CRIME DE INJÚRIA
TIPO OBJECTIVO
CONTEXTO
GATUNO
Sumário


I – Nos crimes contra a honra importa considerar não só as expressões em si mesmas ou o seu significado, mas todas as circunstâncias envolventes, como seja, a comunidade mais ou menos restrita a que pertencem os intervenientes, a relação existente entre estes, o contexto em que as palavras são produzidas e a forma como o são.
II - A protecção penal dada à honra e consideração e a punição dos factos que atentem contra esses bens jurídicos só se justifica em situações que objectivamente as palavras proferidas não têm outro sentido que não a ofensa, ou em situações em que, ultrapassada a mera susceptibilidade pessoal, as palavras dirigidas à pessoa a quem o foram, são indubitavelmente injuriosas, lesivas da honra e consideração do lesado.
III – O cerne da determinação dos elementos objectivos tem sempre de fazer-se pelo recurso a um horizonte de contextualização, residindo aqui um dos elementos mais importantes para a correcta determinação dos elementos objectivos do tipo.
IV – Como se verifica amiúde no meio rural nas questões relacionadas com direitos reais, por vezes, é normal algum grau de conflitualidade e animosidade entre os membros de uma comunidade, surgindo situações em que alguns deles se podem até expressar, ao nível da linguagem, de forma excessiva.
V - Num longo contexto de conflitualidade, por divergências relacionadas com o direito de propriedade, a expressão “gatuno”, proferida quando o arguido se cruzou numa servidão da passagem com o assistente, em resposta à saudação deste, não atinge o grau de gravidade a partir do qual o direito à honra carece de tutela penal.

Texto Integral


Acordam na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

1. No âmbito do processo comum singular n.º 660/23.4GBGMR, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Guimarães – Juiz 1, o assistente AA deduziu acusação particular contra o arguido BB imputando-lhe a prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal, a qual foi acompanhada pelo Ministério Público.
2. Por despacho de 16.01.2025 o Mmo. Juiz rejeitou a acusação particular apresentada pelo assistente por a considerar manifestamente infundada.
3. Inconformado com a decisão, recorreu o Ministério Público, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
«1. Por despacho judicial datado de 16-01-2025, foi rejeitada a acusação particular deduzida pelo assistente e acompanhada pelo Ministério Público, por entender o Tribunal a quo que a acusação particular é manifestamente infundada, em virtude de a expressão “gatuno” não ser suscetível de consubstanciar a prática de um crime de injúria.
2. Entendeu o Tribunal a quo que “a expressão dirigida pelo arguido ao assistente (“gatuno”) é uma daquelas que, diariamente, se vê ser utilizado por diversas pessoas da nossa sociedade, e que, apesar de revelar uma extrema falta de educação da pessoa de onde emana, não cria, na generalidade dos cidadãos, um sentimento de ofensa dos seus valores morais, susceptível de por em causa a sua honra e consideração. Pode mesmo dizer-se que é já uma expressão totalmente banalizada o que, apesar de não a tornar desculpável, também não a torna tão grave que a leve a cair nos meandros do direito sancionatório.”
3. Mais entendeu o Tribunal a quo que “tal expressão, no contexto em que foi dita, a comprovar-se, cairia somente na alçada do juízo de censura moral e social, não tendo a virtualidade de entrar pela porta da proibição penal, não consubstanciando um ilícito criminal, por não atentar directa ou indirectamente contra a honra e consideração de uma pessoa, não destruir a imagem do ofendido, mostrando-se tal comportamento inapto a ofender a honra e consideração da assistente.”
4. Concluindo e decidindo o Tribunal a quo que “é patente a atipicidade das condutas descritas na acusação particular, a qual deve ser rejeitada (art. 311.º, n.º 2 a) e n.º 3 d) do CPP), sendo certo que os interesses em jogo poderão ser eventualmente dirimidos no campo do instrumentarium juscivilístico, que não já no campo penal, de ultima ratio, sob pena de subversão dos seus princípios e fundamentos, assim desvirtuando o cariz supletivo e fragmentário que serve de pedra de toque a toda e qualquer intervenção penal, radicado nos princípios de adequação, proporcionalidade e necessidade que encontram assento constitucional no art. 18.º, n.º 2 da CRP.”.
5. Tal entendimento não merece a concordância do Ministério Público, desde logo porque podemos afirmar com toda a certeza que qualquer pessoa a quem lhe fosse dirigida a palavra “gatuno” se sentiria desrespeitado e desonrado.
6. Este tipo de crime está fortemente ligado à forma como a sociedade vê cada cidadão e, sendo um cidadão associado à expressão “gatuno”, mesmo que o próprio saiba que não o é, tal significa que é visto como um “ladrão” ou “pessoa que se dedica ao furto e não respeita a propriedade alheia, que é desonesto”, o que não é compatível com o exposto pelo Tribunal a quo, no sentido de que tal expressão “não cria, na generalidade dos cidadãos, um sentimento de ofensa dos seus valores morais, susceptível de por em causa a sua honra e consideração”, sendo uma “palavra que diariamente se vê ser utilizada por diversas pessoas na nossa sociedade e totalmente banalizada”.
7. Não obstante na acusação particular não estar descrito todo o circunstancialismo que caracteriza o relacionamento entre o arguido e o assistente, a verdade é que tal também não é exigido, pois a acusação tem que ter apenas factos, factos esses que integrem o tipo de crime de injúria, nomeadamente os seus elementos objetivos e subjetivos, sem qualquer referência, portanto, a requisitos objetivos ou subjetivos acrescidos.
8. Por outro lado, também não cabe ao julgador criar exigências adicionais para a verificação ou não de um crime quando o próprio legislador não o fez, até porque, esse apuramento das circunstâncias exteriores e que medeiam a prática dos factos deve ser apurado apenas em sede de audiência de discussão e julgamento, onde se produz a prova por excelência e plenitude, não recaindo sobre a acusação a obrigação da descrição de factos complementares, mas sim dos factos que integram o elemento objetivo e subjetivo do tipo de crime, o que se verifica.
9. No entanto, resulta do inquérito, nomeadamente da queixa apresentada pelo assistente e testemunhas inquiridas, que existe uma relação de conflitualidade que já dura há aproximadamente 30 anos, entre o assistente e o arguido, devido às extremas de um terreno.
10. Assim, olhando para a redação da factualidade acusada pelo assistente, não podemos concluir que o libelo acusatório não apresenta ao Tribunal uma imputação concreta ao arguido de um crime de injúria, sendo que, ao assim não entender, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal e artigo 26º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
11. Pelo exposto, entendemos que se encontra verificada a prática do crime de injúria pelo arguido, devendo ser recebida a acusação deduzida pelo assistente e acompanhada pelo Ministério Público presentes autos.
Nestes termos, e nos demais que V. Exas. Doutamente suprirão, deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-se a mesma por decisão que receba a acusação do crime particular pelo qual o arguido se encontra acusado, acusação essa acompanhada pelo Ministério Público, e que designe datas para a realização da audiência de discussão e julgamento.»
4. O arguido BB respondeu ao recurso, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões (transcrição):
«PRIMEIRA: A descrição das circunstâncias que caracterizam o relacionamento entre o recorrido e o assistente são factos que devem constar da acusação uma vez que são essenciais para a verificação ou não do elemento subjetivo de um crime (Ac. Do STJ de 20/11/2014).
SEGUNDA: Num contexto de conflito entre duas partes, em que um arguido expressa determinadas palavras, pode conduzir à não verificação do elemento subjetivo do ilícito criminal em questão, quanto mais não seja por via da aplicação do princípio in dubio pro reo. (Ac. do TRG DE de 27/04/2020 e Ac. do TRG de 11/02/2019).
TERCEIRA: Neste sentido, tendo em conta a relação conflituosa de longos anos entre o recorrido e o assistente, que é do conhecimento dos presentes autos e reconhecida pelo Ministério Público nas suas alegações de recurso, nomeadamente as diversas acções cíveis que correram entre estes, identificadas no artigo 5.º “supra”, a alegada proferição da expressão “gatuno” não preenche o elemento subjetivo do crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º do CP.
QUARTA: Atendendo ao contexto acima descrito, existe um conjunto de circunstâncias que contextualizam a alegada proferição da expressão “gatuno”, não se verificando os pressupostos do tipo legal de crime de injúria.
QUINTA: A expressão, no contexto em que foi dita, a comprovar-se, cairia na alçada do juízo de censura moral e social e não consubstancia um ilícito criminal, por não atentar directa ou indirectamente contra a honra e consideração do Assistente.
SEXTA: O despacho judicial datado de 16-01-2025, não merece qualquer reparo, fazendo uma correta interpretação e aplicação dos preceitos legais com relevância para o caso dos autos.
SÉTIMA: O tribunal a quo não podia decidir de outra maneira que não pela rejeição da acusação particular.
Termos em que, com o douto suprimento, deve negar-se provimento ao recurso, mantendo-se a decisão do despacho de rejeição recorrido na integra,
como é de JUSTIÇA!»
5. Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, na vista a que se refere o artigo 416.º do Código de Processo Penal, emitiu parecer no sentido de que o recurso do Ministério Público deverá obter provimento.
6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não houve resposta.
7. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

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II - FUNDAMENTAÇÃO

1. É o seguinte o teor do despacho recorrido (transcrição):

«Questão Prévia – da rejeição da acusação por manifestamente infundada
Nos presentes autos, o assistente AA deduziu acusação particular contra o arguido BB, melhor identificados nos autos, imputando-lhe factos que os fazem incorrer na prática de um crime de injúria (art. 181.º n.º 1 do CP); e deduziu pedido de indemnização civil, pedindo a condenação do arguido/ demandado no pagamento ao demandante a quantia de € 702,00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais causados (fls. 70-72).
O Ministério Público declarou acompanhar a acusação particular.
Ora, como é sabido, «só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática» (art. 1.º, n.º 1 do CP).
A prática de um crime implica a imposição de uma pena ou de uma medida de segurança (art. 1.º, n.º 1 a) do CPP).
A finalidade primária que subjaz à aplicação de uma sanção criminal é a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (cf. art. 40.º, n.º 1 do CP).
O tipo legal de crime, previamente definido numa norma, descreve um conjunto de elementos que qualificam uma acção ou comportamento como crime. Descreve a conduta proibida pelo ordenamento jurídico criminal.
Concluída a fase de investigação (inquérito) e deduzida uma acusação contra alguém, o Tribunal, recebidos os autos para julgamento pode, além do mais, rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada, o que pode suceder nos seguintes casos: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) se os factos não constituírem crime (art. 311.º, n.º 2 d) e 3 do CPP).
No caso em apreço, como vimos, o arguido encontra-se acusado de ter incorrido na prática de um crime de injúria.
Preceitua o art. 181.º, n.º 1 do CP que «quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.».
O bem jurídico protegido por este tipo legal é a honra, bem jurídico de natureza pessoal e imaterial tutelado pela CRP a montante (arts. 25.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1), como um direito, liberdade e garantia pessoal, e também pela Lei a jusante (arts 181.º, n.º 1 do CP e 70.º, n.º 1 do CC).
O titular ou detentor do bem jurídico honra é o próprio sujeito, a própria pessoa de quem ela é qualidade intrínseca ou atributo (cf. Faria Costa, Comentário Conimbricense, I, p. 602).
A honra nasce da consideração do conjunto de relações interpessoais, representando “a merecida ou fundada pretensão de respeito da pessoa no contexto das relações de comunicação e interacção social em que é chamada a viver” (cf. Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, 1996, p. 81.).
A honra é, pois, um aspecto da personalidade de cada indivíduo, que lhe pertence desde o nascimento apenas pelo facto de ser pessoa e radicada na sua inviolável dignidade (cf. Faria Costa, ob. cit., p. 606).
A injúria ou a difamação, que acarreta desonra, consiste, precisamente, em recusar à pessoa esse valor.
A honra deve ser, pois, reportada à Constituição, referente hermenêutico dos bens jurídico-penais.
A Constituição em vários locais do seu texto refere-se ao conceito de “dignidade da pessoa humana” (arts. 1.º e 26.º), logo o conceito jurídico-penal de honra deve ser entendido como o referente a proteger em ordem à conservação de um sistema social e democrático de Direito e que se concretiza na tutela do respeito de todo homem por ser “Pessoa” e pelo facto de ser ilegítimo em face de terceiros obstar à sua interacção (participação) social dentro da esfera comunicacional.
Deverá, assim, entender-se hoje a honra como uma decorrência directa da dignidade da pessoa humana (art. 1.º da CRP) e, desse jeito, tê-la como um conceito normativo, cuja concretização não dispensará o recurso ao mundo dos factos, tanto mais que a lei admite e regula a exceptio veritatis, posto que se apure que a imputação é feita para realizar interesses legítimos (art. 180.º, n.º 2 b) ex vi art. 181.º, n.º 2, ambos do CP).
Observa-se o preenchimento do tipo objectivo do crime de injúria quando o agente imputa a outrem factos ou juízos desonrosos, ainda que sob a forma de suspeita, ou, em alternativa, lhe dirige palavras ofensivas da sua honra e consideração. No que concerne a esta segunda modalidade, há que ter presente que a simples insolência, grosseria, má-educação ou descortesia não têm, por si só, o peso para objectivamente atingir a honra ou a consideração de outrem, pelo que o preenchimento deste tipo de crime se presta particularmente a um labor de delimitação de condutas típicas além da que é imposta pelo princípio da subsidiariedade, e que leva à atipicidade de certas ofensas objectivamente insignificantes.
Por isso, para que se possa afirmar o dolo – elemento referencial da culpa – nos crimes de difamação e injúria, não é necessário que o agente com o seu comportamento queira ofender a honra ou a consideração alheias, nem mesmo que haja previsto o perigo, bastando a previsão da genérica perigosidade da conduta ou do meio de acção previstas nas respectivas normas incriminadoras.
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Feita esta breve resenha, passemos a analisar os seguintes factos descritos na acusação particular que pressupõem o enquadramento jurídico efectuado pelo assistente:
“5- No dia 9 de novembro do corrente ano de 2023, pelas 14,30 horas, quando o denunciante se dirigia a pé, para o Campo ..., no sentido norte/ sul, pela servidão de passagem aí existente ainda, cruzou-se com o denunciado, que na altura fazia a passagem pela mesma servidão, no sentido norte/ sul;
6- E ao cruzar-se com o denunciado, saudou-o dizendo “boa tarde” e sem que nada o fizesse prever, aquele em resposta à saudação, proferiu contra estes a palavra “gatuno” e outras palavras e frases de que não se recorda já;
7- Ao proferir contra o denunciante, a palavra “gatuno” e outras de que não se recorda já, o denunciado pretendeu ofender a honra e a dignidade de que aquele goza, como realmente ofendeu” (…)
Centremo-nos, pois, na expressão “gatuno” (única palavra/expressão potencialmente ofensiva da honra e consideração do assistente) já que as outras alegadas “palavras e frases” de que o assistente “não se recorda já”, por não se encontrarem vertidas no texto da acusação, jamais poderão consubstanciar uma qualquer ofensa à honra para efeitos penais.
Ora, o significado corrente de tal vocábulo pode encontrar como sinónimos “ladrão”, “larápio”, “ratoneiro”, e encontra-se associada a quem ou a aquele “que se dedica ao furto”[1].
Dúvidas não restam, pois, de como se trata de uma expressão desvaliosa, e manifestamente desrespeitosa de se dirigir a quem quer que seja. Podemos mesmo concluir que a afirmação em causa não é meramente indelicada ou descortês; é verdadeiramente grosseira, denotando profunda falta de educação do arguido. Mas daí até que se posa afirmar um atentado à personalidade moral do assistente, medeia significativa distância. Aquele vocábulo, desprovido de qualquer contexto específico, simplesmente proferido no meio de outras quaisquer expressões de que nem o assistente se lembra já, não é, pois, passível de contender com o conteúdo ético da personalidade moral do visado nem atinge valores ético e socialmente relevantes do ponto de vista do direito penal, e muito menos aquele que é o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana, vista objectivamente, não se podendo considerar, como tal, ofensivo da honra e consideração.
Como é sabido, a lei não pune meras deselegâncias, grosserias, faltas de respeito, enfim, má-criação. Essa dimensão fica sob a alçada da censura social. O Direito Penal, enquanto sistema sancionatório, não é chamado para este campo comportamental. Assim, representando a honra um objecto ideal em que a lesão apenas se dá no ataque à pretensão de respeito decorrente daquele valor, pretensão essa que constitui o real objecto de acção dos crimes de difamação e injúria, não se alcança, como se disse, no caso concreto, qualquer ataque ou ofensa pessoal ao assistente que atinja o bem jurídico protegido com a incriminação, inexistindo, pois, qualquer discurso de ofensa no sentido ético-jurídico.
Mesmo assumindo que se trate de uma mentira, isto é, que o assistente nunca se dedicou ao furto nem nunca se apropriou do que não fosse seu, sempre adoptando um comportamento íntegro e irrepreensível do ponto de vista ético, certo é que a expressão de uma mentira não consubstancia de per si uma conduta criminalmente punível, mas tão-somente quando a mesma mentira acarrete e encerre em si uma reprovação ético-social, isto é, quando seja ofensiva da honra e consideração do visado, do seu direito ao bom nome e reputação.
No entanto, no caso em apreço, mesmo provando-se integralmente os factos da acusação, o que o arguido revelou com o seu comportamento foi, como se disse, uma falta de educação atroz, que fere as regras do civismo exigível na convivência social. Contudo, esse seu comportamento, socialmente desconsiderado, tido por ordinário e violador das normas consuetudinárias da ética, da moral e das regras de sã convivência, é destituído de relevância penal, dado o direito penal não ser chamado para este campo comportamental, devendo ficar sob a alçada da censura social. A expressão dirigida pelo arguido ao assistente (“gatuno”) é uma daquelas que, diariamente, se vê ser utilizado por diversas pessoas da nossa sociedade, e que, apesar de revelar uma extrema falta de educação da pessoa de onde emana, não cria, na generalidade dos cidadãos, um sentimento de ofensa dos seus valores morais, susceptível de por em causa a sua honra e consideração. Pode mesmo dizer-se que é já uma expressão totalmente banalizada o que, apesar de não a tornar desculpável, também não a torna tão grave que a leve a cair nos meandros do direito sancionatório.
Não podemos descurar, quanto a esta questão, o cariz supletivo e fragmentário que serve de pedra de toque a toda e qualquer intervenção penal, radicado nos princípios de adequação, proporcionalidade e necessidade que encontram assento constitucional no artigo 18.º, n.º 2 da CRP. A lei – e neste caso, a lei penal, ou, em sentido lato, a intervenção penal – por ser por natureza a mais intrusiva e cerceadora dos direitos, liberdades e garantias dos indivíduos, só deve intervir em ultima ratio, devendo estar assim reservada para as ofensas mais graves aos bens jurídicos fundamentais tutelados na CRP, não se devendo ocupar de todo e qualquer comportamento ilícito ou reprovável.
Em suma, tal expressão, no contexto em que foi dita, a comprovar-se, cairia somente na alçada do juízo de censura moral e social, não tendo a virtualidade de entrar pela porta da proibição penal, não consubstanciando um ilícito criminal, por não atentar directa ou indirectamente contra a honra e consideração de uma pessoa, não destruir a imagem do ofendido, mostrando-se tal comportamento inapto a ofender a honra e consideração da assistente.
Por essa razão, ainda que todos os factos da acusação fossem julgados provados em sede de audiência de julgamento, a decisão não poderia ser outra que não a absolvição do arguido, por faltar um dos elementos objectivos do tipo de crime que lhe vem imputado.
Quer isto dizer que o arguido, no contexto descrito na acusação particular, quando proferiu a citada expressão visando o assistente, não está motivado para ofender a sua honra ou consideração, mas apenas para o incomodar, queda-se por aí e nada mais.
Nesta medida, é patente a atipicidade das condutas descritas na acusação particular, a qual deve ser rejeitada (art. 311.º, n.º 2 a) e n.º 3 d) do CPP), sendo certo que os interesses em jogo poderão ser eventualmente dirimidos no campo do instrumentarium juscivilístico, que não já no campo penal, de ultima ratio, sob pena de subversão dos seus princípios e fundamentos, assim desvirtuando o cariz supletivo e fragmentário que serve de pedra de toque a toda e qualquer intervenção penal, radicado nos princípios de adequação, proporcionalidade e necessidade que encontram assento constitucional no art. 18.º, n.º 2 da CRP.
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O pedido de indemnização civil deduzido contra o arguido, por adesão ao processo penal, porque baseado em factos constantes da acusação particular que não constituem qualquer ilícito criminal, tipificado na lei, deve ser também liminarmente rejeitado.
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Em face do exposto, decide-se:

i. Rejeitar a acusação particular por manifestamente infundada, em virtude dos factos alegados não constituírem crime – art. 311.º, n.º 2 a) e n.º 3 d), ambos do CPP;
ii. Declarar extinta instância cível, por impossibilidade superveniente da lide – art. 277.º e) do CPC ex vi art. 4.º do CPP;
iii. Condenar o assistente em custas, na vertente criminal, fixando-se a taxa de justiça pelo mínimo legal (art. 515.º, n.º 1 f) do CPP);
iv. Sem custas na vertente cível, por isenção objectiva (arts 523.º do CPP e 4.º n) do RCP);
Notifique.
Oportunamente arquive.»
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2. Apreciando

Como é sabido, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.
Assim, a questão essencial a decidir, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, reconduz-se a saber se a acusação deduzida pelo assistente AA pode ser considerada como manifestamente infundada.
A fase preliminar do julgamento inicia-se com o saneamento do processo, nos termos do disposto no artigo 311.º do Código Processo Penal, que tanto pode incidir sobre aspectos adjectivos, como relativamente a aspectos substantivos.
Os primeiros tanto podem consistir em questões incidentais ou prévias, como em nulidades, com destaque para aquelas que podem afectar a acusação e que sejam de conhecimento oficioso – nºs 1 e 2, a).
Nestas destacam-se as circunstâncias de rejeição da acusação por vícios processuais respeitantes à falta de identificação do arguido, à narração dos factos, de indicação das disposições legais aplicáveis ou das provas que a fundamentam [n.º 3, al. a), b), c)].
Nestes aspectos processuais susceptíveis de saneamento, também encontramos aqueles que representam uma alteração substancial dos factos, tanto da acusação particular, como pública, enunciado no artigo 311.º, n.º 2, b).
Os aspectos substantivos, que respeitam ao mérito da causa, tanto podem incidir sobre questões prévias ou incidentais, como sucede, por exemplo, com a extinção do procedimento criminal, como podem representar um julgamento antecipado da causa, mas que se restringirá à rejeição da acusação em virtude dos factos narrados nesta não constituírem crime – artigo 311.º, nºs 2, a) e 3, d) do Código de Processo Penal.
Deste modo, obsta-se à realização de julgamentos inúteis, em virtude da existência, por um lado, de excepções processuais que afectam a acusação, em termos meramente dilatórios ou então de forma irremediável, ou, por outro lado, por falta de tipicidade criminal da conduta descrita.
Como resulta do citado artigo, recebidos os autos no tribunal, sem que tenha havido lugar a instrução, depois de se apreciar de nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação de mérito, o juiz deverá rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada – nºs 1 e 2, a) do citado diploma legal.
O n.º 3 do citado artigo 311.º enuncia os casos em que se deve considerar manifestamente infundada a acusação deduzida, sendo um desses casos, a circunstância de os factos não constituírem crime – alínea d).
Como é sabido a acusação assume uma importância decisiva no subsequente desenrolar do processo, cujo objecto define e fixa, delimitando os poderes de cognição do tribunal (a chamada vinculação temática do tribunal, a qual implica a inalterabilidade, fora dos limites apertados das disposições dos artigos 358.º e 359.º, do objecto do processo) e as inerentes implicações com as garantias de defesa do arguido – uma das quais é, justamente, a de lhe ser possibilitado o conhecimento antecipado, em toda a sua extensão, dos factos que lhe são imputados e da respectiva incriminação de forma a poder organizar de forma adequada a sua defesa e exercer o direito do contraditório – pressupostas por um processo equitativo que o processo criminal deve assegurar (nºs 1 e 5 do artigo 32.º da CRP).
Na acusação particular deduzida o assistente imputou ao arguido a prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal.
Na economia do despacho recorrido, tal acusação foi rejeitada com o entendimento de que à conduta descrita não poderá vir a ser reconhecida qualquer relevância criminal, isto é, por considerar atípica a conduta descrita na acusação particular.
Vejamos.
Estabelece o artigo 25.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa que a integridade moral e física das pessoas é inviolável, reconhecendo o seu artigo 26.º, n.º 1 que todos têm o direito ao bom nome e reputação.
Ao nível da lei ordinária, dispõe o artigo 70.º, n.º 1 do Código Civil que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.
A personalidade humana é integrada por diversos valores entre os quais a honra, que abrange “a projecção de valores de dignidade humana que é inata, ofertada pela Natureza igualmente a todos os seres humanos, insusceptível de ser perdida por qualquer homem, em qualquer circunstância (…). Em sentido amplo, inclui também o bom nome e reputação enquanto síntese do apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade de cada indivíduo e pelos demais valores pessoais adquiridos pelo indivíduo no plano moral, intelectual, familiar, profissional ou político.”([1]).
A tutela penal deste valor é assegurada pela tipificação dos crimes contra a honra especificamente, além de outros, o crime de injúria, assim desenhado no artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal: 
Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.
São elementos constitutivos do tipo deste crime:
[tipo objectivo]
- A imputação de facto (entendido como acontecimento passado ou presente susceptível de prova), ainda que meramente suspeito (não necessita de ser falso, ilícito e muito menos, criminoso) a outra pessoa, ou dirigir-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração;
[tipo subjectivo]
- O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, em qualquer uma das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal.
Trata-se de um crime comum – pode ser seu autor qualquer pessoa – e de perigo abstracto-concreto – o perigo não é elemento do tipo nem motivo da incriminação, antes surge como modo de ser da acção típica que em si mesma encerra uma aptidão genérica para produzir o efeito danoso, a ofensa da honra ou da consideração – que tutela o bem jurídico honra.
A definição do bem jurídico honra suscita várias dificuldades. Pode dizer-se, brevitatis causa, que a honra, numa solução de compromisso, é concebida como um bem complexo, composto pelo valor pessoal de cada indivíduo fundado na sua dignidade, e pelo valor exterior em que consiste a sua reputação ou consideração na sociedade, concepção esta que, em boa verdade, é compatível com a previsão da norma supra citada, que tutela igualmente a honra e a consideração([2]).
De todo o modo, cada colectividade, em cada momento histórico, atribui à honra um sentido e um conteúdo específicos, traduzidos no consenso do que, para a generalidade dos seus membros, deve razoavelmente considerar-se ofensivo, o que significa que nem todo o facto ou juízo que ofende, envergonha ou humilha preenche o tipo legal, tudo dependendo da intensidade da ofensa referida àquele momento histórico e àquele consenso social.
A delimitação da tipicidade terá então que ser feita “a partir do senso e da experiência comuns, os quais nos dirão se e quando certo e determinado comportamento é ou não ofensivo.”([3]).
A extensão da defesa da honra deve ser analisada num contexto de conflito com outros bens constitucionalmente tutelados.
Com efeito, são frequentes as situações em que conflituam o direito à honra e o direito de expressão. Sendo este um direito também erigido à dignidade de direito fundamental (art. 37.º, n.º 1 da Constituição) e não estabelecendo a Constituição da República uma hierarquia dos direitos que tutela, o choque entre o direito à honra e o direito de expressão impõe a sua recíproca compressão, com observância do princípio da proporcionalidade, mas sem que qualquer possa ser objecto de destruição do seu conteúdo essencial (cfr. art. 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa).
Trata-se, portanto, de fazer funcionar um princípio da concordância prática em que o respectivo juízo de ponderação abrange, de um lado, a adequação e necessidade do sacrifício de um direito à salvaguarda do outro, e de outro, que a solução concreta seja a que menos afecta e reduz os direitos em causa. Daí que, não raras vezes, no embate entre direito à honra e o direito à expressão se entenda que, para evitar a inutilização deste pela tutela penal daquele, deve recuar a tutela da honra, umas vezes pela atipicidade da conduta, outras pelo funcionamento de causas de exclusão da ilicitude, seja a do art. 31.º, n.º 2, b) do C. Penal, seja a do art. 180.º, n.º 2, a) do mesmo código.
Nos crimes contra a honra, como salienta o Acórdão da Relação do Porto de 19-12-2007, o que, de resto, constitui doutrina e jurisprudência uniforme, cumpre considerar, não só as expressões em si mesmas ou o seu significado, mas todas as circunstâncias envolventes, como seja, a comunidade mais ou menos restrita a que pertencem os intervenientes, a relação existente entre estes, o contexto em que as palavras são produzidas e a forma como o são([4]).
O que significa que a protecção penal dada à honra e consideração e a punição dos factos que atentem contra esses bens jurídicos só se justifica em situações que objectivamente as palavras proferidas não têm outro sentido que não a ofensa, ou em situações em que, ultrapassada a mera susceptibilidade pessoal, as palavras dirigidas à pessoa a quem o foram, são indubitavelmente injuriosas, lesivas da honra e consideração do lesado([5]).
Neste sentido o Prof. Faria Costa alerta para que «o cerne da determinação dos elementos objectivos se tem sempre de fazer pelo recurso a um horizonte de contextualização. Reside, pois, aqui, um dos elementos mais importantes para, repete-se, a correcta determinação dos elementos objectivos do tipo»([6]).
Posto isto.
Como decorre dos autos – e o próprio recorrente reconhece na motivação de recurso – o arguido e o assistente mantêm uma relação conflituosa de longos anos.
Há cerca de 30 anos que “andam em litígio” por causa das extremas de um terreno e por isso gerou-se entre eles um contexto de conflitualidade por divergências relacionadas com o direito de propriedade.
No dia 9 de Novembro de 2023, pelas 14,30 horas, quando o assistente se dirigia a pé, para o Campo ..., no sentido norte/sul, pela servidão de passagem aí existente ainda, cruzou-se com o arguido, que na altura fazia a passagem pela mesma servidão, no sentido norte/sul.
O assistente, ao cruzar-se com o arguido, saudou-o dizendo “boa tarde”, ao que o arguido, em resposta à saudação, proferiu a expressão “gatuno” dirigida ao assistente.
Portanto, é no desenrolar do referido conflito, quando ambos se cruzaram numa servidão da passagem, que o arguido, em resposta à saudação do assistente, proferiu a expressão “gatuno” dirigida ao assistente.
O que a expressão proferida exprime não é mais do que a tensão criada pelo longo conflito que o arguido e o assistente mantêm e se nela existe, reconhece-se, uma atitude desrespeitadora e grosseira, ela foi potenciada pelo conflito e não é mais do que o reflexo daquela tensão.
Importa ter em consideração que, por vezes, é normal algum grau de conflitualidade e animosidade entre os membros de uma comunidade, como se verifica amiúde no meio rural nas questões relacionadas com direitos reais, surgindo situações em que alguns deles se podem até expressar, ao nível da linguagem, de forma excessiva.
Porém, o Direito Penal deve ter um carácter fragmentário, cumprindo uma função de ultima ratio, não podendo intervir sempre que a linguagem ou afirmações utilizadas incomodam o visado, devendo a sua intervenção reservar-se para as situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana.
Nessa medida, a expressão em causa não afectou e não se vê que tenha potencialidade para afectar a imagem do assistente junto da comunidade, sendo certo que para a pretendida protecção da honra e correspondente direito ao bom nome e à reputação não basta que aquele se tenha sentido magoado e incomodado com tal expressão.
Em conclusão, atento o contexto em que foi produzido, consideramos que o potencial ofensivo de tal expressão não atinge o grau de gravidade a partir do qual o direito à honra carece de tutela penal pelo que também se tem por atípica e, portanto, não injuriosa, a conduta do arguido.
Por conseguinte, nenhuma censura merece o despacho recorrido ao rejeitar a acusação particular apresentada pelo assistente por ser manifestamente infundada.
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III – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso do Ministério Público e, em consequência, confirmar o despacho recorrido.
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Sem tributação – artigo 522.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
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 (O acórdão foi processado em computador pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)
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Guimarães, 27.05.2025

Os Juízes Desembargadores
Fernando Chaves (Relator)
Paulo Correia Serafim (1º Adjunto)
Fátima Furtado (2ª Adjunta)


[1] - Fonte: dicionário Priberam da língua portuguesa (https://dicionario.priberam.org).
[1] - Capelo de Sousa, O Direito Geral da Personalidade, 1995, pág. 303.
[2] - Cfr. Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, pág. 910 e Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, pág. 87.
[3] - Acórdão da Relação de Coimbra de 02/03/2005, Proc. n.º 296/05, disponível em www.dgsi.pt.
[4] - Proc. n.º 0745811, disponível em www.dgsi.pt/.
[5] - Acórdão da Relação de Lisboa de 20/03/2006, Proc. n.º 4290/2006-5, disponível em www.dsi.pt.
[6] - Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, 2ª Edição, pág. 916.