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CRIME DE HOMICÍDIO TENTADO
ERRO DE JULGAMENTO
REGRAS DA EXPERIÊNCIA
DOLO
PENA ACESSÓRIA DE EXPULSÃO
DANO NÃO PATRIMONIAL
ANTEVISÃO DA PRÓPRIA MORTE
Sumário
1. A exigência legal do grau de imposição para que a impugnação do julgamento de facto possa proceder radica na especial proximidade em relação à prova produzida na primeira instância, a qual confere particulares garantias de fiabilidade do juízo que assim sobre elas se produz. 2. É esta diferença fundamental de condições que justifica que a intervenção do tribunal de recurso no julgamento da matéria de facto só ocorra se estiver irrefutável e cabalmente demonstrado que há um claro e evidente erro de apreciação, seja por inexperiência, desconhecimento, precipitação ou outro qualquer motivo, de tal modo que se torne absolutamente indiscutível proceder à correção ou acerto da decisão nesta sede. 3. Este segmento dos recursos não deve consistir na pretensão de realização de um novo julgamento, mas, igualmente, a decisão que sobre ele incide não se deve bastar com meras declarações gerais quanto à razoabilidade do decidido no acórdão recorrido, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objeto do recurso, a reponderação especificada, em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória entre os factos impugnados e as provas que serviram de suporte à convicção. 4. Quando se invoca a desconsideração ou postergação, na decisão recorrida, das regras da experiência, deve indicar-se expressamente qual o concreto preceito empírico assim desatendido. 5. As testemunhas devem depor sobre o que viram e ouviram, não sobre o que não viram ou não ouviram. 6. Na sempre complexa apreciação dos factos respeitantes ao dolo, deve entender-se que desferir ou pretender desferir golpes com objetos cortantes no pescoço, tórax, abdómen ou crânio (não obstante ser muito difícil perfurar o crânio com um objeto destes), ou alvejar com arma de fogo essas zonas do corpo, constitui, em princípio, dolo de homicídio, sendo certo que, não se logrando o decesso da vítima, estamos perante uma tentativa, tudo salvo se ocorrer contextualização factual própria a infirmar estas regras. 7. Não deve confundir-se, e muito menos fazer depender, o perscrutar da decisão do agente com o resultado concreto da sua ação. Eles podem estar relacionados, é certo, dependendo do caso concreto, mas não pode estabelecer-se entre eles uma relação de dependência ou necessidade. 8. É adequada a pena acessória de expulsão, com fixação em cinco anos do período para a impossibilidade de entrada no território português, para um condenado que cometeu um crime de homicídio qualificado na forma tentada em concurso efetivo, real, com um crime de detenção de arma proibida, no contexto de relação afetiva com a vítima, não tendo em Portugal laços familiares estabelecidos nem perspetivas de ocupação. 9. A antevisão ou previsão da própria morte como consequência de facto de terceiro constitui relevantíssimo dano não patrimonial, merecedor de condigna indemnização.
Texto Integral
I RELATÓRIO
1
No processo n.º 3676/23.7JABRG, do Juízo Central Criminal de Viana do Castelo – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, teve lugar a audiência de julgamento durante a qual foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo:
A. ABSOLVER o arguido AA da prática, em autoria material e concurso efetivo: i. do crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152.º, n.º 1, al. b), n.º 2 a), n.º 3 a) e b), n.º 4 e n.º 5, do Código Penal; e, ii. do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, agravado pela utilização de arma, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 131.º, 132.º, n.º 2, als. e) e j), 22.º, 23.º e 73.º, todos do Código Penal e 86.º n.º 3 e n.º 4 do RJAM, de que vinha acusado. B. CONDENAR o arguido AA pela prática, em autoria material e concurso efetivo: i. do crime homicídio qualificado, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 131.º, 132.º n.º 1 e n.º 2 b), 22.º, 23.º e 73.º, todos do Código Penal e do art. 86.º, n.º 3 e n.º 4 do RJAM, na pena de 5 (cinco) anos de prisão; ii. do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 86.º, n.º 1, al. d), por referência aos arts. 2.º, n.º 1, m) e 3.º, n.º 2, ab), todos do RJAM, na pena de 10 (dez) meses de prisão; iii. do crime de ameaça agravada, previsto e punido nos termos das disposições conjugadas dos artigos 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 a) do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão; iv. em cúmulo jurídico, vai condenado na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão. C. Condenar o arguido AA na pena acessória de afastamento do território nacional por um período de 5 (cinco) anos. (…) G. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por BB, condenando o demandado AA a pagar-lhe a quantia de € 4 540,00 (quatro mil, quinhentos e quarenta euros) a título de danos patrimoniais, acrescida de juros legais a contar desde a data da notificação para contestar o pedido e a quantia de € 30 000,00 (trinta mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros legais a contar da presente data, tudo até integral pagamento.
2
Não se tendo conformado com a decisão, o arguido apresentou recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. Ocorreu erro de julgamento ao considerarem-se provados os factos vertidos nos os pontos 5, 6, 14 na parte em que refere vou-te matar, 16, 17, 18 in fine; 28, 29 e como não provados os pontos L) a O. 2. A intenção de matar constitui matéria de facto a apurar pelo tribunal em função da prova ao seu alcance e a formar livremente , contudo, a conclusão de ter ocorrido intenção de matar deduz-se de factos externos que a revelem e não apenas da perceção da assistente sobre o que aconteceria. 3. Há erro na apreciação da prova que concorre para a errada convicção decisória quando se refere que as testemunhas viram a esfaquear e tal não resulta do seu depoimento. 4. Errou o tribunal ao dar como provada essa intenção quando, como no caso, resulta do relatório pericial que nunca chegou a ocorrer risco de vida; que o local onde a assistente foi ferida não tem nenhum órgão vital; e que os ferimentos são lineares e pouco sangrativos, com a excepção da palma da mão. 5. Havendo unidade no depoimento das testemunhas que referem ter ouvido os gritos por “socorro” e “deixa-me” proferidos pela assistente e ter atuado imediatamente sobre os mesmos devia o seu depoimento ser valorizado igualmente quando referem que não ouviram o arguido dizer que a ia matar. 6. O recorrente não teve intenção de matar pelo que os factos deverão ser subsumidos, salvo o devido respeito, como ofensas á integridade física qualificados p.p. no disposto no artigo 145.º, n.º1 e 2 do C.P. 7. A não ser assim existe dupla valoração da agravação ao condenar o arguido pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada, nos termos do disposto no artigo 131.º, e 132.º, n.º 2 alínea b), do CP e o agravamento previsto no no art.º 86.º, n.ºs 3 e 4, do RJAM; 8. O artigo 132º nº 1 do Código Penal estabelece como moldura penal a pena máxima constitucionalmente permitida de 25 anos de prisão esgotando o tipo o máximo da pena aplicável e de graduação da ilicitude e de nível de culpa. 9. Nos casos em que o agente deva ser punido pelo crime do art. 132.º do Código Penal não há lugar à agravação prevista no artigo 86.º, nºs 3 na Lei das Armas, sob pena de violação do princípio de proibição de dupla valoração. 10. A condenar-se o arguido pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada deveria o arguido ter sido condenado apenas nos termos do disposto no artigo 131º e 132º, nº 1 e 2º alínea b) do Código Penal. 11. A medida concreta da pena aplicada ao arguido extravasa largamente a medida da culpa do ora recorrente, bem como as particulares exigências de prevenção geral e especial - violando, por isso, o disposto nos arts. 40º, nº 1 e 2 e 70º, nº 1 e 2, do Código Penal. 12. O douto Tribunal na fixação da medida da pena não valorou as condições socio culturais em que o arguido cresceu em particular o desenvolvimento da sua personalidade no meio rural brasileiro pautado por castigos físicos, nem valorou a colaboração que o arguido teve com a Polícia Judiciária consentindo com o exame do seu telemóvel, roupas, reconstituindo os factos sem qualquer apoio jurídico. 13. Não se mostra comprovada a prática do crime de ameaça agravada não só por que a assistente não referiu diretamente essa ameaça, como referiu inclusive nunca reviu condutas agressivas no arguido, pelo que os factos foram revestidos de imprevisibilidade. 14. Não ocorreu ameaça que a tenha deixado inquieta e receosa. 15. Ocorreu erro na apreciação da prova e não se podia ter dado como provado o ponto 5 e 28 no douto acórdão, pelo que não podia ter sido condenado pela prática deste crime, impondo-se, pois, a sua absolvição do crime de ameaça agravada de que vem condenado. 16. O arguido não pode ser prejudicado considerando-se a sua permanência desautorizada quando a autorização caducou durante o período da prisão preventiva. 17. Não há elemento algum que leve a considerar que o arguido não será reabilitado e não possa desenvolver, como fez até à data, o seu trabalho em Portugal. 18. A pena acessória de expulsão é desadequada e até excessiva no montante dos anos aplicados (máximo) e constitui erro de julgamento. 19. O valor indemnizatório por danos não patrimoniais fixado em € 30.000,00 (trinta mil euros) é excessivo face ao valor fixado pela maioria da jurisprudência sobre a matéria. 20. Face ao caso concreto e convocando-se o princípio da equidade, com a devia vénia, é adequado a sua fixação no valor de €10.000,00 (dez mil euros). 21. Desta forma, incorreu-se em erro de julgamento e violou-se as normas jurídicas do artigo 131.º, 132.º n.º 1 e n.º 2 b), 22.º, 23.º, 71.º, n.º 1 e 2, 72.º e 73.º, todos do Código Penal e do art. 86.º, n.º 3 e n.º 4 do RJAM.º, arts. 86.º, n.º 1, al. d), por referência aos arts. 2.º, n.º 1, m) e 3.º, n.º 2, ab), todos do RJAM, art.º 145, n.º 1 e 2 do C.P.; e art.º 151.º n.ºs 2 e 3 da Lei n.º 23/2007 de 4 de julho e art. art.º 494 e 493.º do Código Civil, no sentido supra exposto. 22. Pelo que ,por tudo quanto se referiu anteriormente devem ser dado como não provados os factos constantes nos pontos 5, 6, 14, 16, 17 e 18 (parte final) in fine; 28, 29, 23. e como provados os pontos L) a 0) dos factos dados como não provados na douta decisão por contrários ao supra exposto. Nestes temos e nos melhores de direito que doutamente serão supridos por VOSSAS EXCELÊNCIAS se requer ao VENERANDO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES julgando procedente por provado o. presente recurso, reavalie a matéria de facto dada como provada, alterando a mesma no sentido defendido pelo recorrente, por violação expressa das normas legais invocada e, em consequência absolva o arguido do crime a que foi condenado o crime homicídio qualificado, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, p. e p.pelas disposições conjugadas dos arts. 131.º, 132.º n.º 1 e n.º 2 b), 22.º, 23.º e 73.º, todos do Código Penal e do art. 86.º, n.º 3 e n.º 4 do RJAM, na pena de 5 (cinco) anos de prisão; sem prejuízo da qualificação jurídica dos factos de ofensas á integridade física qualificada, nos termos do previsto no art.º 145, n.º1 e 2.º do C.P., com a necessária alteração da moldura penal e da medida da pena; absolva o arguido do crime do crime de ameaça agravada, previsto e punido nos termos das disposições conjugadas dos artigos 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 a) do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão; absolver o arguido da pena acessória de afastamento do território nacional por um período de 5 (cinco) anos; julgar procedente o presente recurso no que se refere ao pedido de indemnização civil deduzido por BB, designadamente no que se refere ao danos não patrimoniais fixados naquele acórdão. Fazendo assim JUSTIÇA!
3
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, formulando as seguintes conclusões:
1) O arguido foi condenado pelos crimes de Homicídio qualificado tentado agravado pelo uso de arma, Ameaça agravada e Detenção de arma proibida na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão e na pena acessória de expulsão por 5 anos. 2) Inconformado, veio o arguido interpor o presente recurso, alegando, em síntese, o seguinte: a. Erro de julgamento – prova da intenção de matar não deveria ter decorrido apenas da perceção da assistente, não tendo havido risco de vida – Erro na apreciação da prova – não resulta do depoimento das testemunhas que viram esfaquear – deveria ter sido condenado pelo crime de Ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145º, n.º 1 e 2 do CP. b. Dupla valoração da agravação ao condenar por homicídio qualificado tentado e pelo art. 86º, n.º 3 e 4 do RJAM; c. Erro na apreciação da prova – inexistência do crime de ameaça agravada, não tendo a ofendida ficado inquieta e receosa, pelo que deveria ter sido absolvido nesta parte; d. Medida da pena excessiva – o Tribunal a quo não valorou o meio em que cresceu, os castigos físicos e a colaboração com a PJ. e. A autorização de residência caducou durante a prisão preventiva, que não deve prejudicar o arguido, que pode ser reabilitado e desenvolver o seu trabalho em Portugal – pena acessória de expulsão é excessiva. 3) O douto acórdão recorrido, na sua livre convicção, fundamentou de forma pormenorizada e exaustiva na motivação da matéria de facto as razões de ter dado os factos como provados e não provados, incluindo a intenção de matar. 4) E explica a razão de ser de dar maior credibilidade à versão da assistente, corroborada pelos restantes meios de prova e regras da experiência comum, em detrimento da versão do arguido, que como ali doutamente se refere, lembra-se muito bem de uns pormenores e não de outros («memória seletiva»). 5) Arguido que anunciou a morte por mensagens e por palavras que antecederam os factos (esta parte esqueceu-se, embora não negue perentoriamente) e as lesões que a ofendida têm são lesões defensivas que se não tivessem ocorrido não estaríamos a falar de um crime tentado, mas consumado, já que apenas cessou quando uma testemunha lhe tirou a faca. 6) O arguido utilizou uma faca e com ela desferiu vários golpes direcionados à partes superior do tronco da assistente, designadamente cabeça e pescoço, onde existe a possibilidade de atingir a artéria carótida, ramo da maior artéria do corpo. 7) O arguido agiu, pois, com intenção de matar a vítima, utilizando um instrumento adequado a produzir tal efeito, o que não veio a suceder por razões estranhas à sua vontade (intervenção de terceiros). 8) O entendimento lavrado pelo Tribunal a quo na decisão recorrida é perfeitamente defensável face às regras da experiência comum e da lógica. O recorrente limita-se a divergir do modo como o tribunal recorrido analisou e valorou a prova produzida na audiência de julgamento, pretendendo impor a sua própria convicção. 9) Salvo o devido respeito, não se trata de valorar duas vezes a mesma agravante, já que o arguido foi condenado pela agravante do art. 132º, n.º 2, al. b), do C. Penal e não pelo uso da faca, sendo a agravação prevista pelo art. 83º uma agravação geral, aplicável a todos os crimes cometidos com arma. 10) Após a revisão de 1995 do CP, o crime de ameaça deixou de ser um crime de resultado e de dano e passou a ser um crime de mera ação e de perigo. 11) A ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado. 12) Uma pena de 5 anos de prisão para o crime de Homicídio qualificado tentado agravado pelo uso da faca, numa moldura entre 3 anos, 2 meses e 12 dias de prisão a 22 anos, 2 meses e 20 dias de prisão situa- se quase no limite mínimo. 13) Depois, em cúmulo com as restantes penas (crime de detenção de arma proibida: 10 meses de prisão e crime de ameaça agravada: 8 meses de prisão) o Tribunal Coletivo chegou à pena única de 5 anos e 6 meses (entre 5 ano e 6 anos e 6 meses), que estará novamente muito próxima do mínimo legal, pelo que não se vê como considerar excessiva, face a tudo que milita contra o arguido e que consta do douto acórdão recorrido. 14) A pena de expulsão nada tem a ver com a caducidade da autorização de residência durante a prisão preventiva, resultando da aplicação fundamentada da Lei (arts. 144º e 151.º da Lei 23/2007, de 4/7), que face aos factos provados e fundamentação do douto acórdão recorrido, também não se vislumbra como excessiva no seu quantum.
* * *
Assim, e tendo em conta todo o exposto, entendemos que mantendo o douto Acórdão recorrido nos seus precisos termos, farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA.
4
A assistente também respondeu ao recurso, propondo a sua improcedência, concluindo pelo seguinte modo:
1. O recurso apresentado pelo arguido tem como objeto, primeiramente, um suposto erro na apreciação da matéria de facto. 2. A forma de apreciação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento encontra- se estreitamente correlacionada com o princípio da livre apreciação da prova, definido no artigo 127.º do Código de Processo Penal e que nos diz que a prova deve ser apreciada segundo as regras da experiência comum e da livre convicção do julgador. 3. O Tribunal recorrido analisou a prova no seu conjunto, como um todo, de acordo com o princípio da imediação da prova. 4. Na sua motivação, o Tribunal recorrido demonstrou ter feito uma correta aplicação das regras de interpretação e valoração da prova, estando os factos provados devidamente fundamentados e alicerçados nos meios de prova produzidos em audiência de julgamento, encontrando-se a matéria de facto fixada de acordo com um raciocínio lógico e coerente. 5. Não assiste qualquer razão ao recorrente, já que o que aquele põe em crise é, no fundo e essencialmente, a forma como Tribunal recorrido apreciou a prova produzida em audiência de julgamento, impugnando dessa forma a convicção assim adquirida e pondo em causa a regra da livre apreciação da prova inserta no artigo 127.º do Código de Processo Penal. 6. A convicção do Tribunal a quo sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência é incriticável, pelo que, afigurando-se a convicção em causa possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a opção e decisão do julgador recorrido manter-se. 7. Posteriormente, no que respeita ao crime de ameaça, o recorrente alega que a recorrida não sentiu medo não estando, por isso, alegadamente preenchido o tipo legal. 8. Acontece que o crime de ameaça é um crime de perigo e, portanto, basta que a ameaça seja adequada a provocar o medo, mesmo que em concreto o agente não tenha provocado. 9. Assim, ainda que não tenha causado medo à assistente/recorrida – o que não se concede – sempre se encontrarão preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal, nenhuma razão assistindo nesta parte ao recorrente. 10. O recorrente, coloca ainda em causa a medida da pena que lhe foi aplicada por cada um dos crimes. 11. No entanto, no nosso modesto entendimento o tribunal recorrido interpretou de forma correta os critérios legais dos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, sendo, numa ponderação global das circunstâncias atinentes a cada um dos crimes e das pessoais dadas como provadas, as penas parcelares fixadas pelo tribunal recorrido adequadas e satisfazendo os fins das penas e sem que excedam a culpa do recorrente., bem como a aplicação da pena de expulsão ao arguido. 12. Por via do referido, e mantendo-se a condenação na parte criminal, deve manter-se igualmente a condenação do recorrente no montante de € 30.000,00 (trinta mil euros) a título de indemnização civil a pagar à assistente. Nestes termos, negando-se provimento ao recurso interposto, deve a sentença objeto de recurso ser confirmada. Assim se fazendo a habitual e almejada JUSTIÇA!
5
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
6
Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nada mais foi dito.
7
Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
II FUNDAMENTAÇÃO
1 Objeto do recurso:
A
Ocorre erro de julgamento em relação aos factos provados vertidos nos os pontos 5, 6, 14, na parte em que refere vou-te matar, 16, 17, 18 in fine, 28, 29, e em relação aos não provados nos pontos L) a O)?
B
Em caso de resposta afirmativa à anterior questão, deverão os factos julgados como provados ser subsumidos ao crime de ofensa à integridade física qualificada p.p. no artigo 145.º, n.º 1 e 2 do Código Penal?
C
Ocorre dupla valoração de agravação ao condenar-se o arguido pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada, nos termos do disposto no artigo 131.º, e 132.º, n.º 2 alínea b), do Código Penal, e o agravamento previsto no art.º 86.º, n.ºs 3 e 4, do RJAM (Lei n.º 5/2006, de 23/02)?
D
Os factos dados como provados demonstram a prática do crime de ameaça agravada?
E
A pena aplicada deve ser reduzida?
F
Pode considerar-se como desautorizada a permanência do agente em território português quando a pertinente autorização caducou durante o período de execução da medida de coação de prisão preventiva?
G
A pena acessória de expulsão é desadequada e até excessiva no montante dos anos aplicados (máximo)?
H
O valor indemnizatório por danos não patrimoniais fixado em € 30.000,00 (trinta mil euros) é excessivo, devendo ser reduzido para o montante de € 10.000,00?
* *
2 Decisão recorrida (excertos relevantes):
2. Fundamentação de facto
2.1. Factos provados Com interesse para a decisão da causa, mostram-se provados os seguintes factos: 1. O arguido AA e a vítima BB, respetivamente, de 53 e 60 anos de idade à data dos factos, mantiveram uma relação amorosa ao longo de cerca de quinze anos, em comunhão de mesa, leito e habitação, e que partilharam entre Brasil e Portugal. 2. Em Portugal, fixaram residência na Urbanização ..., Rua F, n.º ...1, freguesia ..., concelho ... desde ../../2022. 3. O relacionamento entre ambos veio a cessar no mês de março de 2023, numa altura em que a ofendida, encontrando-se no Brasil, decidiu terminar a relação de forma definitiva. 4. Em 28-11-2023 a ofendida retornou a Portugal, para o que tinha acordado com o arguido que ficaria a residir na mesma habitação daquele – acima referida – sem partilha de cama e de mesa, mantendo-se cessada a relação amorosa. A partir dessa data a ofendida passou a coabitar novamente com o arguido naquela morada. 5. No período de 28-11-2023 a 16-12-2023, pelo menos uma vez, o arguido disse à ofendida que nos ..., aquela “não podia ter homem”, e que, caso descobrisse tal, que a mataria a ela e ao “homem” também. 6. Na madrugada do dia 17/12/2023 (domingo) o arguido formulou o propósito de matar a assistente. 7. Nessa madrugada, entre as 02:10 e as 03:50 horas, o arguido enviou à sobrinha da ofendida, CC, via Whatsapp – através do seu telemóvel e n.º de contacto n.º ...74 – diversos áudios onde verbalizou as suas intenções e os motivos das mesmas. 8. Concretamente, disse o arguido nesses áudios: - (…) “Já falei com ela! (…) na vila eu não aceito… você vai ficar com ninguém aqui… tá me achando de otário… vai acontecer uma tragédia e todo o mundo vai sofrer!”; - “Se eu topar… eu vou… matar o cara, eu vou matar a BB e vou-me matar!” (…) Pra ir preso… eu vou dar uma facada, vou matar dois… então eu vou pegar vinte e cinco anos de cadeia… (…) passar a faca no meu pescoço também na hora e se mata também… tendeu?... não vou preso”; - (…) “E… se eu pegar vai ser amanhã!! Oh, vou rasgar o cara que tiver junto com ela, vou rasgar ela e depois eu me rasgo eu… pra mim não ser preso… que aqui quem é preso qui mata mulher, é 25 anos de cadeia” - “Não aceito!! Entendeu? Nem eu arrumo nem ela arruma! E vou fazer tragédia! Eu vou fazer tragédia com ela e comigo, tá?”; - “É isso aí só que eu não quero! E vai… tá acontecendo isso! E viu fazer tragédia!! Eu vou fazer cê… você… a ver você tá achando que eu sou… eu todo… eu sou errado! Eu sou errado! Você vai ver amanhã! Amanhã… pode ser amanhã! (…) Vou rasgar todinho!! Eu tou andando… eu tou, eu tou andando preparado já! Vou rasgar todo o mundo, entendeu?”; - (…) “A BB desgraçou a minha vida, então vou desgraçar a vida dela também”; - (…) “… eu vou daqui pra baixo... armado…aqui é faca! , vou armado (…) e quando eu vejo, vou rasgar todo o mudo! Vou mandar para o meio dos inferno!!” - (…) “ O meu caixão vai lindo e fino para o Brasil (…) A BB tem porra nenhuma. Pra buscar o corpo dela aqui vai ser difícil”; 9. Ainda, enviou o arguido uma fotografia da faca que posteriormente usou para golpear a ofendida - com o cabo em plástico, com as cores branca e roxa, e a lâmina metálica com a cor roxa, com o comprimento total de 23,5cm, sendo 12,5cm de lâmina e 11cm de cabo, acrescentando os seguintes dizeres de seguida: - (…) “E tá vendo que qui tá aí?? Eu tou andando com isso aí!! Estou andando com isso aí e tá… oh! Tá afiada até aos dentes! Quando topar, eu vou rasgar ela na hora, eu quero nem saber!! (…)” - (…) “Amanhã, vai ser o dia amanhã, tá?” 10. Durante a madrugada desse dia – entre as 02:15 e as 03:51 horas - o arguido, dando já expressão àquele propósito, enviou também ao filho da ofendida, DD, e também para a nora da vítima, EE, via whatsapp – através do seu telemóvel e n.º de contacto n.º ...74 – diversos áudios onde verbalizou as suas intenções e os motivos das mesmas; 11. Concretamente, disse o arguido, enviando os sobreditos áudios, e entre o mais, ao filho e nora da ofendida: - (…) “Meu filho!, pede à sua mãe, pelo amor de Deus…, que ela já tá com um, um… já tá paquerando alguém aqui. Eu vou ver e vou fazer uma tragédia. Então quero cê estar ciente, entendeu? Estou avisando (…)” - (….) “vai acontecer uma tragédia!!! Sabe o que vai acontecer? Não vai acontecer nada, porque eu vou fazer uma tragédia com ela e comigo!” - (…) “amanhã, vai ser o dia amanhã, tá?” 12. Nesse mesmo dia, 17/12/2023 depois das 10:00 horas da manhã, a ofendida regressou a casa depois do trabalho e voltou a sair, ainda nessa manhã, apeada, até ao centro da vila. Durante a tarde, já em casa, o arguido procurou-a e abordou-a, deslocando-se ao seu quarto, tendo-lhe dito várias vezes “homem aqui nos ... não” e “eu vou-te matar”, ao que a ofendida respondia que não tinha ninguém. 13. Pelas 18h20, o arguido muniu-se da faca de cozinha acima aludida em 9., que meteu dentro do bolso do casaco, e, dali, dirigiu-se ao quarto onde se encontrava a sua ex-companheira, e ali chegado, ao mesmo tempo que se aproximava da cama onde a ofendida se encontrava deitada, questionou-a “você tem homem BB?”, ao que a ofendida respondeu que não. 14. O arguido retirou a faca do bolso, mostrou-a e empunhou-a na direção da ofendida, ao mesmo tempo que se aproximava dela. Então a ofendida levantou-se da cama e fugiu para dentro da casa de banho daquele quarto. Momento em que o arguido vociferou «Eu vou-te matar e é agora». 15. Desde o interior da casa de banho, a ofendida tentou fechar a porta, mas o arguido conseguiu empurrá-la, tendo a ofendida escorregado ao tentar segurar a porta, tendo ficado caída entre a porta e o lavatório. 16. Aproveitando-se do facto de a ofendida se encontrar caída no chão, o arguido colocou-se por cima do seu ventre, com as pernas fletidas para trás, impossibilitando-a de se libertar e, ao mesmo tempo que vociferava repetidamente que a ‘ia matar’, empunhou a faca e desferiu-lhe vários golpes no corpo. 17. Golpes que direcionou à face, cabeça, pescoço, tórax e braços da ofendida. 18. A ofendida gritou por socorro, pontapeou o arguido e segurou os seus braços, para se tentar libertar, sustendo alguns golpes com as próprias mãos, pese embora não tenha conseguido impedir o arguido de lhe vir a desferir mais golpes no corpo. 19. O vizinho FF, alertado pelos gritos de socorro da ofendida, dirigiu-se à residência e entrou na mesma, deslocando-se ao compartimento onde o arguido e a ofendida se encontravam. 20. O FF disse ao arguido que lhe entregasse a faca, o que este não fez. A atuação do arguido só cessou no momento em que aquele vizinho segurou o pulso do arguido e lhe retirou a faca, tendo vindo a atirá-la para dentro de um balde de água que estava à porta da residência. 21. Após alertados os meios de socorro e de intervenção policial, o arguido veio a ser encontrado pela GNR, nas imediações da residência. 22. Transportada à Urgências do Hospital ..., no ..., a ofendida apresentava, como consequência da atuação do arguido: feridas lineares pouco sangrativas na hemiface esquerda, ao longo do membro superior esquerdo; mão direita: ferida linear profunda e sangrativa da base do 3.º e 4.º dedos. D3 secção completa dos tendões do FDS e FDP, secção do pedículo neurovascular radial; D4 esfacelo cutâneo simples sem atingimento neurvascular ou tendinoso. Dedos bem perfundidos; tempo de perfusão capilar preservado. 23. Aí foram realizadas suturas no membro superior esquerdo e face, tendo sido remetida para a cirurgia plástica, com ferida volar da base D3 e D4, sendo que em D3 – não realiza flexão, hipostesia radial e dedo bem perfundido; D4 – sem limitação da flexão, sem hipostesia, dedo bem perfundido, onde foi submetida a intervenção cirúrgica, seguida de internamento. 24. Em 09-01-2024, a ofendida apresentava: - na face: presença de 3 cicatrizes lineares na face lateral esquerda pré auricular ainda de cor mais vermelha com o máximo de 12 cm sem retração; Pescoço: cicatriz avermelhada com 2x0,1 cm na face anterior esquerda da base do pescoço; Membro superior direito: cicatriz em L na região palmar e MCF de D3 e cicatriz na prega MCF de D4. Discreta rigidez das articulações IFP e IFD de D3, refere ter sensação de dormência do 3º dedo mas tem sensibilidade mantida na polpa do dedo; Membro superior esquerdo: cicatriz com 2 cm na face lateral do braço, cicatriz ainda com crosta na face dorsal da mão com 6 cm no dorso e de 2º e 3º metacarpianos. 25. O que lhe determinou, como sequelas: - 3 cicatrizes lineares na face lateral esquerda pré auricular ainda de cor mais vermelha com o máximo de 6 e 3 cm sem retração, não facilmente visível a distância social; - membro superior direito: cicatriz em L na região palmar e MCF de D3 e cicatriz na prega MCF de D4. Discreta rigidez das articulações IFP e IFD de D3, refere ter sensação de dormência do 3º dedo, mas tem sensibilidade mantida na polpa do dedo, dores na articulação metacarpofalângica do 3.º dedo; - membro superior esquerdo: cicatriz de cor rosada com 2 cm na face lateral do braço, cicatriz com 6 cm no dorso e de 2º e 3º metacarpianos nacarada. 26. Tais lesões levaram 180 (cento e oitenta) dias para consolidação médico-legal, com afetação da capacidade de trabalho geral por 60 (sessenta) dias e com afetação da capacidade de trabalho profissional por 150 (cento e cinquenta) dias, tendo resultado, como consequências permanentes, a limitação da força de flexão dos 3.º e 4.º dedos da mão direita, alterações da sensibilidade da região da polpa do terceiro dedo que limitaram ligeiramente a atividade profissional e cicatrizes visíveis que não desfiguram gravemente, não tendo resultado, em concreto, perigo para a vida. 27. Como consequência direta e necessária de todas as condutas descritas, a ofendida desenvolveu, para além do mais, sintomatologia depressiva e ansiosa, em consequência da violência contra si perpetrada, designadamente, de vergonha social, denotando sentimentos de medo, angústia, compatíveis com perturbação aguda de Stress Pós Traumático, demandando acompanhamento psiquiátrico com orientação psicofarmacológica e terapêutica. 28. Ao atuar em conformidade com o descrito em 5., anunciando que a mataria, o arguido agiu com o propósito de lhe provocar medo e insegurança, e a prejudicar a sua liberdade de determinação, bem sabendo igualmente que a sua conduta era adequada a causar tal resultado, não se abstendo de agir do modo descrito. 29. Ao desferir os golpes com a faca no corpo da ofendida, na zona da face, pescoço e membros superior esquerdo e direito o arguido agiu, com a intenção de tirar a vida à sua ex-companheira, resultado que só não conseguiu porque, durante tais atos e ofendida tentou impedi-lo de o fazer e porque o seu vizinho lhe retirou a faca da mão e assim impediu que prosseguisse os seus intentos. 30. Atuou assim, por estar convencido que assistente mantinha uma relação amorosa com outro homem. 31. O arguido conhecia as características da faca que utilizou; sabia que a detinha fora do local do seu normal emprego e que a única justificação para a sua posse era ser destinada nos termos em que o foi; não obstante, não se absteve de agir do modo descrito, o que quis e fez. 32. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. 33. AA é natural do ... e o seu processo desenvolvimental decorreu no seio do agregado de origem, constituído pelo próprio, pelos seus pais – pai: já falecido; mãe: atualmente com 84 anos, reformada – e pelos seus 5 irmãos (1 já falecido e 1 a residir em Portugal desde os seus 18 anos). No Brasil residiam em habitação isolada e com parcas condições de habitabilidade, num contexto familiar constrangido por limitações financeiras, dada a extensão do núcleo e a insuficiência dos rendimentos laborais auferidos pelos progenitores, enquanto trabalhadores agrícolas na produção de café. No domínio das relações fraternas, o arguido não mantém laços afetivos estreitos. A nível escolar, AA integrou o sistema de ensino em idade regular, tendo concluído o 5.º ano de escolaridade sem registo de reprovações, enquanto realizava também trabalhos agrícolas, para contributo da manutenção do agregado. Com 18 anos de idade, muda-se para a cidade ..., na tentativa de se autonomizar, iniciando uma sequência de trabalhos predominantemente operativos, com 33 anos de idade, inicia funções na área da construção civil, sendo nesta área de atividade profissional que AA edifica a sua carreira laboral, quer no Brasil quer em Portugal, seja a trabalhar por conta de outrem seja com a criação das suas próprias empresas. No ano de 2007, o arguido emigra para Portugal, fixando a sua residência na ..., onde se manteve até à data dos presentes factos, com deslocações ao Brasil até ao ano de 2020, país onde esteve entre 2014 e 2020. Regressado a Portugal, iniciou funções, enquanto assistente operacional, na Santa Casa da Misericórdia dos ... (...), e reativou a sua empresa de construção civil. O arguido tem uma filha, atualmente com 33 anos, tem três netos, mas apenas conhece o mais velho, que viu ainda recém-nascido. Em Portugal o arguido e a sua ex-companheira residiam em casa arrendada, onde estavam dispensados do pagamento mensal de tal prestação, em troca da realização de trabalhos de manutenção, de jardinagem e domésticos. Aquando do termo da relação afetiva com a assistente, o arguido elevou a frequência e a intensidade dos consumos de álcool. O arguido não possui qualquer fonte de subsistência, bem como não beneficia de enquadramento habitacional. Mantém contacto com uma irmã que reside no Brasil. Desde a sua entrada no EP ..., o arguido tem beneficiado de um tratamento para a problemática aditiva. Revelou-se orientado ao nível espácio-temporal, sem alterações da atividade percetiva, vigilante, com pensamento lúcido, com discurso lógico, coerente e organizado, ajustado à realidade e com normal fluidez verbal. O arguido apresenta desempenho intelectual adequado, sem indícios de dificuldades relevantes ao nível do raciocínio, nem de deterioração dos processos cognitivos ou alterações do funcionamento mnésico. Demonstrou capacidade de discernimento e de crítica, a nível geral, embora mais reduzida quando aplicada a si próprio ou na relação com os factos pelos quais se encontra acusado. AA indicia um padrão de pensamento pautado pela presença de ideações cismáticas e de desconfiança, assim como de um sistema de crenças, que suportam a legitimação da violência conjugal. 34. Não lhe são conhecidos antecedentes criminais. 35. A atuação do arguido provocou na assistente constrangimento, medo e inquietação, fazendo-a temer pela sua integridade física. 36. Sentindo vergonha, desgosto, desalento e mágoa por se sentir vexada e humilhada. 37. A atuação do arguido provocou na demandante receio pela própria vida. 38. Como consequência direta e necessária da referida conduta do demandado/arguido, a demandante sentiu dores, mal-estar físico e psicológico. 39. Como consequência dos actos praticados pelo arguido, a assistente teve consultas de psicologia quinzenais, as quais ainda se mantêm e vão manter. 40. A demandante fez dezassete tratamentos de fisioterapia, iniciando no dia 12-01-2024 e terminando no dia 12-02-2024. 41. A demandante suportou a quantia de € 340,00 (trezentos e quarenta euros) com tratamentos de fisioterapia (17 sessões) na Clínica ... e EMP01..., Lda.. 42. A demandante deixou de poder exercer a sua atividade profissional durante 5 meses, deixando assim de auferir o seu rendimento salarial durante este período. 43. A demandante suportou despesas com uma deslocação aos Serviços do Ministério Público dos ... e duas deslocações ao Instituto de Medicina Legal em ..., que teve que efetuar 44. Foi emitido, ao arguido, certificado de concessão de autorização de residência para cidadãos de países da ... n.º ...6, válido de 30/07/2023 a 30/07/2024. 2.2. Factos não provados Não se provaram quaisquer outros factos com revelo para a decisão da causa, nomeadamente, que: a) A relação amorosa em comunhão de mesa, leito e habitação, de arguido e assistente, durou dezassete anos. b) Nas circunstâncias referidas em 12.º dos factos provados, o arguido seguiu a assistente e disse-lhe que não a tinha visto a caminhar, mas a entrar num carro junto ao .... c) Nas circunstâncias referidas 13.º dos factos provados, o arguido questionou “Você jura que não tem homem?”, tendo a ofendida jurado. d) Da atuação do arguido resultou perigo para a vida da assistente e mais cicatrizes lineares na face lateral esquerda, para além das 3 referidas em 25.º dos factos provados. e) As zonas do corpo atingidas pelo arguido alojavam órgãos vitais. f) Ao agir do modo descrito em 5.º dos factos provados o arguido levou a assistente a crer, como conseguiu, que a qualquer momento atentaria contra a sua integridade física e até a sua vida. g) Para além da situação mencionada no ponto 5.º dos factos provados, o arguido tivesse, nesse período temporal, anunciado à ofendida que a mataria, agindo com intenção de gerar na ofendida sentimentos de humilhação e vitimização, mercê do medo a que a expunha. h) A assistente sofreu um grave dano estético permanente. i) A assistente fez fisioterapia diariamente. j) A assistente teve um prejuízo no montante global de € 6.000,00 (1.200,00 € x 5 meses). k) A demandante suportou despesas e prejuízos com três deslocações que teve de efetuar ao escritório da Advogada em ..., outra deslocação aos Serviços do Ministério Público para além da referida em 43.º dos factos provados, tendo despendido nestas deslocações e ainda nas deslocações referidas em 43.º dos factos provados, quantia nunca inferior a € 250,00 (duzentos e cinquenta euros). l) O arguido é pessoa modesta. m) Era uma pessoa tida pelos seus pares e vizinhos como pacato, trabalhador e respeitoso. n) Estava integrado na comunidade local e na sociedade, não lhe sendo conhecida qualquer altercação anterior. o) O arguido não teve intenção de matar a assistente. Matéria a que não se responde por se tratar de imputações conclusivas, genéricas, abrangentes e difusas, o que não permite um efetivo contraditório e viola as garantias de defesa do arguido: «fosse porque aquele se mantivesse vinculado psíquica e emocionalmente à vítima e não aceitasse o desfecho daquela relação amorosa, fosse porque movido por ciúmes e desconfianças, sentimentos e emoções que nem sempre foi capaz de gerir e debelar, por carecer de recursos na sua estrutura emocional, associado ainda aos hábitos de consumo abusivo de álcool, ou por outras razões não concretamente identificadas e, não obstante aquele interregno da relação – o arguido desde 28/11/2023 adotou um comportamento controlador e de ciúmes para com a sua ex-companheira». «Sabendo que tais motivos que o determinavam eram de valor insignificante face ao valor vida que punha em causa, ao ponto de nem sequer ser um começo de explicação para a sua ação» «Decidiu também o arguido empregar um meio que atuado em certa zona vital sabia ser suficiente para consumar a morte da ofendida, assumindo a resolução de matar com imperturbada indiferença.» «O arguido prevaleceu-se sempre da fragilidade a que a expunha ao praticar grande parte dos factos dentro de casa, reduto da intimidade da mesma e local onde esta se devia sentir mais segura e protegida do que em qualquer outro, dificultando dessa forma o auxílio de terceiros.» «molestar a ofendida no seu corpo psíquico e emocional» «sentimentos que se foram instalando e residindo na sua estrutura mental e emocional como formas de estar, criando um vínculo com a ofendida baseado no poder e controlo do arguido sobre a mesma.»
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2.3. Convicção do Tribunal.
O Tribunal fundou a sua convicção na análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência, depois de criticamente analisada, à luz das regras da experiência comum e da verosimilhança, naquela se incluindo:
A. As declarações do arguido e da assistente. B. Os depoimentos das testemunhas. C. Os esclarecimentos da Sra. Perita. D. Relatórios de avaliação de dano corporal em direito penal, de fls. 179, 180, 240 a 242 e 378 a 380; relatório de Perícia Psiquiátrica Forense, de fls. 197, 198, 339 a 343; relatório de Exame Pericial do LPC, de pesquisa de vestígios biológicos e exame de ADN, de fls. 283 a 285; relatório de Exame Pericial do LPC, de determinação de perfil genético da amostra referência do ADN, de fls. 291. E. Auto de notícia de fls. 4 a 6; relatório de diligências iniciais a fls. 27 a 32; auto de reconstituição do facto, de fls. 36 a 41; autos de apreensão de fls. 46 a 48 e 107 (faca de cozinha, roupas do arguido e da ofendida e telemóvel arguido, respetivamente); relatório de exame à residência, de fls. 49 a 76; reportagem fotográfica de fls. 77 e 78; registos clínicos da ofendida de fls. 81, 97 a 104, 202, 269; fotografias da ofendida, a fls. 105 a 106; auto de exame direto de fls. 279 e 280; autorização recolha zaragatoa ofendida, de fls. 287; autos de transcrição (áudios remetidos pelo arguido a familiares da ofendida), de fls. 299 a 307, 310 a 325; declarações de folhas 308. F. O certificado de registo criminal e o relatório social juntos aos autos. G) Informação da AIMA de 13-11-2024. O arguido prestou extensas declarações, esclarecendo que teve um relacionamento de 16 anos com a assistente, situando o seu início no dia 24-8-2004, tendo vindo para Portugal em 2005, terminando a relação em 2021. Após refletir sobre as incongruências ínsitas na cronologia que fez, acabou por confirmar que a assistente terminou a relação em março de 2023, por telefone, uma vez que tinha ido para o Brasil para prestar apoio a familiares, regressando a Portugal em 28-11-2023. Enquanto esteve separado da assistente teve outras namoradas e manteve o contacto com aquela que, entretanto, lhe pediu ajuda para regressar a Portugal. O arguido prontificou-se a ajudá-la, acolhendo-a na sua casa e inclusivamente diligenciando pelas formalidades necessárias e adquirindo um telemóvel para seu uso. Afirmou que o fez na esperança de reatar o relacionamento amoroso com a assistente. Instado quanto ao motivo que o fez pensar nessa possibilidade, disse que a assistente, apesar de lhe ter dito que não queria reatar o relacionamento amoroso, acabou por dizer «ninguém sabe o dia de amanhã». Quando a assistente chegou, a 28-11-2023, reafirmou que não pretendia reatar o relacionamento, o que o arguido respeitou, impondo como condição que ela não poderia ter outro relacionamento amoroso, enquanto estivesse em sua casa, tal como ele também não teria. Disse que tal imposição seria para evitar comentários de terceiros. No dia 16-12 esteve todo o dia em casa, porque o seu trabalho decorria num telhado, mas nesse dia chovia. Ouviu a assistente falar ao telemóvel e apercebeu-se da chegada de um carro que a veio buscar, o que o fez ficar em sofrimento e desesperado, passando o dia a ingerir bebidas alcoólicas. A assistente queria almoçar com o arguido no dia 17, tendo este reservado mesa no restaurante, para ambos. Pelas 22h a assistente enviou-lhe uma mensagem dizendo «infelizmente não vai dar para almoçar com você amanhã, tenho outro compromisso». Contactou telefonicamente os filhos e amigos no Brasil, dizendo que podia entrar em desespero, instado a esclarecer o que pretendia dizer com isso, disse que pensava em matar-se. Quanto à matéria do artigo 6.º da acusação, o arguido admitiu que poderia ter dito as frases por mensagem, durante a noite. O arguido foi confrontado com as mensagens transcritas nos artigos 9.º a 12.º da acusação confirmando o seu teor, esclarecendo que estava embriagado e que não dormiu. Na manhã de domingo, a assistente chegou pelas 9h00, e disse «Não vou almoçar, já tá sabendo de tudo não adianta seguir.» e voltou a sair. O arguido também ia a sair de casa, tendo-a visto a entrar num carro no parque de estacionamento do supermercado ..., onde ele também se dirigira e comprara 40 garrafas de cerveja. O arguido regressou a casa, onde continuou a ingerir cerveja. A assistente regressou a casa pelas 14h30. O arguido disse-lhe que já sabia de tudo e a assistente confirmou que tinha um relacionamento, dizendo-lhe «A polícia vai vir te buscar, porque você tá ameaçando a minha família». O arguido sentou-se fora de casa e a assistente começou a gritar com ele. Instado, disse não ter a certeza se disse à assistente que a ia matar. Pelas 19h00 ou 20h00 pegou na faca, dirigiu-se ao quarto da assistente, que estava na cama, tendo esta gritado por socorro; ao empunhar a faca perto da assistente, esta agarrou a lâmina, cortando-se. Instado, disse que não se recorda de mais nada, apenas da chegada do FF, que lhe pediu a faca. Não se recorda se entregou a faca, «não sabia o que estava acontecendo», deram-lhe água. Saiu da casa e deitou-se no chão, passado cerca de meia hora, ou uma hora, melhorou e entregou-se às autoridades, a cerca de quinze metros da casa. Declarou estar arrependido pelos seus atos e pediu desculpa. BB relatou que iniciou uma relação de união de facto, com o arguido há cerca de quinze anos, em 2008, confirmando ter nascido em ../../1963. Quando residia com o arguido foi-lhe dizendo que a relação «não dava mais», mas oficializou o fim da relação numa altura em que tinha ido ao Brasil para prestar auxílio a um familiar, que se encontrava doente. Passados cerca de seis meses, pediu ao arguido para ficar «um tempinho em sua casa», pois pretendia regressar a Portugal para trabalhar «a fim de descontar para a sua reforma». Instada, disse que, numa primeira abordagem o arguido negou o seu pedido, mas continuaram a conversar e ele acedeu, mas ela nunca lhe deu esperança de reatar a relação amorosa. Regressou a Portugal em 28-11-2023, tudo decorrendo com normalidade no primeiro dia, em que se cumprimentaram com um abraço. No dia seguinte, ele começou a dizer-lhe que ela tinha homem, que estava ali porque tinha «arrumado uma pessoa». Com o decurso do tempo, o arguido dizia-lhe que se tivesse homem o matava, que se matava e posteriormente começou a «falar» que a matava. A assistente sentia medo, sem nunca pensar que o arguido poderia concretizar o que dizia. Na madrugada de 16 para 17-12-2023, quando a assistente estava a trabalhar, o arguido contactou-a por telefone fazendo referência à reserva de restaurante que tinha feito, para ambos almoçarem, tendo a assistente dito que queria descansar. O arguido disse-lhe que ela tinha homem, que isso «não ia dar» e que ia matar os dois. Instada, disse que apenas soube do «almoço» nesse telefonema, da inteira iniciativa do arguido. A assistente chegou a casa pelas 11h00, trocou de roupa e disse ao arguido que ia caminhar e se ele quisesse podia segui-la. Quando estava a chegar da caminhada, o arguido telefonou-lhe dizendo que a tinha seguido e que ela não tinha ido caminhar. O arguido chegou pouco depois, com compras, disse-lhe que ela tinha um homem, que ia matar, «enfiava a faca e pronto». Acrescentou que a ia matar também. A assistente apenas saiu do quarto pela noitinha para «fazer mingau». O arguido permaneceu sempre alterado, gritava de modo a que a assistente ouvisse no quarto, perguntava pela faca, dizia que ela tinha escondido a faca. Instada, disse que o arguido aparentava estar alcoolizado, havia garrafas de cerveja em casa e que começou a ficar com medo que o arguido pudesse cumprir as ameaças. Pelas 20h00, quando a assistente se encontrava na cama, deitada para dormir, o arguido entrou no seu quarto permanecendo em pé, junto à cama. Tinha a mão dentro do bolso do casaco e perguntou-lhe se tinha homem, respondendo a assistente que não estava atrás de homem, que tinha vindo para trabalhar e não tinha feito nada de errado. O arguido disse «Eu vou-te matar e é agora». A assistente levantou-se da cama em direção da casa de banho, mas caiu entre a pia e a porta e não conseguiu fechar a porta, porque quando a tentava empurrar o arguido empurrava também em sentido contrário. O arguido pôs-se em cima dela, desferindo-lhe golpes com a faca e dizendo «Vou-te matar». A assistente gritava por socorro, pontapeava-o e segurava-lhe os braços. Ouviu o FF gritar «AA», mas o arguido permaneceu em cima de si, tendo depois o FF chegado mais próximo da casa de banho e logrado retirar a faca da mão do AA. Instada, disse que vive assustada, com medo, acha que o arguido está atrás dela. Fez fisioterapia durante 6 meses, despendendo € 350,00. Fez deslocações ao Hospital ... e ..., de autocarro, À noite auferia € 850,00 e na D. GG auferira € 400,00 a € 500,00. Encontra-se medicada com «sertalina», sente tristeza e vergonha. FF relatou que vinha do ..., das compras, pelas 18h00, deixou as compras em casa e ouviu a assistente a gritar «deixa-me, deixa-me». Entraram no apartamento do arguido, viu-o com uma faca na mão, apoiando o joelho em cima da assistente, que estava deitada no chão, em quem desferia facadas. Chamou-o e pediu para parar, mas ele não ouvia, estava «completamente cego», aproximou-se e tirou-lhe a faca num momento em que a BB lhe estava a segurar o braço, tendo o arguido largado a assistente. Saiu do quarto, escondeu a faca, tendo o arguido pedido a faca de volta. O arguido, que estava de leggins, vestiu umas calças e saiu. Instado, disse que o arguido estava embriagado, porque cheirava a álcool. HH é vizinha do arguido, relatando que ouviu a BB gritar «socorro» e «deixa-me». Dirigiu-se à janela e viu o arguido com um objeto na mão, entrou pela casa, foi ao quarto e gritaram para largar objeto, mas ele não parava. A assistente estava sentada no chão e tentava segurar os pulsos do arguido, que se encontrava de pé junto a si. O FF tirou a faca ao arguido, mas ele disse «dá cá isso». A testemunha contactou o número 112 e o FF saiu com a faca e meteu-a num balde. II é psicóloga, acompanhando a demandante desde 1-3-2024. Atualmente tem consulta de 15 em 15 dias, até agora teve 24 consultas. O motivo do acompanhamento foi violência doméstica e tentativa de homicídio. Tem sintomas de trauma, memórias intrusivas e recorrentes do episódio de dezembro, com pesadelos, flash back, revive a situação, tem ansiedade observável quando invoca os episódios. Tem sintomatologia depressiva e stress pós-traumático, achou que ia morrer, tinha vergonha de contar à família, sobretudo dos filhos. Tem medo intenso que volte a acontecer, acha que vê o arguido em qualquer lado, está hiper-vigilante, sente culpa por não ter deixado a relação mais cedo. A assistente não tem a sua situação legalizada, o que lhe traz stress intenso, tem limitações por causa das lesões nos dedos, sente diariamente dor, custa-lhe a trabalhar, o que lhe relembra continuamente o episódio. JJ é amigo da demandante. Foi visitá-la ao Hospital ..., estava ferida no rosto e no ombro. Quando a assistente teve alta hospitalar deu-lhe guarida. Ela queixa-se dos dedos, da falta de capacidade de fazer algumas tarefas, faz esforço para que ninguém perceba, porque precisa de trabalhar. Instado, disse que a assistente se queixa com dores. KK relatou que conhece o arguido porque este e a demandante residiram num anexo de sua casa. Sempre foram pessoas que estimou, pois foram prestáveis para com os seus pais que também residiam na mesma morada. Enunciados os meios de prova, passemos à análise crítica, descrevendo os pilares que estão na base da construção da convicção do tribunal. Começando pelas declarações do arguido, o seu discurso foi pouco assertivo, desenvolvendo determinados segmentos dos acontecimentos com inusitado rigor, mas alegando falta de memória para outros, inclusivamente mais recentes, designadamente, no que se reporta ao momento em que começou a esfaquear a assistente. Do seu discurso, conjugado com o teor do relatório social, depreende-se que nunca aceitou o fim do seu relacionamento com a assistente e que tinha a convicção de que o mesmo seria reatado. Não obstante a assistente tenha sido perentória ao afirmar que nunca deu qualquer esperança da possibilidade de reatamento amoroso, o arguido alega que a mera frase «ninguém sabe o dia de amanhã», o fez pressupor essa possibilidade. O arguido foi relatando, com desenvoltura e minúcia, o seu relacionamento com a assistente, mas com incongruências várias, a começar desde logo pela data do fim do relacionamento de ambos e pela data do regresso da assistente a Portugal. O seu discurso foi marcado pela insistência no facto de impor à assistente a condição de que não poderia ter um relacionamento amoroso com outro homem, enquanto vivesse em sua casa. Segundo o arguido, essa imposição tinha como fundamento evitar que as pessoas fizessem comentários depreciativos sobre a sua pessoa. Quanto aos factos do dia 17-12-2023, explica que tenha saído de casa, na manhã de domingo, à mesma hora que a assistente, por mera coincidência, sendo maior coincidência que ambos se tivessem deslocado para o ..., pois segundo o arguido, ele foi ali comprar cerveja e a assistente entrou no carro de um homem no estacionamento do supermercado. Quanto à utilização da faca, o arguido insiste que não tinha intenção de matar a assistente, apenas admite ter empunhado a faca perto da assistente, que começou a gritar por socorro e agarrou na lâmina, quanto ao mais, alega ter-se esquecido. Claramente, o número de golpes desferidos, pelo arguido, na assistente desmente, totalmente, esta versão. Assim, o Tribunal considerou a versão dos factos apresentada pela assistente, apoiada, não só nas regras da experiência e da normalidade, mas também nos demais elementos de prova, designadamente nos depoimentos testemunhais de FF e HH, nos áudios enviados pelo próprio arguido e nos elementos clínicos juntos aos autos. A assistente foi sendo confrontada com a versão que o arguido apresentara, admitindo alguns factos, como o ter terminado «oficialmente» a relação num telefonema efetuada numa altura em que se encontrava no Brasil, ou negando outros, como ter dito ao arguido que tinha outro relacionamento, exibindo mesmo expressões de surpresa quando confrontada com a versão do arguido. Já o arguido, depois de informado das declarações prestadas pela assistente, limitou-se a repisar a sua versão, pretendendo realçar a sua boa imagem e integração social, ou as ajudas que prestou à assistente. Os depoimentos de FF e HH foram absolutamente isentos, objetivos e desprendidos, não revelando qualquer acinte para com o arguido. Estas testemunhas ouviram os pedidos de socorro da assistente e viram o arguido a esfaqueá-la, resistindo quando tentaram impedi-lo de continuar. FF descreveu a atitude do arguido, como de total descontrolo. II depôs sobre as consequências dos factos sobre a assistente, de acordo com o acompanhamento profissional que lhe tem vindo a prestar. JJ depôs de forma enxuta e seca, também sobre o acompanhamento que fez, da situação da assistente. Estas testemunhas não conhecem o arguido, contudo mostram simpatia pela situação da assistente. KK tem consideração por arguido e assistente, pessoas que prestaram assistência aos seus pais, considerando-os calmos. A matéria dos artigos 1.º a 4.º teve por base a conjugação das declarações prestadas por arguido e assistente, com particular prevalência das declarações desta última, atendendo às maiores dificuldades do arguido na localização dos factos no tempo. Quanto à matéria do artigo 5.º, o Tribunal valorou as declarações prestadas pela assistente, conjugadas com as declarações prestadas pelo arguido e com o teor das mensagens áudio juntas aos autos e transcritas a folhas 299 a 307 e 310 a 325. Segundo BB tais factos ocorreram mais do que uma vez, contudo não resultou apurado quantas vezes. Já o arguido apenas admitiu que poderia ter proferido tais ameaças por mensagem (o que não podia deixar de negar em face das mensagens transcritas no processo). Importa notar que o arguido insistiu, particularmente, na proibição de a assistente ter outro relacionamento amoroso, percebendo-se a relevância dessa imposição para ele, aliada à evidente expectativa de reatar a relação com a assistente. De resto, as palavras que proferiu nos áudios enviados a familiares da assistente são completamente consistentes com as ameaças de morte em análise. A matéria do artigo 6.º decorre da análise das mensagens que, durante essa madrugada, o arguido enviou aos familiares da assistente, dizendo expressamente «eu vou matar a BB», «eu vou dar uma facada», «vai ser amanhã», enviando inclusivamente a fotografia da faca que iria utilizar para o fazer, dizendo «Eu tou andando com isso aí», «eu vou rasgar ela na hora» e «Amanhã, vai ser o dia amanhã, tá?». Também a matéria dos artigos 7.º a 11.º resultou da análise dos autos de transcrição de folhas 299 a 307 e 310 a 325, conjugado com o auto de apreensão de folhas 107. Relativamente ao que se passou durante o dia 17, a versão da assistente revelou total credibilidade, contrariamente, a versão do arguido apresentou fragilidades, incongruências e memória seletiva. A assistente esclareceu que, pela primeira vez sentiu receio da atitude do arguido durante essa tarde do dia 17, isto porque o arguido incessantemente falava sobre a existência de um homem, perguntando pela faca, dizendo que ela tinha escondido a faca, sendo certo que também lhe dissera que a ia matar. Devido a esse sentimento, a assistente manteve-se toda a tarde no quarto, manteve a janela aberta, contudo a porta não trancava, apenas tendo saído, ao fim da tarde para fazer uma refeição. Quando o arguido entrou no seu quarto, com a mão no bolso, a assistente estava já deitada para dormir, saindo da cama e procurando refugiar-se na casa de banho quando o arguido lhe disse que a ia matar. Esclareceu que fugiu para a casa de banho, porque se seguisse a direção da porta do quarto iria ter que passar pelo arguido. Instada, apenas se recorda de ver o arguido empunhar a faca quando já estava na casa de banho, contudo, neste aspeto, o próprio arguido admitiu ter empunhado a faca na direção da assistente quando ela ainda se encontrava na cama. O auto de notícia foi importante no apuramento dos factos, designadamente quanto às circunstâncias de tempo e de lugar, porque corroborado pelos depoimentos testemunhais dos intervenientes. Do mesmo modo, o relatório de diligência iniciais apenas teve o relevo dado pelos depoimentos testemunhais, isto é, na medida em que o seu conteúdo foi confirmado pelas testemunhas. A matéria do artigo 17.º teve por base, a conjugação dos depoimentos da assistente, FF e HH com os registos clínicos da assistente, as fotografias de folhas 105 e 106 e os relatórios de avaliação corporal. A matéria do artigo 18.º baseou-se na descrição feita pela assistente, que foi confirmada pelos vizinhos FF e HH, alertados exatamente pelos gritos de socorro da assistente. Acresce que, os vários ferimentos que apresentava ao nível dos membros superiores se coadunam com movimentos defensivos. Relativamente às declarações da assistente, o seu relato afigurou-se-nos sincero, não vacilando nem apresentando sinais de inverdade quanto a tal ocorrência. A matéria dos artigos 19.º e 20 tiveram por base a conjugação das declarações da assistente e das testemunhas presentes no local, FF e HH. Foi ainda relevante o auto de reconstituição do facto, realizado no próprio dia 17-12-2023, com a colaboração do arguido, que assumiu que a assistente estava deitada na cama, no seu quarto, que foi à cozinha pegar numa faca e que se dirigiu ao quarto empunhando-a na mão direita, desferindo dois golpes na assistente. As testemunhas confirmaram que o arguido não entregou a faca, antes foi-lhe retirada da mão. As fotografias juntas a folhas 51 a 70 dos autos auxiliam na perceção dos factos relatados, pelos vestígios de sangue encontrados no quarto e na casa de banho, pelo enquadramento do apartamento com o dos vizinhos e a possibilidade de serem audíveis os gritos da assistente e de haver uma janela direcionada ao patamar comum dos apartamentos, pela existência do balde com a faca lá dentro, a análise da faca e pelas roupas ensanguentadas. Os exames periciais de folhas 282 a 285 e 291 (conjugados com o auto de autorização de recolha de zaragatoa de folhas 287) confirmam a existência de vestígios de sangue, com um perfil idêntico ao da assistente, no casaco que o arguido envergava quando foi detido, assim como na lâmina da faca apreendida. A matéria do artigo 21.º teve por base as declarações do arguido e da testemunha HH, corroborados pelo teor do auto de notícia e pelo relatório de diligências iniciais. A matéria dos artigos 22.º e 23.º decorre da análise dos registos clínicos de folhas 81, 97 a 104, 202 e 269, coadjuvados pelas fotografias de folhas 105 e 106. A matéria dos artigos 24.º a 26.º teve por suporte os relatórios de avaliação de dano corporal de folhas 179, 180, 240 a 242 e 377 a 380. A matéria do artigo 27.º teve por suporte os relatórios periciais de folhas 197, 198 e 339 a 343, sendo esta matéria igualmente corroborada pelo depoimento de II. O elemento subjetivo teve por base a conjugação dos factos objetivos que resultaram apurados, conjugados com as regras da experiência e da normalidade, atendendo ainda ao teor do relatório social que carateriza o arguido como manifestando capacidades adequadas ao nível da compreensão, processamento, interpretação e elaboração da informação, o que foi igualmente percetível ao Tribunal durante o seu interrogatório. Efetivamente, resultou das declarações do arguido e da assistente e dos depoimentos das testemunhas no que respeita à forma como aquele atuou, que este é imputável e tem consciência dos atos que pratica, com base ainda em presunção judicial decorrente das circunstâncias que envolveram a atuação do arguido e das regras da normalidade e experiência comuns, consideradas no âmbito do princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 127.º do C.P.P.. As palavras proferidas pelo arguido, referidas no artigo 5.º, atendendo ao concreto circunstancialismo da relação de ambos, são adequadas a provocar insegurança e receio, bem como a restringir toda a conduta da assistente, tal como aconteceria a qualquer outra pessoa colocada no seu lugar. De resto, também se torna evidente que a conduta do arguido tinha como único fito tirar a vida à assistente, atendendo ao descontrolo que a caraterizou, à motivação subjacente e comportamento anterior do arguido, a natureza do meio empregue (perfurante e corto-contundente), a força necessária para desferir os golpes e a grande proximidade física entre arguido e assistente (colocando-se o arguido sobre a assistente que estava deitava no chão), e às partes do corpo da assistente atingidas, designadamente a cabeça e o pescoço. De acordo com os esclarecimentos prestados pela Sra. Perita, em sede de audiência de julgamento, não resultou em concreto perigo para a vida da assistente porque, em concreto, não foi atingido nenhum órgão vital. Mais esclareceu que existe possibilidade de morte por sangramento, sendo do conhecimento comum que as artérias carótidas (principal vaso sanguíneo que leva sangue ao cérebro) e as veias jugulares se situam no pescoço. Atendendo aos ferimentos apresentados pela assistente, conjugados com os depoimentos da própria e das testemunhas presentes no local, verifica-se que a sua atuação defensiva e a intervenção de terceiros foram o único obstáculo à concretização dessa intenção do arguido. A Sra. Perita, ouvida em sede de audiência de julgamento, esclareceu igualmente que a assistente apresentava lesões defensivas. É evidente que o arguido não quis apenas amedrontar a sua ex-companheira. Conclui-se, sem margem para dúvidas, que o arguido sabia da perigosidade do objeto que utilizava, golpeando, repetidamente, a assistente na parte superior do tronco, para desta forma a atingir e tirar-lhe a vida, o que só não logrou pelas razões acima aduzidas. O arguido atuou com firmeza e insistência, aplicando golpes na cabeça e no pescoço da assistente, o que não se coaduna com a alegada intenção de, meramente, assustar. Desta forma, em face do que acabamos de dizer e, ainda, em resultado das declarações da assistente e do depoimento das testemunhas FF e HH e da prova documental e pericial existentes nos autos a que nos reportámos, não se atendeu às declarações do arguido, nesta parte. No que se reporta à motivação do arguido, a mesma decorre da conjugação das declarações do arguido, da assistente, do relatório social e dos áudios de folhas 299 a 307 e 310 a 325. O arguido disse ter-se sentido exasperado ao perceber que a assistente se encontrava com outro homem, tendo recebido confirmação desse facto por parte da própria, segundo alega. A assistente diz igualmente que a conversa do arguido, durante a tarde do dia 17-12-2023 era repetitiva, sobre o tema de a assistente ter uma relação amorosa com outra pessoa. Decorre igualmente das regras da experiência que o arguido tem conhecimento da utilização normal dada a uma faca de cozinha e do local adequado ao seu uso. De resto, ainda que o arguido tivesse ingerido bebidas alcoólicas, não restam dúvidas de que estava ciente dos seus atos, que foram pensados e mesmo anunciados. A matéria do artigo 33.º teve por base a análise do relatório social, confirmado pelo arguido. A ausência de antecedentes criminais resulta do certificado de registo criminal de folhas 397. A matéria dos artigos 35.º a 37.º resultou da conjugação das declarações da assistente, com o depoimento das testemunhas II e JJ, à luz das regras da experiência e da normalidade, tudo corroborado pelo teor do relatório de perícia psiquiátrica forense de folhas 197, 198 e 339 a 343. O documento de folhas 388, conjugado com as declarações da assistente serviu de suporte à matéria dos artigos 40.º e 41.º. A matéria relativa às consultas de psicologia teve por base o depoimento de II. A incapacidade para o trabalho da assistente resulta do relatório pericial de folhas 378 a 380, tendo JJ confirmado que tem prestado ajuda à assistente, devido à sua falta de rendimentos. A Sra. Perita subscritora do relatório de avaliação de dano corporal esclareceu que a menção a existência de perigo para a vida da assistente, feita no relatório de folhas 242, resultou de um lapso, esclarecendo ainda que nas partes atingidas não estão alojados órgãos vitais, havendo, contudo, perigo de sangramento. Mais esclareceu que as lesões verificadas na mão direita são tipicamente defensivas, o que serviu também de base à matéria dos artigos 18.º e 29.º. A matéria do artigo 43.º resulta da análise dos próprios autos, decorrendo das regras da normalidade e da experiência que existem despesas inerentes às deslocações, sendo que a assistente residia nos ... e teve que se deslocar a .... A matéria do artigo 44.º teve por suporte a informação remetida aos autos, em 13-11-2024, pela Agência para a Integração, Migração e Asilo. No que respeita aos factos não provados, fundou o Tribunal a sua convicção negativa quer na circunstância de ter resultado provado apenas o que consta da matéria de facto, quer por não ter sido feita prova nesse sentido. No que se reporta à matéria da alínea f) o Tribunal atendeu às declarações da assistente que referiu que nunca pensou que o arguido fosse capaz de atentar contra a sua integridade física, ou contra a sua vida. Efetivamente, a assistente apenas considerou tal hipótese, durante a tarde do dia 17-12-2023, ao ouvir o discurso do arguido, que insistia que ela tinha um relacionamento com outro homem, procurando uma faca. A matéria da alínea h) resulta das conclusões vertidas no relatório pericial de folhas 378 a 380. Uma última nota para consignar que, embora o arguido tenha verbalizado encontrar-se arrependido, as suas palavras não obtiveram respaldo na posição processual que adotou em julgamento, momento em que apenas descreveu, até com minúcia, factos irrelevantes, mas que, na sua ótica, o beneficiariam, alegando falta de memória para o momento em que esfaqueia a assistente, contrariando inclusivamente aquilo que consta no auto de reconstituição de folhas 37 e seguintes, no qual descreveu, não só os golpes que desferiu, bem como as palavras que proferiu enquanto o fazia. Acabou por dizer-se arrependido daquilo que tinha feito à assistente, sem, contudo, admitir tê-la esfaqueado, pelo que não mereceu credibilidade a sua declaração, que se afigurou apenas como uma tentativa de obter benevolência por parte do Tribunal. Assim, de acordo com a conjugação dos elementos de prova mencionados supra e ainda com o princípio da livre apreciação da prova, concluiu este Tribunal pela ocorrência dos factos nos termos supra descritos.
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3. Enquadramento jurídico-penal
Apurados os factos importa agora proceder ao seu enquadramento jurídico. A acusação imputa ao arguido a prática dos crimes indicados no relatório do presente acórdão. Vejamos, se perante a factualidade apurada se pode afirmar que o arguido cometeu o crime de homicídio qualificado, na forma tentada, agravado pelo uso da arma de fogo que lhe é imputado. A este respeito, prevê o art.º 131.º: “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”. Assim se pretende proteger o bem jurídico supremo – a vida humana –, punindo-se de forma particularmente grave o agente que causar a morte de outra pessoa. A propósito dos crimes tentados, esclarece o art.º 22.º, n.º 1, que “há tentativa quando o agente praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se”; entre outros, e nos termos do n.º 2, b), do mesmo artigo, são atos de execução “os que forem idóneos a produzir o resultado típico”. Ocorre ademais que o tipo legal de crime em apreço, sendo um crime de resultado, admite a figura da tentativa, já que a sua estrutura normativa é intrinsecamente conatural aos «crimes tentados». A tentativa existe, nos termos do art.º 22.º do C. Penal, quando o agente praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se, sendo atos de execução: - os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; - os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou - os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam atos das espécies ora elencadas. No caso, não há dúvida que o meio empregue – uma faca de cozinha com 12,5 cm de lâmina –, a circunstância de o arguido com ela ter desferido vários golpes na assistente e a parte do corpo atingida (cabeça e pescoço), eram, em conjunto, idóneos a produzir o resultado morte, típico de um crime de homicídio, pelo que são atos de execução deste crime. Não tendo sido produzido aquele resultado, por factos alheios ao arguido (no caso, a resistência física que a assistente conseguiu opor e a intervenção de terceiros com o consequente transporte da vítima para o hospital), verificou-se um crime de homicídio na forma tentada – artigo 23.º n.º 1 do Código Penal. Quanto ao tipo subjetivo, ficou demonstrada a intenção do arguido pôr termo à vida da assistente, agindo assim com dolo direto. Cometeu, assim, o arguido na pessoa da assistente um crime de homicídio na forma tentada, com dolo direto. A atenuação da pena prevista no art.º 23.º, n.º 2, aplicável ao caso, será apreciada após a apreciação das qualificativas do crime base, invocadas pela acusação.
Da qualificação. Dispõe o art.º 132.º, n.º 1, que “se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos”. O n.º 2 deste último artigo apresenta um elenco de circunstâncias suscetíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade, umas relativas ao agente e outras ao facto. Na acusação, refere-se não só a alínea b) deste n.º 2 – “praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação (…) ” – e a alínea e) – ser o agente “determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil” – como também a alínea j) do mesmo número – “agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas”. Sendo a indicação legal do art.º 132.º, n.º 2, meramente exemplificativa, isso implica que podem constituir “crimes qualificados condutas que não se enquadram em qualquer desses índices e o não possam constituir outras que, identificando-se com eles, não revelem a censurabilidade ou perversidade que qualificam a ação e realizam o tipo legal” (Leal Henriques e Simas Santos, «in» Código Penal, 2.º vol., anotado, 1996, pág. 39). Ou seja, “nem sempre que está presente algum dos indicadores das diversas alíneas do n.º 2 se verifica o crime qualificado, bastando para tanto que, no caso concreto, esse indicador não consubstancie a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o n.º 1; mas que, na presença deste último elemento, está-se perante um crime de homicídio qualificado mesmo que se não verifique qualquer daqueles indicadores” (Ac. do STJ de 10 de outubro de 2002, «in» www.dgsi.pt, doc. n.º SJ2002101000257755). Assim, a formulação legal acaba por propiciar ao aplicador da lei uma maior flexibilidade na apreciação das circunstâncias especiais de cada crime, uma vez que a qualificação não faz parte do tipo de ilícito, mas se consubstancia, afinal, em elementos constitutivos do tipo de culpa, neste sentido, vide Jorge de Figueiredo Dias, «in» Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, t. I, págs. 26 e seguintes. Na verdade, só se pode decidir que a morte foi causada em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente através de uma ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto. No caso concreto e começando pela alínea e), é evidente que carecem os autos de factos que permitam enquadrar a atuação do arguido nos conceitos de avidez, prazer de matar ou causar sofrimento, e excitação ou satisfação do instinto sexual. Resta, portanto, a questão do motivo torpe ou fútil. Apurou-se, a este propósito, que o arguido atuou assim por estar convencido que a assistente tinha um relacionamento amoroso. Conforme é dito no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-04-2015 (processo n.º 176/13.7JAFAR.E1.S1), consultado no endereço eletrónico da dgsi, «A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem-se pronunciado a respeito da motivação de tipo passional, concretamente sobre o ciúme considerando que esse não é de modo algum um motivo fútil, ou seja, aquele «motivo gratuito, frívolo, despropositado ou leviano avaliado segundo os padrões éticos geralmente aceites na comunidade (…) pois envolve necessariamente energias da pessoa, domina-a, determina em grande medida o seu comportamento» (cfr. v.g. Ac. de 2012.01.31, proc 894/09.4PBBBR.S1). É sabido, aliás, que o ciúme comporta uma dimensão instintiva que por vezes é relacionada, segundo alguns, com um sentimento de receio de perda, real ou imaginário, que seria revelador de falta de confiança e baixa auto-estima podendo assumir características de transtorno obsessivo aspecto que o demarcam claramente daquela atitude de gratuitidade e frivolidade já mencionada.».
Ora, o arguido estava convencido que a assistente tinha outro relacionamento amoroso, o que o incomodava, fosse por ver frustrada a sua expectativa de reatar a relação com a BB, fosse por se sentir despeitado e temer comentários de terceiros. Independentemente da eventual falta de consistência desta desconfiança, certo é que o arguido optou pela sobreposição do seu ressentimento pessoal, pelo dever de respeito pela liberdade de escolha que a vítima detinha sobre a sua própria vida, pelas suas opções em matéria de relações pessoais e íntimas, com menosprezo pelo dever de respeito mútuo e de confiança subjacente à relação de vida existente entre ambos. Assim, entende-se que o motivo subjacente à atuação do arguido não pode ser considerado frívolo ou gratuito, atendendo às circunstâncias de vida de arguido e assistente, e aos factos que antecederam o ocorrido, designadamente a imposição que fizera à assistente para a acolher em sua casa (e a importância que tinha para si) e as «desconfianças» que dominavam o arguido. Assim, tendo ficado demonstrado o motivo que levou o arguido a cometer o crime, o mesmo não permite concluir pela existência da agravação da alínea e). Para a alínea j), que prevê vários tipos de premeditação, também não se provou que o arguido persistiu na intenção de matar por mais de 24 horas ou de ter havido, da sua parte, reflexão sobre os meios empregados. Efetivamente, o arguido enviou mensagens a familiares da assistente afirmando que a ia matar, mas isso sucedeu horas antes de abordar a assistente no quarto. Inclusivamente, enviou fotografia da faca que iria utilizar, mas essa reflexão sobre o meio a utilizar para concretizar os seus intentos exige um grau de maturação e ponderação que, no caso, não ocorreu.
Conforme se explana no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-01-2019, processo n.º 4123/16.6JAPRT.G1.S1, consultado no endereço eletrónico da dgsi, «Contempla este exemplo-padrão, sob o denominador comum da premeditação, a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas. Trata-se de circunstâncias agravativas relacionadas com o processo de formação da resolução criminosa.
Segundo Fernando Silva (Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas, Quid Juris, 2008, 2ª edição, págs. 60 e segs.), «A ideia fundamental nesta circunstância é a da premeditação. Pressupondo uma reflexão da parte do agente. O que acontece é a influência do factor tempo, e o facto de se ter estudado a forma de preparar o crime, demonstram uma atitude de maior desvio em relação à ordem jurídica. O decurso do tempo deveria fazer o agente cessar a sua vontade de praticar o crime, quanto mais medita sobre a sua prática mais exigível se torna que não actue desse modo». «Nestes casos o agente prepara o crime, pensa nele, reflecte sobre o acto, e mesmo assim decide matar, combatendo a ponderação que se lhe impunha». A premeditação, reveladora, indiciariamente, de especial censurabilidade ou perversidade na prática do crime, surge, assim, materializada em três situações: A frieza de ânimo, que, na expressão do Acórdão de 06.01.2010 (proc. 38/08.2JAAVR.C1.S1- 3ª Secção - relator Cons. Oliveira Mendes), se traduz «na actuação calculada, reflexiva, em que o agente toma a sua deliberação de matar e firma a sua vontade de modo frio, denotando um sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima, ou seja, quando o agente, tendo oportunidade de reflectir sobre a sua intenção ou plano, ponderou a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto» (neste mesmo sentido, cfr. Fernando Silva, in, “Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas”, Quid Juris, 2008, 2ª edição, págs. 83 e 84 e entre muitos outros, os Acórdãos do STJ, de 17.04.2013 (proc. nº 237/11.7JASTB.L1.S1-3ª Secção- Relator Raul Borges); de 13.11.2013 ( proc. Nº 2032/11.4JAPRT.P1.S1-3ª Secção- Relator Cons. Maia Costa); de 19.02.2014 ( proc nº 168/11.0GCCUB.S1-3ª Secção- Relator Cons. Santos Cabral) e de 12.03.2015 ( proc. nº 405/13.7JABRG.G1.S1-5ª Secção- Relator Cons. Francisco Caetano). A reflexão sobre os meios empregados, segundo Manuel Leal Henriques e Manuel Simas Santos (Código Penal Anotado, 3ª ed., II vol., págs 27 e 28), consiste na escolha ponderada pelo agente dos meios de atuação que, por força do efeito letal que possuem, facilitem a execução do crime projectado ou proporcionem mais probabilidades de êxito. Traduz-se, deste modo, na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de acção para o executar, significando, no dizer do Acórdão do STJ, de 14.05.2009 (proc. 389/06.8GAACN.C1.S1 - 3ª Secção - relator Cons. Armindo Monteiro), «um amadurecimento temporal sobre o modo de o praticar, a congeminação serena e perdurante no campo da consciência da ideação de matar e dos meios a usar». A persistência na intenção de matar por mais de 24 horas (premeditação propriamente dita), traduzida na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de acção para o executar e na persistência no propósito de matar por mais de 24 horas, tempo considerado suficiente para o agente poder vencer emoções, ultrapassar impulsos súbitos e ponderar o alcance e consequências do ato (Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Vol. I, 2ª ed., págs. 83 e 84 e Fernando Silva, in, “Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas”, Quid Juris, 2008, 2ª edição, págs. 83 e 84) .». Atendendo ao desenrolar dos acontecimentos, os sucessivos aspetos que foram acrescendo à frustração do arguido, tais como o declinar do convite para almoçar e a saída de casa da assistente para ir caminhar, não existiu tempo para que o arguido pudesse fazer uma reflexão sobre o seu propósito, e que possa assim indiciar uma especial perversidade da sua conduta. Os acontecimentos desenrolaram-se num crescendo de emoções, alimentadas pela ingestão de bebidas alcoólicas, sem pausa que permitisse uma serena ponderação e reflexão sobre as consequências dos seus atos. Até pela análise das mensagens áudio enviadas se regista que não há traço de frieza, cautela ou calma, mas precisamente de um estado de espírito oposto, de exaltação e arrebatamento, um ato intempestivo, cuja decisão é mais abrupta do que pensada ou fria. Por isso, também se entende não estar verificada nenhuma das circunstâncias da alínea j). De forma diversa se põe a questão quanto à especial relação que ligava o arguido à vítima: à data dos factos, a sua relação enquanto casal tinha terminado há cerca de oito meses. Viveram em união de facto durante cerca de quinze anos. A circunstância agravante da alínea b) do art.º 132.º, n.º 2, “é resultado de uma evolução legislativa no sentido de combate à violência e maus tratos familiares (…) e arranca do pressuposto de que as relações familiares não legitimam o exercício de direitos ou o cumprimento de obrigações de forma chocante e absolutamente intolerável, antes se devendo desenvolver, a bem dos seus membros e da comunidade, num clima de salutar equilíbrio” (Ac. STJ de 23.11.2011, proc. n.º 1081/09.7JAPRT, consultado no endereço eletrónico https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2011:1081.09.7JAPRT.P2.S1.03?search=guiNEmgwRokhTBx9VSE. Ora, pese embora a recente separação, não podia nunca o arguido perder de vista que tinha, num determinado momento da sua vida, escolhido a BB (e ela a ele) para partilhar a vida. Tinha, para com ela – como ela para com ele –, um especial dever de respeito, afeto e proteção. Matar é sempre um ato de violência inaudita; mas, aqui, o arguido escolheu como alvo uma pessoa que lhe devia ser especialmente próxima. Um casamento (ou qualquer outra ligação da mesma índole, ainda que sem vínculo legal) é um ato de vontade mútua, com suporte afetivo particularmente forte. Mas, em vez de privilegiar o respeito que a assistente lhe merece e o afeto que proclama, o arguido foi no sentido diametralmente oposto; procurando por termo à sua vida. Esse anterior laço afetivo e convivência duradoura, acrescido do contexto factual da sua atuação naquele dia – com a atemorização da assistente, os sucessivos golpes desferidos sobre o seu corpo e depois de a colocar numa posição de inferioridade física, as partes do corpo da assistente visadas, praticando os factos na casa que, no momento, partilhavam – leva à conclusão, sem margem para dúvidas, de que houve especial censurabilidade e perversidade na prática do crime de homicídio tentado, aplicando-se-lhe a agravação da citada alínea b). Cometeu, assim, o arguido um crime de homicídio qualificado, na forma tentada. Pretende a acusação que se aplique, a este crime, a agravação prevista no art.º 86.º, n.º 3 e n.º 4, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro (Regime Jurídico das Armas e Munições – RJAM): “As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma”, esclarecendo o n.º 4 que, para os efeitos do número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma “quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente”.
Isto posto, para apreciar se esta agravação se verifica, torna-se necessário analisar o crime de detenção de arma proibida imputado ao arguido. Estabelece o art.º 86.º, n.º 1, d), do RJAM, que quem, “sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo (…) as armas brancas constantes na alínea ab) do n.º 2 do artigo 3.º (…), é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias”.
O art.º 2.º, n.º 1, m), do RJAM define como arma branca “todo o objeto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento superior a 10 cm, (…)”; o art. 3.º, n.º 2, ab), prevê que as armas brancas com afetação ao exercício de quaisquer práticas domésticas, quando encontradas fora dos locais do seu normal emprego e os seus portadores não justifiquem a sua posse são armas da classe A, o que as torna de uso proibido (art.º 4.º, n.º 1, do RJAM).
Ora, é precisamente esse o caso dos autos, uma vez que a arma usada pelo arguido é uma faca de cozinha. Se está em causa uma faca de cozinha, o local do seu normal emprego é a cozinha, sendo uma faca de cozinha com mais de 10 cm de lâmina detida utilizada fora do local do seu normal emprego, como meio de agressão, não existe causa que justifique essa posse. Considerando que o arguido, no dia 17-12-2023, na sequência de um desentendimento, pega numa faca de cozinha, com 12,5 cm de comprimento de lâmina e, de seguida, se dirige ao quarto onde a assistente se encontrava deitada, com ela desfere vários golpes incisos, corto-perfurantes, na zona da cabeça, pescoço e membros superiores, vindo com esta conduta a causar lesões na vítima, bem sabendo que a detenção e uso da faca do modo descrito, era penalmente censurável, encontram-se preenchidos todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.86.º, n.º 1 alínea d), do RJAM, por referência aos artigos 2.º, n.º 1, al. m) e 3.º, n.ºs 1 e 2 alínea ab), do mesmo diploma. Verificado este crime, e porque o arguido trazia consigo, no momento do ilícito, a arma proibida em causa, verifica-se a agravação prevista no artigo 86.º n.º 3 do RJAM, relativamente ao crime de homicídio tentado. Donde, face aos factos constantes dos artigos 28.º, 31.º e 32.º, verifica-se que estão preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivo, este na modalidade de dolo direto, face ao disposto no art.º 14.º, n.º 1 do C.P., dos tipos legais de crime em causa. Além disso, verifica-se ainda que a conduta do arguido é culposa, dado que o mesmo é imputável e agiu com consciência da ilicitude (artigo 32.º). Inapuradas ficaram quaisquer circunstâncias suscetíveis de afastarem a ilicitude e/ou a culpa do agente. Em conclusão, o arguido praticou o crime de homicídio qualificado, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts.º 131.º, 132.º n.º 1 e n.º b), 22.º, n.º 1, 23.º e 73.º, als. a) e b), todos do Código Penal e art.º 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e Munições (RJAM), para além do crime de detenção de arma proibida supra mencionado . Imputa ainda, a acusação, ao arguido um crime previsto no art.º 152.º, n.º 1 b), n.º 2 a), n.º 3 a) e b), n.º 4 e n.º 5: “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. Acrescenta-se a agravação do n.º 2, a), aplicável “se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima”, o que, não alterando o máximo da pena, fixa outro mínimo, de 2 anos de prisão. O n.º 3 agrava as penas, nas suas alíneas a) e b), respetivamente, em caso de resultar ofensa à integridade física grave ou a morte. Pretende-se, com este tipo de crime, proteger a dignidade humana individual, e não qualquer valor comunitário: “a ratio deste art. 152.º vai muito para além dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos (p.ex., humilhações, provocações, ameaças, curtas privações de liberdade de movimentos, etc.)”, devendo por isso concluir-se que “o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que (…) afectem a dignidade pessoal do cônjuge” (A. Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 332) ou das outras pessoas incluídas na norma. A nível internacional, o Conselho da Europa (Ponto 1 do Anexo à Recomendação Rec (2002) 5 do Comité de Ministros dos Estados-membros contra a Proteção das Mulheres contra a Violência, adotada em 30 de abril de 2002, citado por André Lamas Leite, «in» A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o Direito Penal e a Criminologia, Revista Julgar n.º 12, pág. 33) sugere como noção de violência doméstica “todo o acto de violência baseada no género, da qual resultem, ou seja provável que resultem, danos físicos, sexuais e psicológicos ou sofrimento para as mulheres, incluindo ameaças de tais actos, coacção ou privação arbitrária de liberdade, ocorra esse acto na vida pública ou privada”. No caso, arguido e assistente tinham mantido uma relação análoga à dos cônjuges, contudo, no período em apreço na acusação, de 28-11-2023 a 16-12-2023 apenas se apurou que o arguido, pelo menos uma vez, disse à arguida que a mataria, na sequência da condição que lhe colocara de não ter outro relacionamento amoroso. Relativamente a este facto, não se pode concluir que há um atentado à dignidade pessoal, valor protegido pela norma em apreço e que a distingue dos demais tipos de crime que tutelam bens pessoais. Não se vislumbra que exista uma relação de domínio do arguido sobre a ofendida, que fazia a sua vida de modo independente e que tinha anuído a residir com o arguido na condição por ele imposta, aceitando a sua ajuda. Entendemos, assim, que os factos provados não consubstanciam a prática do crime de violência doméstica imputado. Em face da matéria que consta nos artigos 5.º e 28.º importa apreciar se a conduta do arguido preenche a prática do crime de ameaça agravada. Dispõe o artigo 153.º/1 do CP que, «quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.» De harmonia com o disposto no artigo 155.º/1/alínea a), do CP, quando os factos previstos no artigo 153.º, forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos, o agente é punido com a pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias. A integração sistemática deste tipo legal de crime denuncia que o bem jurídico penal protegido é, fundamentalmente, a liberdade individual de decisão e de ação, contra ataques ou afetações antijurídicas. (cf. neste sentido, o Professor Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense, tomo I, Coimbra Editora, 1999, 342). Constituem elementos objetivos deste crime a ameaça a pessoa diversa do agente, com referência à prática de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e a autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, e a adequação daquela ameaça a provocar medo ou inquietação ou a afetar a liberdade de determinação na pessoa do ameaçado. O conceito de ameaça, como elemento central neste tipo, tem sido contemplado na aceção da imposição de um mal futuro, dependente da vontade do agente. Exige-se, ainda, que o mal ameaçado constitua em si mesmo um facto ilícito típico do tipo daqueles que o legislador fez incluir quando desenhou o recorte típico desta norma, quer sejam prosseguidos por ação quer por omissão. Refira-se, igualmente, que o meio escolhido pelo agente para concretizar a ameaça é indiferente para efeitos de verificação do tipo, pelo que, tanto faz que a ameaça se exprima por via oral, escrita ou gestual. Indispensável é que a mesma seja levada ao conhecimento do ameaçado. Neste âmbito, tanto vale que agente ameace “direta e pessoalmente, (…) ou que se sirva de interposta pessoa.” (Sic, Taipa de Carvalho, op. cit. p.348.). Por outro lado, é requisitado pelo tipo que a ameaça seja adequada a provocar no ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. Este elemento típico assim descrito remete-nos para a opção legislativa da estruturação deste crime como de resultado ou de mera atividade (cf. o Professor Figueiredo Dias, Apud Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, Rei dos Livros, 1993, p. 232.). Como ensina o Prof. Taipa de Carvalho, “deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”). Ao nível dos elementos subjetivos o tipo exige o dolo em qualquer das modalidades contempladas no artigo 14.º do Código Penal, relativamente à “consciência (representação e conformação) da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado.” (Sic, Taipa de Carvalho, ibidem, p.351). O que se exige é que a ameaça, o anúncio do mal futuro, seja suscetível de afetar a paz individual ou a liberdade de determinação. Se essa suscetibilidade se prolonga mais ou menos no tempo é irrelevante para efeitos de incriminação. Se o visado não ficou condicionado nas suas decisões e movimentos dali por diante é, igualmente, irrelevante. O que é decisivo é que, ainda que por momentos breves, o anúncio daquele mal, depois não concretizado, fosse suscetível de afetar aqueles bens jurídicos, fosse capaz de gerar medo, inquietação ou de prejudicar a liberdade de determinação. Ora, revertendo ao caso ajuizado, à luz destas considerações, concluímos que ao dizer à assistente que a mataria, a conduta do arguido é efetivamente suscetível de ser perspetivada como a cominação de um mal futuro, sobretudo num contexto de ameaças dirigidas ainda a um eventual parceiro amoroso da assistente. É que, atento o contexto em que foi proferida tal ameaça, e dados os foros de seriedade com que foi proferida, sendo arguido e assistente ex-companheiros, é suscetível de intimidar a ofendida na sua liberdade de determinação. Resultou demonstrado que, no contexto ajuizado, o arguido pretendeu transmitir à ofendida que estava na disposição de atentar contra a sua vida, em momento que escolhesse, com o intuito de a deixar com medo e perturbada. Que ao proferir a expressão que proferiu, atuou o arguido com o propósito de provocar receio na assistente, sabendo perfeitamente que tal expressão era idónea a provocar nesta, sentimentos de receio e de inquietação. De resto, consistindo o mal ameaçado na morte da visada, é evidente que a conduta da agente integra a previsão do artigo 155.º/1/ alínea a), do CP, por apelo ao disposto no artigo 131.º, do C. Penal.
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O arguido está acusado, ainda, de ter cometido os referidos factos em concurso efetivo. Como resulta da matéria de facto e do que já se explanou, foram três as atuações do arguido. Em consonância com o disposto no art.º 30.º do C.P., “o número de crimes determina-se pelo número de tipos efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”, resultando, assim, inequivocamente de tal preceito, que o legislador consagrou um critério teleológico para a determinação do número de crimes praticados pelo agente, abandonando os critérios naturalísticos abraçados pela doutrina tradicionalista – cfr. Eduardo Correia, in “Direito Criminal”, vol. II, págs. 197 e segs.. Assim, será um critério normativo “que nos consiga dar o número de crimes praticados pelo agente em sentido jurídico penal” (cfr. Faria Costa, in Jornadas de Direito Criminal, CEJ, 1983, pág. 177), o qual decide que o número de crimes há de ser o número de ações entendidas teleologicamente, recorrendo a um critério normativo-valorativo, uma vez que, acima de tudo, a infração é a ilicitude material plasmada no tipo, como negação, pelo agente, dos valores jurídicos protegidos pelo ordenamento jurídico. No caso concreto, conforme resulta da descrição constante da matéria de facto provada, houve lugar a três resoluções criminosas diferentes, relativamente a cada um dos atos que praticou, sendo estes atos ainda passíveis de diferentes juízos de censura jurídico-penal, por afetarem de forma autónoma diferentes bens jurídicos em concreto daqueles que a norma visa proteger. Pelo que se conclui que o arguido cometeu, em autoria material e em concurso efetivo: um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, um crime de detenção de arma proibida e um crime de ameaça agravada.
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3.1. Da escolha e medida concreta da pena
A determinação da medida concreta da pena faz-se, nos termos do art.º 71.º do C. Penal, em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes e atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (estas já foram tomadas em consideração ao estabelecer-se a moldura penal do facto), deponham a favor do agente ou contra ele. Sem violar o princípio da proibição da dupla valoração pode ainda atender-se à intensidade ou aos efeitos do preenchimento de um elemento típico e à sua concretização segundo as especiais circunstâncias do caso, já que o que está aqui em causa são as diferentes modalidades de realização do tipo (neste sentido, Figueiredo Dias, in “As consequências jurídicas do crime”, pág. 234). Por outro lado, a lei estabelece uma preferência pela pena não privativa da liberdade sempre que esta realize “de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” (art.º 70.º do C.P.). A pena do crime de homicídio qualificado (ainda antes da atenuante da tentativa) tem o limite mínimo de 12 anos de prisão, e o seu máximo situa-se no limite legal de 25 anos de prisão. A moldura penal aplicável ao crime de homicídio qualificado, na forma tentada, nos termos previstos pelos arts. 131.°, 132° n.º 2, al. b), 23.º e 73.º, do Cód. Penal, é prisão de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão. Por força do disposto no art. 86°, n° 3, da Lei n° 5/2006, de 23/2, a pena deverá ser agravada de 1/3 nos seus limites mínimo e máximo – já que se trata de um crime cometido com arma e tal circunstância não é elemento do tipo de crime nem foi considerada como agravação do mesmo. Temos pois que, face a tal preceito a moldura penal é de prisão de 3 anos, 2 meses e 12 dias de prisão a 22 anos, 2 meses e 20 dias de prisão. A moldura aplicável ao crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1 alínea d), do RJAM, por referência aos artigos 2.º, n.º 1, al. m) e 3.º, n.ºs 1 e 2 alínea ab), do mesmo diploma é de pena de prisão até 4 anos ou pena de multa até 480 dias. A moldura aplicável ao crime de ameaça agravada é de pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias – artigos 153.º e 155.º n.º 1 a) do Código Penal. Relativamente aos crimes de ameaça agravada e de detenção de arma proibida está prevista em alternativa pena de multa ou pena de prisão. No caso concreto, constata-se que o arguido não tem antecedentes criminais, mas, por outro, considerando o tipo de crimes em causa nos autos, está em questão agora uma atuação que, objetivamente considerada, tem ínsito um elevado desvalor da ação, porquanto o arguido se muniu de uma faca, que utilizou contra uma pessoa (sua então ex-companheira, que com ele coabitava). Donde, atendendo a todas as circunstâncias do caso, à concreta atuação do arguido, afigura-se-nos que a pena de multa quanto aos crimes de ameaça agravada e de detenção de arma proibida não é suscetível de realizar as finalidades da punição, designadamente ao nível da prevenção geral e da prevenção especial - visto que o arguido demonstrou uma já elevada insensibilidade perante o valor de bens jurídicos pessoais protegidos pelo direito - de forma adequada e suficiente. Opta-se, assim, quanto aos crimes de ameaça agravada e de detenção de arma proibida pela pena de prisão. Vejamos as molduras penais abstratas aplicadas aos crimes em apreço. Ao crime de detenção de arma proibida corresponde a moldura penal abstrata de 1 mês a 4 anos de prisão [cfr. art.º 86.º, n.º 1, al. d) do RJAM]. A moldura aplicável ao crime de ameaça agravada é de um mês a 2 anos de prisão – artigos 153.º e 155.º n.º 1 a) do Código Penal. Ao crime de homicídio qualificado corresponde a moldura penal de prisão de 12 a 25 anos (art.. 131º, n.º 1 e 132.º n.º 1 e n.º 2 b), do C.P). Mas, sendo tentado é punível com pena de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão (cfr. arts. 22.º, 23.º n.ºs 1 e 2, 73.º n.º 1 als. a) e b), do C.P.). Porém, nos termos do art.º 86.º, n.ºs 3 e 4, do RJAM, as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, não podendo em caso algum exceder o limite máximo de 25 anos da pena de prisão. Assim, ao crime de homicídio qualificado na forma tentada, agravado pelo uso de arma, corresponde a moldura penal abstrata de 3 anos, 2 meses e 12 dias a 22 anos, 2 meses e 20 dias de prisão [cfr. arts. 22.º, 23.º n.ºs 1 e 2, 73.º n.º 1 als. a) e b), 131.º, n.º 1, 132.º n.º 1 e n.º 2 do C.P. e art.º 86.º, n.ºs 3 e 4 do RJAM]. Há que relevar especialmente o seguinte (anote-se que já não se valoram aqui os factos que foram determinantes para a escolha da pena, por forma a não existir uma dupla valoração): a) quanto ao crime de homicídio qualificado tentado, agravado pelo uso de arma. - O dolo, que ocorreu na modalidade de dolo direto, portanto na sua modalidade mais grave, demonstrando insensibilidade perante o valor da vida humana. - O modo de execução do facto, visto que o arguido utilizou uma faca e com ela desferiu vários golpes direcionados à partes superior do tronco da assistente, designadamente cabeça e pescoço, onde existe a possibilidade de atingir a artéria carótida, ramo da maior artéria do corpo, o que significa que, de entre todas as formas que podem ser utilizadas para praticar a conduta em causa nos autos, esta já reveste uma gravidade muito elevada, fazendo com que a possibilidade de o resultado se vir efetivamente a verificar seja mais elevada e que só não ocorreu, por razões alheias à sua vontade, já que a assistente logrou suster alguns golpes e foi auxiliada por um terceiro, que retirou a faca das mãos do arguido. - O motivo que levou o arguido à prática do facto, atendendo designadamente ao facto de a assistente não ter qualquer compromisso amoroso com ele. - As consequências que resultaram para a vítima, em particular o temor por que passou já que os dizeres e os golpes que o arguido lhe dirigiu e efetuou, convenceram-na que naquele momento acabava a sua vida, o que a atemorizou. - A circunstância de, no caso concreto, nos crimes de homicídio, ainda que se quedem pela fase da tentativa, as exigências de prevenção geral positiva são sempre especialmente intensas, porque a violação do bem jurídico fundamental ou primeiro – a vida – é, em geral, fortemente repudiada pela comunidade. E quando o crime ocorre no contexto de uma relação, que já foi uma relação conjugal, como é o caso, as exigências de prevenção geral são, ainda, acrescidas, em virtude da consciencialização comunitária dos fenómenos de violência de género, particularmente de violência doméstica, e da ressonância fortemente negativa que adquiriram. Por isso, a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na afirmação do direito reclama uma reação forte do sistema formal de administração da justiça, traduzida na aplicação e uma pena capaz de restabelecer a paz jurídica abalada pelo crime e de assegurar a confiança da comunidade na prevalência do direito. - Igualmente, pelos mesmos motivos referidos e atendendo às circunstâncias do caso e à concreta atuação do arguido, descrita na matéria de facto, se mostram também elevadas as exigências de prevenção especial, sendo necessário que aquele consciencialize e interiorize a gravidade dos factos praticados, com isso adequando o seu comportamento futuro às normas da vida em sociedade e ao respeito devido aos direitos, nomeadamente à vida e à integridade física, das outras pessoas.
b) Quanto ao crime de detenção de arma proibida. - A intensidade do dolo, elevada, pois existiu na modalidade de dolo direto. - A ilicitude do facto é elevada, no que concerne à modalidade da ação, visto que em termos de conduta está em causa não só a sua detenção como a sua utilização. - As condições pessoais do arguido que se apuraram, nos termos constantes da matéria de facto. c) Quanto ao crime de ameaça agravada. - A intensidade da culpa, atenta a modalidade de dolo – direto – que revestiu a sua conduta. - A necessidade de prevenir socialmente a obrigação de respeito da liberdade de decisão e a liberdade ambulatória das pessoas, considerando inclusivamente a profusão de condutas do género da ajuizada. - A total ausência de juízo crítico ou sincero arrependimento por parte do arguido, que exacerba as necessidades de prevenção especial a considerar. Sopesando todos os fatores enunciados, considera-se adequado, crendo que assim se satisfazem as finalidades de tutela dos bens jurídicos, sem desatender ao máximo que nos é fornecido pela culpa do arguido, aplicar-lhe as seguintes penas concretas: - ao crime de homicídio qualificado tentado, agravado pelo uso de arma: 5 anos de prisão; - ao crime de detenção de arma proibida: 10 meses de prisão; - ao crime de ameaça agravada: 8 meses de prisão.
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Em face do disposto no art.º 77.º do Código Penal e uma vez que estamos perante um concurso efetivo de crimes há que aplicar ao arguido uma pena única de prisão. Com relevo para esse cúmulo dever-se-á ter em conta que a pena aplicável terá como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão) e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes – cfr. art. 77.º, n.º 2, do Código Penal. Assim, no nosso caso, a moldura penal a considerar é a seguinte: 5 anos (a mais elevada das penas parcelares de prisão aplicadas) a 6 anos e 6 meses de prisão. Tendo por base esta moldura urge determinar a pena concreta a aplicar ao arguido, fazendo apelo em conjunto ao binómio constituído pelos factos e pela personalidade do agente (cfr. art. 77.º, n.º 1, in fine). Tais crimes apresentam um grau elevado de ilicitude, o que se mostra refletido nas respetivas penas parcelares. Fazendo, agora, apelo à personalidade do arguido, cabe ter presente, para além de tudo quanto expusemos supra, que: - o arguido manteve a prática criminosa, com grande e crescente intensidade, persistindo na sua atuação, começando por ameaçar a assistente, e acabando, mais tarde, por munir-se da faca de cozinha e golpeá-la, não logrando o resultado morte por razões alheias à sua vontade; - resulta igualmente dos factos provados que revela, ainda, inconsistente consciência crítica relativamente aos seus comportamentos criminais. Ora, se as necessidades de prevenção geral são elevadas, as necessidades de prevenção especial revelam-se também prementes atendendo à sua personalidade. Tudo ponderado, sublinhando-se que o S.T.J. tem adotado a jurisprudência, na formação da pena única, de fazer acrescer à pena mais grave o produto de uma operação que consiste em comprimir a soma das restantes penas com fatores variáveis, mas que se situam, normalmente, entre um terço e um sexto. E como se lê nos Acórdãos do S.T.J. de 29.04.2010 e 01.07.2012 (referentes aos processos n.ºs 9/07.3GAPTM.S1 e 831/09.6PBGMR.S1, respetivamente, acessíveis na internet em www.dgsi.pt/jstj) que “só em casos verdadeiramente excepcionais se deve ultrapassar um terço da soma das restantes penas”, considerando a conduta desviante manteve, afigura-se-nos adequada a pena única de 5 anos e 6 meses de prisão.
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3.2 Não há lugar à aplicação da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de agosto [diploma que estabelece um perdão de penas e amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude], por não se verificarem os respetivos pressupostos legais, desde logo a idade do arguido à data dos factos.
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3.3 Em sede de despacho de recebimento da acusação foi, ao arguido, comunicada uma alteração da qualificação jurídica, nos termos do art.º 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, para a possibilidade de aplicação de uma pena acessória de expulsão nos termos do art.º 151.º n.ºs 2 e 3 da Lei n.º 23/2007 de 4 de julho. Segundo dispõe o art.º 151.º da Lei 23/2007, de 4/7: 1 - A pena acessória de expulsão pode ser aplicada ao cidadão estrangeiro não residente no País, condenado por crime doloso em pena superior a seis meses de prisão efetiva ou em pena de multa em alternativa à pena de prisão superior a seis meses. 2 - A mesma pena pode ser imposta a um cidadão estrangeiro residente no País, condenado por crime doloso em pena superior a um ano de prisão, devendo, porém, ter-se em conta, na sua aplicação, a gravidade dos factos praticados pelo arguido, a sua personalidade, eventual reincidência, o grau de inserção na vida social, a prevenção especial e o tempo de residência em Portugal. 3 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, a pena acessória de expulsão só pode ser aplicada ao cidadão estrangeiro com residência permanente, quando a sua conduta constitua perigo ou ameaça graves para a ordem pública, a segurança ou a defesa nacional. Nos termos do art.º 144.º do mesmo diploma legal “Ao cidadão estrangeiro sujeito a decisão de afastamento é vedada a entrada em território nacional por período até cinco anos, podendo tal período ser superior quando se verifique existir ameaça grave para a ordem pública, a segurança pública ou a segurança nacional”. Há, assim, que averiguar se se justifica, no caso concreto, a aplicação de tal pena acessória ao arguido, tendo em conta que não está autorizado a residir em Portugal. Da matéria de facto que a este propósito se apurou, constata-se que o arguido AA é nacional do Brasil e que não tem rede de suporte social ou familiar em Portugal. No meio onde habitava a sua conduta é geradora de revolta, com indisponibilidade para proporcionar apoio ao arguido. Por outro lado, a gravidade dos factos por ele praticados, tentativa de homicídio, ameaça e detenção de arma proibida, a circunstância de não ter aqui laços familiares estabelecidos, nem perspetivas de ocupação, e a personalidade demonstrada pelo arguido nos factos que praticou, associada ao interesse de ordem pública de segurança dos cidadãos portugueses, que subjaz à legislação em causa, leva-nos a concluir que se justifica a imposição ao arguido AA da pena acessória de expulsão. Os crimes praticados pelo arguido, atentam, inevitável e gravemente, contra a ordem pública, constituindo este tipo de criminalidade um real perigo social, vendo-se as comunidades mais rurais, crescentemente confrontadas com o aumento da criminalidade violenta. Por fim, a medida concreta da pena imposta ao arguido, permite que lhe seja aplicada a pena acessória de expulsão. Assim, afigura-se-nos justo e equilibrado fixar em 5 (cinco) anos o período durante o qual o arguido AA ficará proibido de entrar e permanecer em Portugal. (…)
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
BB deduziu pedido de indemnização civil, pedindo a condenação de AA a pagar uma indemnização não inferior a € 106 590,00, acrescida de juros calculados à taxa em vigor, desde a notificação do pedido até à sua liquidação. Em consonância com o disposto no art.º 128.º, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil, isto é, pelos arts. 483.º e ss. – responsabilidade civil por factos ilícitos – e 562.º e ss. – obrigação de indemnização – estes do Cód. Civil. Verificada que está a prática, pelo arguido, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, e de um crime de ameaça agravada, sendo vítima a aqui demandante, estão preenchidos os requisitos do facto ilícito e da culpa, na forma de dolo. Resta, portanto, apurar quais os danos indemnizáveis na esfera da demandante/assistente, de natureza patrimonial e não patrimonial.
A título de danos patrimoniais a demandante pede: - € 340,00 a título de valor despendido com tratamentos de fisioterapia; - € 6 000,00 a título de retribuições que deixou de auferir; - € 250,00 a título de despesas com deslocações.
No que se reporta ao valor das sessões de fisioterapia, apurando-se que tal valor corresponde a um custo suportado pela demandante, em virtude da conduta do demandado, deve ser este condenado a suportá-lo. Quanto aos salários que a demandante deixou de auferir, resultou provado que ela ficou incapacitada de exercer a sua atividade profissional durante cinco meses. Contudo quanto a estes danos não se apurou o seu valor exato. Se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados. Assim, impõe-se fixar o montante da indemnização em causa, em homenagem aos convocados princípios e comandos legais, com recurso à equidade, a qual, no ensinamento do Prof. Antunes Varela («in» “Das Obrigações“, I, pág. 599 ), não significa o puro arbítrio, antes implicando o apelo a “ todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida “, ou seja, a justiça do caso concreto. Assim, tendo por base o salário mínimo nacional (fixado no montante de € 820,00 para o ano de 2024), por não ter sido possível apurar em concreto o salário auferido pela demandante, entendo ser adequado e ajustado, e fazendo apelo à equidade - artigo 566º, nº 3, do Código Civil -, compensar tal prejuízo, com a quantia de € 4 100,00 (correspondente ao valor mensal do salário mínimo nacional). Também no que se reporta às invocadas despesas com deslocações se apurou que as mesmas existiram, mas não logrou apurar-se o seu exato valor. Assim, também nesta matéria se fará intervir a equidade para determinação da compensação a fixar. Neste âmbito será tido em conta que foram realizadas três deslocações a ..., residindo a assistente nos ..., percorrendo, portanto, uma distância de cerca de 31 km para cada lado, considerando-se adequada a compensação de € 100,00 a tal título. O que perfaz quanto a danos patrimoniais o montante global de € 4 540,00. Dos danos não patrimoniais invocados: medo, dores, mal-estar, dano estético, limitação da atividade profissional. Quanto às lesões e sequelas atender-se-á à matéria ínsita nos artigos 24.º a 26.º da matéria de facto assente. Para além disso, a conduta do arguido originou na demandante sintomatologia depressiva e ansiosa, medo e angústia, vergonha e humilhação, necessitando de acompanhamento psicológico. Nos termos do art.º 496.º, n.º 1, Código Civil, é evidente que se tratam de danos que merecem tutela jurídica. Devendo a compensação ser calculada por recurso à equidade (n.º 4 do mesmo art.º 496.º), e tendo em conta este impacto na vida da assistente, as sequelas a nível psicológico que se mantêm e demandam acompanhamento especializado, as sequelas físicas que resultaram, para além das cicatrizes (as da cara não facilmente visíveis a distância social e as da mão direita sem desfiguração grave), numa limitação da força da força de flexão dos 3.º e 4.º dedos e alterações de sensibilidade da região da polpa do 3.º dedo. Pelo exposto, julga-se adequada a compensação de € 30 000,00, a suportar pelo demandado. Face à sua fixação tendo em conta a presente data, nos termos do art.º 566.º, n.º 2, Cód. Civil, não vence tal quantia juros de mora a contar da notificação do pedido, mas apenas a partir de agora.
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3 O direito.
A Ocorre erro de julgamento em relação aos factos provados vertidos nos os pontos 5, 6, 14, na parte em que refere vou-te matar, 16, 17, 18 in fine, 28, 29, e em relação aos não provados nos pontos L) a O)?
A matéria de facto dada como provada numa decisão jurisdicional pode ser escrutinada em recurso por dois modos: o primeiro, que é também de verificação oficiosa, está previsto no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e consubstancia uma imperfeição do texto da própria decisão e/ou do raciocínio nele expendido, por si só considerado ou conjugado com o objeto do processo e as regras da experiência, desdobrando-se nos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e erro notório na apreciação da prova; o segundo, previsto no artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, através do qual, e mediante a reanálise de segmentos probatórios testemunhais ou outros, devidamente circunscritos e identificados, se discute a bondade do juízo efetuado na decisão, igualmente em relação a pontos factuais específicos devidamente individualizados, quer por imparidade entre o selecionado conjunto probatório existente e o que foi julgado como assente, quer por incorreta aplicação do principio da livre apreciação da prova.
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No presente recurso, e tendo em conta que não se nos afigura a verificação de qualquer dos vícios respeitantes ao primeiro dos modos do escrutínio da cognição de facto, está apenas em causa o segundo dos modos acima enunciados, consubstanciado na invocação de erro de julgamento.
Atentemos no que consta no Código de Processo Penal em relação ao que ora nos ocupa: Artigo 412.º Motivação do recurso e conclusões (…) 3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas. 4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. (…) 6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
Estamos, deste modo, em face do triplo dever (ónus, segundo outros) que legalmente impende sobre o inconformado recorrente de facto.
Assim, se a indicação dos concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados não apresenta dificuldade de maior, bastando indicá-los tout court, sendo certo que a maior parte das decisões têm a factualidade estruturada através de numeração (convém, todavia, ter presente que alguns números contêm vários pontos concretos), já as concretas provas dizem respeito ao conteúdo específico das provas, não sendo suficiente a simples indicação de uma testemunha ou perícia, por exemplo, para fundar aquela pretensão – quanto à prova gravada, é necessário indicar com precisão o ficheiro áudio de que consta, e até a data da sessão da audiência em que foi produzida, se forem várias, bem como o momento inicial e final (minutos e segundos), na dita gravação, do excerto em causa, e quanto às restantes provas (documental, pericial, apreensões, etc.), o preciso local dos autos em que foram adquiridas e produzidas, designadamente a data ou referência da sua junção, bem como a explicitação da parte ou partes do seu teor que, no entender do recorrente, impõem decisão diversa, não sendo necessária, todavia, atualmente, a transcrição da gravação áudio invocada, tal como esclarece o Conselheiro Pereira Madeira, ob., cit., pag. 1390, nota 6, e resulta do Acórdão n.º 3/2012, de 18 de Abril, DR, n.º 77/2012, Série I, de 18/04/2012, cujo dispositiva reza assim:
Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações.
(Tenha-se presente que se não conhece processo em que se não tenha dado cumprimento ao aludido dever de consignação na ata.)
Observação importantíssima tem que ver com as condições de procedência do recurso em sede de impugnação da matéria de facto. Na verdade, o julgamento efetuado em primeira instância beneficia, em pleno, dos princípios da oralidade e imediaçãoda produção de prova, o que, consabidamente, confere aos julgadores melhores possibilidades de apreciar a prova com rigor e clarividência, permitindo um juízo mais aproximado da verdade material e, portanto, uma mais precisa reconstituição desta.
Por isso, a lei estabelece no preceito ora em análise que a argumentação do recorrente deve conter a indicação das provas que impõem uma decisão diversa, bem como, naturalmente, qual é ela. Que impõem, e não apenas que aconselham, permitem, autorizam ou facultam. E tal exigência não deriva, como muitas vezes se afirma, do princípio da livre apreciação da prova, ínsito no art.º 127.º do Código de Processo Penal, pois este tanto se aplica ao julgamento do tribunal recorrido como ao julgamento do tribunal de recurso; na verdade, tão livre é um tribunal quanto o outro para apreciar a prova; a diferença entre ambos radica, precisamente, na aludida proximidade em relação à prova produzida na primeira instância, a qual confere particulares garantias de fiabilidade do juízo que assim sobre elas se produz, ideia que a lei acolhe expressamente, quando opta pelo vocábulo impõe para autorizar uma alteração daquele julgamento primordial – basta pensarmos na diferença entre um julgador numa sala de audiências com várias pessoas olhar diretamente o arguido, a testemunha ou o perito nos olhos, assistir às suas reações, postura corporal, esgares, hesitações ou assertividade, e olhares, assistir ao seu interrogatório ou formular-lhe as perguntas que entender necessárias, no momento que lhe parecer ser pertinente ou adequado, mostrar-lhe documentos ou outras partes do processo, apreciar, no decurso da audiência, comparativa e simultaneamente as reações isoladas ou recíprocas de uns e outros, enfim, ter perante si este completíssimo e riquíssimo cenário, dir-se-ia teatro até, por um lado, e entre um outro julgador que está durante umas horas, dias ou até mais, fechado no seu gabinete, com uns auscultadores nos ouvidos e de olhos abertos, cerrados ou semicerrados, tentando captar a maior parte que lhe é humanamente possível de toda aquela riqueza de pormenores através da simples audição, para percebermos por que (acertado) motivo a lei tomou a opção acima referida. É, na verdade, esta diferença fundamental de condições que justifica que a intervenção do tribunal de recurso no julgamento da matéria de facto só ocorra se estiver irrefutável e cabalmente demonstrado que há um claro e evidente erro de apreciação, seja por inexperiência, desconhecimento, precipitação ou outro qualquer motivo, de tal modo que se torne absolutamente indiscutível proceder à correção ou acerto da decisão nesta sede.
Assim, e em conclusão, o art.º 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, apenas autoriza a alteração do julgamento de facto quando as provas invocadas pelo recorrente impõem uma decisão diversa, não bastando que a permitam; trata-se de concluir que se impõe quase como um imperativo categórico kantiano um “julgamento necessário” e não apenas que se configura como aceitável ou possível um “julgamento diferente”.
Além disso, é consabido que a jurisprudência e a doutrina entendem de forma unânime que o recurso do julgamento da matéria de facto não se traduz na realização de um novo e inteiro julgamento pelo tribunal recorrido, antes constituindo um meio de sanar evidentes erros, devidamente circunscritos, sendo certo que não se pode negar que a verificação de um desse erros de julgamento possa ter consequências mais ou menos extensas na decisão da matéria de facto, consoante a sua relevância e a matéria a que respeitar. Seguro é que uma pretensão recursiva de inconformismo genérico e total com o julgamento da matéria de facto, traduzida na proposta de uma completa inversão do decidido se afigura como quase inaceitável à luz do teor da nossa lei e da interpretação que dela é feita, como se disse - cfr., a título meramente exemplificativo, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23/04/2008, processo n.º 899/88, de 14/05/2008, processo n.º 1139/08, de 12/06/2008, processo n.º 4375/97 (cfr. ob. cit., pag. 1388 e seguintes).
O princípio da livre apreciação da prova, previsto no art.º 127.º do Código de Processo Penal, estatui que o tribunal aprecia o valor da prova de acordo com as regras da experiência e a sua livre convicção; a ele se contrapõe ao princípio da prova legal, nos termos do qual o valor dos meios de prova é legalmente tarifado.
“O princípio da livre apreciação da prova significa, negativamente, a ausência de critérios legais que predeterminem o valor da prova e, positivamente, que as entidades a quem caiba valorar a prova o façam de acordo com o dever de perseguir a realização da justiça e a descoberta da verdade material, numa apreciação que terá de ser sempre objetivável, motivável, e, por conseguinte, suscetível de controlo.” – cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, Almedina, 4.ª Edição, pag. 202.
Ou seja, este princípio não constitui, evidentemente, uma autorização genérica da lei para decidir de forma arbitrária ou caprichosa, pois a livre convicção terá de resultar sempre de um esforço intelectual e emocional sério, profundo e rigoroso, e da conjugação aturada de todos os elementos nesse campo aproveitáveis dos autos, conferindo e validando essa íntima opção com os dados objetivos e consabidos das regras da experiência, de modo a chegar a uma decisão compreensível e verosímil, da qual até se pode discordar, mas que, intelectualmente, se aceita, pelo menos como possível, razoável, numa palavra, normal. Não é, portanto, necessário que todos concordem com a decisão para que se conclua que foi aplicado o principio em causa com rigor; o que é preciso é que essa decisão observe estritamente os passos e requisitos acima elencados na difícil tarefa de reconstituição histórica e aplicação da lei que aos tribunais incumbe levar a cabo no seu múnus de dirimir litígios na comunidade. Depois disto, e cumprido isto, aceitar ou não a confissão como livre ou eficaz, acreditar nesta ou naquela testemunha, conferir ou não relevância a um documento (sendo autêntico, pode a falsidade afastar o seu valor legal), apoiar-se ou não numa perícia (com especial fundamentação em caso de divergência, é claro), por exemplo, é uma prerrogativa exclusiva do poder jurisdicional. E, como dissemos, este campo da decisão também é sindicável nesta sede, mas para que com ele se bula ter-se-á de concluir pela análise da prova que a decisão assim livremente tomada contraria frontalmente as regras da experiência, põe em causa os mais elementares bom senso e prudência, desafia de modo incontroverso as circunstâncias práticas e humanas da vida, enfim, constitui um autêntico paradoxo, não sendo nunca suficiente a simples invocação do desrespeito dos mencionados preceitos empíricos, ainda que com invulgar clamor, sendo, pelo contrário, sempre e simultaneamente, exigível a sua concreta individualização ou identificação, o que constitui, aliás, um verdadeiro dever intelectual e processual, não podendo, este respeito, esquecer-se a profunda lição do magnifico Óscar Wilde, no Retrato de Dorian Gray, pois, muitas vezes, “ a experiência é o nome que damos aos nossos erros.”
Não obstante tudo o que se disse, devemos procurar sempre dar cumprimento ao norteador Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/10/2010, processo n.º 3518/06-3, citado por Simas Santos/Leal Henriques, Recursos penais, Rei dos Livros, 9.ª Edição, pag. 151, nota 1, segundo o qual “o recurso em matéria de facto (quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto) não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorretamente julgado, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (…) ou da renovação da prova nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer. A reapreciação da matéria de facto, se não impõe uma avaliação global, também se não poderá bastar com meras declarações gerais quanto à razoabilidade do decidido no acórdão recorrido, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objeto do recurso, a reponderação especificada, em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória entre os factos impugnados e as provas que serviram de suporte à convicção. (…). Paralelamente, o regime de impugnação das decisões em matéria de facto não consente a afirmação de que o tribunal de recurso «só pode afastar-se do juízo feito pelo julgador de primeira instância, naquilo que não tiver origem nos dois princípios (oralidade e imediação), ou seja, naqueles casos em que a formulação da convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum»”. Em sentido semelhante, cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/10/2008, processo n.º 3066/08, referido por Pereira Madeira, ob. cit., pag. 1405, no qual se lê que “(…) o recorrente tem direito à reapreciação da matéria de facto fixada em primeira instância pelo tribunal coletivo, o que envolve necessariamente uma nova apreciação das produzidas e a emissão de um novo juízo em matéria de facto, embora rigorosamente restrito aos pontos questionados pelo recorrente. Deste modo, é de rejeitar a interpretação que limita o recurso das matéria de facto à análise da «razoabilidade» da convicção de facto do tribunal coletivo, e exclui uma autêntica reapreciação da matéria de facto, pois coloca-se frontalmente contra legem, por constituir, afinal, a negação da dupla jurisdição em matéria de facto, que o legislador inequivocamente quis introduzir, interpretação que afeta decisão respetiva de nulidade, por omissão e pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c, e 425.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.”
Na verdade, costuma ler-se nas posições enunciadas pelos sujeitos processuais, quando ocorre a impugnação da decisão sobre a matéria de facto que lhes é favorável, a proclamatória afirmação de erigir a oralidade e a imediação a sacrossantos e absolutamente inultrapassáveis pressupostos da decisão, inalcançáveis pela Relação, e, por isso, conferidores de inexpugnável solidez ao assim decidido. Como se vê, não é assim, de todo, sendo que os poderes da Relação tanto se dirigem às puras imparidades probatórias como à razoabilidade da operacionalização da livre apreciação da prova, sendo que, em qualquer caso, se tratará sempre de uma imposição, afigurando-se evidente ser mais fácil surpreender essa imposição nos casos de imparidade do que nos restantes - uma coisa é saber se a testemunha A ou o documento x dizem isto ou aquilo, outra é apreciar se o que é dito ou o que está escrito corresponde à verdade. E tenha-se presente que, se bem que a imediação da Relação com as provas pessoais seja impossível de alcançar (salvo nos – inexistentes, de resto - casos de renovação da prova), ela é alcançada com outras provas, como a prova documental, por exemplo, e que a oralidade está decididamente, pelo menos parcialmente, ao alcance desta instância, uma vez que as audiências de julgamento são objeto de gravação áudio digital, sendo possível, pelo menos, ouvir tudo o que é dito, quando é dito e como é dito, o que representa instrumento de análise não totalmente despiciendo – ou seja, mesmo na instância de recurso permanece uma réstia de oralidade, ao contrario de antanho, em que a impugnação da matéria de facto era levada a cabo com base em depoimentos escritos, o que faz, se não toda, muita diferença.
Vejamos os factos impugnados no recurso:
5. No período de 28-11-2023 a 16-12-2023, pelo menos uma vez, o arguido disse à ofendida que nos ..., aquela “não podia ter homem”, e que, caso descobrisse tal, que a mataria a ela e ao “homem” também. 6. Na madrugada do dia 17/12/2023 (domingo) o arguido formulou o propósito de matar a assistente. (..) 14. (…) Momento em que o arguido vociferou «Eu vou-te matar e é agora». (…) 16. Aproveitando-se do facto de a ofendida se encontrar caída no chão, o arguido colocou-se por cima do seu ventre, com as pernas fletidas para trás, impossibilitando-a de se libertar e, ao mesmo tempo que vociferava repetidamente que a ‘ia matar’, empunhou a faca e desferiu-lhe vários golpes no corpo. 17. Golpes que direcionou à face, cabeça, pescoço, tórax e braços da ofendida. 18.(…) pese embora não tenha conseguido impedir o arguido de lhe vir a desferir mais golpes no corpo. (…) 28. Ao atuar em conformidade com o descrito em 5., anunciando que a mataria, o arguido agiu com o propósito de lhe provocar medo e insegurança, e a prejudicar a sua liberdade de determinação, bem sabendo igualmente que a sua conduta era adequada a causar tal resultado, não se abstendo de agir do modo descrito. 29. Ao desferir os golpes com a faca no corpo da ofendida, na zona da face, pescoço e membros superior esquerdo e direito o arguido agiu, com a intenção de tirar a vida à sua ex-companheira, resultado que só não conseguiu porque, durante tais atos e ofendida tentou impedi-lo de o fazer e porque o seu vizinho lhe retirou a faca da mão e assim impediu que prosseguisse os seus intentos. (…)
2.2. Factos não provados (…) l) O arguido é pessoa modesta. m) Era uma pessoa tida pelos seus pares e vizinhos como pacato, trabalhador e respeitoso. n) Estava integrado na comunidade local e na sociedade, não lhe sendo conhecida qualquer altercação anterior. o) O arguido não teve intenção de matar a assistente.
Assim sendo, o recorrente insurge-se essencialmente contra os factos integradores da tipicidade objetiva do crime de ameaça e contra os factos integradores do dolo de homicídio, defendendo que os primeiros se não verificaram de todo, e que o dolo da sua ação foi de ofensa à integridade física e não de morte.
Atentemos no modo como fundamentou o tribunal recorrido a sua convicção a este respeito: Assim, o Tribunal considerou a versão dos factos apresentada pela assistente, apoiada, não só nas regras da experiência e da normalidade, mas também nos demais elementos de prova, designadamente nos depoimentos testemunhais de FF e HH, nos áudios enviados pelo próprio arguido e nos elementos clínicos juntos aos autos. A assistente foi sendo confrontada com a versão que o arguido apresentara, admitindo alguns factos, como o ter terminado «oficialmente» a relação num telefonema efetuada numa altura em que se encontrava no Brasil, ou negando outros, como ter dito ao arguido que tinha outro relacionamento, exibindo mesmo expressões de surpresa quando confrontada com a versão do arguido.
Ora, desde já se deve notar que as declarações da assistente suportam em absoluto a factualidade dada como provada e aqui impugnada, tal como se conclui facilmente da audição respetiva e até da súmula efetuada na decisão recorrida.
Além disso, o tribunal ainda conjugou essas declarações como outros meios de prova, tais como, e a título de mero exemplo em relação aos factos objeto de impugnação no recuso:
Quanto à matéria do artigo 5.º, o Tribunal valorou as declarações prestadas pela assistente, conjugadas com as declarações prestadas pelo arguido e com o teor das mensagens áudio juntas aos autos e transcritas a folhas 299 a 307 e 310 a 325. Segundo BB tais factos ocorreram mais do que uma vez, contudo não resultou apurado quantas vezes. Já o arguido apenas admitiu que poderia ter proferido tais ameaças por mensagem (o que não podia deixar de negar em face das mensagens transcritas no processo). Importa notar que o arguido insistiu, particularmente, na proibição de a assistente ter outro relacionamento amoroso, percebendo-se a relevância dessa imposição para ele, aliada à evidente expectativa de reatar a relação com a assistente. De resto, as palavras que proferiu nos áudios enviados a familiares da assistente são completamente consistentes com as ameaças de morte em análise. A matéria do artigo 6.º decorre da análise das mensagens que, durante essa madrugada, o arguido enviou aos familiares da assistente, dizendo expressamente «eu vou matar a BB», «eu vou dar uma facada», «vai ser amanhã», enviando inclusivamente a fotografia da faca que iria utilizar para o fazer, dizendo «Eu tou andando com isso aí», «eu vou rasgar ela na hora» e «Amanhã, vai ser o dia amanhã, tá?».
Ora, em relação às declarações da vítima pouco ou nada se diz nas conclusões, não obstante o tribunal as ter considerado inteiramente credíveis.
O recorrente estriba-se, essencialmente, em dois vetores argumentativos para afirmar a imposição da cognição factual por si apresentada, que aqui apreciaremos em ordem inversa.
Vejamos o primeiro:
5. Havendo unidade no depoimento das testemunhas que referem ter ouvido os gritos por “socorro” e “deixa-me” proferidos pela assistente e ter atuado imediatamente sobre os mesmos devia o seu depoimento ser valorizado igualmente quando referem que não ouviram o arguido dizer que a ia matar.
Assim, com base nos depoimentos das testemunhas LL e FF, “vizinhos de porta e que na altura se encontravam na varanda comum” (sic), os quais apenas ouviram os gritos de socorro da vítima, não tendo ouvido vou-te matar, e, quando entraram no quarto onde esta se encontrava com o arguido, não viram facadas, o recorrente pretende afastar o dolo de homicídio, conformando-se com o dolo de ofensa à integridade física, por cuja verificação pugna.
Invoca em benefício do seu pensamento as regras da experiência, designadamente a de que quem ouve uma expressão (pedidos de socorro), ouviria certamente a outra (vou-te matar). Ora, para que esta afirmação assumisse a categoria de irrespondível entimema, estatuto a que se devem alcandorar as proposições recursivas neste campo para serem eficazes, haver-se-ia de ter como assente que ambas foram proferidas com o mesmo, ou semelhante, volume de som, o que não sucede de todo. Além disso, ensina a experiência, isso sim, que os pedidos de socorro das vítimas são, por natureza, gritados, e que o autor do crime, regra geral, procura levar a cabo a sua decisão sem alarido, sem a anunciar, procurando até silenciar aqueles pedidos, tudo para que possa atingir os seus fins sem ser descoberto.
Por aqui se vê que a circunstância de estas testemunhas não terem ouvido o arguido a dizer vou-te matar em nada releva para a decisão de facto. O mesmo se diga em relação à circunstância de não terem presenciado facadas do arguido no corpo da vítima, pois isso, como é absolutamente evidente, não quer dizer que elas não possam ter ocorrido antes da chegada das testemunhas ao local.
A respeito da prova testemunhal, deve ter presente o recorrente que as testemunhas devem depor sobre o que viram e ouviram, não sobre o que não viram ou não ouviram. Aliás, já os juristas romanos ensinavam que testibus affirmantibus, plus creditur quam negantibus (deve dar-se mais crédito às testemunhas que afirmam, do que às que negam - Décio, In tit. ff. de regi uris) – aqui temos, de novo, isso sim, uma incontestada regra da experiência, ainda que daquelas que está “escancarada (…) só ao jurista” (cfr. Conselheiro Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pag. 1359). A própria lei o determina, no artigo 128.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento direto e que constituam objeto da prova, pelo que, de modo algo prosaico, podemos dizer que, se ouviu, é perguntada sobre o que ouviu, e se viu, é perguntada sobre o que vi; não tendo ouvido nem visto, nada sabe sobre os factos; e caso ninguém tenha ouvido nem visto, não há prova dos factos.
Quanto à circunstância de o tribunal ter referido na fundamentação que as aludidas testemunhas viram o arguido a esfaqueá-la, algo que o recorrente apoda de erro, recorde-se que na própria transcrição do depoimento em causa, efetuado pelo recorrente na motivação, a testemunha, depois de afirmar que não viu espetar, acaba por dizer que já tinha espetado várias vezes e não sei se a intenção dele era espetar outra vez ou não, o que constitui uma claríssima forma de as testemunhas transmitirem ao tribunal que os golpes que o corpo da vítima demonstrava foram (só podiam ter sido) desferidas pelo arguido, atento conflito existente, as posições recíprocas dos corpos de cada um, e o sangue no local existente, pelo que se trata de argumentação particularmente especiosa do recorrente, e, portanto, ineficaz. Não há qualquer erro, sendo apenas uma forma de expressão, com assento na prova, como se viu, não obstante não reproduzir apenas a dimensão puramente física, sensorial ou biológica no depoimento, sendo certo que ver também significa “chegar mentalmente a uma conclusão a partir da observação de determinados factos; concluir, deduzir” (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, pag., 3724), o que autoriza também a afirmação de que as testemunhas tenham chegado à conclusão de que o arguido esfaqueava a vítima, em função do que viram.
Em conclusão, nada no depoimento destas testemunhas impõe decisão diferente da tomada pelo tribunal recorrido, nem ocorre qualquer erro na forma como se fundamentou a decisão nesta parte.
O recorrente arrola ainda em benefício da sua pretensão o teor da prova pericial, fazendo-o nos seguintes termos:
4. Errou o tribunal ao dar como provada essa intenção quando, como no caso, resulta do relatório pericial que nunca chegou a ocorrer risco de vida; que o local onde a assistente foi ferida não tem nenhum órgão vital; e que os ferimentos são lineares e pouco sangrativos, com a excepção da palma da mão.
Ora, como é evidente nada disto briga com a existência de dolo de homicídio – nem mesmo com os esclarecimentos da perita em audiência de julgamento, parcialmente transcritos na motivação. Caso o recorrente tivesse razão na sua argumentação, tê-la-ia também se, por exemplo, alguém apontasse uma pistola carregada à cabeça de outrem, disparasse, e falhasse o alvo, acertando, ainda por exemplo, na parede por trás, ficando incólume o corpo da vítima – na visão (cá está o verbo ver, de novo) do recorrente estaríamos perante um crime de dano, certamente. Não deve confundir-se, e muito menos fazer depender, o perscrutar da decisão do agente com o resultado concreto da sua ação. Eles podem estar relacionados, é certo, dependendo do caso concreto, mas não pode estabelecer-se entre eles uma relação de dependência ou necessidade. E mesmo o não atingimento de órgãos vitais deve ser apreciado com muito rigor, pois os bastos serviços de saúde de que hoje se pode dispor para sarar lesões físicas e debelar as suas consequências mais graves, não podem, só por si, ter a potencialidade de desagravar a densidade da decisão do agente que causou tais lesões – muitas dessas lesões que hoje são assim debeladas, eram nos tempos de antanho causa de morte provável, fosse por hemorragias ou infeções, ou outro qualquer motivo, mas o processo decisório do criminoso é algo de imutável, mantendo-se igual ao longo dos tempos.
Assim, nenhum destes elementos de prova infirma de modo incontornável o que foi decidido nesta parte, sendo total o nosso acordo em relação a tal decisão, bem como à forma como se encontra cabalmente fundamentada.
Podemos até adiantar que, regra geral, temos para nós como evidente que desferir ou pretender desferir golpes com objetos cortantes no pescoço, tórax, abdómen ou crânio (não obstante ser muito difícil perfurar o crânio com um objeto destes), ou alvejar com arma de fogo essas zonas do corpo, constitui, em princípio, dolo de homicídio, sendo certo que, não se logrando o decesso da vítima, estamos perante uma tentativa
Esta afirmação tem óbvio apoio na experiência. Para o que aqui interessa, podemos socorrer-nos, para tal conclusão, do prosaico e conhecido gesto de passar o dedo indicador pela frente do pescoço, ou a mão atravessada na parte de trás, e do seu inquestionável significado, ou da mais bela poesia, arte que, como ensinava Aristóteles na sua Poética, constitui imitação da realidade (mimésis) – cfr. Poéticas, Diálogos com Aristóteles, Obra Coletiva, Aridane.
Na verdade, já o inigualável Homero nos ensinava isto na esplendorosa Ilíada, quando descrevia a morte de Heitor por Aquiles:
“Como o astro que surge entre as outras estrelas no negrume da noite, a estrela da tarde, que é o astro mais belo que está no céu – assim reluziu a ponta da lança, que Aquiles apontou na mão direita, preparando a desgraça para o divino Heitor, olhando para a bela carne, para ver onde melhor seria penetrada. Ora, todo o corpo de Heitor estava revestido de brônzeas armas, belas que ele despira a Pátrocolo depois e o matar. Mas aparecia, no sítio onde a clavícula se separa do pescoço e dos ombros, a garganta, onde rapidíssimo é o fim da vida”
Ou, no mesmo magnífico poema épico, e agora no que toca ao abdómen, quando o inefável Páris dispara uma seta para o bravíssimo Diomedes, para o matar, e o atinge num pé:
“Foste ferido! Não foi em vão que fugiu a minha seta. Prouvera que te tivesse acertado no baixo ventre e te tivesse privado da vida!” – cfr. Ilíada, Quetzal, tradução de Frederico Lourenço, Canto XXII, 322/325, e Canto II, 381/382, respetivamente.
Ainda, no belíssimo texto com que o Padre Manuel Alves Correia prefacia a sua tradução da outra inolvidável obra daquele colossal poeta, a Odisseia, “as belas armas de que o Priamida havia despojado o cadáver de Pátroclo, para com elas se revestir, cobriam-lhe inteiramente o corpo, exceto na junção do ombro ao pescoço, sítio por onde a fuga da alma é mais pronta” – Clássicos Sá da Costa, 6.ª Edição, 1994, pag. XIV.
Assim, golpes (consumados ou falhados) com objetos corto-perfurantes nos locais do corpo acima citados, têm, em princípio, significado de vontade letal. Claro que pode haver uma contextualização própria a infirmar estas regras (por exemplo, o golpe foi desferido no pescoço ou abdómen, mas apenas por força da refrega, da luta, uma vez que se destinava a uma perna ou a um braço), mas a diretriz essencial é esta. E como resulta dos factos dados como provados, com base nas declarações da vítima, o pescoço também foi visado pelo arguido, independentemente de o ter conseguido, pois a vítima também se defendeu, zona do corpo onde se localizam, por exemplo, as, vitalíssimas, artéria carótida e veia jugular, fundamentais para a circulação sanguínea, para além da faringe, que faz parte do essencial aparelho respiratório, enfim, todo um conjunto de partes do organismo cujo normal funcionamento é imprescindível para nos mantermos vivos. Nestes termos, para perceber a decisão do agente não importa tanto saber o que foi atingido, mas antes o que se pretendia atingir, e o respetivo contexto, assim se estabilizando o indício forte da decisão pertinente.
Uma breve referência à profundidade das feridas, que, no entender do recorrente, denuncia claramente um dolo de ofensa à integridade física e não de homicídio: prosaicamente, segundo o recorrente, o seu intuito era fazer uns golpes no corpo da vítima. Não podemos negar algum efeito sedutor, do ponto de vista intelectual, a tal argumentação, mas cumpre rememorar que a situação era de intenso conflito físico, com a vítima a defender-se de forma enérgica, o que permite a configuração de ambas as situações (ofensa ou homicídio), uma vez que é também plausível que a ação defensiva retire energia ao golpe e impeça a sua execução em profundidade – atente-se, em particular, na profundidade e gravidade das lesões sofridas na mão da vítima, mão que certamente usou para se defender do ou dos golpes desferidos com mais energia pelo arguido.
Concluindo, sendo certo que nenhum dos meios de prova impõe a alteração do julgamento de facto da decisão recorrida, tem esta, por seu turno, absoluto respaldo nas regras da vida, da experiência, sejam elas enunciadas pelo modo simples e prosaico da mímica vulgar, ou por alguma da mais bela poesia que já se criou.
Recordemos, de modo atento, os ensinamentos de Karl Larenz, que, se bem que essencialmente vocacionados para a jurisdição cível, têm aqui inteiro cabimento:
“É suficiente que o juiz tenha esgotado todos os meios e concretização de que dispõe, com a ajuda de reflexões jurídicas, e que, nesses termos, a sua resolução surja como «plausível». O jurista denomina de plausível uma resolução quando pelo menos haja bons argumentos que apontem tanto no sentido da sua correção como em sentido oposto. Que ele se contenta frequentemente com a mera «plausibilidade» da resolução, quando o leigo espera «correção» comprovável e algo que assenta no caráter inevitável da irredutibilidade das margens de livre apreciação e na obrigação de decidir que impende sobre o juiz. A ciência do Direito só pode produzir em relação a tais casos a asserção de se tal resolução é ainda plausível ou já o não é de todo. Uma tal asserção está, por seu lado, evidentemente, também subordinada à exigência de correção do enunciado.
Quando, por fim, o juiz tenha à escolha dois julgamentos igualmente plausíveis, é evidente que ele toma a opção mediante uma antevisão do resultado que de cada julgamento decorre, ou da resolução do caso que dessa opção resulte. Uma vez que o juiz quer resolver o caso, tanto quanto possível, «justamente», a justiça da resolução do caso é um desiderato legítimo da jurisprudência dos tribunais, é legítima a antevisão da resolução do caso vista como justa pelo juiz. Decerto que o juiz não sabe em todos os casos de antemão qual é a resolução «justa». Uma vez que é mais fácil dizer o que é claramente injusto do que o que é que é justo nos casos difíceis, o juiz pode evitar, deste modo, pelo menos uma resolução manifestamente injusta. Quando nenhuma das soluções seja manifestamente injusta, a resolução é deixada, nos casos mencionados, à intuição valorativa e à convicção do juiz.” - Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Gulbenkian, 8.ª Edição, pag. 414/415.
É tudo isto que alicerça, também, o âmbito do recurso em sede de julgamento de facto, sendo certo, todavia, que, tal como se demonstrou, a resolução proposta pelo recorrente nem sequer beneficia da aludida “plausibilidade”, tudo assim se conjugando para a incolumidade da decisão recorrida em sede de cognição de facto.
O recurso tem, portanto, e improceder nesta parte.
B Em caso de resposta afirmativa à anterior questão, deverão os factos julgados como provados ser subsumidos ao crime de ofensa à integridade física qualificada p.p. no artigo 145.º, n.º 1 e 2 do C.P?
Atendendo a que a questão anterior nos mereceu resposta negativa, fica prejudicada a apreciação da que aqui se enuncia.
C Ocorre dupla valoração de agravação ao condenar-se o arguido pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada, nos termos do disposto no artigo 131.º, e 132.º, n.º 2 alínea b), do Código Penal, e o agravamento previsto no art.º 86.º, n.ºs 3 e 4, do RJAM (Lei n.º 5/2006, de 23/02)?
Para fundar esta particular pretensão recursiva, o recorrente afirma o seguinte:
8. O artigo 132º nº 1 do Código Penal estabelece como moldura penal a pena máxima constitucionalmente permitida de 25 anos de prisão esgotando o tipo o máximo da pena aplicável e de graduação da ilicitude e de nível de culpa. 9. Nos casos em que o agente deva ser punido pelo crime do art. 132.º do Código Penal não há lugar à agravação prevista no artigo 86.º, nºs 3 na Lei das Armas, sob pena de violação do princípio de proibição de dupla valoração. 10. A condenar-se o arguido pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada deveria o arguido ter sido condenado apenas nos termos do disposto no artigo 131º e 132º, nº 1 e 2º alínea b) do Código Penal.
A primeira observação a fazer em relação a esta argumentação consiste em aceitar o acerto da afirmação de prisão de 25 anos como pena máxima do nosso sistema jurídico, todavia, não por força do disposto no artigo 132.º, n.º 1, do Código Penal, como se diz no recurso, mas antes com base no artigo 41.º, n.º 2, do mesmo diploma legal, e ainda com o reparo de que tal limitação não tem origem constitucional, uma vez que o artigo 32.º, n.º 1, do diploma fundamental apenas dispõe que não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida, cabendo ao legislador ordinário optar pelo limite máximo de tais penas de acordo com as razões de política criminal acolhidas.
O que decididamente consta da Constituição da República Portuguesa é o princípio do non bis in idem (artigo 29.º, n.º 5), que embora refira que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, pretende, na verdade, significar, além disso, a proibição da duplicação dos efeitos jurídico-criminais de um determinado facto, ou seja, a proibição da tal dupla valoração referida pelo recorrente.
Por outro lado, não conseguimos, de todo, alcançar o fundamento, nem o recorrente o indica, da mútua exclusão das normas constantes dos artigos 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal, e do artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23/02 (Regime Jurídico das Armas e suas Munições).
Nos termos da primeira norma referida: se o homicídio for produzido em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, sendo suscetível de o revelar o facto de o agente ter praticado o facto contra pessoa com quem tenha mantido relação análoga à dos cônjuges, a pena aplicável é de prisão de 12 a 25 anos.
Nos termos da segunda: as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.
A norma constante do artigo 132.º do Código Penal tem suscitado entre nós alguma polémica no que concerne à natureza jurídica das circunstâncias agravantes que dela constam, o que também tem sucedido noutros países em que existe norma semelhante, como por exemplo, na Alemanha – cfr. Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, pag. 61.
A autora citada, por exemplo, entende o n.º 1 do artigo 132.º contém um tipo de culpa generalizador e que a natureza jurídica dos exemplos-padrão constantes do n.º 2 é a de determinação de uma moldura penal agravada, recusando terminantemente, que se trate, neste caso, de elementos do tipo.
Como quer que seja, um dado parece seguro: estamos em face de um campo referente à culpa penal. Trata-se aqui de “um especial tipo de culpa” do evento doloso através da verificação da especial censurabilidade ou perversidade - Comentário Conimbricense do Código penal, Coimbra Editora, Tomo I, pag. 29.
É ainda pacífico o carácter não automático das circunstâncias que a lei prevê como qualificadoras do comportamento criminoso, dependendo a sua aplicação de uma apreciação em concreto de todas as circunstâncias que rodearam a ação, das motivações do agente, das consequências dos seus atos, em ordem concluir ou não por tal forma de cometimento do crime.
Ao enunciar os exemplos-padrão no elenco legal, a lei atribui-lhes um efeito de indício.
“O problema do efeito de indício (Indizwirkung”) dos exemplos padrão tem de ser tratado a partir de um duplo ponto de vista: por um lado, a afirmação da presença de uma das circunstâncias do n.º 2 do artigo 132.º indicia a existência de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente que fundamenta a aplicação de uma moldura penal agravada; por outro lado, a negação da presença de qualquer das referidas circunstâncias indicia a inexistência de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente que fundamenta, caso não existam outras circunstâncias a ponderar, a aplicação da moldura penal do art.º 131.º. Em ambas as situações, as circunstâncias – presentes ou ausentes – fornecem um indício para a aplicação de uma determinada moldura penal. Assim, pode dizer-se que o efeito dos exemplos-padrão fundamenta como que uma presunção ilidível.” – cfr. Teresa Serra, ob. cit., pag. 66/67.
A especial perversidade ocorre quando o “(…) especial juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação do facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas”” – cfr. Prof. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código penal, Coimbra Editora, Tomo I, pag. 29.
Já a especial censurabilidade tem lugar nas “(…) condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refração, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas” – cfr. ob. cit., loc. cit.
Por seu turno, a agravação da moldura penal prevista no artigo 86.º, n.ºs 3 e 4, do RJAM (Lei n.º 5/2006, de 23/02), que é de aplicação necessária, note-se, não dependendo de juízos valorativos, tem que ver com a maior perigosidade/ilicitude da conduta, com a maior probabilidade, pela utilização de uma arma, de verificação do resultado que a lei pretende evitar, situando-se, assim, num campo da regulamentação penal diverso, pelo que não sobreponível ao anteriormente referido. Como diz Teresa Serra, o legislador português foi muito prudente ao restringir o âmbito da norma à perversidade e à censurabilidade, não mencionado, ao contrário, por exemplo, do Código Suíço, a perigosidade, como fundamento de agravação, o que reforça o que temos vindo a afirmar – cfr. ob. cit., pag. 62.
Não existe, portanto, como é evidente, qualquer dupla valoração, na aplicação conjunta das mencionadas normas, uma vez que os factos que fundamentam a sua aplicação são diversos e independentes entre si, dizendo respeito, uns (facto praticado contra unido de facto), à culpa/medida da pena, outros (utilização de arma) à ilicitude da conduta. Talvez o recorrente pretenda aqui equiparar facto ao homicídio (no sentido de facto criminoso, por assim dizer), confundindo, assim, dupla agravação com dupla valoração, mas a lei não acolhe esta original forma de enquadrar a questão.
Nesta conformidade, também nesta parte deve o recurso soçobrar.
D Os factos dados como provados demonstram a prática do crime de ameaça agravada?
A este respeito, diz o recorrente:
13. Não se mostra comprovada a prática do crime de ameaça agravada não só por que a assistente não referiu diretamente essa ameaça, como referiu inclusive nunca reviu condutas agressivas no arguido, pelo que os factos foram revestidos de imprevisibilidade. 14. Não ocorreu ameaça que a tenha deixado inquieta e receosa.
Ultrapassada a questão relativa à impugnação do julgamento de facto, resta-nos apreciar se os factos dados como provados integram a prática pelo arguido de um crime de ameaça.
Provou-se o seguinte:
5. No período de 28-11-2023 a 16-12-2023, pelo menos uma vez, o arguido disse à ofendida que nos ..., aquela “não podia ter homem”, e que, caso descobrisse tal, que a mataria a ela e ao “homem” também. (…) 28. Ao atuar em conformidade com o descrito em 5., anunciando que a mataria, o arguido agiu com o propósito de lhe provocar medo e insegurança, e a prejudicar a sua liberdade de determinação, bem sabendo igualmente que a sua conduta era adequada a causar tal resultado, não se abstendo de agir do modo descrito. (…) 32. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
Vejamos o que decidiu o tribunal recorrido nesta parte:
Em face da matéria que consta nos artigos 5.º e 28.º importa apreciar se a conduta do arguido preenche a prática do crime de ameaça agravada. Dispõe o artigo 153.º/1 do CP que, «quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.» De harmonia com o disposto no artigo 155.º/1/alínea a), do CP, quando os factos previstos no artigo 153.º, forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos, o agente é punido com a pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias. A integração sistemática deste tipo legal de crime denuncia que o bem jurídico penal protegido é, fundamentalmente, a liberdade individual de decisão e de ação, contra ataques ou afetações antijurídicas. (cf. neste sentido, o Professor Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense, tomo I, Coimbra Editora, 1999, 342). Constituem elementos objetivos deste crime a ameaça a pessoa diversa do agente, com referência à prática de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e a autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, e a adequação daquela ameaça a provocar medo ou inquietação ou a afetar a liberdade de determinação na pessoa do ameaçado. O conceito de ameaça, como elemento central neste tipo, tem sido contemplado na aceção da imposição de um mal futuro, dependente da vontade do agente. Exige-se, ainda, que o mal ameaçado constitua em si mesmo um facto ilícito típico do tipo daqueles que o legislador fez incluir quando desenhou o recorte típico desta norma, quer sejam prosseguidos por ação quer por omissão. Refira-se, igualmente, que o meio escolhido pelo agente para concretizar a ameaça é indiferente para efeitos de verificação do tipo, pelo que, tanto faz que a ameaça se exprima por via oral, escrita ou gestual. Indispensável é que a mesma seja levada ao conhecimento do ameaçado. Neste âmbito, tanto vale que agente ameace “direta e pessoalmente, (…) ou que se sirva de interposta pessoa.” (Sic, Taipa de Carvalho, op. cit. p.348.). Por outro lado, é requisitado pelo tipo que a ameaça seja adequada a provocar no ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. Este elemento típico assim descrito remete-nos para a opção legislativa da estruturação deste crime como de resultado ou de mera atividade (cf. o Professor Figueiredo Dias, Apud Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, Rei dos Livros, 1993, p. 232.). Como ensina o Prof. Taipa de Carvalho, “deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”). Ao nível dos elementos subjetivos o tipo exige o dolo em qualquer das modalidades contempladas no artigo 14.º do Código Penal, relativamente à “consciência (representação e conformação) da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado.” (Sic, Taipa de Carvalho, ibidem, p.351). O que se exige é que a ameaça, o anúncio do mal futuro, seja suscetível de afetar a paz individual ou a liberdade de determinação. Se essa suscetibilidade se prolonga mais ou menos no tempo é irrelevante para efeitos de incriminação. Se o visado não ficou condicionado nas suas decisões e movimentos dali por diante é, igualmente, irrelevante. O que é decisivo é que, ainda que por momentos breves, o anúncio daquele mal, depois não concretizado, fosse suscetível de afetar aqueles bens jurídicos, fosse capaz de gerar medo, inquietação ou de prejudicar a liberdade de determinação. Ora, revertendo ao caso ajuizado, à luz destas considerações, concluímos que ao dizer à assistente que a mataria, a conduta do arguido é efetivamente suscetível de ser perspetivada como a cominação de um mal futuro, sobretudo num contexto de ameaças dirigidas ainda a um eventual parceiro amoroso da assistente. É que, atento o contexto em que foi proferida tal ameaça, e dados os foros de seriedade com que foi proferida, sendo arguido e assistente ex-companheiros, é suscetível de intimidar a ofendida na sua liberdade de determinação. Resultou demonstrado que, no contexto ajuizado, o arguido pretendeu transmitir à ofendida que estava na disposição de atentar contra a sua vida, em momento que escolhesse, com o intuito de a deixar com medo e perturbada. Que ao proferir a expressão que proferiu, atuou o arguido com o propósito de provocar receio na assistente, sabendo perfeitamente que tal expressão era idónea a provocar nesta, sentimentos de receio e de inquietação. De resto, consistindo o mal ameaçado na morte da visada, é evidente que a conduta da agente integra a previsão do artigo 155.º/1/ alínea a), do CP, por apelo ao disposto no artigo 131.º, do C. Penal.
Visto isto, é para nós evidente a completude da fundamentação enunciada, que responde cabalmente à argumentação plasmada no recurso a este respeito, pelo que nada haverá a acrescentar-lhe, sob pena de desnecessária dupla apreciação.
Podemos apenas acrescentar que para o juízo de adequação no tocante ao medo ou inquietação da vítima, será decisiva a personalidade ciumenta e possessiva demonstrada pelo arguido, associada aos seus hábitos etílicos, no quadro de uma cessação unilateral (por parte da ora vítima) da relação amorosa, tudo confluindo para a possibilidade de um anunciado desfecho trágico, infelizmente demasiado comum nos tempos hodiernos na nossa sociedade, realidade que é do conhecimento geral (e também da vítima, portanto) por via da sua minuciosa publicitação pelas media, o que mais adensa para a vítima a plausibilidade da sua realização. Como um dia disse John Galsworthy, a ideia fixa, que faz cometer mais crimes que outros desregulamentos da natureza humana, deve-se recear ainda mais quando apresenta a máscara do amor.
E A pena aplicada deve ser reduzida?
Neste segmento do recurso, diz o recorrente.
11. A medida concreta da pena aplicada ao arguido extravasa largamente a medida da culpa do ora recorrente, bem como as particulares exigências de prevenção geral e especial - violando, por isso, o disposto nos arts. 40º, nº 1 e 2 e 70º, nº 1 e 2, do Código Penal. 12. O douto Tribunal na fixação da medida da pena não valorou as condições socio culturais em que o arguido cresceu em particular o desenvolvimento da sua personalidade no meio rural brasileiro pautado por castigos físicos, nem valorou a colaboração que o arguido teve com a Polícia Judiciária consentindo com o exame do seu telemóvel, roupas, reconstituindo os factos sem qualquer apoio jurídico.
11. A medida concreta da pena aplicada ao arguido extravasa largamente a medida da culpa do ora recorrente, bem como as particulares exigências de prevenção geral e especial - violando, por isso, o disposto nos arts. 40º, nº 1 e 2 e 70º, nº 1 e 2, do Código Penal. 12. O douto Tribunal na fixação da medida da pena não valorou as condições socio culturais em que o arguido cresceu em particular o desenvolvimento da sua personalidade no meio rural brasileiro pautado por castigos físicos, nem valorou a colaboração que o arguido teve com a Polícia Judiciária consentindo com o exame do seu telemóvel, roupas, reconstituindo os factos sem qualquer apoio jurídico.
Sobre a medida da pena prevê o Código Penal o seguinte:
Artigo 71.º Determinação da medida da pena 1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. 2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. 3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.
“Através do requisito de que sejam levadas em conta exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária de punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional do respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente, - limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção. – cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, Reimpressão, 2005, pag. 215.
A enumeração legal das circunstâncias elegíveis para este raciocínio não é taxativa, como facilmente se depreende do vocábulo “nomeadamente”, que consta do n.º 2 do preceito legal citado, sendo certo que as circunstâncias arroladas pelo tribunal para a efetivação deste cálculo podem até ter dimensão ambivalente ou antinómica, isto é podem ser simultaneamente valoradas como elementos graduadores da culpa e da prevenção, ou assumirem direções opostas na concretização desses vetores – cfr. Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., loc. cit. pag. 220.
Temos como certo que a determinação concreta da pena é, a par do julgamento da matéria de facto, a mais árdua tarefa do julgador criminal, não havendo orientações infalíveis ou indiscutíveis para a sua realização, havendo sempre que considerar um relativo subjetivismo neste campo, balizado, todavia, pelas fronteiras legais.
Contudo, podemos dizer que a fixação da medida concreta da pena é um raciocínio jurídico-penal, temperado por uma sempre dificilmente alcançável finura na ponderação global do circunstancialismo apurado, através do qual o julgador, partindo sempre do mínimo da moldura penal, avança no quantum punitivo contabilizando as agravantes em direção ao limite superior da pena, para, depois, retroceder, mediante a consideração das atenuantes, em direção ao limite inferior desta, sem prejuízo de, neste percurso, efetuar operações simultâneas num sentido ou noutro, em virtude de eventualmente poderem surgir circunstâncias ambivalentes ou antinómicas, tudo isto nunca ultrapassando a culpa do agente e nunca fazendo perigar as necessidades de prevenção geral e especial.
Além disso, seguimos convictamente a orientação do Supremo Tribunal de Justiça neste domínio, de que é exemplo o Acórdão de 14/07/2010, Processo 364/09.0GESLV.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt: Quanto ao controle da fixação concreta da pena a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça tem de ser necessariamente “parcimoniosa”, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de fatores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efetuada”. (Neste sentido cfr. acórdãos do STJ de 04-07-2007, processo n.º 1775/07 - 3ª; de 17-10-2007, processo n.º 3321/07 - 3ª; de 10-01-2008, processo n.º 907/07 - 5ª; de 16-01-2008, processo n.º 4571/07 - 3ª; de 20-02-2008, processos n.ºs 4639/07 - 3ª e 4832/07-3ª; de 05-03-2008, processo n.º 437/08 - 3ª; de 02-04-2008, processo n.º 4730/07 - 3ª; de 03-04-2008, processo n.º 3228/07 - 5ª; de 09-04-2008, processo n.º 1491/07 - 5ª e processo n.º 999/08-3ª; de 17-04-2008, processos n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, processo n.º 4723/07 - 3ª; de 21-05-2008, processos n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5ª secção; de 29-05-2008, processo n.º 1001/08 - 5ª; de 03-09-2008 no processo n.º 3982/07-3ª; de 10-09-2008, processo n.º 2506/08 - 3ª; de 08-10-2008, nos processos n.ºs2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3ª secção; de 15-10-2008, processo n.º 1964/08 - 3ª; de 29-10-2008, processo n.º 1309/08-3ª; de 21-01-2009, processo n.º 2387/08-3ª).
Isto é, a severidade ou a brandura não são, só por si, fundamentos para que o bisturi recursivo se intrometa na dosimetria penal – terão de ser aquelas características tão exuberantes que consubstanciem ou revelem violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efetuada.
Não indica o recorrente a que penas se refere (se às parcelares, à única ou a ambas), nem refere quais as dosimetrias que se lhe afiguram adequadas, sendo certo que a sua pretensão de punição com a exclusão da agravação, prevista na Lei n.º 5/2006, de 23702, decaiu, como se se viu, pelo que não pode ser aqui considerada.
O pedido de redução da medida concreta da pena baseia-se, essencialmente no seguinte:
- a formação da sua personalidade num ambiente severo, de rigidez, de educação pelo medo e de baixa escolaridade, no isolado interior do Brasil filho de trabalhadores agrícolas de café e de distanciamento emocional;
- ciúme desmedido;
- dependência alcoólica;
- a colaboração do arguido na fase de inquérito.
Ou seja, estão em causa factos relativos às condições pessoais do arguido e ao seu comportamento durante o inquérito.
A primeira operação que deve ser levada a cabo na determinação da medida concreta da pena é a fixação do grau de culpa do agente, atento o limite estabelecido no artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal: em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Na fundamentação desta parte da decisão, constata-se que o tribunal recorrido entendeu existir intensidade da culpa, em virtude da intensidade do dolo, no modo direto, o que, embora não afirmado de modo expresso, equivale a graduar a culpa num patamar elevado, e isto sem prejuízo de se poder entender que o dolo não integra a culpa, mas sim a tipicidade subjetiva, o que apenas traduz um particular enfoque da dogmática da infração penal, mas não bole com o essencial: a fixação do grau de culpa do agente.
Concordamos com a fixação do grau de culpa no patamar elevado, uma vez que o juízo de censura que se deve dirigir a quem, invocando amor e afeto, e agindo por ciúme, sentimento de posse e arreigado egoísmo, atenta contra a vida da pessoa que diz amar, e a quem diz amar, apenas por a relação ter terminado, só pode ser elevado, por traduzir, para além de uma insustentável contradição entre o amor afirmado e a ação adotada, uma intolerável manifestação de poder sobre essa pessoa, consubstanciada na assunção da decisão de se permitir dispor da sua vida, apenas por ter sido contrariado em relação à manutenção da relação afetiva – trata-se daquilo a que o acima citado John Galsworthy, designa de desregulamentos da natureza humana, que devem ser alvo de viva censura ou seriíssima responsabilização.
Todavia, se atentarmos bem, o tribunal recorrido, não obstante ter fixado, e bem, o grau de culpa num patamar elevado, graduou as penas parcelares, designadamente do dois primeiros a seguir mencionados, de modo muito próximo dos seus limites mínimos: quanto ao homicídio tentado, para uma moldura de prisão de 3 anos, 2 meses e 12 dias, a 22 anos, 2 meses e 20 dias, prisão de 5 anos, para a detenção de arma ilegal, para prisão até 4 anos, prisão de 10 meses, e para a ameaça agravada, para uma pena de prisão até dois anos, prisão de 8 meses – curiosamente, em termos proporcionais, esta última é a pena mais grave, e talvez esteja em causa o crime menos grave. E isto, não obstante, note-se bem, ter considerado que a ilicitude e as necessidades de prevenção também se mostravam elevadas.
O recorrente não contesta qualquer destas graduações, apenas afirmando que foram desconsiderados os factos acima mencionados.
Ora, como se vê claramente, a magnânima benevolência do tribunal recorrido só pode ter-se fundado nos factos agora esgrimidos pelo recorrente, podendo até afirmar-se que se levou a cabo uma sobrevalorização atenuadora deles, já que o meio em que o arguido foi criado, embora humilde, não era caracterizado por homicídios ou cenas de ciúmes (não consta que o pai tivesse querido matar a mãe, por exemplo), e que o ciúme descontrolado (e até o benigno) constitui evidente falta de auto estima, por um lado, e de respeito pelo parceiro, por outro, e, ainda, que o álcool e o estado ébrio não torna as pessoas piores do que já são, nem lhes incute desígnios criminosos, apenas atenuando as inibições comportamentais, permitindo a mais fácil manifestação do íntimo de cada um (por isso, são tão diferentes, de pessoa para pessoa, as reações sob o efeito do álcool); finalmente, a colaboração no inquérito é importante, mas é muito mais importante no julgamento, e, nesta parte, em relação aos factos mais graves dados como provados pelo tribunal, a colaboração do arguido é exígua, como facilmente se conclui da leitura da fundamentação do julgamento de facto.
Também a pena respeitante ao concurso de infrações se pauta pelo respeito dos critérios legais aplicáveis, tendo sido apenas adicionado ao mínimo da moldura, que é de prisão de cinco anos, um terço (6 meses) da moldura disponível (18 meses), o que, se bem que já não tão harmonioso com o critério geral seguido (só na ameaça se aplicou integralmente o primeiro terço da moldura), é ainda compatível com o grau de culpa e com os níveis dos demais parâmetros que aqui se devem equacionar.
Assim sendo, não vemos qualquer motivo para proceder à redução de qualquer das penas parcelares ou única, que são, especialmente quanto ao homicídio tentado e à detenção de arma ilegal, particularmente benevolentes, o que não constitui qualquer problema, pois, como há muito ensinou o nosso enorme prosador Padre António Vieira, a justiça está entre a piedade e a crueldade: o justo tende para o piedoso; o justiceiro para o cruel – cfr. Comento …, in Obra Completa, Círculo de Leitores, Tomo II, Vol. II, pag. 296.
Mais uma vez, improcede o recurso.
F Pode considerar-se como desautorizada a permanência do agente em território português quando a pertinente autorização caducou durante o período de execução da medida de coação de prisão preventiva?
O recorrente entende que não pode ser prejudicado considerando-se a sua permanência desautorizada quando a autorização caducou durante o período da prisão preventiva.
Não invoca qualquer norma jurídica que fundamente a sua afirmação e que tenha sido desatendida pelo tribunal, em claro incumprimento do disposto no artigo 412.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, assistindo inteira razão ao Ministério Público quando na sua resposta ao recurso afirma:
14) A pena de expulsão nada tem a ver com a caducidade da autorização de residência durante a prisão preventiva, resultando da aplicação fundamentada da Lei (arts. 144º e 151.º da Lei 23/2007, de 4/7), que face aos factos provados e fundamentação do douto acórdão recorrido, também não se vislumbra como excessiva no seu quantum.
Assim sendo, esta parte do recurso também só poderá improceder.
G A pena acessória de expulsão é desadequada e até excessiva no montante dos anos aplicados (máximo)?
Para aplicar a pena acessória de expulsão o tribunal estribou-se no seguinte:
Segundo dispõe o art.º 151.º da Lei 23/2007, de 4/7: 1 - A pena acessória de expulsão pode ser aplicada ao cidadão estrangeiro não residente no País, condenado por crime doloso em pena superior a seis meses de prisão efetiva ou em pena de multa em alternativa à pena de prisão superior a seis meses. 2 - A mesma pena pode ser imposta a um cidadão estrangeiro residente no País, condenado por crime doloso em pena superior a um ano de prisão, devendo, porém, ter-se em conta, na sua aplicação, a gravidade dos factos praticados pelo arguido, a sua personalidade, eventual reincidência, o grau de inserção na vida social, a prevenção especial e o tempo de residência em Portugal. 3 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, a pena acessória de expulsão só pode ser aplicada ao cidadão estrangeiro com residência permanente, quando a sua conduta constitua perigo ou ameaça graves para a ordem pública, a segurança ou a defesa nacional. Nos termos do art.º 144.º do mesmo diploma legal “Ao cidadão estrangeiro sujeito a decisão de afastamento é vedada a entrada em território nacional por período até cinco anos, podendo tal período ser superior quando se verifique existir ameaça grave para a ordem pública, a segurança pública ou a segurança nacional”. Há, assim, que averiguar se se justifica, no caso concreto, a aplicação de tal pena acessória ao arguido, tendo em conta que não está autorizado a residir em Portugal. Da matéria de facto que a este propósito se apurou, constata-se que o arguido AA é nacional do Brasil e que não tem rede de suporte social ou familiar em Portugal. No meio onde habitava a sua conduta é geradora de revolta, com indisponibilidade para proporcionar apoio ao arguido. Por outro lado, a gravidade dos factos por ele praticados, tentativa de homicídio, ameaça e detenção de arma proibida, a circunstância de não ter aqui laços familiares estabelecidos, nem perspetivas de ocupação, e a personalidade demonstrada pelo arguido nos factos que praticou, associada ao interesse de ordem pública de segurança dos cidadãos portugueses, que subjaz à legislação em causa, leva-nos a concluir que se justifica a imposição ao arguido AA da pena acessória de expulsão. Os crimes praticados pelo arguido, atentam, inevitável e gravemente, contra a ordem pública, constituindo este tipo de criminalidade um real perigo social, vendo-se as comunidades mais rurais, crescentemente confrontadas com o aumento da criminalidade violenta. Por fim, a medida concreta da pena imposta ao arguido, permite que lhe seja aplicada a pena acessória de expulsão. Assim, afigura-se-nos justo e equilibrado fixar em 5 (cinco) anos o período durante o qual o arguido AA ficará proibido de entrar e permanecer em Portugal.
É, portanto, claro que:
- o arguido incorreu na prática, embora na forma tentada, do crime mais grave do nosso sistema penal (homicídio), bem como na prática de crime revelador de particular perigosidade (detenção de arma ilegal);
- tais crimes ocorreram no contexto do fim por si indesejado de uma relação afetiva, revelando o arguido tendência para abusos etílicos, e personalidade profundamente ciumenta, tudo contribuindo, tal como ensina a experiência, para um maior risco de recidiva criminal;
- não tem em Portugal laços familiares estabelecidos, nem perspetivas de ocupação,
Nestes termos, entendemos, tal como o tribunal recorrido, que se encontram preenchidos os requisitos elencados no n.º 2 da norma atrás citada, sendo adequada a opção pela pena acessória de expulsão.
Resta averiguar se o período de cinco anos fixado para a impossibilidade de entrada no território português se afigura excessivo. Para tal devemos considerar, essencialmente, o número de crimes praticado e a sua gravidade; nesta conformidade, estamos em presença da prática de três crimes, dois deles (homicídio tentado e detenção e arma ilegal) de elevada gravidade, pelo que a opção tomada, se bem que severa, não é desproporcional nem desajustada, pelo que não há necessidade de efetuar qualquer correção.
Improcede, ainda aqui, o recurso apresentado.
H O valor indemnizatório por danos não patrimoniais fixado em € 30.000,00 (trinta mil euros) é excessivo, devendo ser reduzido para o montante de € 10.000,00?
A vertente cível da decisão recorrida tem por objeto a efetivação de uma obrigação de indemnização fundada em responsabilidade civil extra obrigacional baseada em facto ilícito
Os requisitos para a existência de tal obrigação estão previstos no art.º 483.º, n.º 1, do Código Civil, diploma a que se referirão todas as disposições citadas sem menção de origem.
São cinco os aludidos requisitos: o facto, a ilicitude, o dano, o nexo de imputação objetiva (relação de causalidade juridicamente relevante) e o nexo de imputação subjetiva (ligação do facto à vontade do agente, seja sob a forma de dolo, seja sob a forma de negligência).
O facto consiste num comportamento humano voluntário, seja por ação, seja por omissão – cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, 5.ª edição, pag. 478.
A ilicitude resulta da circunstância de o facto acima referido violar o direito de outrem, designadamente os direitos absolutos, como, por exemplo, os direitos reais e os direitos de personalidade, ou de violar uma determinada disposição jurídica destinada a proteger interesses alheios – cfr. ob, cit., loc. cit, pag. 486.º e segs.
O dano ou prejuízo é toda a consequência desvantajosa que pode advir a alguém por causa do referido facto.
Os prejuízos podem ser de natureza patrimonial (os que se verificam em relação a interesses suscetíveis de avaliação pecuniária) ou de natureza não patrimonial (os que são insuscetíveis de avaliação em dinheiro). Podem revestir carácter de dano emergente (os que representam uma diminuição efetiva e atual do património) ou de lucro cessante (os que implicam um não aumento do património, ou seja, a frustração de um ganho). Finalmente, podem ainda ser danos presentes (se já se verificaram no momento em que se apreciam) ou futuros (se ainda se não verificaram nesse momento) – cfr. Pessoa Jorge, Direito das Obrigações, AAFDL, 1.º Vol., pag. 485 e segs.
O nexo de imputação objetiva, regulado no art.º 563.º, ou nexo de causalidade, consiste na ligação juridicamente relevante entre o facto e o dano. Na verdade, nem todas as ligações materiais ou naturais entre facto e dano têm relevância jurídica, uma vez que a nossa lei optou, consabidamente, pela orientação da “causalidade adequada”, ao inserir uma formulação duplamente negativa no preceito acima citado “ (…) danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.” – sublinhado meu. Isto quer dizer que a apreciação do nexo de causalidade representa uma questão de direito, ao passo que a determinação da causalidade natural ou material representa uma questão de facto.
O nexo de imputação subjetiva consiste na ligação do facto à vontade do agente sob a forma de dolo ou negligência.
O recorrente não se insurge contra o preenchimento dos requisitos da obrigação de indemnização, sendo o seu inconformismo dirigido apenas à quantificação desta na parte respeitante aos danos não patrimoniais.
Recordemos os danos não patrimoniais apurados:
22. Transportada à Urgências do Hospital ..., no ..., a ofendida apresentava, como consequência da atuação do arguido: feridas lineares pouco sangrativas na hemiface esquerda, ao longo do membro superior esquerdo; mão direita: ferida linear profunda e sangrativa da base do 3.º e 4.º dedos. D3 secção completa dos tendões do FDS e FDP, secção do pedículo neurovascular radial; D4 esfacelo cutâneo simples sem atingimento neurvascular ou tendinoso. Dedos bem perfundidos; tempo de perfusão capilar preservado. 23. Aí foram realizadas suturas no membro superior esquerdo e face, tendo sido remetida para a cirurgia plástica, com ferida volar da base D3 e D4, sendo que em D3 – não realiza flexão, hipostesia radial e dedo bem perfundido; D4 – sem limitação da flexão, sem hipostesia, dedo bem perfundido, onde foi submetida a intervenção cirúrgica, seguida de internamento. 24. Em 09-01-2024, a ofendida apresentava: - na face: presença de 3 cicatrizes lineares na face lateral esquerda pré auricular ainda de cor mais vermelha com o máximo de 12 cm sem retração; Pescoço: cicatriz avermelhada com 2x0,1 cm na face anterior esquerda da base do pescoço; Membro superior direito: cicatriz em L na região palmar e MCF de D3 e cicatriz na prega MCF de D4. Discreta rigidez das articulações IFP e IFD de D3, refere ter sensação de dormência do 3º dedo mas tem sensibilidade mantida na polpa do dedo; Membro superior esquerdo: cicatriz com 2 cm na face lateral do braço, cicatriz ainda com crosta na face dorsal da mão com 6 cm no dorso e de 2º e 3º metacarpianos. 25. O que lhe determinou, como sequelas: - 3 cicatrizes lineares na face lateral esquerda pré auricular ainda de cor mais vermelha com o máximo de 6 e 3 cm sem retração, não facilmente visível a distância social; - membro superior direito: cicatriz em L na região palmar e MCF de D3 e cicatriz na prega MCF de D4. Discreta rigidez das articulações IFP e IFD de D3, refere ter sensação de dormência do 3º dedo, mas tem sensibilidade mantida na polpa do dedo, dores na articulação metacarpofalângica do 3.º dedo; - membro superior esquerdo: cicatriz de cor rosada com 2 cm na face lateral do braço, cicatriz com 6 cm no dorso e de 2º e 3º metacarpianos nacarada. 26. Tais lesões levaram 180 (cento e oitenta) dias para consolidação médico-legal, com afetação da capacidade de trabalho geral por 60 (sessenta) dias e com afetação da capacidade de trabalho profissional por 150 (cento e cinquenta) dias, tendo resultado, como consequências permanentes, a limitação da força de flexão dos 3.º e 4.º dedos da mão direita, alterações da sensibilidade da região da polpa do terceiro dedo que limitaram ligeiramente a atividade profissional e cicatrizes visíveis que não desfiguram gravemente, não tendo resultado, em concreto, perigo para a vida. 27. Como consequência direta e necessária de todas as condutas descritas, a ofendida desenvolveu, para além do mais, sintomatologia depressiva e ansiosa, em consequência da violência contra si perpetrada, designadamente, de vergonha social, denotando sentimentos de medo, angústia, compatíveis com perturbação aguda de Stress Pós Traumático, demandando acompanhamento psiquiátrico com orientação psicofarmacológica e terapêutica. (…) 35. A atuação do arguido provocou na assistente constrangimento, medo e inquietação, fazendo-a temer pela sua integridade física. 36. Sentindo vergonha, desgosto, desalento e mágoa por se sentir vexada e humilhada. 37. A atuação do arguido provocou na demandante receio pela própria vida. 38. Como consequência direta e necessária da referida conduta do demandado/arguido, a demandante sentiu dores, mal-estar físico e psicológico. 39. Como consequência dos actos praticados pelo arguido, a assistente teve consultas de psicologia quinzenais, as quais ainda se mantêm e vão manter.
Desde já se vê que estamos em presença de relevantes danos não patrimoniais.
Vejamos o que decidiu o tribunal:
Dos danos não patrimoniais invocados: medo, dores, mal-estar, dano estético, limitação da atividade profissional. Quanto às lesões e sequelas atender-se-á à matéria ínsita nos artigos 24.º a 26.º da matéria de facto assente. Para além disso, a conduta do arguido originou na demandante sintomatologia depressiva e ansiosa, medo e angústia, vergonha e humilhação, necessitando de acompanhamento psicológico. Nos termos do art.º 496.º, n.º 1, Código Civil, é evidente que se tratam de danos que merecem tutela jurídica. Devendo a compensação ser calculada por recurso à equidade (n.º 4 do mesmo art.º 496.º), e tendo em conta este impacto na vida da assistente, as sequelas a nível psicológico que se mantêm e demandam acompanhamento especializado, as sequelas físicas que resultaram, para além das cicatrizes (as da cara não facilmente visíveis a distância social e as da mão direita sem desfiguração grave), numa limitação da força de flexão dos 3.º e 4.º dedos e alterações de sensibilidade da região da polpa do 3.º dedo. Pelo exposto, julga-se adequada a compensação de € 30 000,00, a suportar pelo demandado. Face à sua fixação tendo em conta a presente data, nos termos do art.º 566.º, n.º 2, Cód. Civil, não vence tal quantia juros de mora a contar da notificação do pedido, mas apenas a partir de agora.
Dito assim, parece assistir razão ao recorrente, podendo afigurar-se exagerado o montante fixado.
Não esqueçamos que visando a indemnização do dano não patrimonial as ofensas de interesses insuscetíveis de reparação pecuniária (Pessoa Jorge, Lições de Direito das Obrigações, AAFDL, 1975/1976, pag. 594), não tem por fim, nem pode ter, a sua reparação, como em geral sucede em relação à obrigação aqui em causa, funcionando antes como uma compensação, destinada a permitir ao lesado a obtenção ou atingimento de situações concretas de vida que possam ajudá-lo, pelo bem estar ou alegria que lhe tragam, a ultrapassar as consequências negativas provocadas pela lesão. Como ensina o Mestre citado: “com efeito, o objetivo da reparação dos danos não patrimoniais não é summo rigore tornar indemne, apagar o dano, nem constitui pena civil, porque não se trata propriamente de infligir um castigo ao agente, o que se pretende é proporcionar ao lesado uma compensação ou benefício de ordem material, que lhe permita obter prazeres ou distrações – os quais, aliás, podem ser de ordem puramente espiritual – que, de algum modo, o compensem da sua dor. Não consistiria num pretium doloris, mas antes num compensatio doloris” – cfr. ob. cit., pag. 594/595.
Estamos perante múltiplas feridas, é certo, mas de gravidade mediana ou baixa, com exceção da que ocorreu na mão direita, com acentuada relevância, cuja recuperação integral demandou 180 dias, tendo tais lesões causado cicatrizes e limitação da força de flexão dos 3.º e 4.º dedos e alterações de sensibilidade da região da polpa do 3.º dedo – assim, além das dores e demais consequências de ordem psíquica acima referidas, cumpre acentuar a importância do longo período de recuperação, só por si atendível em termos indemnizatórios, bem como o desgosto inerente às limitações funcionais da mão direita.
Neste enquadramento factual podemos até conceder que uma indemnização que se situe por volta dos € 10.000,00 propostos no recurso poderia dar cabal cumprimento ao juízo equitativo a esta matéria pertinente.
Todavia, no caso presente cumpre considerar ainda um dano não patrimonial, quiçá o mais grave de todos eles, consubstanciado na antevisão da morte por parte da vítima. Nesta concreta situação, temos uma vítima fisicamente dominada pelo companheiro, dentro de casa, no quarto, o qual, empunhando uma faca, lhe dizia querer matá-la, desferindo-lhe golpes, alguns em zonas vitais do corpo ou a elas dirigidos, tendo sido obrigada a reagir com tenacidade para se defender, e a gritar por socorro, tendo a situação findado apenas após a determinada intervenção de vizinhos – ora, qualquer pessoa mediana colocada nesta concreta situação seria certamente acometida do maior pavor e de uma clara antevisão mental da sua própria morte, a qual certamente não seria rápida, uma vez que os golpes com arma branca causam geralmente a morte por hemorragia, o que leva o seu tempo, consoante os vasos sanguíneos atingidos, tudo contribuindo para uma aflição sem igual (diríamos até que, regra geral, na vida adulta, e designadamente depois do decesso dos progenitores, a aflição derivada da contemplação da nossa própria morte só é superada pela possibilidade da morte de um filho ou do cônjuge ou equivalente).
Este relevantíssimo dano tem sido, desde há muito, contemplado nas decisões judiciais – veja-se o lapidar Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Março de 1971, BMJ, n.º 205, pag. 162, proferido a respeito da indemnização do dano da morte, onde se pode ler que “(…) há sempre um período, mais ou menos longo (…) em que o sangue ainda circula, em que o cérebro ainda sente, em que, portanto, a vida ainda existe no corpo destroçado da vítima (…)”, para enquadrar a dor intensa e a previsão da morte por parte desta; ou seja, enquanto sofre as lesões adequadas a causar a morte, e mesmo depois de as sofrer, mas antes de morrer, para além da dor, a vítima padece o incomensuravelmente angustiante dano da previsão da sua morte, algo que para a generalidade das pessoas, e salvo personalidades e feitios muito particulares, será absolutamente aterrador.
Assim sendo, tendo em conta esta conjugação danosa, é nosso entender que a indemnização fixada não merece reparo, também aqui improcedendo o recurso.
III DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso apresentado por AAe, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo arguido, fixando a taxa de justiça em 4 UCs.
Guimarães, 6 de Maio de 2025
Os Juízes Desembargadores
Bráulio Martins
Isilda Pinho
Florbela Sebastião e Silva