
c. JULGAR PARCIALMENTE PROCEDENTE, por provado, o pedido de indemnização civil formulado pelo assistente/demandante DD e, em consequência, CONDENAR o demandado AA, no pagamento da quantia de 300,00€ (trezentos euros) acrescida de juros de mora, à taxa supletiva legal desde a data do trânsito em julgado da sentença e até integral pagamento, ABSOLVENDO-O DO DEMAIS PETICIONADO;
d. CONDENAR demandante e demandado nas custas do pedido cível, na proporção do decaimento.
Após trânsito remeta boletins à D. S. I. C;
O arguido manter-se-á sujeito a Termo de Identidade e Residência até extinção da pena (crf. Artigo 214º, nº 1, alínea e) do Código de Processo Penal) (…).
*
3 - Inconformado com tal decisão, dela recorreu o arguido, sendo que a respectiva a motivação apresentada, termina com a formulação das seguintes (transcritas) conclusões:
1. O arguido foi condenado pela prática de um crime de injúria, na pessoa de DD, em pena de multa, aquilatada 200€, e a uma indemnização civil, aquilatada em 300€.
2. Na prática, somente foi dado como provada parte da versão do assistente.
3. Tudo quanto as testemunhas arroladas pela defesa disseram não consta da sentença, nem no capitulo de factos provados, nem no de factos não provados.
4. Estes factos trazidos a lume pelas testemunhas da defesa somente surgem a fls. 4 da sentença, ao referir-se que o episódio relatado (o da fotografia), podendo ter acontecido, pode ter sucedido num dia diferente do dos autos.
5. Vejamos: as testemunhas arroladas pelo assistente declararam que a uma quarta-feira o arguido dirigiu-se, pela janela, ao assistente, e o apodou de «filho da puta», «cabrão» e «paneleiro».
6. Todavia, as testemunhas arroladas pelo arguido relataram um cenário totalmente diferente: saídos do café, o arguido, a sua filha, D. Cátia, e a D. Olinda, verificaram que estava uma fotografia do arguido, em tronco a fazer um churrasco, no carro do assistente, do lado de dentro.
7. E ademais, o próprio assistente refere que o arguido «faz churrascos na rua, no local destinado a cargas e descargas [...]».
8. Note-se que estes dois elementos referentes ao episódio da fotografia são coincidentes com factos a que aludiram as testemunhas arroladas pelo arguido.
9. Perante tal, não se pode dizer que não seja semeada a dúvida no espírito do julgador.
10. Se, por um lado, as testemunhas de acusação relatam uns factos, e as de defesa aludem a factos completamente diversos, assumir-se-á, perante as regras de experiência da vida, quase impossível que o julgador não fique na dúvida.
11. Sem prejuízo de o episódio da fotografia ter data diversa do episódio objeto destes autos, certo é que as testemunhas de defesa disseram que aquele episódio (da fotografia) era o único de que tinham conhecimento.
12. O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.
13. Se, por um lado, existe uma versão, e, por outro lado, outra divergente, se as testemunhas da defesa alegaram ter unicamente havido, que saibam, uma situação entre as duas partes, então tem de subsistir a dúvida.
14. Decerto que o arguido teria contado à filha e à mulher que tivera mais que um confronto com o assistente.
15. Perante esta factologia, não é razoável que não tenha sido o Tribunal a quo tomado pela dúvida, pois que é uma dúvida legítima e lógica.
16. Os factos, perante as regras de experiência e da razão, assumem-se contraditórios entre si e espelham um confronto de teses de ambos os lados.
17. Nesse sentido, o julgador (Tribunal a quo), perante a dúvida, deveria ter absolvido o arguido.
Nestes termos, nos melhores de Direito, e com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser dado provimento ao presente recurso e a douta sentença recorrida ser revogada e substituída, e, em consequência, ser o arguido absolvido do crime a que foi condenado, por prevalência do princípio in dubio pro reo.
Assim farão V. Exas. a sã, serena e objectiva Justiça! E. D.
4- O recurso do arguido foi admitido na 1ª instância, por despacho de ...-...-2025.
5- O Ministério Público na 1ª instância, apresentou resposta, pugnando pela improcedência do recurso, tendo terminado a sua resposta com a formulação das seguintes (transcritas) conclusões:
1. O recorrente pretende impugnar matéria de facto, não fazendo porém qualquer referência aos pontos concretos de discordância com a matéria de facto dada como provada, as provas concretas que impõem decisão diversa, ou as provas que devem ser renovadas, incumprindo assim o preceituado no artigo 412º n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal.
2. Limita-se a referir que das declarações prestadas pelas testemunhas de defesa, nada consta da sentença “nem no capítulo dos factos dados como provados, nem no de factos não provados.”
3. Nem tal teria de suceder, por se tratar de factos que não constavam da acusação nem da contestação, nem foram trazidos aos autos pelo arguido que, ao abrigo de direito que legalmente lhe assiste, se escusou a prestar declarações.
4. Logo, não fazendo parte do objecto do processo, com que fundamento deveriam os mesmos ser erigidos à matéria de facto objecto de apreciação?
5. Como bem refere o arguido/recorrente “as testemunhas de defesa relatam uns factos [referentes ao episódio em causa nos autos], e as de defesa aludem a factos completamente diversos”, ocorridos em data distinta, pelo que, não estando em causa nos autos, não se impunha em sede de audiência a sua apreciação!
6. Por outro lado, pretende o recorrente pôr em causa as declarações prestadas pelas testemunhas indicadas pelo assistente, com o fundamento de que as testemunhas de defesa (EE e FF, filha e esposa do arguido) apenas tinham conhecimento do episódio que relataram, e de nenhum outro. As demais testemunhas de defesa nunca presenciaram qualquer discussão entre o arguido e o assistente.
7. Sendo o episódio que relataram o único de que tinham conhecimento as testemunhas de defesa, a única conclusão que se impunha retirar, como bem o fez a douta sentença a quo, seria que as mesmas não haviam testemunhado o episódio em causa nos autos, e nunca que este não teria ocorrido! “(...) a circunstância de estas testemunhas não terem presenciado os factos em causa nestes autos não significa, naturalmente, que os mesmos não tenham ocorrido.”
8. Refira-se ser o próprio arguido quem, em sede de declarações finais, após alegações, quem se refere a várias quezílias que o opuseram ao assistente, donde resulta que a situação dos autos não foi um caso isolado.
9. Do supra exposto se conclui que, ao contrário do que pretende o recorrente, não existem sequer duas versões contraditórias sobre os mesmos factos.
7. Para fazer apelo ao princípio in dubio pro reo, necessário se torna a existência de uma dúvida razoável face à prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, sobre os factos que ali se encontrem em apreciação. O que aqui não foi manifestamente o caso.
8. Diversamente do que entende o recorrente, temos por líquido que da conjugação das próprias declarações finais do arguido com as declarações do assistente, aliadas à demais prova produzida em audiência e constante dos autos, referida na fundamentação da douta sentença recorrida, resulta à evidência que foi acertada a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido.
9. Inexiste também qualquer violação do princípio in dubio pro reo, uma vez que, ao contrário do que pretende o recorrente, nem sequer se vislumbra a existência de duas versões contraditórias sobre os mesmos factos. O que se verifica é a descrição de dois episódios que ocorreram em momentos distintos, sendo que apenas um deles é objecto dos autos.
13. Acresce que nada permite afirmar que o tribunal recorrido tenha dado como provados os factos que como tal especificou tendo ou devendo ter dúvidas sobre algum ou alguns deles, pelo que naturalmente não pode invocar-se no caso em apreço a violação do princípio in dubio pro reo.
14. Concluindo, dir-se-á, pois, que se nos afigura que o recurso do arguido não deverá merecer provimento, devendo manter-se integralmente a douta sentença recorrida.
V. Ex.as, porém,
e como sempre, farão
JUSTIÇA!
6- Nesta Relação, o Sr.Procurador Geral Adjunto, quando o processo lhe foi apresentado, nos termos e para os efeitos do artº 416º do C.P.P, emitiu parecer onde acompanha o entendimento preconizado na resposta ao recurso do M.P na 1ª instância, cfr argumentação que se transcreve em resumo:
“(…) Acompanhamos a resposta à motivação de recurso da magistrada da Ministério Público na primeira instância. Analisados os fundamentos do recurso consideramos que a decisão impugnada não merece as críticas que lhe são assacadas.
Não repetindo argumentos, apenas retomamos quanto à invocada violação do princípio in dubio pro reo: reiteradamente a Jurisprudência tem afirmado, só se coloca quando o Tribunal reconhece ter dúvidas (razoáveis), e, não obstante, se decida pela condenação.
Conforme bem se escreve no Ac. da Rel. de Coimbra de 12-09-2018, Relator: Orlando Gonçalves in www.dgsi.pt:A Sentença recorrida, não dando conta de qualquer dúvida que tenha assaltado o espírito da Mmª Juíza que a subscreve, não podia ter violado, como não violou, tal princípio. A violação do princípio in dubio pro reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados.
O Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse princípio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo - e não os sujeitos processuais ou algum deles - chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido. Cfr. entre outros, o acórdão do S.T.J. de 2 e Maio de 1996, in C.J., ASTJ, ano IV, 1º, pág. 177. Dito de outro modo, refere o Prof. Roxin, que “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”. “Derecho Processal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111
Tudo visto, somos de parecer que o recurso interposto pelo arguido deve ser julgado improcedente, confirmando-se a douta sentença recorrida.”
7- Foi oportunamente cumprido o artº 417º/2 do C.P.P, tendo o ofendido assistente em ........25, apresentado resposta, onde sustenta acompanhar o parecer do MP formulado nesta Relação e reitera dever o recurso interposto pelo arguido ser julgado improcedente, confirmando-se a douta sentença recorrida.
8- Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
II - Questões a decidir
Delimitação do objecto do recurso
Do artº 412º/1 do C.P.P resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente definem as questões a decidir em cada caso (cf. Germano Marques da Silva em “Curso de Processo Penal” III edição 2º edição, 2000 pág. 335 e Ac. do S.T.J de 13.5.1998 em B.M.J 477º 263), exceptuando aquelas que sejam do conhecimento oficioso (cf. artº 402º, 403º/1, 410º e 412º todos do C.P.P e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J de 19.10.1995 in D.R I – A série, de 28.12.1995).
A única questão a apreciar por este Tribunal ad quem, tem a ver com a alegada violação do princípio in dubio pro reo, no Tribunal de 1ª instância.
III- Fundamentação de Facto
A decisão recorrida
Na sentença recorrida o Tribunal a quo considerou provado o seguinte:
I. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
FACTOS PROVADOS
Discutida a causa e produzida a prova, com relevância para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:
Da acusação particular/pública
1. O assistente DD e o arguido AA são vizinhos.
2. No dia .../.../2022, cerca das 14h00, na ..., em ..., na sequência de o assistente estar a comentar com outro vizinho o facto de o arguido ter o seu veículo automóvel estacionado num local destinado a cargas e descargas, o arguido, apercebendo-se, abeirou-se da janela da sua habitação e dirigiu ao assistente as seguintes expressões «Tu marreco, eu faço-te a folha, parto-te todo, corcunda, paneleiro.», « - És um grande filho da puta, parto-te os cornos, cabrão
3. Ao dirigir ao assistente as expressões «paneleiro», «filho da puta» e «cabrão» previu e quis o arguido ofender gravemente a honra e consideração social do assistente, como efectivamente ofendeu.
4. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Do pedido de indemnização civil
5. O assistente tinha, à data dos factos, 74 anos de idade;
6. Em consequência das expressões proferidas pelo arguido, o assistente sentiu-se envergonhado, humilhado, nervoso, desgostoso, tenso e ansioso.
Mais se provou
7. O arguido goza de boa reputação junto de familiares e amigos.
8. O arguido é ... de profissão, encontrando-se actualmente reformado por invalidez e auferindo a quantia de cerca de 600,00€ a título de reforma;
9. Vive sozinho em casa arrendada, pagando a quantia de 300,00€ mensais a título de renda;
10. Encontra-se a pagar um crédito automóvel no valor de 122,00€;
11. Tem a 6.º classe.
12. Não tem antecedentes criminais.
Quanto aos factos não provados, ficou consignado na sentença, o seguinte:
FACTOS NÃO PROVADOS
Do pedido de indemnização civil
A. Em consequência dos factos descritos em 2, o assistente decidiu colocar à venda a sua casa e escritório de contabilidade;
B. O assistente deixou de conseguir dormir;
C. Por ser ... é conhecido por toda a população, que tomou conhecimento dos factos.
Consigno que foi expurgada da acusação particular e do pedido de indemnização civil toda matéria repetida, instrumental, conclusiva ou de direito, motivo pelo qual não se mostra elencada nem nos factos provados, nem nos não provados.
O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão de facto nos seguintes termos:
MOTIVAÇÃO
O Tribunal fundou a sua convicção com base na análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência, designadamente as declarações do assistente e os depoimentos das testemunhas GG, HH, EE, II, JJ e FF, procurando-se os seus pontos de convergência e/ou dissonância, à luz de critérios de experiência e normalidade de vida e nos termos do disposto no artigo 127.º Código de Processo Penal.
Isto dito, concretizemos.
Factos 1 e 2: Na contestação, o arguido ofereceu o merecimento dos autos. Para além disso, tendo estado presente na audiência de julgamento, exerceu o seu legítimo direito ao silêncio, e não prestou declarações sobre os factos, tendo-se limitado a relatar ao tribunal outras quezílias com o assistente, em sede de palavras finais, já após as alegações.
Por seu turno, o assistente prestou declarações em audiência, confirmando, no essencial, os factos constantes da acusação, sendo certo que a sua versão foi corroborada pelo depoimento das testemunhas de acusação, GG, HH, que afirmaram ter presenciado os factos e que mereceram credibilidade. Com efeito, em depoimentos espontâneos e que, pese embora a relação de amizade com o assistente, se afiguraram desinteressados, GG e HH descreveram os factos de forma coincidente entre si, e congruente com a versão do assistente, reproduzindo ambos em audiência as expressões que foram proferidas pelo arguido naquela ocasião.
Sob outro prisma e no que se refere às testemunhas de defesa, cumpre começar por referir que EE e FF, respectivamente filha e esposa do arguido, afirmaram que a única situação de conflito entre o arguido e o assistente de que têm conhecimento tratou-se de um episódio relacionado com uma fotografia do arguido em tronco nu, alegadamente tirada pelo assistente sem o conhecimento daquele, que o assistente colou no interior da sua viatura que estava estacionada na rua onde ambos residem, situando este episódio em data diversa daquela que consta da acusação. Ora, sem prejuízo de até poder ser verdade que tal episódio da fotografia sucedeu, a verdade é que a circunstância de estas testemunhas não terem presenciado os factos em causa nestes autos não significa, naturalmente, que os mesmos não tenham ocorrido. De resto, nem o assistente nem as testemunhas de acusação referiram a presença destas duas testemunhas no dia em causa nos autos, pelo que inexiste qualquer contradição de depoimentos. Relativamente às demais testemunhas de defesa – II e JJ as mesmas limitaram-se a abonar a favor do arguido e afirmaram nunca ter presenciado qualquer discussão entre o arguido e o assistente.
Factos 3 e 4: resultaram provados por outra não poder ter sido a motivação e conhecimento do arguido, em face dos comportamentos por si exteriorizados e julgados como provados nesta sede, de acordo com as máximas da lógica e da experiência comum.
Factos 5 e 6: os factos resultaram provados das declarações que o assistente/demandante prestou a esse respeito, conjugadas com as regras da experiência e da normalidade da vida. Com, efeito qualquer pessoa que seja apodada dos epítetos com que o arguido apodou o assistente sentir-se-á, naturalmente, envergonhada, humilhada, nervosa, desgostosa, tensa e ansiosa, factos que, de resto, foram igualmente atestados pelas testemunhas GG e HH, ambos amigos do assistente/demandante que descreveram o impacto que a situação teve no estado de espírito daquele.
Facto 7: resultou provado do teor dos depoimentos das testemunhas de defesa, que abonaram a favor do arguido.
Factos 8 a 11: os factos referentes às condições pessoais do arguido, resultaram das declarações prestadas pelo próprio em audiência sobre a sua situação pessoal e económica, o que fez de modo espontâneo e congruente, pelo que, não resultando as suas declarações contrariadas por qualquer elemento constante dos autos nem afrontando as regras da experiência comum, foram as mesmas valoradas positivamente.
Facto 12: ausência de antecedentes criminais do arguido resultou provada do teor do respectivo certificado do registo criminal junto aos autos.
Quanto aos factos não provados.
Factos A a C: De referir que, como consabido, sobre a prova de declarações de parte, perfilham-se três teses essenciais: a tese do carácter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos, a tese do princípio de prova, e a tese da autossuficiência das declarações de parte (cfr. Ac. TRL de 26.04.2017,Proc. 18591/15.0T8SNT.L1-7, acessível em www.dgsi.pt). Da nossa parte, perfilhamos a segunda tese – a prova não pode basear-se na simples declaração das partes, sendo necessária a corroboração por algum outro elemento de prova, pelo que as declarações prestadas pelo assistente/demandante foram valoradas criticamente e no confronto com a demais prova produzida nos autos. Ora, nenhuma das testemunhas arroladas pelo assistente/demandante depôs sobre estes factos, e nenhuma outra prova foi produzida para além das declarações do próprio assistente, sendo tais declarações, nesta parte, por si só, manifestamente insuficientes para considerar os factos como verdadeiros. De resto, nesta parte, sempre se dirá que o seu relato revelou-se manifestamente exagerado e fantasioso em face das regras da experiência e da normalidade da vida, tendo em conta a conduta do arguido que resultou provada.
*
Analisando
Da alegada violação do princípio in dubio pro reo
Nos presentes autos, o arguido/recorrente AA, foi condenado como autor de um crime de injúria, p.p. pelo artº 181º nº 1 do Código Penal na pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), num total de €200,00 (duzentos euros).
Inconformado com tal decisão, o arguido interpôs o presente recurso defendendo, em suma, que a douta sentença recorrida deve ser revogada e substituída, e, em consequência, ser o arguido absolvido do crime a que foi condenado, por prevalência do princípio in dubio pro reo, que alega ter sido violado pelo Tribunal a quo.
Para o efeito, argumentou do seguinte modo: (conclusões 2. 3. e 10 a 15, com sublinhados nossos): “(…) Na prática, somente foi dado como provada parte da versão do assistente. Tudo quanto as testemunhas arroladas pela defesa disseram não consta da sentença, nem no capitulo de factos provados, nem no de factos não provados.(…) Se, por um lado, as testemunhas de acusação relatam uns factos, e as de defesa aludem a factos completamente diversos, assumir-se-á, perante as regras de experiência da vida, quase impossível que o julgador não fique na dúvida. Sem prejuízo de o episódio da fotografia ter data diversa do episódio objeto destes autos, certo é que as testemunhas de defesa disseram que aquele episódio (da fotografia) era o único de que tinham conhecimento.
O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador, no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.
Se, por um lado, existe uma versão, e, por outro lado, outra divergente, se as testemunhas da defesa alegaram ter unicamente havido, que saibam, uma situação entre as duas partes, então tem de subsistir a dúvida.
Decerto que o arguido teria contado à filha e à mulher que tivera mais que um confronto com o assistente. Perante esta factologia, não é razoável que não tenha sido o Tribunal a quo tomado pela dúvida, pois que é uma dúvida legítima e lógica.”
Pelo contrário, o M.P na sua resposta ao recurso, veio defender posição contrária, argumentando do seguinte modo (conclusões 2 a 4, 6. 7. e 10. a 12): “Limita-se (o ofendido) a referir que das declarações prestadas pelas testemunhas de defesa, nada consta da sentença “nem no capítulo dos factos dados como provados, nem no de factos não provados.” Nem tal teria de suceder, por se tratar de factos que não constavam da acusação nem da contestação, nem foram trazidos aos autos pelo arguido que, ao abrigo de direito que legalmente lhe assiste, se escusou a prestar declarações. Logo, não fazendo parte do objecto do processo, com que fundamento deveriam os mesmos ser erigidos à matéria de facto objecto de apreciação ? (…) Por outro lado, pretende o recorrente pôr em causa as declarações prestadas pelas testemunhas indicadas pelo assistente, com o fundamento de que as testemunhas de defesa (EE e FF, filha e esposa do arguido) apenas tinham conhecimento do episódio que relataram, e de nenhum outro. As demais testemunhas de defesa nunca presenciaram qualquer discussão entre o arguido e o assistente.
Sendo o episódio que relataram, o único de que tinham conhecimento as testemunhas de defesa, a única conclusão que se impunha retirar, como bem o fez a douta sentença a quo, seria que as mesmas não haviam testemunhado o episódio em causa nos autos, e nunca que este não teria ocorrido! “(...) a circunstância de estas testemunhas não terem presenciado os factos em causa nestes autos não significa, naturalmente, que os mesmos não tenham ocorrido.”(…) Para fazer apelo ao princípio in dubio pro reo, necessário se torna a existência de uma dúvida razoável face à prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, sobre os factos que ali se encontrem em apreciação. O que aqui não foi manifestamente o caso.
Diversamente do que entende o recorrente, temos por líquido, que da conjugação das próprias declarações finais do arguido com as declarações do assistente, aliadas à demais prova produzida em audiência e constante dos autos, referida na fundamentação da douta sentença recorrida, resulta à evidência que foi acertada a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal recorrido.
Inexiste também qualquer violação do princípio in dubio pro reo, uma vez que, ao contrário do que pretende o recorrente, nem sequer se vislumbra a existência de duas versões contraditórias sobre os mesmos factos. O que se verifica é a descrição de dois episódios que ocorreram em momentos distintos, sendo que apenas um deles é objecto dos autos”.
Desta forma, entendeu resultar claramente da análise crítica da prova, que o Tribunal a quo não teve qualquer dúvida quanto à prática pelo arguido deste crime de injúria, na pessoa do ofendido DD, pelo qual aquele foi condenado, não havendo assim lugar para a aplicação do princípio in dubio pro reo, não se mostrando violada qualquer norma ou princípio legal, pelo que conclui não lhe merecer a sentença qualquer censura.
Vejamos.
Não tendo existido impugnação especificada da matéria de facto por parte do recorrente, nem tendo sido por ele cumpridos os ónus impostos pelo artº 412º/3 e 4 do C.P.P, nem encontrando este Tribunal na sentença recorrida, numa apreciação oficiosa limitada ao texto da decisão, nenhum dos vícios do artº 410º/2 do C.P.P, a factualidade julgda provada na 1ª instância, que se encontra ali descrita, tem-se por fixada definitivamente.
Nesta sequência, não é minimamente aceitável a tese vertida no recurso, que se revela totalmente inconsistente, dado que a convicção do Tribunal a quo se mostra alicerçada em factos objectivos e concretos, que o julgador não teve dúvidas em julgar provados.
Na verdade, este princípio in dubio pro reo tem aplicação na apreciação da prova, impondo que, em caso de dúvida insuperável e razoável sobre a valoração da prova, se decida sempre a matéria de facto, no sentido que mais favorecer o arguido.
É um princípio probatório que procura solucionar um problema de dúvida em relação à matéria de facto e não ao sentido de uma norma jurídica.
Trata-se de um princípio, que traduz o correspectivo do princípio da culpa em Direito Penal, ao garantir a não aplicação de uma qualquer pena, sem prova suficiente dos elementos típicos, sendo um corolário lógico do princípio da presunção de inocência do arguido e que não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais.
Por isso, não podemos deixar de realçar, que a violação de tal princípio só existiria se o Tribunal de julgamento reconhecendo a dúvida, ainda assim, condenasse o arguido AA, pelo crime de injúria.
O que não foi o caso.
Na verdade, o Tribunal a quo, na motivação da decisão de facto, clara e expressamente referiu, que após análise de toda a prova testemunhal produzida e análise das declarações do assistente prestadas em audiência, ficou absolutamente convencido da realidade que descreveu na factualidade provada (sendo certo também, que o arguido presente em julgamento, optou voluntáriamente por exercer o seu direito ao silêncio e se absteve de relatar em juízo a sua versão dos factos).
Nestes termos, tal como bem foi sublinhado pelo MP, em nosso entender foi apreciada conjunta e criticamente toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, pelo que nenhum reparo nos merece a sentença recorrida, no que concerne à matéria de facto considerada provada e não provada, sendo certo que as testemunhas de defesa não presenciaram o episódio descrito na acusação, tendo relatado em juízo um outro episódio distinto, por elas presenciado, pelo que inexiste na realidade uma “oposição de versões sobre os mesmos factos”.
O Tribunal a quo, apreciando criticamente toda a prova testemunhal produzida, conjugada entre si e com as regras de experiência comum, conforme consta da respectiva fundamentação de facto, convenceu-se, sem margem para dúvidas, da ocorrência de determinados factos que constam da decisão ora em crise.
Relativamente à discordância factual do recorrente, quanto à convicção do Tribunal a quo, resulta que a mesma não tem qualquer base de sustentação, pois a simples leitura da matéria de facto provada e respectiva fundamentação, constantes da sentença recorrida, não revelam que a referida convicção do Tribunal a quo seja notoriamente errada, ilógica, contrária às regras da experiência comum.
Tal como bem foi salientado pelo MP na sua resposta, “ao contrário do que pretende o recorrente, não existem sequer duas versões contraditórias sobre os mesmos factos (…) Acresce que nada permite afirmar que o tribunal recorrido tenha dado como provados os factos que como tal especificou tendo ou devendo ter dúvidas sobre algum ou alguns deles, pelo que naturalmente não pode invocar-se no caso em apreço a violação do princípio in dubio pro reo”.
No fundo, e a nosso ver, repetimos, o que o recorrente pretende sindicar é a forma como o Tribunal valorou a prova produzida em audiência de julgamento, valoração que como já acima dissemos, o Tribunal de 1ª instância é livre de fazer, ao abrigo do disposto no artº 127º do C. P. Penal.
Nestes termos, resulta da fundamentação da sentença recorrida, que a convicção do Tribunal de julgamento não assentou em raciocínios ou juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios, nem a decisão condenatória, foi elaborada com desrespeito das regras sobre o valor da prova vinculada e dos princípios gerais sobre a produção da prova, nem se verificou no espírito do julgador, qualquer dúvida insanável, donde não se vê como é possível concluir, ter havido violação do princípio in dubio pro reo.
A decisão proferida, tendo em conta o seu teor, mostra-se coerente, harmónica, sem antagonismos factuais, não contém factos contrários às regras da experiência comum, nem a existência de erro, que seja patente para qualquer cidadão.
Por outras palavras, face ao que vem de ser exposto, podemos concluir que a decisão recorrida não reflecte ter havido da parte da senhora Juíza que presidiu ao julgamento, margem para qualquer dúvida na sua apreciação da prova.
A dúvida do recorrente é aqui irrelevante e jamais poderia conduzir à constatação da violação de tal princípio, pois que o mesmo é afinal, uma regra de que apenas o próprio julgador se deve socorrer quando tem dúvidas.
Não basta que exista um depoimento ou um documento que ao recorrente não mereça credibilidade, para simplesmente se poder concluir que a sua valoração pelo Tribunal a quo redundou na violação do princípio “in dubio pro reo”.
Uma coisa é a dúvida do recorrente, outra, a do julgador, e só a dúvida deste pode conduzir à necessidade de aplicação do tal princípio.
Analisar criticamente a prova, significa justamente concluir um facto da conjugação dos vários elementos trazidos à discussão da causa e reputá-lo como verdadeiro ou falso, em face daquilo que for a convicção do julgador, dentro do seu critério de livre apreciação.
Defender no contexto referido, a violação do princípio “in dubio pro reo”, como fez o recorrente, carece pois de fundamentos sustentáveis.
Efectivamente, no caso em apreço, lendo a decisão recorrida, designadamente a fundamentação de facto e a indicação e exame crítico das provas em que se baseou a convicção do Tribunal, quanto ao crime de injúria imputado ao arguido AA, não se vislumbra que o Tribunal a quo tivesse dado como provado, qualquer um dos factos que como tal enumerou, tendo dúvidas sobre a sua verificação, nem se nos afigura que tais dúvidas tivessem existido.
«A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de quaisquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. De outra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão.» - Cfr. Ac. do Tribunal Constitucional 198/2004 de 24/03/2004, D.R. II Série, de 02/06/2004 in www.tribunalconstitucional.pt/acordaos
Resulta assim claro, que o preceituado no artº 127º CPP deve ter-se por cumprido, sempre que a convicção a que o Tribunal de julgamento chegou, se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, onde não se vislumbre qualquer assomo de arbítrio na apreciação da prova, considerando que o objecto da prova tanto inclui os factos probandos (prova directa) como factos diversos do tema de prova, mas que permitam, com o auxilio das regras de experiência, uma ilação quanto a estes (prova indirecta ou indiciária).
Face ao que acima ficou dito, torna-se de difícil compreensão a argumentação do recorrente no que respeita à alegada incorrecta aplicação deste princípio in dubio pro reo pelo Tribunal a quo, por tal alegação não se encontrar minimamente fundamentada, nem ter qualquer correspondência com a realidade factual apurada.
Sem necessidade de mais considerandos, concluímos que o recurso do arguido não procede neste segmento e será julgado inteiramente não provido.

IV – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em:
a) Julgar não provido o recurso interposto pelo arguido AA e em consequência, manter a decisão condenatória, nos seus precisos termos.
b) Condenar o arguido em taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) Ucs.

Lisboa, 27 de Junho de 2025
Ana Paula Grandvaux Barbosa
João Bártolo
Rosa Vasconcelos