CRIME PÚBLICO
ACUSAÇÃO PELO ASSISTENTE
FALTA DE NOTIFICAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE INSTRUÇÃO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
RELAÇÃO DE NAMORO
AFASTAMENTO TEMPORÁRIO DO ARGUIDO DA AUDIÊNCIA
GARANTIA DE DEFESA
Sumário


I. Sendo o procedimento por crime de natureza pública, a instrução só é admissível por factos pelos quais o Ministério Público deduziu acusação e não também pelos factos constantes da acusação do assistente que acompanha a acusação pública e dela depende, como decorre diretamente do artigo 287.º, n.º 1 al. a) do Código de Processo Penal. A abertura da instrução por factos constantes da acusação do assistente só é admissível em caso de procedimento dependente de acusação particular.
Inexiste norma legal a determinar que a omissão, na fase de inquérito, da notificação ao arguido da acusação deduzida pela assistente acompanhando a acusação pública constitui nulidade.
II. O direito de presença do arguido na audiência não é um direito absoluto, admitindo o seu afastamento temporário da sala com fundamento legal no artigo 352.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo, posto que se mantém salvaguardado o princípio do contraditório, com a presença do defensor e com comunicação posterior ao próprio arguido, pelo tribunal, do que se passou na sua ausência (cf. nº 2 do mesmo artigo 352.º).
III. A relação de namoro é, em si, uma realidade fática, pois que, como observa o próprio Tribunal Constitucional, no acórdão nº 325/2023 «…tem, para qualquer destinatário de normal discernimento, uma evidente tradução factual de fácil apreensão. Ou seja, a noção de “relação de namoro”, em geral, não é aberta ao ponto de qualquer destinatário de normal entendimento deixar de compreender o que nela pode estar factualmente implicado.»
Nada obsta a que dos Factos Provados conste apenas a menção a relação de namoro, e não, também, às específicas circunstâncias fáticas decorrentes da prova produzida e consubstanciadoras desse relacionamento, que levaram o tribunal a convencer-se da existência dessa relação, cujo lugar próprio é na motivação factual.

Texto Integral


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção Penal)

I. RELATÓRIO

A. No processo comum singular nº 211/23.0GBBCL, do Juízo Local Criminal de Barcelos - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, em que é arguido AA, com os demais sinais dos autos, em 13.09.2024, foi proferido despacho, referência ...40, com o seguinte teor:
«Requerimentos de 31-07-2024 (ref.ª ...88) e de 08-08-2024 (ref.ª ...06):
Considerando os esclarecimentos prestados pela assistente, admito o aditamento ao rol de testemunhas com a distribuição indicada pela assistente no requerimento de 08-08-2024 – cf. art. 316º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Notifique.»
Inconformado, o arguido AA interpôs recurso interlocutório, apresentando a competente motivação, que remata com as seguintes conclusões:
«1ª Vem o presente recurso interposto do despacho que admitiu o aditamento ao rol de testemunhas da acusação da assistente.
2ª O despacho recorrido erra não no que decide directamente – o aditamento ao rol de testemunhas da acusação da assistente – por causa do que deixa pressuposto, ou seja, a admissão da acusação pela assistente.
3ª Na verdade, o despacho recorrido deixa pressupor que o Tribunal iria julgar a acusação pelo assistente, sem que esta tivesse sido notificada ao arguido em sede de inquérito e sem que o Tribunal se pronunciasse no momento saneador do processo sobre a mesma admitindo-a ou rejeitando-a ou aquilatando da sua legalidade.
3ª O arguido não foi notificado da acusação deduzida pela assistente na fase de inquérito para querendo, requerer a abertura da instrução.
4ª Nos termos dos artigos 113.º n.º 10, 283.º n.º 5, 277.º n.º 3 e 284.º n.º 2 do Código de Processo Penal, a notificação respeitante à acusação pelo assistente deve ser obrigatoriamente efectuada ao arguido e ao seu defensor, designadamente quando adita factos que não constam da acusação pública.
5ª Aliás, tal conclusão decorre da plena aplicação do princípio do contraditório e do direito do arguido à instrução (artº 32º nº4 e 5 da Constituição).
6ª Se o arguido pode vir a ser condenado pelos factos constantes da acusação deduzida pelo assistente para além dos factos constantes da acusação pelo MP ou mesmo em substituição destes, os factos constantes da acusação do assistente estão ou têm obviamente de estar em pé de igualdade no que toca aos direitos de defesa do arguido, com aqueles alegados pelo MP.
7ª E daí que o arguido tenha o direito de requerer a abertura da instrução quanto a eles e a decisão de pronúncia ou não pronúncia sobre eles se debruçar.
8ª Assim, a interpretação que se extraia do disposto nos artºs 61º nº1 al. c), 113.º n.º 10, 283.º n.º 5, 277.º n.º 3, 284.º n.º 2, 286º nº1 e 287º nº1 al. a) do Código de Processo Penal, no sentido de que o arguido pode não ser notificado da acusação deduzida pelo assistente, quando esta contenha factos diferentes daqueles que constituem a acusação do MP, para, querendo, requerer a abertura da instrução deve ser julgada inconstitucional por violação do disposto no artº 32º nº1, 4 e 5 da Constituição.
9ª A falta de notificação da acusação do assistente configura nulidade insanável nos termos do disposto no artº 119º al. c) do Código de Processo Penal.
10ª Mas, mesmo que assim não fosse de entender, sempre deve ter-se como verificada a irregularidade decorrente da falta de notificação da acusação particular ao arguido e, em consequência, determinar-se tal notificação (cfr. o artº 123º nº2 do Código de Processo Penal).
11ª A interpretação que se extraia do disposto nos artºs 118º nº1, 119º al. c) e 120º nº2 al. b) e 284º do Código de Processo Penal, no sentido de que não constitui nulidade insanável a falta de notificação ao arguido da acusação deduzida pelo assistente na fase de inquérito, deve ser julgada inconstitucional, por violação dos artºs 2º, 32º nº1, 4 e 5 da Constituição.
12ª A acusação deduzida pela assistente, para ser julgada teria de ser admitida e verificada a sua legalidade, designadamente a sua conformidade com o disposto no artº 284º nº 1 do Código de Processo Penal, nos termos do disposto no artº 311º nº1 e 2 do Código de Processo Penal.
13ª A interpretação que tem de se fazer da norma do artº 311º nº2 do Código de Processo Penal é no sentido de entender que o juiz de julgamento apenas está isento de aceitar ou rejeitar a acusação deduzida pelo assistente, quando tal acusação tiver sido sujeita a instrução, pois que assim sendo obrigaria o juiz de julgamento a sindicar uma acusação que já havia sido sindicada pelo JIC e admitida.
14ª Se a acusação deduzida pelo assistente não foi sujeita a instrução, o juiz de julgamento está obrigado a sindicar e admitir ou rejeitar a acusação deduzida pelo assistente, pois que apenas podem ser julgadas acusações que sejam admitidas a julgamento, nos termos do artº 311º do Código de Processo Penal (neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/05/2023, lavrado in proc 64/20.0GACDN, sendo relator Alexandra Guiné supra citado).
15ª Assim, a acusação particular deduzida pela assistente tem de ser admitida à fase de julgamento no âmbito do disposto no art. 311º nº 1 e 2º do Código de Processo Penal, sendo certo que, nessa parte, tal despacho é recorrível.
16ª Ao não ter procedido assim, resulta violado o disposto no art. 311º nº 1 e 2º do Código de Processo Penal bem como o disposto nos artigos 284º, 285º do mesmo diploma legal, o que consubstancia irregularidade que deve ser reparada, uma vez que dela depende a validade dos actos subsequentes e, designadamente, de uma eventual condenação do arguido pelos factos constantes da acusação da assistente (artº 123º nº2 do Código de Processo Penal).
17ª Por tudo o exposto, não podia o Mmo Juiz a quo admitir um aditamento ao rol de testemunhas da acusação da assistente, uma vez que a acusação, tal como o referido rol não tinham sido admitidos pelo despacho previsto no artº 311º do Código de Processo Penal.
18ª O despacho recorrido violou ou fez errada aplicação do disposto nas normas referidas na motivação que aqui se dão por integralmente reproduzidas breviatis causa, não podendo, pois, manter-se.»

*
A Senhora Procuradora da República que representou o Ministério Público na primeira instância respondeu, pugnando pela manutenção do despacho de 13.09.2024, com a referência ...40.
 Nesta Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral adjunta emitiu douto parecer, igualmente no sentido da improcedência deste recurso interlocutório.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, com resposta do arguido, reafirmando a argumentação já explanada no respetivo recurso.
***
B. Em sede de audiência de julgamento, na sessão ocorrida em 26.09.2024, foi determinado o afastamento do arguido da sala durante a prestação de declarações pela assistente BB; bem como foram indeferidos os requerimentos do arguido pedindo a leitura do auto de notícia e das declarações nele constantes e que se procedesse à inquirição do agente autuante.
Estes três despachos, proferidos oralmente e reproduzidos na respetiva ata da sessão de 26.09.2024, têm o seguinte teor:
«Considerando os factos que constam do despacho de pronúncia, o tipo de crime imputado ao arguido, bem como as medidas de coação que lhe foram aplicadas e os fundamentos que lhes estão subjacentes, existem, na perspetiva do tribunal, razões para crer que a presença do arguido poderá inibir a assistente de prestar as suas declarações de forma livre e espontânea.
Por outro lado, o afastamento do arguido que se irá ordenar em nada colide com o direito que o mesmo tem de conhecer toda a prova produzida em audiência de julgamento, desde logo atendendo a que aquilo que a assistente disser irá ser gravado e, ainda, considerando que, depois de regressar à sala, o tribunal encontra-se obrigado a comunicar-lhe, por súmula, o teor daquelas declarações.
Consequentemente, deferindo-se o requerido, ao abrigo do disposto no artigo 352.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, determina-se o afastamento do arguido da sala de audiência, enquanto perdurarem as declarações a prestar pela assistente BB.
Notifique.»
                                                        *
«O artigo 356.º do Código de Processo Penal, permite, entre outras, a leitura de declarações prestadas pelo assistente em sede de inquérito, desde que observados um conjunto de requisitos legais aí previstos.
O que o arguido está a requerer, na ótica do Tribunal, não é uma leitura de declarações prestadas pela assistente em inquérito, mas sim a reprodução daquilo que o OPC fez constar no auto de notícia de violência doméstica de fls. 5 e seguintes.
Com efeito, o regime de prestação de declarações de assistente está sujeito às regras previstas no artigo 145.º do Código de Processo Penal, regras essas que não foram observadas no auto de notícia (nem tinham que o ser), designadamente quanto às formalidades a que essas declarações estão sujeitas e a advertência relativamente ao dever de verdade e à responsabilidade penal pela sua violação.
Ou seja, como bem refere o Ministério Público, aquilo que consta do auto de notícia deverá ser interpretado como uma súmula do que foi percecionado pelo OPC que elaborou esse auto de notícia e, nessa medida, percebe-se a epígrafe que precede esse relato de onde se fez constar "factos observados pelo OPC".
Consequentemente, não se aplicando ao caso concreto o regime de reprodução ou leitura permitidas de autos e declarações previsto no artigo 356.º do Código de Processo Penal, indefere-se o requerido.
Notifique.»
*
«Nos termos do disposto do artigo 340.º, nº 1 do Código de Processo Penal, o Tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
Na perspetiva do tribunal, a diligência de prova ora requerida pelo arguido não tem qualquer interesse para a boa decisão da causa, uma vez que até ao presente momento não resultou da prova produzida em audiência de julgamento qualquer facto que possa, de alguma forma, pôr em causa o auto de notícia de fls. 5 e seguintes, designadamente no que respeita à fiabilidade, autenticidade ou veracidade daquilo que dele consta.
Neste contexto, não vê o Tribunal qualquer interesse na inquirição do militar da GNR que procedeu à sua elaboração.
Assim, ao abrigo do disposto no artigo 340.º, n.º 4. alínea b) do Código de Processo Penal, indefere-se liminarmente o requerido, por se entender irrelevante a pretendida inquirição.
Notifique.»
*
Inconformado com estes três despachos proferidos na sessão da audiência de 26.09.2024, o arguido deles interpôs recurso interlocutório, apresentando a competente motivação, que remata com as seguintes conclusões:

«1ª Vem o presente recurso interposto:
- do despacho que determinou o afastamento do arguido da sala enquanto perdurassem as declarações a prestar pela assistente BB;
 - do despacho que indeferiu a pretensão da leitura do “auto de notícia” de fls. 5 e das declarações nele constantes porquanto o mesmo continha declarações prestadas pela assistente discrepantes com as declarações por si prestadas em audiência;
- do despacho que indeferiu a pretensão do arguido de inquirição do agente autuante CC, de forma a poder informar este Tribunal sobre o que viu no dia da ocorrência e depor sobre se as declarações que constam do auto correspondem ao que lhe foi reportado.
A) Quanto ao primeiro despacho:
2. A assistente no requerimento que apresentou refere apenas como fundamento do afastamento que a sua presença (do arguido) a perturba e entende que as suas declarações podem não ser tão profícuas à produção de prova com a presença do arguido pelo na sala. e funda tal pretensão no disposto no artº 352º, nº 1, al. a) do CPP.
3. O requerimento em causa não preenche os requisitos do artº 352º nº1 al. a) do Código de Processo Penal, pois que em nenhuma momento ali é afirmado que a presença do arguido pode levar a que a assistente não diga a verdade relativamente aos factos da acusação.
4.Não se alcança se alcança do requerido pela assistente qualquer facto que possa perturbar a assistente ou a inibir o declarante de dizer a verdade.
5. Da mesma forma, o despacho não invoca qualquer facto de suporte para que se entenda aplicável o afastamento do arguido e nem os factos da pronúncia, nem as medidas de coação que lhe são subjacentes fornecem ao tribunal elementos para poder decidir como decidiu.
6. Aliás, quanto às medidas de coacção aplicadas o que resulta do despacho de 21/5 transacto proferido pela Mma. Juiz de Instrução é que nunca houve nos autos notícia de ter sido instalada a vigilância electrónica, nem tão pouco houve notícia de quaisquer incumprimentos, quer da proibição de contactos, quer da medida de afastamento. E termina dizendo que não se justifica iniciar agora uma vigilância electrónica que, decorridos quase dez meses sobre a aplicação das medidas, não se mostrou necessária.
7. Em novo despacho de 2/6 a mesma Mma. JIC afirma, referindo-se à vigilância electrónica decorridos mais de dez meses sem a ocorrência de contactos ou aproximações, entendeu-se ser desnecessário.
8. A própria sentença contradiz o despacho recorrido quanto ao peso das medidas de coacção e do seu fundamento na eventual aplicação do afastamento do arguido aquando das declarações da assistente, uma vez que constata que não se apurou que, a partir de Fevereiro de 2023, o arguido tenha insistido em contactar a assistente, nomeadamente, através de mensagens escritas ou emails como era característico da sua atuação. Resulta ainda dos factos provados que o arguido permanece casado, mantem-se laboralmente activo e encontra-se actualmente a residir em .... Por tais razões, afigura-se que não se justifica, neste momento, a aplicação das penas acessórias especialmente previstas nos n.ºs 4 e 5 do artigo 152.º do Código Penal e no artigo 34.º-B da Lei n.º 112/2009, de 16.09. Ao decidir pela não aplicação ao arguido da pena acessória de proibição de aproximação e de contactos com a vítima, com os fundamentos supra expostos, é ainda inevitável concluir, com base nessa argumentação, que já não se verifica o perigo de continuação da actividade criminosa que determinou a aplicação ao arguido, em sede de 1.º interrogatório judicial, (…), revogam-se as medidas de coacção de proibição de contactos e de aproximação da vítima impostas ao arguido, passando este a aguardará os ulteriores termos do processo sujeito apenas ao T.I.R. prestado nos autos, em conformidade com o disposto no artigo 214.º, n.º 1, alínea e), do mesmo diploma legal.
9. Ou seja, o arguido nenhum contacto teve com a ofendida desde os factos descritos na acusação de 14/2/23 até Outubro de 2024, sendo certo que os factos descritos na acusação se reportam a apenas um dia de 2023 – o dia 14/2/23.
10. Nenhuma razão existia, por isso, para decretar o afastamento do arguido durante a prestação de declarações da assistente, pelo que o despacho recorrido deve ser revogado.
 
B) QUANTO AO SEGUNDO DESPACHO RECORRIDO          
11. O auto de notícia é um auto lavrado por OPC quando este presencia qualquer crime de denúncia obrigatória.
12. O auto de notícia constante dos autos não é um auto de notícia no sentido próprio, mas sim a queixa apresentada pela ofendida aquando da deslocação dos agentes da GNR ao local, uma vez que o órgão de polícia criminal não presenciou qualquer dos factos que aí se descrevem, pois que se os tivesse presenciado teria sido arrolado como testemunha.
13. Como se diz no preâmbulo da Portaria nº 209/21 de 18/10 que institui o novo modelo de auto de notícia/denúncia: O novo modelo do auto de notícia/denúncia incorpora, a partir de agora, um campo para registar as declarações prestadas pela vítima/denunciante, que se forem por si confirmadas através da aposição da sua assinatura, valem como ato de inquirição em inquérito, o que permitirá dispensar, à partida, convocar novamente vítima/denunciante para confirmar declarações em sede de inquérito.
14. Por outro lado, o auto de notícia ocupava a posição cimeira nos meios de prova que a acusação arrolou e nem por isso, esse meio de prova foi excluído, mesmo quando se chamou a atenção do Tribunal para tal facto!
15ª Do mesmo auto consta antes do depoimento da ofendida “em contacto a mesma declarou”, pelo que o que aí se escreve em seguida trata-se de declarações, nada apontando para o facto de se tratar de uma súmula do que foi percepcionado pelo OPC, como se diz no despacho recorrido.
16ª O incumprimento das formalidades do artº 145º do Código de Processo Penal não permite que o queixoso faça declarações falsas ou apresente uma denúncia falsa, pois que esse facto é criminalizado com ou sem advertência – artºs 348º-A e 356º do Código Penal.
17ª Aliás, não é requisito da leitura das declarações que estejam cumpridos os ditames do artº 145º do Código de Processo Penal. A única consequência que se poderia extrair da falta dessas formalidades seria a impunidade do depoimento falso.   
18ª Daí que tivesse plena aplicação o disposto no artº 356º nº2 al. b) do Código de Processo Penal e não tendo a assistente e o MP se oposto ao requerido, mas tão-só declarado que desse auto não constavam declarações da assistente, o que manifestamente acontece.
19ª Pelo exposto, devia o requerimento em causa ter sido deferido, devendo agora ser revogado o despacho recorrido.

C) QUANTO AO TERCEIRO DESPACHO RECORRIDO
20ª Mesmo na perspectiva de que se trata de um auto de notícia o auto de fls. 5, ou seja, que reporta aquilo que o agente autuante presenciou, era importante o seu depoimento.
21ª Se, de facto, o que o agente autuante escreveu no auto de notícia é uma súmula do que a assistente lhe contou, ainda mais importante era o seu depoimento.
22ª Na perspectiva do Tribunal, a diligência de prova requerida pelo arguido não teria qualquer interesse para a boa decisão da causa, uma vez que não teria resultado da prova produzida em audiência de julgamento qualquer facto que pudesse, alguma forma, pôr em causa o auto de notícia de fls. 5 e seguintes, designadamente no que respeita à fiabilidade, autenticidade ou veracidade daquilo que dele consta.
23ª Das declarações da assistente em audiência fluí a própria inconsistência das mesmas, designadamente no que toca ao local de onde o arguido retirou a arma (cintura/sovaqueira) e quanto ao tipo de arma em causa (revólver/pistola) – cfr. artº 2º, 1 al. az) e aad) da Lei 5/06.
24ª Retirar uma arma da cintura ou de uma sovaqueira implica fazer gestos completamente diferentes e com percepções igualmente diferentes. Retirar uma arma da cintura implica fazer um gesto de mão para baixo em direcção ao meio do corpo. Retirar uma arma de uma sovaqueira implica fazer gesto para cima em direcção à axila.
25ª Estas são as inconsistências ou contradições que importava aquilatar e confrontar com a prestação de depoimento do agente de autoridade que elaborou o auto de notícia mediante declarações prestadas pela assistente, por um lado, tal como era importante apercebermo-nos do que aquele agente da autoridade sabia relativamente aos factos da acusação. 
26ª O despacho de indeferimento da prova requerida violou o princípio da investigação ou da verdade material plasmado no art. 340º, nº1 do Cód. Proc. Penal e que impõe ao julgador penal que apure a verdade material, quer atendendo aos meios de prova relevantes que os sujeitos processuais lhe proponham, quer, igualmente, procedendo oficiosamente à produção de prova cujo conhecimento se lhe afigure essencial ou necessário à descoberta da verdade.
27ª Os despachos recorridos violam ou fazem errada aplicação do disposto nas normas referidas na motivação que aqui se dão por integralmente reproduzidas breviatis causa, não podendo, pois, manter-se.»
*
A Senhora Procuradora da República que representou o Ministério Público na primeira instância respondeu, pugnando pela manutenção dos três despachos proferidos na sessão da audiência de 26.09.2024.
 Nesta Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral adjunta emitiu douto parecer, igualmente no sentido da improcedência deste recurso interlocutório.
Foi cumprido o disposto artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, com resposta do arguido, reafirmando a argumentação já explanada no respetivo recurso.
***
C. Na sessão da audiência de julgamento ocorrida em 11.10.2024, foi indeferida a pretensão do arguido de que fossem lidas as declarações prestadas em sede de inquérito pela testemunha BB; bem como foi indeferido o requerimento do arguido de que o depoimento das testemunhas não versasse sobre os factos contidos na acusação da assistente.
Estes dois despachos, proferidos oralmente e reproduzidos na respetiva ata da sessão de 11.10.2024, têm o seguinte teor:
«Uma vez que, estando em causa, em ambas as situações, depoimentos prestados em sede de inquérito em diligência presidida por OPC, a pretendida leitura só seria possível com o acordo de Ministério Público e da assistente, o que não se verifica relativamente a este último sujeito processual.
Consequentemente, ao abrigo do disposto no artigo 356.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal, indefere-se o requerido, por não preenchimento dos pressupostos legais exigidos para a leitura.
Notifique.»
*
«Sendo entendimento deste Tribunal que não se verifica nenhuma nulidade insanável, designadamente a apontada pelo arguido e tendo em conta que já se tomou posição expressa nos autos quanto ao efeito do recurso que eventualmente o arguido irá interpor, nada há a determinar por ora a não ser que o julgamento prossiga os seus normais termos com a inquirição das testemunhas de acordo com a ordem de trabalhos prevista.
Notifique.»

Inconformado, o arguido interpôs recurso interlocutório destes dois despachos, proferidos na sessão da audiência de 11.10.2024, apresentando a competente motivação, que remata com as seguintes conclusões:

1. «Vem o presente recurso interposto do:
- Despacho que indeferiu a pretensão de leitura das declarações prestadas pela testemunha BB em sede de inquérito em face de contradições existentes entre aquelas e o depoimento da mesma;
- Despacho que indeferiu a pretensão do arguido de que o depoimento das testemunhas a depor não versasse sobre os factos contidos na acusação da assistente sob pena de irregularidade nos termos artº 123º nº 1 do Código de Processo Penal.

A) Quanto ao primeiro despacho:
2. Nos presentes autos o arguido requereu a leitura das declarações prestadas pela testemunha (mãe da assistente) em sede de inquérito, por existirem divergências entre estas e a prestação de testemunho no julgamento, sendo que tal requerimento mereceu a não oposição pelo Ministério Público, mas tão só e isso sim, a oposição solitária da assistente.
3. A decisão recorrida baseou-se única e exclusivamente, na discordância do assistente quanto a esta questão.
4. O artigo 356º, nº 2 al. b) do CPP, nos casos em que o Ministério Público não se opõe à leitura de declarações prestadas em sede inquérito perante OPC, requeridas pelo arguido em caso de divergências de declarações, ao conferir ao assistente a possibilidade de verdadeiramente conformar esta decisão de acordo com as suas intenções, está a condicionar o exercício da ação penal e a independência dos Tribunais.
5. A lei ordinária ao permitir que a aquiescência do assistente seja condição sine qua non de aplicação de tal leitura, permite que aquele tome as rédeas do processo penal e o conduza segundo o seu próprio arbítrio.
6. Desta forma, quer o Ministério Público, quer o Julgador acabam por decidir contra as suas próprias convicções, tomando uma posição que não é a sua. Cria-se, assim, uma situação em que quem decide é o assistente por intermédio do Julgador, absolutamente instrumentalizado em função dos interesses daquele – o que não se concebe nem se concede.
7. As normas conjugadas artº 256º nº 2 al. b) e nº 5 do mesmo artigo, nos casos em que o Ministério Público não se opõe à leitura de declarações prestadas por testemunha em sede de inquérito, requerida pelo arguido com fundamento em divergência daquelas com as declarações prestadas em sede de julgamento, é inconstitucional na medida em que preveem como condição sine qua non para a leitura de declarações a concordância do assistente, violando, desse modo, o disposto nos artigos 219.º, n.º 1 e 203.º da CRP.
8. Mesmo que se entenda, que as normas do artigo 256º nº 2 al. b) e nº 5 do Código de Processo Penal estão de acordo com os ditames constitucionais, é entendimento do arguido que o juízo de concordância ou discordância exigido ao assistente pelo mesmo normativo deve ser devidamente fundamentado.
9. Se se entender que a posição do assistente é vinculativa relativamente à decisão do julgador no que toca no que toca à aplicação da norma, deve o assistente fundamentar a sua não aquiescência quanto à mesma leitura através de pedido efetuado pelo arguido, por forma a que se possa fazer a respectiva sindicância pelo juiz, sendo assim a decisão, no caso de indeferimento, aqui já fundada nas razões apresentadas pelo assistente.
10. De facto, o juízo de afastamento da leitura das declarações deve ser fundamentado em razões de facto e de direito, pois que só assim o arguido poderá ficar a conhecer o porquê do indeferimento.
11. Se assim não for, nunca se logrará obter um processo justo e equilibrado, porquanto o arguido fica numa posição de desvantagem face ao assistente, pois nunca lhe será possível conhecer das razões deste indeferimento por forma a que possa elaborar uma defesa digna e eficaz e, designadamente, exercer o seu direito ao recurso.
12. Na verdade, uma oposição infundamentada à aplicação do instituto por banda do assistente, gera, necessariamente, um despacho de indeferimento infundamentado, o que é violador do princípio da fundamentação das decisões em matéria penal e, como tal, violador do direito ao recurso.
13. Assim, a interpretação que se extraia do disposto na norma do artigo 256º nº 1 al. b) do Código de Processo Penal no sentido de que a oposição do assistente relativamente à leitura de declarações prestadas por testemunha perante OPC, requerida por arguido com base em divergência de declarações, com a não oposição do Ministério Público, pode basear-se em mera oposição não fundamentada pelo assistente a tal leitura, podendo fundar-se o despacho de indeferimento na mera oposição do assistente, é inconstitucional por violação do disposto nos artigos 32º nº1, 203º e 205º nº 1 da Constituição.
14. Pelo exposto, devia o requerimento em causa ter sido deferido, devendo agora ser revogado o despacho recorrido

B) Quanto ao segundo despacho:
15. O recorrente requereu que a inquirição das testemunhas que iriam depor não versasse sobre os factos contidos na acusação da assistente, sob pena de irregularidade nos termos do art.º 123º, n.º 1, do C. P. Penal).
16. E disse-se em tal requerimento: “O arguido em cumprimento do princípio da lealdade processual afirmou já nos autos que iria interpor recurso do despacho que deferiu o aditamento ao rol de testemunhas apresentado com a acusação proferida pela assistente. Isto porque o arguido não foi notificado dessa acusação quando o deveria ia ter sido, ou seja no fim do inquérito, nem depois a posteriori foi tal acusação recebida por este tribunal e como tal do ponto de vista do arguido, o circunstancialismo vindo de descrever consubstancia nulidade insanável por falta de comunicação ao arguido da acusação pela assistente nos termos do artigo 119 alínea c) do Código de Processo Penal”
17. O ora despacho recorrido indeferiu tal pretensão determinado que o julgamento prosseguisse os seus normais termos com a inquirição das testemunhas.
18. Tal despacho comungava da pressuposição de um primitivo despacho (igualmente recorrido) de admissão de aditamento ao rol de testemunhas,
19. O despacho recorrido mais uma vez erra não no que decide directamente – a inquirição das testemunhas da acusação da assistente –  mas no que deixa pressuposto, ou seja, a admissão da acusação pela assistente.
20. Na verdade, o despacho recorrido deixa pressupor que o Tribunal iria julgar a acusação pelo assistente, sem que esta tivesse sido notificada ao arguido em sede de inquérito e sem que o Tribunal se pronunciasse no momento saneador do processo sobre a mesma admitindo-a ou rejeitando-a ou aquilatando da sua legalidade.
21. O arguido não foi notificado da acusação deduzida pela assistente na fase de inquérito para querendo, requerer a abertura da instrução.
22. Nos termos dos artigos 113.º n.º 10, 283.º n.º 5, 277.º n.º 3 e 284.º n.º 2 do Código de Processo Penal, a notificação respeitante à acusação pelo assistente deve ser obrigatoriamente efectuada ao arguido e ao seu defensor, designadamente quando adita factos que não constam da acusação pública.
23. Aliás, tal conclusão decorre da plena aplicação do princípio do contraditório e do direito do arguido à instrução (artº 32º nº4 e 5 da Constituição).
24. Se o arguido pode vir a ser condenado pelos factos constantes da acusação deduzida pelo assistente para além dos factos constantes da acusação pelo MP ou mesmo em substituição destes, os factos constantes da acusação do assistente estão ou têm obviamente de estar em pé de igualdade no que toca aos direitos de defesa do arguido, com aqueles alegados pelo MP.
25. E daí que o arguido tenha o direito de requerer a abertura da instrução quanto a eles e a decisão de pronúncia ou não pronúncia sobre eles se debruçar.
26. Assim, a interpretação que se extraia do disposto nos artºs 61º nº1 al. c), 113.º n.º 10, 283.º n.º 5, 277.º n.º 3, 284.º n.º 2, 286º nº1 e 287º nº1 al. a) do Código de Processo Penal, no sentido de que o arguido pode não ser notificado da acusação deduzida pelo assistente, quando esta contenha factos diferentes daqueles que constituem a acusação do MP, para, querendo, requerer a abertura da instrução deve ser julgada inconstitucional por violação do disposto no artº 32º nº1, 4 e 5 da Constituição.
27. A falta de notificação da acusação do assistente configura nulidade insanável nos termos do disposto no artº 119º al. c) do Código de Processo Penal.
28. Mas, mesmo que assim não fosse de entender, sempre deve ter-se como verificada a irregularidade decorrente da falta de notificação da acusação particular ao arguido e, em consequência, determinar-se tal notificação (cfr. o artº 123º nº2 do Código de Processo Penal).
29. A interpretação que se extraia do disposto nos artºs 118º nº1, 119º al. c) e 120º nº2 al. b) e 284º do Código de Processo Penal, no sentido de que não constitui nulidade insanável a falta de notificação ao arguido da acusação deduzida pelo assistente na fase de inquérito, deve ser julgada inconstitucional, por violação dos artºs 2º, 32º nº1, 4 e 5 da Constituição.
30. A acusação deduzida pela assistente, para ser julgada teria de ser admitida e verificada a sua legalidade, designadamente a sua conformidade com o disposto no artº 284º nº 1 do Código de Processo Penal, nos termos do disposto no artº 311º nº1 e 2 do Código de Processo Penal.
31. A interpretação que tem de se fazer da norma do artº 311º nº2 do Código de Processo Penal é no sentido de entender que o juiz de julgamento apenas está isento de aceitar ou rejeitar a acusação deduzida pelo assistente, quando tal acusação tiver sido sujeita a instrução, pois que assim sendo obrigaria o juiz de julgamento a sindicar uma acusação que já havia sido sindicada pelo JIC e admitida.
32. Se a acusação deduzida pelo assistente não foi sujeita a instrução, o juiz de julgamento está obrigado a sindicar e admitir ou rejeitar a acusação deduzida pelo assistente, pois que apenas podem ser julgadas acusações que sejam admitidas a julgamento, nos termos do artº 311º do Código de Processo Penal (neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/05/2023, lavrado in proc 64/20.0GACDN, sendo relator Alexandra Guiné publicado in ww.dgsi.pt).
33. Assim, a acusação particular deduzida pela assistente tem de ser admitida à fase de julgamento no âmbito do disposto no art. 311º nº 1 e 2º do Código de Processo Penal, sendo certo que, nessa parte, tal despacho é recorrível.
34. Ao não ter procedido assim, resulta violado o disposto no art. 311º nº 1 e 2º do Código de Processo Penal bem como o disposto nos artigos 284º, 285º do mesmo diploma legal, o que consubstancia irregularidade que deve ser reparada, uma vez que dela depende a validade dos actos subsequentes e, designadamente, de uma eventual condenação do arguido pelos factos constantes da acusação da assistente (artº 123º nº2 do Código de Processo Penal).
35. Por tudo o exposto, não podia o Mmo Juiz a quo ter admitido um aditamento ao rol de testemunhas da acusação da assistente, uma vez que a acusação, tal como o referido rol não tinham sido admitidos pelo despacho previsto no artº 311º do Código de Processo Penal.
36. Tal despacho já foi alvo de recurso deduzido pelo aqui recorrente.
37. As apontadas nulidades / irregularidades da omissão de notificação da acusação particular, da omissão de despacho de admissão ou rejeição da acusação particular e da notificação da admissão do aditamento ao rol de testemunhas de acusação pela assistente, determinam quer a invalidade dos respectivos actos quer a invalidade dos termos subsequentes, designadamente o despacho aqui recorrido.
38. Pelo exposto, devia o requerimento em causa ter sido deferido, devendo agora ser revogado o despacho recorrido.
39. Os despachos recorridos violaram ou fizeram errada interpretação das normas supra referidas na motivação que aqui se dão por reproduzidas breviatis causa, não podendo, pois, manter-se.»

A Senhora Procuradora da República que representou o Ministério Público na primeira instância respondeu, pugnando pela manutenção dos dois despachos proferidos na sessão da audiência de 11.10.2024.
Nesta Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral adjunta emitiu douto parecer, igualmente no sentido da improcedência deste recurso interlocutório.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, com resposta do arguido, reafirmando a argumentação já explanada no respetivo recurso.
***
D. A sentença, proferida e depositada em 24.0.2024, tem o seguinte dispositivo:
«a) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, agravado nos termos do disposto no artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na pena de 3 (três) anos de prisão
b) Suspender a execução da pena de prisão de 3 (três) anos de prisão aplicada ao arguido, por igual período de tempo, com sujeição a regime de prova, assente em plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP, no qual se deve incluir a frequência de programa dirigido a agressores de violência doméstica;
c) Condenar o arguido AA na pena acessória de interdição de detenção, uso e porte de armas pelo período de 3 (três) anos;
d) Revogar, ao abrigo do disposto no artigo 212.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, as medidas de coacção de proibição de contactar e de se aproximar de BB impostas ao arguido em sede de 1.º interrogatório judicial;
e) Declarar, ao abrigo do disposto nos artigos 109.º, n.º 1, do Código Penal, a arma de fogo descrita no ponto 7 dos factos provados perdida a favor do Estado, atribuindo-se à P.S.P. a incumbência de providenciar pelo destino a atribuir-lhe, em conformidade com o disposto no artigo 78.º, n.º 1, da Lei 5/2006, de 23.02;
f) Determinar a recolha de amostras biológicas ao arguido, para inserção na base de perfis de ADN, nos termos dos artigos 8.º, n.º 2, e 18.º, n.º 3, da Lei nº 5/2008, de 12/02.
g) Condenar o arguido AA no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC, sem prejuízo do apoio judiciário de que eventualmente beneficie;
h) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante BB e, em consequência, condenar o arguido AA a pagar-lhe a quantia de € 1.750,00 (mil setecentos e cinquenta euros), acrescida de juros de mora contados à taxa legal de 4% desde a data da notificação do pedido de indemnização civil e até integral e efetivo pagamento;
i) Condenar demandante e demandado civis no pagamento das custas cíveis na proporção do respetivo decaimento que se fixa em 65% para a demandante e 35% para o demandado.
*
Notifique e deposite.
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Após trânsito em julgado:
a) remeta Boletins à Direcção dos Serviços de Identificação Criminal;
b) solicite aos serviços de reinserção social a elaboração, no prazo de 30 dias, do plano a que aludem os artigos 34.º-B, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e 494.º, n.º 3, do Código de Processo Penal;
c) solicite ao Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária (LPC) a recolha de amostras biológicas ao arguido, nos termos e para os efeitos supra determinados;
d) comunique a presente decisão à P.S.P., nos termos e para os efeitos previstos no do n.º 5, do artigo 90.º, da Lei n.º 5/2006, de 23.02.»
*
Inconformado, o arguido AA interpôs recurso da sentença, apresentando a competente motivação, que remata com as seguintes conclusões:

«1ª Vem o presente recurso interposto da sentença que condenou o recorrente pela prática de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, al. b) e n.º2 do Código Penal na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, sujeita a regime de prova e pena acessória de interdição de detenção, uso e porte de armas pelo período de três anos, bem como no pagamento à demandante BB, da quantia de 1.750,00 (mil e setecentos e cinquenta euros) a título de procedência parcial do pedido cível deduzido e ainda determinou a recolha de amostras biológicas ao arguido, para inserção na base de perfis de ADN, nos termos dos artigos 8.º, n.º 2, e 18.º, n.º 3, da Lei nº 5/2008, de 12/02.
2ª A legislação portuguesa não oferece um conceito de relação de namoro, conceito este que além de indeterminado é volátil consoante o ponto de vista social, etário, jurídico e temporal.
3ª Existir ou não uma relação de namoro, depende, como sempre dependeu, dos humores dos intervenientes, podendo um elemento do casal entender que namora e o outro assim não o entender.
4ª A definição legal de namoro – o estatuto de namorado -como já se viu, não se encontra em qualquer diploma legal, nem o legislador dá qualquer pista para esse efeito, deixando-se tal relação à livre convenção das partes, tal como os direitos e os deveres, desde que não violadores da lei – o que se aplica a qualquer cidadão individualmente considerado – ao contrário dos direitos e deveres do casamento e da união de facto (artºs 1672º e ss do Código Civil e Lei 7/01 de 11/5).
5ª Ora, o namoro é cada vez menos “uma noção corrente da vida social”, por um lado e, por outro, não se conseguem descortinar quais os “padrões em vigor” que poderiam tornar aceitável a noção de namoro num tipo legal, de modo a chegar a um mínimo de substância que a palavra possa encerrar.
6ª De acordo com o princípio da legalidade e da tipicidade, a lei penal deve ser precisa, certa e determinada, e não pode nem deve admitir conceitos vagos e indeterminados, sendo precisamente isto que sucede na al. b) do n.º 2 do art. 152.º do CP concerne.
7ª A norma em questão não define o objeto de punição, sendo omissa relativamente ao conceito de namoro, ao índice temporal formal e ao momento da cessação da relação.
8ª Assim, deve o artigo 152.º, n.º 2, al. b) do Código Penal ser julgado inconstitucional por violar o princípio da legalidade e da tipicidade previstos no art. 29.º nº1 e 3 da Constituição da República Portuguesa.
9ª Aliás, a consequência da inexistência de definição e regime legal da relação de namoro, torna o julgador no legislador, criando e recriando “definições e regimes legais” quanto a esta matéria, quando esta se encontra protegida por reserva de lei – art. 165º nº1 al. c) da CRP – o que leva também à violação do princípio da separação dos poderes (artº 2º, 110º nº1 e 111º nº1 da Constituição).
10ª Deve, assim, a norma do artº 152º nº1 al. b) do Código Penal, na medida em que ao fazer depender a incriminação pelo crime de violência doméstica de uma relação de namoro, sem que exista uma definição legal e um regime legal que determine os deveres e os direitos conferidos aos parceiros dessa relação e da mesma forma por conferir um tratamento idêntico ao “namoro” e ao casamento ou à união de facto com coabitação ou sem coabitação, punindo o crime com a mesma pena num e noutro caso, é inconstitucional por violação do disposto no artº 2º, 13º, 18º nº2 (princípio da proporcionalidade), 20º nº4, e 29º nº1, 3 e 4 110º nº1 e 111º da Constituição, designadamente do princípio da culpa, da legalidade, da tipicidade e da necessidade da lei penal.
11ª Nos pontos 1 e 11 da matéria de facto deu-se como provada a relação de namoro e a existência dos deveres de cuidado, respeito e solidariedade, reconduzindo-se tais conceitos a conceitos de direito e não a factos.                     
12ª A Lei 19/13 que introduziu “a relação de namoro” no tipo de crime de violência doméstica - tornou o “namoro” num conceito de direito que tem que ser densificado ou pela lei ou pela jurisprudência e pela doutrina, mas seguramente através de factos que constem na acusação.
13ª Há de facto um conteúdo mínimo relativamente àquilo que deva ser uma “relação familiar ou para-familiar”: tem de existir uma manifestação de vontade e um consentimento. Eles é a base de todas as relações sejam elas de casamento, de união de facto ou de namoro.
14ª Para se concluir pela existência de uma relação de namoro têm que ser dados como provados factos nesse sentido (cfr. os supra citados acórdãos), Factos esses que, para serem dados como provados, têm que constar da acusação ou da pronúncia e não constam.
15ª Não há qualquer facto de onde derive a conclusão de que a relação do arguido e da ofendida desfrutava de uma intimidade estável e continuidade, distinta de relações fortuitas, aludindo aos especiais deveres de cuidado, respeito e solidariedade que também não concretiza factualmente.
16ª Ou sequer que o arguido e a ofendida convencionaram que a sua relação ficava subordinada aos deveres de cuidado, respeito e solidariedade.
17ª Assim, não basta alegar-se que o arguido e a ofendida tinham uma relação de namoro sem a alegação de quaisquer factos de suporte e sem se chegar a perceber dos factos constantes da acusação se existia ou não coabitação.
18ª Por outro lado, no âmbito de relações pessoais, pelo que o Tribunal não se pode substituir à manifestação de vontade da parte.
19ª Quer na relação de casamento, quer na união de facto há uma manifestação de vontade das partes no sentido de sujeitar aquela determinada relação a um determinado regime legal,
20ª Manifestação de vontade essa que não pode ser substituída pelo Tribunal, tendo em conta a natureza da obrigação, tal com o contrato promessa de casamento não é passível de execução específica – artºs 830º nº1 e 1591º do Código Civil.
21ª E se não pode o Tribunal considerar, para efeitos meramente civis, que duas pessoas namoram, com certeza que também não o pode para efeitos penais, obrigando a pessoa a suportar uma relação familiar ou para-familiar com a qual não concordou e a suportar os efeitos legais de tal relação, designadamente criminais.
22ª Daí que a interpretação que se extraia do disposto no artº 152º nº1 al. b) do Código Penal no sentido de que o tribunal pode dar como provada uma relação de namoro, sem que se prove qualquer manifestação de vontade nesse sentido por banda do agente, é inconstitucional por violação dos artºs 1º, 2º, 3º nº2, 25º nº1, 26º nº1 e 29º nº1 e 3 da Constituição.
23ª no Ponto 2 da matéria de facto diz-se que o arguido praticou determinadas condutas para “forçar o contacto com a ofendida”.
24ª Omitindo-se o que se queria dizer por “forçar o contacto” datas, o quê em concreto fazia o arguido quando se encontrava com a ofendida, qual o teor das mensagens escritas e e-mails – com excepção do e-mail do dia 14/2 a que infra se fará referência – não se percebe ou pode compreender como através dos factos descritos no ponto 2, o arguido preencheu o tipo de ilícito.                                   
25ª No ‘ponto 5 da matéria de facto não se concretiza o que se deve entender por “temendo”, sem que se concretize em factos, em que é se traduz tal circunstância e qual o comportamento temido.
26ª Para além disso, a indefinição temporal e circunstancial, impede o efectivo e eficaz contraditório de tal matéria, colidindo com o direito à contra argumentação, enquanto parte integrante do direito de defesa constitucionalmente tutelado pelo arº 32º nº1 da CRP (cfr. os acórdãos do STJ citados supra).
27ª Assim, se as imputações genéricas não são factos, se violam os direitos de defesa do arguido, violam igualmente, por isso, o princípio do processo equitativo, resultando daqui que não já não podiam sustentar uma acusação e, como tal, muito menos agora, uma condenação penal.                                           
28ª A vítima tem direito à tutela penal e o arguido, por outro lado, tem direito a conhecer os factos imputados, os concretos factos que fundamentam a pretensão de condenação (acusação) e a própria condenação (sentença ou acórdão).
29ª Quer em processo penal, quer em processo civil quando se diz no artº 374º nº2 do Código de Processo Penal ou no artº 607º nº4 do Código de Processo Civil, em qualquer dessas normas que a sentença deve conter a enumeração dos factos provados e não provados, deve concluir-se que estão afastados os conceitos de direito e os factos conclusivos ou conclusões.
30ª Quer isto dizer que a alegada relação de namoro (cfr. ponto 1 dos factos dados como provados), sendo um “não facto”, ou seja, sendo um conceito de direito e conclusivo deve ser tido por não escrito.
31ª Tal como os deveres que dizem impender sobre o arguido relatados no ponto 14 da acusação que passaram à matéria dada como provada no mesmo ponto 14 ou ainda os referidos factos inconcretizados alegados já no ponto 2 da acusação e agora ponto 2 da matéria dada como provada, bem como o supra mencionado ponto 5 da mesma matéria.
32ª Pelo exposto, devem tais “factos”, tal como a relação de namoro ser dados como não escritos e, como tal, como não provados, nos termos da jurisprudência citada nas alegações.
33ª Os pontos 1 (com a formulação adoptada pela decisão), 2 e 3 constantes da decisâo recorrida não constavam da acusação, nem do despacho que a recebeu:
- Na verdade, na acusação não constava a menção “e o dia 19 de novembro do ano de 2022” mas sim a expressão “e o final do mês de Outubro”.
- No ponto 2 não só se alterou a baliza espácio-temporal como se acrescentou que o arguido continuou a frequentar um café para forçar contactos com a ofendida.
 - O ponto 3 é completamento novo ou inovador em relação à acusação deduzida.
34ª Verifica-se, assim, que a sentença recorrida violou o princípio da vinculação temática, do acusatório e do contraditório, porquanto toda a matéria supra referida não constava da acusação e do despacho que recebeu a acusação, pelo que tal matéria foi dada como provada fora dos casos dos artºs 358º e 359º do Código de Processo Penal, sendo em consequência a sentença nula nesta parte nos termos do disposto no artº 379º nº1 al. b) do Código de Processo Penal.
35ª Apenas se pode concluir que os factos descritos no e-mail “são insultos gratuitos à pessoa da assistente”, se tais factos forem falsos, no entanto na sentença não se apurou se tal factualidade era falsa, limitando-se a mesma a dizer que as “opiniões do arguido não eram minimamente fundamentadas”.
36ª Todos os juízos de valor descritos na acusação encontram-se baseados em factos que constam do mesmo e-mail e que foram relatados pela ofendida ao arguido.
37ª Não se pode dizer que, pelo mero facto de alguém ter tido, em algum momento, uma relação com outrem, esse facto lhe retira ou restringe o direito à crítica ou torna em injúria aquilo que a jurisprudência por mil vezes disse já que não preenchia o tipo de crime entre pessoas que não tinham qualquer ligação amorosa.                                              
38ª Independentemente de se poderem entender como grosseiras tais expressões, nunca por nunca se pode entender que com as mesmas o arguido pretendia atingir a honra, a consideração social ou a dignidade da ofendida.
39ª Mas, de uma forma ou de outra, faltou investigar o circunstancialismo da dependência de substâncias da assistente (que até resultou da sua própria confissão), do relacionamento violento com o ex marido; da apetência da assistente pelo dinheiro e prendas do arguido, dos presentes pelo mesmo oferecidos à assistente, das difamações eventualmente cometidas pelo assistente sobre o arguido e relatadas a quem, do tipo e duração de relacionamento sexual existente entre o arguido e assistente; dos relacionamentos sexuais existentes entre a assistente e terceiros, do relacionamento do arguido com a sua  mulher., todo um circunstancialismo que necessitava de ser investigado, ainda para mais quando o teor do email foi acrescentado aos factos da acusação.
40ª A sentença recorrida ao não levar tal factualidade à fundamentação fáctica da sentença incorreu no vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto (cfr. artº 410º nº 2 al. a) do Código de Processo Penal), sendo que esta existe “quando há omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão” –cfr. o acórdão do STJ de 13/1/99, Proc. nº 1126/98 citado in “Recursos em Processo Penal” de Simas Santos e Leal Henriques, 5ª Edição, pag. 62.
41ª No entanto, quando assim não se entenda sempre a sentença se deve entender que a sentença é nula por falta de fundamentação, nos termos do disposto nos artºs 374º nº2 e 379º nº1 al.) do Código de Processo Penal.
42ª Como decorre dos autos na contestação, o arguido afirmou que “a relação de namoro” se tratava da alegação de um facto conclusivo ou de um conceito de direito que tinha que ser concretizado através de outros factos que tinham que ser dados como provados.
43ª Na sentença recorrida foi-se dizendo que se cria estar perante uma relação de namoro, porquanto a ofendida terá dito que Desde essa data segundo as suas palavras mantiveram um “namoro”, saíam quase todos os dias, iam passear, almoçavam juntos e frequentavam a casa um do outro, mas não pernoitavam, porque apesar da vontade do arguido para que tal acontecesse a assistente não queria “juntar-se ou casar-se” e regressavam às respetivas casas.
(…)
Ademais, o arguido permanecia no café, onde almoçava, até à hora em que a assistente terminava a jornada laboral, regressavam juntos, e a assistente ainda ia para a casa do arguido onde ficava até cerca das 21.30h-22h.
O que sucedia todos os dias úteis, ao passo que ao fim de semana também estavam juntos.
Até que, por entender que passavam tempo demasiado tempo juntos, a assistente decidiu, numa sexta-feira, após fazerem compras, dizer ao arguido que não ia a casa dele, querendo regressar a casa e ficar sozinha, bem como permanecer sozinha no fim de semana, pedindo-lhe que não fosse a casa dela. Porém, o arguido não respeitou o seu pedido e bateu-lhe à porta de casa no fim de semana, por mais do que uma vez, fazendo com que a assistente acabasse por lhe abrir a porta e por se encontrarem.
(…)
Resulta cristalino, pelo que o próprio arguido disse ao tribunal, que nas últimas semanas de setembro continuou a encontrar-se com a assistente e a fazê-lo em ambiente íntimo, discutindo com ela questões privadas.
Conjugados todos os elementos apurados, que convergem das declarações do arguido e da assistente, o tribunal não teve dúvidas de que, pelo menos, desde meados de setembro de 2022 e até 19 de novembro de 2022, o arguido e a ofendida se encontraram regularmente, se relacionaram de forma íntima, frequentaram a casa um do outro, e saíram juntos publicamente para compras e consultas médicas.
44ª Para além do que supra se escreve, o Tribunal remete para inúmeras mensagens escritas enviadas pelo arguido para consubstanciar a relação de namoro que afirma ter existido entre o arguido e a ofendida, mas em nenhum momento dá os factos de suporte como provados ou não provados.
45ª Na sentença recorrida chega a dizer-se que o arguido reconheceu a qualidade de namorado. Mas se o fez, porque é que o Tribunal se deu ao desgaste de esgrimir argumentos com base no depoimento da ofendida para chegar a essa mesmíssima conclusão?- cfr. designadamente aqueles constantes da conclusão 33.
46ª Ou seja, o Tribunal fundou a sua convicção num sem número de factos que não deu como provados ou não provados, não se conseguindo perceber através da mera leitura dos factos provados como o Tribunal concluiu que o arguido e a ofendida namoraram por aquele período de tempo.
47ª Assim, ocorre o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto prevista no artº 410º nº2 al. a) do Código de Processo Penal.                                   
48ª A fita ou filme temporal e sequencial dos factos dados como provados e da sua motivação ou fundamentação, não coincide, sendo contraditória.
49ª Assim, para o facto provado 5, o arguido desferiu vários pontapés na porta de entrada (…) o que fez com que a assistente, “temendo o comportamento daquele”, abrisse a referida porta. Já na motivação diz-se que a assistente abriu a porta porque o arguido desferia pontapés na mesma, pelo que a causa de abertura da porta pela assistente é diferente e contraditória num e noutro segmento da decisão.
 50ª Ou seja, na matéria dada como provada afirma-se que abriu a porta “porque temia o comportamento daquele” (apesar de não se referir ou explicar em que é que consistia o comportamento). Por seu turno, na motivação o que se afirma é que a causa da abertura da porta foi a circunstância do arguido estar a dar pontapés na porta (o que é bem diferente de comportamento): (…) a assistente explicou de forma deveras impressiva e detalhada, que abriu a porta ao arguido porque ele desferia pontapés.
51ª Repare-se que, como se disse supra, a decisão não explica o que é “comportamento” o que ainda mais contribui para a contradição entre uma coisa e outra. Sempre caberia perguntar sobre se o comportamento do arguido coincide com dar pontapés ou refere a outra coisa ou qualidade.                                       
52ª Aliás, sempre se dirá que viola as regras da experiência comum que, numa situação em que o alegado agente dá pontapés na porta, a pessoa que a pode abrir, a abra temendo o comportamento do agente. Na verdade a ser verdade tal circunstância, a reacção normal de uma pessoa normal seria não abrir a porta, chamar as autoridades e, quando muito, trancar-se num outro compartimento da habitação. Mais uma vez a sentença não explica esta circunstância, pelo que incorre em erro notório na apreciação da prova.
 53ª Nestes ponto 6 a 8 a fita do tempo é contínua, sem interrupções, com actos imediatamente seguidos, ou seja o arguido introduz-se na habitação e diz à assistente que “há dias que só me apetece dar-te um tiro no meio dos olhos”, e acto contínua retirou da zona da cintura uma pistola e de seguida apontou-na direção da face da vítima, a uma distância de cerca de trinta centímetros, ao mesmo tempo que lhe disse “achas que não?”, “dou-te um tiro no meio dos olhos e ao fim mato-me”.
 54ª Depois, o arguido desferiu com as duas mãos um empurrão no corpo da vítima, provocando a sua queda no chão, causando-lhe dor. (cfr. ponto 9).
55ªJá na motivação a leitura é outra e diferente, descontínua, com hiatos, pois que a assistente “abriu a porta ao arguido porque ele desferia pontapés, ficou parada junto da porta a ouvi-lo falar até que ele lhe apontou uma arma à testa e disse “dou-te um tiro nos olhos e depois mato-me”
 56ª Depois a assistente fica sem reação. Diz-se na motivação  “Em face daquele gesto (apontar a arma), não teve reação, até que o arguido guardou a arma, a empurrou, fazendo-a cair para trás, forçando desse modo a entrada na casa”.
 57ª Isto é, na motivação o arguido dá pontapés na porta, entra na habitação, a assistente fica parada junto da porta a ouvir o arguido falar até que este lhe apontou uma arma à testa e a ameaça, esta fica sem reacção, até que o arguido guardou a arma, empurra-a, fazendo-a cair para trás, forçando desse modo a entrada em casa.
58ª Repare-se que num lado (matéria dada como provada) afirma-se que o arguido entrou na habitação da assistente ou porque dá pontapés, ou porque a assistente teme o seu comportamento e lhe abre a porta, no outro lado (na motivação) já se diz, o que é contraditório, que o arguido forçou a entrada “deste modo”, ou seja porque apontou uma arma à ofendida que depois guardou, para logo a seguir a empurrar.
59ª Ou seja, se os factos dados como provados colocam o arguido dentro da casa da ofendida ameaçando e empurrando, a motivação da sentença já coloca o arguido fora da casa, o que, quanto mais não fosse, para o preenchimento do tipo de crime agravado seria importante fixar.
 60ª Aliás, a própria motivação é contraditória consigo mesmo quando depois de afirmar que o arguido forçou a entrada e apontou uma arma à assistente passa a dizer já no segmento seguinte que “Seguidamente o arguido dirigiu-se à televisão agarrando-a e puxando-a ainda com os fios ligados na corrente elétrica. Tentou a assistente impedi-lo de levar a televisão, acabando esta por cair no chão e se partir, tendo, então, aproveitado esse momento para empurrar o arguido para fora de casa. De modo que conseguiu fechar-lhe a porta e telefonar para a polícia.
61ª Não se percebe nem tal circunstância é explicada na decisão porque é que e como é que o arguido numa primeira fase (na óptica da sentença)  dá pontapés na porta, entra na habitação, saca de uma arma, ameaça a assistente, para logo a seguir, depois de a televisão se partir, ser “empurrado” para fora de casa pela mesma assistente. Não é crível nem plausível.
62ª Daí que, nesta parte a sentença recorrida tenha incorrido no vício de contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova, uma vez que desafia as regras da experiência comum que uma pessoa com medo de um individuo a dar pontapés numa porta a abra, tal como que uma pessoa que veja o arguido com uma arma com a qual a ameaça, o empurre.
63ª Daí que a sentença recorrida tenha incorrido nos vícios previstos no artº 410º nº2 al. b) e c) do Código de Processo Penal.
64ªPara dar como provada a conduta do crime agravado não basta dar como assente que o arguido empreendeu condutas capazes de preencher o crime de violência doméstica no domicílio da vítima e com o uso de arma, necessário se torna que se prove que o arguido ao empreender tais condutas, fê-lo sabendo que assim procedendo poderia ocultar os factos e agir a coberto do anonimato, diminuindo as possibilidades de defesa da vítima, podendo facilmente negar a conduta, uma vez que ninguém a terá visto.
65ª Assim, não se tendo dado como assente que o arguido teve a intenção de praticar o crime no domicílio por forma que pudesse beneficiar da dificuldade de reacção e da existência de testemunhas, ocultar os factos e agir a coberto do anonimato, diminuindo as possibilidades de defesa da vítima, podendo facilmente negar a conduta, uma vez que ninguém a terá visto, este apenas poderia ser punido pela prática do crime de violência doméstica previsto no nº1 do artº 152º do Código Penal.
66ª Na sentença recorrida não se deram como provados ou não provados os factos alegados na contestação nos artºs 118º a 130º.
67ª A sentença recorrida ao não dizer e explicar quais os factos constantes da contestação que teve por provados ou não provados ou conclusivos/irrelevantes para a decisão incorreu em nulidade por falta de fundamentação e omissão da enumeração dos factos provados e não provados, prevista nos artºs 374º nº2 e 379º nº1 al. a) do Código de Processo Penal.                                            
68ª Ainda que se entenda que exisitiu de facto uma relação entre a ofendida e o arguido naqueles dois meses, com relevância para o tipo de crime em análise resultaram factos que se cingem a um dia e dois episódios que aconteceram já depois da relação ter terminado.
69ª Aquilo que se pretende criminalizar com esta norma legal são os comportamentos que configurem maus tratos, sejam eles físicos ou psíquicos, nos quais se incluem atos como castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais.
70ª Tendo em conta o entendimento aqui plasmado acerca da abrangência do conceito legal de maus tratos e da amplitude do crime de violência doméstica, depreende-se que os factos dados como provados na sentença recorrida não alcançam a gravidade necessária, individual ou conjuntamente considerados, para serem passíveis de integração no conceito legal de maus tratos.
71ª A sentença, mais uma vez, lança mão de mensagens que não se deram como provadas na enumeração dos factos, para concluir que o arguido tinha uma obsessão pela ofendida e que tinha o seu propósito de não a largar e não respeitar aquela sua vontade. A quais mensagens está o Tribunal a reportar-se?
72ª Mais uma vez, o Tribunal recorrido incorre no vício de falta de fundamentação, porquanto não enumerou os factos que suportariam a condenação do recorrente pelo crime de violência doméstica, pelo que a sentença teria neste passo de se considerar nula, nos termos do disposto nos artºs 374º nº2 e 379º nº1 al. a) do Código de Processo Penal.
73ª Com os factos dados como provados não podemos, assim, sustentar uma condenação por maus tratos. Podem configurar, é certo, violação dos deveres conjugais de respeito e cooperação (cfr. arts. 1672.º e 1674.º do C. Civil), mas, por um lado, ofendida e arguido não eram casados e, por outro, não são violações que atinjam o limiar da intervenção da tutela penal. Parafraseando a já citada jurisprudência do TRP, na violência doméstica não se trata de analisar, retroactivamente, a vivência conjugal ou familiar, para se julgar o modo como o casal viveu a vida em comum, punindo-se os cônjuges (ou análogos) que não corresponderam ao que se esperava numa boa relação matrimonial (ou análoga), nem está em causa um crime residual, no âmbito do qual cabe tudo o que não cabe nos demais tipos legais de crime.
74ª Desta forma, as situações a que vimos de nos referir não podem, a nosso ver, legitimar a aplicação desta norma, sob pena de enfraquecimento e banalização (com efeitos perversos) do crime de violência doméstica, não sendo subsumíveis, individual ou conjuntamente considerados, ao conceito de maus tratos pressuposto pelo tipo legal do artigo 152.º, n. º1 do Código Penal, pelo que o arguido deve ser absolvido da prática do crime pelo qual vem acusado.
75ª A agravação prevista no artº 86º, nº 3 só pode ocorrer sobre a moldura abstracta do crime de violência doméstica tal como está previsto no artº 152º nº 1 do Código Penal, isto é sobre a pena de 1 a 5 anos.
76ª Pelo que sempre a agravação prevista na sentença teria de se situar entre os limites de 1 ano e 4 meses e 6 anos e 8 meses.
77ª Os elementos ponderados em sede de determinação da medida da pena na sentença já haviam sido ponderados aquando da fixação da moldura absatracta pois que  constituem elementos do tipo de crime, pelo que decidindo como decidiu o Tribunal a quo aplicou pena  desadequada e desproporcional, ocorrendo violação dos art.sº  40.º, e 71.º, n.º 2, do Código Penal, devendo proceder-se agora a uma correta determinação da pena, numa medida próxima do seu limite mínimo.
78ª Quanto à pena acessória, a própria decisão é contraditória nos seus fundamentos pois que ao decidir por não aplicar ao arguido outras penas acessórias considera que “que já não se verifica o perigo de continuação da actividade criminosa que determinou a aplicação ao arguido, em sede de 1.º interrogatório judicial, das medidas de coacção descritas no ponto 14 dos factos provados”.
79ª Ou seja, não havendo perigo de continuação de actividade criminosa por banda do arguido desnecessário se tornaria decretar esta pena acessória, que, aliás, não é de aplicação automática.
 80ª À luz do exposto, esta pena acessória revela-se imponderada, gratuita, descabida e declarada fora de contexto, pelo que sempre terá de ser expurgada da sentença, por se revelar desnecessária e desproporcional.                               
81ª O regime previsto no nº 2 do artº 90º da Lei das Armas é mais desfavorável ao arguido do que o do artº 152º nº4 do Código Penal, pois que prevê que “o período de interdição tem o limite mínimo de um ano e o máximo igual ao limite superior da moldura penal do crime em causa, enquanto que no referido nº 4 do artº 152º do Código Penal, a proibição de uso e porte de armas tem um período que se situa entre um limite mínimo de seis meses a cinco anos.
 82ª O que significa que a decisão, decidindo como decidiu, violou o princípio da aplicação da lei penal mais favorável expressamente consagrado no artigo 29.º, n.º 4, da Constituição e como tal deve ser postergada, quando muito condenando-se o arguido numa pena acessória mínima de 6 meses.
83ª Aliás, para que fosse aplicada ao arguido a interdição temporária do artº 90º do RJAM, teria o arguido de ser notificado nos termos do disposto no artº 358º do Código de Processo Penal, o que não aconteceu, pelo que a sentença é, nesta parte, nula (artº 379º nº1 al. b) do Código de Processo Penal).
83ª Não se justifica que o arguido tenha visto a sua pena suspensa sob condição da sujeição do arguido a regime de prova a elaborar  pela DGRSP.
84ª Na verdade, deve considerar-se que a norma do artº 34.º-B nº1 da Lei nº 112/2009, na medida em que torna obrigatória a subordinação ao cumprimento de deveres, observância de regras de conduta ou acompanhamento de regime de prova não dependendo de qualquer outro pressuposto que não seja o da condenação pelo crime de violência doméstica, é inconstitucional por violação do princípio do Estado de Direito na vertente da proporcionalidade, do princípio da igualdade na medida em que tal obrigação não é imposta a qualquer outro dos crimes que protegem o mesmo bem jurídico e por violação do artº 29º nº1 e 5 da Constituição.
85ª Ou seja, para que o Tribunal possa aplicar este regime de suspensão da pena, é necessário que explicite os motivos pelos quais acha conveniente e adequada a sua aplicação e justificar como poderá essa aplicação contribuir para a reintegração do condenado na sociedade.
86ª No caso aqui em análise, a sentença recorrida não faz qualquer tipo de explicação neste sentido nem fornece nenhuma fundamentação, pelo que não só não se percebe os moldes em que o plano de reinserção social será executado (designadamente com que tipo de vigilância e apoio) como também não se transmite o porquê de a pena ser suspensa e sujeita a regime de prova ou a razão de se ter julgado conveniente e adequado às finalidades da punição a subordinação da suspensão da execução da pena a este regime, pelo que também nesta parte a sentença é nula por violação do disposto no artigo 374.º, n.º2, 375.º, n.º1 e 379, n.º1, al. a) do CPP ex vi artigo 205.º da CRP.
86ª Por outro lado, ainda que assim não se entendesse, o Tribunal tinha o dever de fixar o regime de prova e não remeter para a DGRSP a sua realização.
87ª Assim, não tendo o Tribunal justificado adequadamente o porquê de ter optado pela suspensão da pena nos termos em que o fez, deve – também por esta razão – a sentença ser considerada nula por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. c) do CPP.
88ª Na sentença recorrida não se julgou o pedido de indemnização civil.
89ª Na verdade, dos factos alegados pela demandante no pedido de indemnização não se encontra rasto na sentença recorrida.
89ª A sentença, nesta matéria, não se encontra minimamente fundamentada, sendo o montante arbitrado exageradíssimo tendo em conta a factualidade dada como provada.
90ª De qualquer das formas, a sentença recorrida ao não dar como provados ou não provados os factos alegados no pedido de indemnização, tal como na contestação, incorreu no vício de falta de fundamentação, o que determina a sua nulidade, nos termos do disposto nos artºs 374º nº2 e 379º nº1 al. a) do Código de Processo Penal.
91ª Por fim, a indemnização fixada não é equitativa, muito menos quando comparada com indemnizações atribuídas em casos de violência doméstica, devendo ter-se por exagerada, pelo que deve ser reduzida, ao valor de 1.000 €.
92ª O recorrente mantém o interesse em todos os recursos retidos.
93ª A sentença recorrida violou ou fez errada aplicação das normas constantes da motivação que aqui se dão por integralmente reproduzidos breviatis causa, não podendo, pois, manter-se»
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A Senhora Procuradora da República que representou o Ministério Público na primeira instância respondeu, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
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A requerimento do arguido no recurso interposto da sentença, foi realizada nesta instância a audiência a que alude o artigo 423.º do Código de Processo Penal, com observância dos formalismos legais.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.[1]
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1. Questões a decidir.

Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada nos recursos interlocutórios e no recurso da sentença, as questões a decidir são:

A. Recurso interlocutório do despacho de 13.09.2024, com a referência ...40:
. Saber se era admissível o aditamento ao rol de testemunhas da acusação da assistente, por esta requerido.

B. Recurso interlocutório de três despachos proferidos oralmente na sessão da audiência de 26.09.2024 (despacho determinando o afastamento do arguido da sala durante a prestação de declarações pela assistente BB; despacho indeferindo o requerimento do arguido de leitura do auto de notícia e das declarações nele constantes; e despacho indeferindo a inquirição do agente autuante.):
. Averiguar da legalidade do afastamento do arguido da sala de audiências durante a prestação de declarações pela assistente.
. Saber se era admissível a leitura em audiência do Auto de Notícia.
. Saber se ocorreu violação do princípio da investigação ou da verdade material com o indeferimento da inquirição do agente autuante, requerida pelo arguido.

C. Recurso interlocutório de dois despachos proferidos oralmente na sessão da audiência de 11.10.2024 (despacho indeferindo a pretensão do arguido de que fossem lidas em audiência as declarações prestadas em sede de inquérito pela testemunha BB; e despacho indeferindo o requerimento do arguido de que o depoimento das testemunhas não versasse sobre os factos contidos na acusação da assistente.):
. Saber se era admissível a leitura em audiência das declarações prestadas em sede de inquérito pela testemunha BB.
. Saber se o depoimento das testemunhas inquiridas em audiência podia versar sobre os factos contidos na acusação da assistente.

D. Recurso da sentença:
D.1 Inconstitucionalidade do artigo 152.º, n.º 2, al. b) do Código Penal, pela inexistência de definição do conceito de namoro, o que redunda na indefinição do objeto de punição, torna o julgador no legislador, criando e recriando “definições e regimes legais” quanto a esta matéria, que se encontra protegida por reserva de lei; para além de conferir injustificadamente um tratamento idêntico ao “namoro” e ao casamento ou à união de facto com coabitação ou sem coabitação, em violação dos princípios da legalidade, da tipicidade, da separação dos poderes e da proporcionalidade, constitucionalmente consagrados.
D.2 Não constavam da acusação e da pronúncia, nem foram dados como provados, factos concretos que permitam concluir pela existência de uma relação de namoro; sendo inconstitucional a interpretação que se extraia do disposto no artigo 152º nº1 al. b) do Código Penal no sentido de que o tribunal pode dar como provada uma relação de namoro, sem que se prove qualquer manifestação de vontade nesse sentido por banda do agente, por violação dos artigos 1.º, 2.º, 3.º n.º 2, 25.º n.º 1, 26.º n.º 1 e 29.º n.ºs 1 e 3 da Constituição.
D.3 A factualidade apurada contém imputações genéricas, com indefinição temporal e circunstancial, que já não podiam sustentar uma acusação e, muito menos, uma condenação penal, impedindo o contraditório e violando o direito de defesa e o princípio do processo equitativo.
D.4 Nulidade da sentença, por introdução nos pontos 1, 2 e 3 dos Factos Provados de matéria que não constava da acusação, sem cumprimento do disposto nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal.
D.5 Omissão de pronúncia sobre factualidade relevante para a decisão e resultante da discussão da causa (a referida na conclusão 39), assim como da factualidade alegada nos artigos 118 a 130 da contestação.
D.6 Vícios decisórios do artigo 410.º, nº 2, als. a), b) e c) do Código de Processo Penal: insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; contradição insanável da fundamentação factual e entre esta e a decisão da matéria de facto; erro notório na apreciação da prova.
D.7 Saber se os factos provados são suficientes para a subsunção jurídica da conduta do agente ao tipo de crime de violência doméstica pelo qual foi condenado, com a agravação do n.º 2, alínea a), do artigo 153.º do Código Penal.
D.8 Moldura penal abstrata sobre a qual incide a agravação do artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02 (a do nº 1 ou a do nº 2 do artigo 153.º do Código Penal).
D.9 Valoração na determinação da medida concreta da pena de elementos constitutivos do próprio tipo de crime.
D.10 Condenação na pena acessória.
D.11 Suspensão da execução da pena e sua subordinação a regime de prova.
D.12 Condenação civil.
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2. Factos Provados

Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados, e respetiva motivação, nos termos constantes da sentença recorrida.
«Da discussão da causa, com interesse para a decisão da mesma, resultaram provados os seguintes factos:
1- AA e BB mantiveram uma relação de namoro no período compreendido entre meados do mês de setembro e o dia 19 de novembro do ano de 2022.
2- Após o referido dia 19 de novembro de 2022, e até, pelo menos, ao dia 14.02.2023, por não aceitar o término do relacionamento que mantiveram, AA procurou, por diversas vezes, forçar o contacto com a BB, continuou a frequentar o café junto ao local de trabalho da mesma, enviando-lhe ainda diversas mensagens escritas, procurando, por essa via, reatar o relacionamento.
3- No dia 14.02.2023, pelas 07h01m e pelas 19h08m, fazendo uso do endereço de correio eletrónico ..........@....., AA enviou dois e-mails a BB, para o endereço de correio eletrónico ..........@....., pela mesma utilizado, com o seguinte teor:
às 07h01m:
“Olá BB,
Sabes que sempre te amei e tive paciência com a tua toxicodependência, quando me enganavas para ir ao Hospital ... para ir buscar receitas para o teu veneno, ou me pedias para ir a farmácias distantes para tentares sacar os teus venenos sem receita.
Sei das histórias dos taxistas teus dealers. Das tuas consultas de toxicodependência. Das dívidas que tens por todo o lado. Das tuas sessões sexuais com o teu ex-marido. Do sexo violento que tinhas com ele na posição de gatas em que te puxava o cabelo e te insultava, mesmo quando já estavas divorciada dele. Fica sabendo que se era dinheiro que querias de mim, fizeste mal em me destratares porque apesar de não parecer tenho mesmo muito mais dinheiro do que tu pensas e vontade de o gastar para te agradar.
Estou farto de dizeres que te fiz algo de mal e andas a difamar-me entre as pessoas que conheces. Afinal que te fiz eu? Tu sabes bem que nada te fiz.
Será que é porque continuo a falar com a tua mãe? Achas que ela é tua propriedade?
Lembra te quando vês televisão, ouves música, te vestes, vês as horas, ou fazes pagamentos, quem te deu essas prendas. Foi esse o mal que te fiz? Acho que o mal deve ter sido não te ter comprado as prendas dda ... que tu querias. Afinal disseste-me que o DD te roubou a pulseira e a tua mãe teve que lhe pagar para ele se ir embora. Pelo que sei. ele não te roubou, mas sim tu que o roubaste a ele. Acho que ele gostaria de ser minha testemunha em tribunal sobre a difamação. Que prendas me deste tu a mim? Foi a mentira, o desprezo e a calúnia.
Não te comprei as coisas da ... porque te ía comprar uma oferta em ouro da ... para o teu aniversário. Tu não és nada esperta, pois nem percebeste que eu andava a ver que tipo de colar em ouro tu gostavas da .... Comprei mais de 10 mil euros em ouro à EE para lhe agradar, enquanto estava a adiar fazer isso contigo porque estava a sentir que me estavas a afastar de ti.
Será que foi porque procurei obter uma justificação para quando achaste que era hora de saltares para novo pasto mais verde? Sabes que tive relações sexuais contigo durante cerca de 3 semanas, em que me dizias que era o homem perfeito. Depois disso passaste a deixar o telemóvel na sala em silencio. Sei, porque tu me disseste que estavas a receber mensagens de amor nessa data e falaste do tal outro AA.
Será que é porque sei que gostas de estar sempre a mudar de parceiro sexual? Também me dissestes que o DD de ... era má pessoa, mas sei agora que a má pessoa és tu. Usas as pessoas e descartas-as difamando-as de forma infantil e canalha para te fazeres de vítima.
Sei por ti própria que traíste o teu ex marido por diversas vezes com várias pessoas, e ele até ele conhece um tal de ..., não é? E o tal filho do homem da casa de praia que encontras-te nas Finanças ...? Também te fartaste dele ao fim de algumas semanas? Será que ele deixou de pagar? Será que o AA sabia que andavas com ele?
Ao fim de algum tempo achei que estavas a usar-me demasiado para ser teu motorista e porta moedas para o que querias. Comprei-te e dei-te tudo o que achei ser razoável, até quando já dizias que não precisavas de mim nem de ninguém. Sei que te aproveitaste do amor que tenho por ti.
Sei que és promíscua, mentirosa, nascisista, egoísta, sociopata, infantil, toxicodependente, irresponsável e muito mais, mas ainda assim acho que te disse que isso para mim não é problema porque te aceito como és porque te amo e sempre te amei.
Pensa bem no que andas a fazer. Eu sou pai de filhos e tenho reputação. se paras de andar a dizer mentiras a respeito de mim. Está bem?
Se andas a falar com as filhas do FF para te aconselhares, não é de admirar que andas com a cabeça confusa.
A EE não me quer deixar e precisa de mim. Se achas que ela me despreza estás muito enganada. Ela sempre soube que eu te amava, mas ainda assim quiz casar comigo. Ela aceita o divórcio sem problemas porque sabe que eu sou uma pessoa responsável e não a vou deixar passar dificuldades.
Espero que te portes como uma pessoa adulta, assumas responsabilidades pelos teus actos, deixes de me difamar e me trates com o respeito que acho que mereço pelo que sempre fiz por ti.
Tenho estado limitado na minha movimentação para evitar cruzar-me contigo. Foste tão canalha que mesmo sabendo que não tinha Internet em casa e necessitava usar o café, mesmo nas duas ocasiões em que tive videoconferências e falei contigo, és tão egocêntrica que achaste que fui para te ver.
Eu moro a meio dúzia de metros de ti. Se eu quisesse te ver pessoalmente isso não era problema. Eu tenho feito o possível para não me cruzar contigo, não o contrário.
Não cries guerras porque isso não é bom para ti, nem para mim. Espero que sejas honesta comigo e me digas o que eu te fiz.
Espero que fales comigo para que eu possa seguir em frente com a minha vida.
AA”
- às 19h08m:
“BB, Tal como disseste que o fazias espero que me devolvas os seguintes itens: porta moedas da ... Headphone da ... Relógio de pulso da ... televisão de 32 ”camisola de lã”
4- Mais tarde nesse dia, pelas 19h20m, o arguido deslocou-se à residência de BB, sita na Rua ..., em ..., ..., com o pretexto de recolher objetos que havia oferecido à mesma no decurso do relacionamento.
5- Ali chegado, o arguido desferiu diversos pontapés na porta de entrada da residência da vítima, o que fez com que a mesma, temendo o comportamento daquele, abrisse a referida porta.
6- Nessa ocasião, o arguido introduziu-se no interior da referida residência e disse, em tom sério, à vítima “ dias que me apetece dar-te um tiro no meio dos olhos”.
7- Ato contínuo, o arguido retirou da zona da cintura, ocultada pelo vestuário que trajava, uma arma de fogo curta (pistola), de marca ...”, modelo ..., de origem alemã, com o n.º ...95, de calibre 7.65 mm, de que é proprietário e que se encontra registada em seu nome e manifestada sob o livrete n.º ...02.
8- De seguida, empunhando a referida pistola, o arguido apontou-a na direção da face da vítima, a uma distância de cerca de trinta centímetros, ao mesmo tempo que lhe disse “achas que não?”, “dou-te um tiro no meio dos olhos e ao fim mato-me”.
9- Após, o arguido desferiu com as duas mãos um empurrão no corpo da vítima, provocando a sua queda no chão, causando-lhe dor.
10- O arguido agiu com o propósito reiterado e concretizado de, através das condutas descritas, adotadas após o término do relacionamento de namoro que manteve com BB, fazendo, numa ocasião, uso da arma de fogo supra descrita, molestar física e psicologicamente a vítima, ofendê-la na sua honra, consideração e dignidade pessoal, humilhá-la, atemorizá-la e prejudicar e coartar a sua liberdade pessoal, fazendo com que a mesma se sentisse desprezada, diminuída e humilhada na sua dignidade pessoal.
11-Não obstante estar ciente de que tinha para com BB especiais deveres de cuidado, respeito e solidariedade, atenta a relação que entre ambos existiu, AA não se coibiu de agir como agiu, bem sabendo que lesava gravemente a vítima na sua saúde física e mental, na sua honra, consideração e dignidade pessoal, na sua tranquilidade e na sua liberdade pessoal, fazendo-a recear o seu comportamento, o que quis e conseguiu.
12-Sabia o arguido que as suas condutas eram, como foram, idóneas a causar, como efetivamente causaram, dor, temor, inquietação, ansiedade, humilhação, vergonha e perturbação psicológica à vítima.
13-O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que todas as suas condutas eram, como são proibidas por lei e criminalmente punidas.
Mais se provou que:
14-Por decisão judicial datada de 29.07.2023 foram aplicadas ao arguido, para além do termo de identidade e residência, as medidas de coação de proibição de contactar e de se aproximar a menos de 250 metros da assistente, tendo sido posteriormente dispensada a implementação dos meios técnicos de controlo à distância, os quais, apesar de determinados, não foram atempadamente implementados pela DGRSP.
15-O arguido é casado, mas reside sozinho em ....
16-Trabalha como especialista de cibersegurança na empresa “EMP01...” auferindo uma retribuição mensal líquida de € 2.000,00.
17-A mulher do arguido é prima direita da assistente.
18-O arguido não possui antecedentes criminais.

II.2- FACTOS NÃO PROVADOS:

Com interesse para a causa, não se provou que:
a) No período temporal descrito no ponto 2 dos factos provados, o arguido tivesse tentado surpreender a assistente junto à residência.
b) A demandante tivesse de recorrem a medicação para a ansiedade e depressão após os factos perpetuados pelo arguido.
c) Após os factos perpetrados pelo arguido, a assistente/demandante passasse a não dormir e a sentir cefaleias e um cansaço extremo e perdesse o apetite.
d) A assistente/demandante era tida como pessoa alegre e comunicativa, em consequência da conduta do arguido, tornou-se pessoa triste, introvertida e passou a ter dificuldades em dormir.
e) A assistente/demandante tem de viver escondida para que o arguido não a encontre e evite sair de casa para não ter de dar explicações sobre o sucedido.
*
II.3 - MOTIVAÇÃO:

A convicção do Tribunal assentou na análise conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, bem como dos documentos constantes dos autos, de acordo com as regras da experiência comum e critérios de normalidade e razoabilidade, sempre ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
No que respeita à relação pessoal estabelecida entre o arguido e a assistente o tribunal teve em consideração a análise conjugada das declarações do arguido e da assistente, concatenadas com a demais prova produzida, seja o depoimento das testemunhas arroladas, seja a prova documental junta aos autos.
O arguido prestou declarações através das quais, essencialmente, quis negar a existência de uma relação de namoro com BB
A este respeito mencionou que é casado com uma prima da assistente e que se deslocou a ... em agosto de 2022, ficando a residir na casa da família da esposa ali situada na freguesia ..., para tratar de uma disputa de águas, que envolvia também a mãe da assistente.
Reencontrou-se com a assistente neste contexto, e sabendo que ela tinha sofrido um acidente, estando combalida, disponibilizou-se a dar-lhe boleia para fazer compras e para a levar ao trabalho.
Neste seguimento, disse o arguido que nunca teve qualquer intenção de namorar com a assistente, que simplesmente a assistente precisava de boleias e ele queria “ocupar a cabeça”, admitindo que tiveram relações sexuais por algumas vezes, e que também a levou a algumas consultas médicas.
A assistente BB confirmou que o arguido em agosto de 2022 estava a viver sozinho na casa de ... (...), que dista cerca de 200 metros da sua residência, e que estabeleceu contactos com ela e com a mãe por causa de uma situação familiar relacionada com o uso de águas de um poço que também lhes interessava.
Contextualizou que nessa altura se sentia muito debilitada porque tinha sofrido um acidente de carro em agosto de 2022, em consequência do qual fraturou cinco costelas, situação que veio agravar uma depressão de que já padecia desde que o filho mais novo teve um acidente aos dois anos de idade. Assumiu que era dependente de medicação, nomeadamente, de indutores de sono e que por causa disso estava de baixa médica há três anos.
Assim, quando, em dia que não soube especificar, mas que terá sido em meados de setembro de 2022, no âmbito de uma discussão sobre a água do poço o arguido tomou a sua posição e a defendeu, sentiu-se protegida e aproximou-se do arguido.
Então, nesse mesmo dia, o arguido levou-a a fazer compras, e quando regressaram, foi a casa dele onde tiveram relações sexuais. Desde essa data segundo as suas palavras mantiveram um “namoro”, saíam quase todos os dias, iam passear, almoçavam juntos e frequentavam a casa um do outro, mas não pernoitavam, porque apesar da vontade do arguido para que tal acontecesse a assistente não queria “juntar-se ou casar-se” e regressavam às respetivas casas.
Referiu como uma data especialmente importante para si, o dia 19 de setembro, posterior ao início do relacionamento com o arguido, porque decidiu nesse dia deixar a medicação (Zolpidem) e reestabelecer-se, tendo regressado ao seu trabalho na repartição de Finanças ... no dia 1 de outubro de 2022.
O arguido, desde o referido dia 1 de outubro, disponibilizou-se para lhe dar boleia para o trabalho, o que aceitou e veio a suceder.
No entanto, esclareceu a assistente que começou a achar estranho o comportamento do arguido que a levava pela manhã, tomava um café no estabelecimento ao lado da repartição, mas fazia questão de a acompanhar sempre até à porta do serviço para se despedir dela com um beijo, regressando depois ao mesmo café, o que a deixava envergonhada perante os colegas.
Ademais, o arguido permanecia no café, onde almoçava, até à hora em que a assistente terminava a jornada laboral, regressavam juntos, e a assistente ainda ia para a casa do arguido onde ficava até cerca das 21.30h-22h.
O que sucedia todos os dias úteis, ao passo que ao fim de semana também estavam juntos.
Até que, por entender que passavam tempo demasiado tempo juntos, a assistente decidiu, numa sexta-feira, após fazerem compras, dizer ao arguido que não ia a casa dele, querendo regressar a casa e ficar sozinha, bem como permanecer sozinha no fim de semana, pedindo-lhe que não fosse a casa dela. Porém, o arguido não respeitou o seu pedido e bateu-lhe à porta de casa no fim de semana, por mais do que uma vez, fazendo com que a assistente acabasse por lhe abrir a porta e por se encontrarem.
BB acrescentou que, para além da insistência do arguido em estar com ela nesse fim de semana, também a deixou incomodada a circunstância de mais tarde o arguido a ter confrontado com a circunstância de ter visto nesse dia o pastor alemão do ex-marido perto da casa dela, o que o fez pensar que ela tivesse retomado contactos com o ex-marido.
Posteriormente, noutra sexta feira que inicialmente situou como sendo dia 19 de outubro, mas que se apurou em função da data da mensagem que mencionou, que terá sido, outrossim, no mesmo dia do mês de novembro, a assistente pediu outra vez ao arguido que não a procurasse no fim de semana porque queria estar sozinha.
Porém, o arguido, uma vez mais, não respeitou o seu pedido, aparecendo-lhe em casa no sábado, batendo na porta de tal modo que pensou que ele “ia deitar a porta abaixo”, recebendo mensagens do arguido a dizer que não saía dali enquanto não lhe abrisse a porta.
Ora, as referidas mensagens estão juntas aos autos a fls. 372 (mensagens 35 e 36) e datam de 19 de novembro de 2022, às 18h06m e às 18h21m, o que no confronto com as declarações da assistente permitiu esclarecer a data em que efetivamente ocorreram tais factos.
Mais disse a assistente que nesse dia concluiu que era impossível continuar a relacionar-se com o arguido, porque ele não a deixava passar um dia sozinha e porque teve medo dele após aquele comportamento.
Contudo, o arguido não aceitou, e continuou a contactá-la.
Aqui chegados, importa destacar que o arguido confirmou as boleias que diariamente dava à assistente para o trabalho, apesar de ter configurado esse ato como “boa ação”, e que a espera pela assistente até ao final do dia se justificava porque utilizava a internet do “Café ...” localizado ao lado da repartição de Finanças ..., para fazer o seu trabalho que era remoto.
Quanto aos últimos dias do mês de setembro, antes de se verem diariamente nas idas e voltas do trabalho da assistente, o arguido quis fazer crer que após o dia de meados de setembro em que estabeleceram relações sexuais não se encontrou diariamente com a assistente, mas que chegou a levá-la a uma consulta no Hospital ... e logo de seguida a uma farmácia, mantendo-se disponível sempre que ela precisasse da sua boleia.
Acontece que a versão do arguido não convenceu o tribunal, desde logo, porque seria no mínimo estranho se, após terem mantido um único encontro com relações sexuais a verem-se esporadicamente, de repente, a partir do dia 1 de outubro, o arguido se disponibilizasse para levar a assistente ao trabalho todos os dias da semana, ficando à espera que aquela acabasse a jornada laboral para a trazer de volta a casa. Mais credível e consentâneo com a normalidade das coisas é que os dois continuassem a ver-se e a estreitar contactos ao longo das últimas semanas de setembro, culminando com as boleias diárias a partir do dia 1 de outubro, tal como referido pela ofendida.
Além disso, o arguido acaba por cair em contradição quando explicou que após a primeira relação sexual com a assistente só não teve mais, porque “não quis magoá-la” dizendo que “ela passava o tempo em casa a ver televisão” e que tentou aumentar-lhe a autoestima, conseguindo convencê-la a ir a uma consulta de ginecologia no dia 10 de outubro de 2022, porque ela estava com um problema da assistente de índole sexual, frisando que pagou essa consulta e a medicação, e que retomaram relações sexuais logo que esse problema foi tratado.
Resulta cristalino, pelo que o próprio arguido disse ao tribunal, que nas últimas semanas de setembro continuou a encontrar-se com a assistente e a fazê-lo em ambiente íntimo, discutindo com ela questões privadas.
Conjugados todos os elementos apurados, que convergem das declarações do arguido e da assistente, o tribunal não teve dúvidas de que, pelo menos, desde meados de setembro de 2022 e até 19 de novembro de 2022, o arguido e a ofendida se encontraram regularmente, se relacionaram de forma íntima, frequentaram a casa um do outro, e saíram juntos publicamente para compras e consultas médicas.
A reforçar tal factualidade, BB, mãe da assistente, com um discurso isento e objetivo, disse que nada tinha contra o arguido e que desconhecia como ele e a filha se envolveram. Percebeu que algo havia entre eles porque uma vez foi a casa da filha, encontrando-a ela a dormir e ao arguido ali sentado.
E ..., testemunha da defesa, tio e vizinho da assistente, disse que ouviu falar de um envolvimento entre a assistente e o arguido, que o viu andar pela casa da assistente, desconhecendo, contudo, pormenores.
Tendo em consideração que o arguido à data dos factos era casado com uma sobrinha destas duas testemunhas, compreende-se que as mesmas não quisessem afirmar que havia uma relação íntima ou amorosa entre arguido e a assistente, mas, ao explicarem aquilo que percecionaram direta e pessoalmente, evidenciaram que o relacionamento entre ambos era notório e estava à vista de quem os rodeava.
Bem assim, os colegas de trabalho de BB confirmaram essa mesma publicidade da relação do arguido com aquela, e que sabiam tratar-se de um namoro.
Com efeito, GG, HH, II e JJ, todos colegas de trabalho da assistente, afirmaram univocamente, que viram o arguido no café ao lado da repartição, “Café ...”, por diversas ocasiões, quer de manhã, quer hora de almoço. Sabiam quem ele era e que havia uma relação de namoro entre a assistente e o arguido.
A testemunha GG explicou que a assistente lhe mostrou uma mensagem escrita que recebeu do arguido, evidenciando ciúmes, a dizer “vais abandonar-me por esse colega”, isto após os ter visto a almoçar no “Café ...”, mensagem essa que JJ também afirmou ter lido, ao que acrescentou ter assistido a uma “cena de ciúmes” do arguido, quando uma vez no café ele se zangou porque a assistente se sentou numa mesa com os colegas de trabalho e não junto dele.
E a testemunha HH disse que quando via o arguido e a assistente juntos no café lhe parecia que eles tinham uma boa relação, até que mais tarde soube através de colegas de trabalho que teria havido uma discussão com violência entre eles e em agosto de 2023 recebeu uma queixa contra a assistente, por parte do arguido, que interpretou como sendo retaliação pelo final do relacionamento.
Para além da exteriorização e manifestação do relacionamento em causa de modo que foi percecionado publicamente como uma relação de namoro, veja-se a perspetiva que o próprio arguido teve dessa relação.
É que se em julgamento o arguido em sua defesa disse que nunca teve qualquer intenção de namoro com a assistente, não é isso que de forma cristalina se retira das várias mensagens escritas que enviou através do seu telemóvel com o número ...33, tal como admitido pelo próprio, mesmo após o dia 19.11.2022, data em que para assistente terminou o namoro.
A título ilustrativo, entre as várias mensagens que constam juntas a fls 368 a 379 dos autos, destacam-se as seguintes:
- No dia 14.10.2022, às 21h33m, “És a menina mais amorosa que já conheci. Amo-te muito”;
- No dia 16.10.2022, às 21h35m, “Hoje eu não fui muito boa companhia para ti porque estava triste. Amanhã espero poder recompensar-te, Um grande beijo que te ama muito”;
- No dia 21.10.2022, às 20h08m, “Parece que eu só durei 1 mês. Tendo em conta que parecias gostar de mim, pensei que era para durar, ou para durar bastante mais tempo. Escolheste mal o dia para me deixares”;
- No dia 12.11.2022, às 00h16m, “Não consigo dormir, Deixaste-me mal. Este fim de semana necessito pensar o que vou fazer visto que tudo o que eu faço te chateia. Na segunda feira vou te levar às 8:30. Se não quiseres que o faça avisa-me para eu não ficar à espera”;
- No dia 14.11.2022, às 02h08m, “Levaba-te ao altar se tu quisesses, mas sobre esse assunto ainda estou magoado contigo e não mudei de ideias, pois tu também não quisestes fazer-me mudar. Acho que preciso e necessito de ti, ainda que tu digas que não precisas de ninguém. Claro que isso são palavras irrefletidas, mas ainda assim custa ouvir isso”;
- No dia 15.11.2022, às 22h20m, “Sim, Claro. Ainda somos namorados. Ou não?”;
- No dia 15.11.2022, às 22h23m, “Ainda que agora me digas o contrário sabes que vais ser minha mulher e não só amante”
- No dia 16.11.2022, às 05h45m, “Necessito muito de ti. Acho que és a pessoa certa por muitas razões. Já não fazemos amor há uma semana e estou a ficar com excesso de desejo que me está a perturbar o raciocínio. Põe-te bonita porque eu quero ver a mulher que amo”
- No dia 19.11.2022, às 21h41min, “Tentei de tudo para evitar acabar a relação, mas sem sucesso porque é isso que queres. Não me culpes”
- No dia 21.11.2022, às 23h50m, “Estás livre para fazeres o que quiseres. Não precisas voltar a telefonar mais para mim por amor. Podes anunciar o fim do namoro aos teus colegas e família. Eu já me consegui libertar da loucura do amor por ti. Pede desculpa por mim à tua mãe porque eu prometi-lhe que te ia ajudar, mas não consigo porque tu consideras-me inimigo. Espero que fiques bem e que te mantenhas longe do veneno dos medicamentos. Quanto ao meu futuro é uma incógnita. Sê feliz. Beijinhos”
- No dia 26.11.2022, às 20h09m, “São, não quero passar de teu namorado a teu inimigo, e acho que tu também não queres isso. Acho que devíamos ser bons amigos, se não somos namorados. Se já não me amas não acho que valha a pena insistir, mas podes sair com o teu melhor amigo para ires onde quiseres. E já agora falar comigo, mesmo que aches que não precisas de mim, visto que eu vou tratar-te como apenas como amiga”
Como sobressai, a simples leitura do teor dessas mensagens é por demais elucidativa                                                                                            da auto proclamação pelo arguido da sua qualidade de namorado da assistente.
Em face de tudo quando se vem de expor, e para mais, o tribunal percecionou que existiram laços afetivos entre o arguido e a assistente, ainda que a relação que tiveram, fosse de curta duração. Tendo-se ainda por certo, não obstante o curto desfecho, que o arguido perspetivava que a relação fosse mais duradoura, tanto que referiu em mensagens que faria da assistente sua mulher e não só amante, e que casaria com ela.
E essa apreensão resultou da forma emotiva como ambos prestaram as suas declarações.
A ofendida, por um lado, autopenalizando-se por ter iniciado o relacionamento com o arguido, explicando que se tudo começou porque ele lhe deu sentimentos de segurança e proteção mas que rapidamente se sentiu sufocada por ele estar sempre a rodeá-la, e assustada, quando ele no dia 19.11.2022 desferiu pancadas na sua porta.
O arguido, por outro lado, manifestando sempre que quis ajudar a assistente, que a pedido da mãe dela prontamente tratou de alguns assuntos, a consternação que sentiu quando percebeu que a assistente em apenas um fim de semana tomou medicação que seria para durar um mês.
É evidente que a relação entre ambos quedou em insucesso o que justifica que a assistente referisse ao longo das suas declarações que desprezava o arguido e que não mais o queria ver. O que não significa que no início dessa relação não fossem outros os seus sentimentos o que, aliás, serve para explicar os atuais sentimentos de mágoa e rancor.
Por conseguinte, com segurança bastante, o tribunal adquiriu conhecimento das circunstâncias concretas, de tempo, modo e lugar, em como se estabeleceu o relacionamento entre o arguido e a assistente, bem como da exteriorização e manifestação dessa relação e os sentimentos que nutriram um pelo outro. E ponderado todo esse circunstancialismo, resulta à saciedade, que perante as normais regras da experiência, a lógica e o senso comum, esse relacionamento consubstanciou uma relação de namoro.
Pelo que assim se julgou provado.
Relativamente aos sucessivos contactos que o arguido dirigiu à assistente, após o término do namoro, no dia 19.11.2022, o tribunal ateve-se, desde logo, às mensagens que o arguido confirmou que enviou através do seu contacto de telemóvel (com o número ...33) e que estão juntas a fls. 361 a 379 dos autos, das quais se extrai que, apesar de ter escrito no dia 20.11.2022, às 01h44m, “O que fizeste é imperdoável”, o arguido continuou a enviar várias e sucessivas mensagens à assistente, nesse mesmo dia, e nos que se seguiram, concretamente nos dias 23.22.2022, 25.11.2022, 26.11.2022, 27.11.2022, 28.11.2022, 30.11.2022, 01.12.2022, 02.12.2022 e 07.12.2022.
E enviou essas inúmeras mensagens, apesar de a assistente se ter limitado a dar escassas respostas, que confirmam a sua determinação em pôr termo ao relacionamento após o que se passou no dia 19.11.2022, como demonstram as mensagens de resposta ao arguido do dia 19.11.2022, às 20h45m: “Cresce e aparece”; do dia 20.11.2022, às17h38m: “Pára”; do dia 20.11.2022, às 17h39m:” Não tenho nada a falar”, e do dia 27.11.2022, às 17h06m:” Estás perdoado, agora desaparece”.
Foram igualmente valoradas as mensagens enviadas para a assistente, entre os dias ../../2023 e ../../2023, através do contacto de telemóvel com o número ...87, juntas a fls 384 a 389 dos autos, que o arguido disse pertencer ao seu pai, assumindo-se como autor das mesmas, nas quais, tal como o próprio explicou, se fez passar por outra pessoa porque queria saber o que a assistente andava a dizer sobre si.
O arguido confirmou que após o término da relação, continuou a frequentar o “Café ...”, pelo menos, por seis ocasiões, dizendo que ia lá para fazer entrevistas de emprego. No entanto, também admitiu que se dirigiu à assistente para a questionar se ainda estava “chateada” com ele. É óbvio que o arguido escolhia aquele local com o intuito de se encontrar com a assistente, não obstante esta o evitar.
Relativamente aos emails datados de 14.02.2023, o arguido reconheceu que os enviou do seu punho para a assistente. Porém, negou que pretendesse ofendê-la, apelando à existência de um “contexto”, de estar a exercer o seu direito à liberdade de expressão.
Convidado a explicar esse contexto, o arguido foi periclitante, começou por dizer que logo pela manhã desse dia telefonou para a assistente, um tanto porque andava desconfiado de que ela dizia mal de si, outro tanto, porque queria que a assistente lhe devolvesse coisas, outro tanto porque queria falar das duas coisas e saber a que horas podia ir a casa dela.
Não soube precisar se telefonou antes ou depois do envio do email às 7h01m e acabou por justificar que enviou esse email porque queria encontrar uma solução, e que a assistente deixasse de ter a atitude que tinha com ele. E era esse o contexto.
Acontece que em face do teor do email referido, apenas se pode chegar a conclusão completamente oposta. O que o arguido escreveu foi claramente um conjunto de comentários depreciativos e atentatórios da honra e da dignidade da assistente.
Que contexto poderia haver que para o arguido escrever: “Sei das histórias dos taxistas teus dealers. Das tuas consultas de toxicodependência. Das dívidas que tens por todo o lado. Das tuas sessões sexuais com o teu ex-marido. Do sexo violento que tinhas com ele na posição de gatas em que te puxava o cabelo e te insultava, mesmo quando já estavas divorciada dele”; “Também te fartaste dele ao fim de algumas semanas? Será que ele deixou de pagar?”; “Sei que és promíscua, mentirosa, nascisista, egoísta, sociopata, infantil, toxicodependente, irresponsável e muito mais (…)”.
A resposta é evidente: Nenhum!
O arguido não expressou opiniões, minimamente fundamentadas com algum concreto acontecimento, não teceu desabafos, e muito menos tentou encontrar “uma solução”. O que o arguido escreveu foram apenas insultos gratuitos à pessoa da assistente, com o claro intuito de a achincalhar, em resultado da sua frustração com o final do relacionamento de namoro entre ambos.
Quanto aos factos ocorridos no dia 14.02.2023, dúvidas não se colocam de que o arguido ao final desse dia se deslocou a casa da assistente, pois o próprio assim o disse.
O arguido negou ter desferido agressões, ter empunhado uma arma e ter proferido qualquer expressão ameaçadora, referindo que apenas se deslocou nesse dia a casa da assistente para ir buscar algumas coisas, em particular uma televisão que se arrependeu de lhe ter oferecido porque “não era boa para ela” e que foi a ofendida quem o empurrou, acabando por deixar cair a televisão no chão que se partiu.
Em contrapartida, a assistente explicou de forma deveras impressiva e detalhada, que abriu a porta ao arguido porque ele desferia pontapés, ficou parada junto da porta a ouvi-lo falar até que ele lhe apontou uma arma à testa e disse “dou-te um tiro nos olhos e depois mato-me”. Precisou que se tratava de uma pistola pequena de cor escura. Em face daquele gesto, não teve reação, até que o arguido guardou a arma, a empurrou, fazendo-a cair para trás, forçando desse modo a entrada na casa. Seguidamente o arguido dirigiu-se à televisão agarrando-a e puxando-a ainda com os fios ligados na corrente elétrica. Tentou a assistente impedi-lo de levar a televisão, acabando esta por cair no chão e se partir, tendo, então, aproveitado esse momento para empurrar o arguido para fora de casa. De modo que conseguiu fechar-lhe a porta e telefonar para a polícia.
A corroborar o acontecido nos termos descritos pela assistente, o tribunal considerou o depoimento de BB que confirmou que nessas circunstâncias de tempo e lugar, morando por cima da casa da filha, ouviu vozes altas vindas de lá. Foi ver o que se estava a passar, não viu o arguido, mas encontrou a filha a chorar e havia coisas partidas no chão. Seguidamente a filha, após se acalmar, contou-lhe que o arguido lhe tinha apontado uma arma e a tinha agredido. E também o depoimento de II que a este propósito disse que no “dia dos namorados” a assistente lhe telefonou a chorar, pelo que, prontamente, se deslocou a casa da assistente. Viu uma televisão e coisas partidas no chão, a assistente contou-lhe que o arguido lhe tinha apontado uma arma e a tinha empurrado. Viu a assistente muito assustada, temendo pela vida, constantemente nervosa e ansiosa após aquele episódio.
A reforçar essa factualidade o tribunal considerou o teor do auto de busca e apreensão, a fls. 155 a 158 dos autos, de onde se retira que em sede de busca na residência do arguido sita em ... (...), no dia 24.05.2023, foi apreendida uma pistola de marca ...”, modelo ..., de origem alemã, com o n.º ...95, de calibre 7.65mm, registada em nome do arguido e manifestada sob o livrete n.º ...02 e 152 (cento e cinquenta e duas) munições de várias marcas.
O arguido referiu, em sua defesa, que foi buscar a referida arma à casa da ..., apenas em finais do mês de abril, para a entregar na P.S.P.
Mas não conseguiu convencer o tribunal de que assim fosse.
Com efeito, a este respeito, o arguido identificava EE, sua esposa, como a pessoa que poderia confirmar essa realidade. Contudo, inquirida a este propósito, a referida testemunha, depois de inicialmente ter indicado o mês de Abril de 2023 como aquele em que, efectivamente, o arguido teria ido buscar a arma à sua residência, acabou por reconhecer, a instâncias do tribunal, que, afinal, nada sabia quanto ao momento em que isso teria acontecido, percebendo-se ainda que a referência ao mês de Abril de 2023 foi uma “memória plantada” pelo próprio arguido, ou seja, resultava daquilo que ele lhe teria dito a esse respeito.
Questionado, ainda, o arguido da razão pela qual não entregou a arma na PSP ... ou ainda acerca da justificação para em 24.05.2024, ou seja, sensivelmente um mês depois da data que indicava como a do transporte da arma para ..., ainda a deter no interior da sua residência (tendo em conta que a motivação que o levou a assim proceder era a entrega da arma às autoridades), o arguido não conseguiu arranjar melhor desculpa do que dizer que não era assim tão simples entregar a arma porque tinha de ser agendado.
Ou seja, neste contexto, ficou este tribunal plenamente convencido de que esta “história” se tratava de uma invenção do arguido, com o intuito, facilmente perceptível, de fazer crer que em 14.02.2023 a arma que utilizou para apontar à cabeça da assistente estava depositada no interior de um cofre na sua residência da ..., razão pela qual se desvalorizou, em absoluto, esta versão alternativa dos factos.
Portanto, em face de todos esses elementos probatórios, concatenados entre si, está seguramente demonstrado que o arguido empunhou, efetivamente, a referida arma, nos termos descritos pela assistente, e de que proferiu as expressões associadas à exibição da arma. Mais, não se tem por despiciendo que tais atos tenham acontecido na altura em que o arguido falava com a assistente, fazendo-se passar por terceira pessoa, ouvindo desta o quanto o desprezava, o detestava e o queria à distância. O que se vê como a razão para o arguido ter atuado de forma tão agressiva, usando, inclusive, expressões que a ofendida já tinha utilizado nas mensagens trocadas nessas circunstâncias “…mas ele continuou a andar atrás de mim, eu tive alturas que só me apetecia dar lhe um tiro nos olhos”, o que certamente lhe terá causado mágoa bastante para agir nos termos descritos.
A televisão caída e partida no chão, não foi contraditada pelo arguido.
Por fim, o empurrão desferido na assistente tem-se por completamente plausível que tenha acontecido nos termos que a assistente explica. Ou seja, foi a forma de o arguido forçar a sua entrada dentro da casa da assistente. Sendo certo que a inexistência de lesão visível decorrente dessa queda não abala a credibilidade da ofendida, porquanto, como é consabido, nem todas as quedas ou agressões deixam marcas corporais.
A testemunha da defesa KK nada sabia sobre os factos em discussão, não se tendo extraído do seu depoimento qualquer razão de ciência com relevo para a apreciação da causa.
A prova de que a assistente se sentiu lesada na sua honra, consideração e dignidade pessoal, na sua tranquilidade e na sua liberdade pessoal, temendo o arguido, cujos atos lhe causaram dor, medo, inquietação, ansiedade, humilhação, vergonha e perturbação psicológica, resultou das declarações impressivas que a própria prestou, confirmadas pela testemunha, sua amiga, LL, que atestou que nos dias seguintes ao episódio do dia 12.02.2023, esteve na companhia da assistente tendo percecionado o medo e nervosismo que esta sentia, para além de terem suporte à luz da normalidade da vida e da experiência comum, considerando as condutas perpetradas pelo arguido.
A inexistência de antecedentes criminais resulta comprovada pelo certificado de registo criminal do arguido, a fls. 608 dos autos.
Os factos provados relativos às condições socioeconómicas do arguido assentaram nas declarações que a esse respeito o próprio prestou. Sendo que, a relação de parentesco entre a esposa do arguido e a assistente foi pacificamente reconhecida.
Isto posto, sobre o elemento volitivo, é pacífico o entendimento perfilhado por GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, Vol. II, p. 101, quando afirma que «os actos interiores (ou "factos internos" como lhes chama Cavaleiro de Ferreira), que respeitam à vida psíquica, a maior parte das vezes não se provam directamente, mas por ilação de indícios ou factos exteriores».
O arguido tinha perfeita consciência da relação de namoro que manteve com a assistente e foi por causa e em função dessa relação que adotou os comportamentos descritos de 1 a 9, movido por sentimentos obsessivos e ciúmes, agiu com a intenção e o propósito conseguidos de a agredir física e psicologicamente, de atentar contra a sua honra e dignidade pessoal, de lhe causar medo, inquietação, vergonha, de coartar a sua liberdade pessoal e a sua tranquilidade.
Quanto à consciência da ilicitude do arguido extrai-se das mais elementares regras da experiência comum, não tendo sido beliscada a capacidade do arguido para reconhecer que as suas condutas eram contrárias à lei.
Os factos não provados, assim foram julgados, por não ter sido feita qualquer prova quanto aos mesmos.»
***
3. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS

A. Recurso interlocutório do despacho de 13.09.2024, com a referência ...40:
O despacho recorrido admitiu o aditamento ao rol de testemunhas, com a distribuição indicada pela assistente BB no seu requerimento de 08.08.2024, nos termos do artigo 316.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Sustenta o recorrente que não é possível admitir um aditamento ao rol de testemunhas da acusação deduzida pela assistente, quando essa acusação da assistente e respetivo rol não tinham sido admitidos no despacho a que alude o artigo 311.º do Código de Processo Penal, nem o recorrente dela tinha sido notificado na fase de inquérito para, querendo, requerer a abertura da instrução. Concluindo que a falta de notificação da acusação da assistente configura nulidade insanável, nos termos do disposto no artigo 119.º alínea c) do Código de Processo Penal, e que a interpretação que se extraia do disposto nos artigos 118.º n.º 1, 119.º alínea c), 120.º nº 2 alínea b) e 284.º, todos igualmente o Código de Processo Penal, no sentido de que tal nulidade não se verifica, deve ser julgada inconstitucional, por violação dos artigos 2.º e 32.º n.ºs 1, 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa. Caso assim não se entenda, sempre deve ter-se como verificada a irregularidade decorrente da falta de notificação da acusação particular ao arguido, que deve ser reparada, nos termos do artigo 123.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, pois que dela depende a validade dos atos subsequentes.
Compulsados os autos, constata-se que em 12 de fevereiro de 2024 a assistente BB deduziu acusação, nos termos do disposto no artigo 284.º do Código de Processo Penal, acompanhando a acusação pública (por um crime de violência doméstica, de natureza pública) e apresentando, imediatamente a seguir, pedido de indemnização civil.
Embora o arguido não tenha sido notificado no final do inquérito da acusação da assistente que acompanhava a acusação pública, remetidos os autos ao tribunal de julgamento, em 06.06.2024 foi proferido despacho de saneamento do processo e admissão do pedido de indemnização civil deduzido pela assistente BB, bem como da prova que o acompanha, na sequência do que, na mesma data, o arguido/recorrente e seu mandatário foram notificados de tal despacho, da decisão de pronúncia, bem como da própria acusação deduzida pela assistente e do pedido de indemnização civil (cf. referências ...44 e ...46 de 06.06.2024).
Neste contexto, a omissão da notificação ao arguido, no final do inquérito, da acusação da assistente (que acompanhava a acusação pública por crime de violência doméstica), bem como a falta de referência expressa à mesma no despacho a que alude o artigo 311.º do Código de Processo Penal, mesmo a considerarem-se desconformidades com as regras processuais penais, o que é inclusive duvidoso[2], nunca seriam suscetíveis de constituir nulidades.
É que o nosso sistema processual penal consagra o princípio da legalidade das nulidades, plasmado no n.º 1 do artigo 118.º, do Código de Processo Penal, segundo o qual, a violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei. Sendo o ato irregular nos casos em que a lei não determinar expressamente a nulidade (n.º 2 do mesmo artigo).
Ora, não há norma que determine que a omissão, na fase de inquérito, da notificação ao arguido da acusação deduzida pela assistente acompanhando a acusação pública constitui nulidade.
Como também não há norma que determine que constitui nulidade a falta de menção expressa a essa acusação da assistente no despacho a que alude o artigo 311.º do Código de Processo Penal.
Repare-se que, em casos como o dos autos, em que o procedimento é por crime de natureza pública (violência doméstica), a instrução só é admissível por factos pelos quais o Ministério Público deduziu acusação e não também pelos factos constantes da acusação do assistente que acompanha a acusação pública e dela depende, como decorre diretamente do artigo 287.º, n.º 1 al. a) do Código de Processo Penal. A abertura da instrução por factos constantes da acusação do assistente só é admissível em caso de procedimento dependente de acusação particular.
Pelo que a omissão, no final do inquérito, da notificação ao arguido da acusação da assistente que acompanhava a acusação do Ministério Público por um crime de violência doméstica, não lhe coartou o direito de requerer a abertura da fase de instrução, neste caso só admissível relativamente à acusação pública e que, aliás, foi requerida pelo arguido e realizada.
Ocorreu assim nos autos, quando muito, uma mera irregularidade, mas sem consequências suscetíveis de afetar a validade dos atos subsequentes.
Tendo o arguido recorrente acabado por vir a ser notificado da acusação da assistente em momento ainda anterior ao da audiência de julgamento, onde dela se poderá defender, encontra-se assim sanada qualquer irregularidade nesse âmbito.
Neste contexto, é inconcebível a integração da situação no circunstancialismo previsto como nulidade insanável na al. c) do artigo 119.º do Código de Processo Penal, como pretende o recorrente, pois que a falta detetada não foi suscetível de integrar a ausência do arguido ou defensor – seja física seja processual – em qualquer caso em que a lei exige a sua presença.
Não havendo violação dos princípios do Estado de direito democrático nem das garantas do processo criminal, consagrados nos artigos 2.º e 32.º n.ºs 1, 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
Nenhuma censura merecendo a decisão recorrida, que se limitou a admitir um aditamento ao rol de testemunhas indicadas pela assistente BB na acusação por si deduzida em acompanhamento acusação pública.
***
B. Recurso interlocutório de três despachos proferidos oralmente na sessão da audiência de 26.09.2024 (despacho determinando o afastamento do arguido da sala durante a prestação de declarações pela assistente BB; despacho indeferindo o requerimento do arguido de leitura do auto de notícia e das declarações nele constantes; e despacho indeferindo a inquirição do agente autuante.).
Começando pelo despacho que determinou o afastamento temporário do arguido da sala de audiências, o mesmo encontra fundamento legal no artigo 352.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal, que prevê «o afastamento do arguido da sala de audiência durante a prestação de depoimento», devendo o tribunal ordená-lo se «houver razões para crer que a presença do arguido inibiria o declarante de dizer a verdade».
Como salienta Oliveira Mendes[3], esta norma visa «assegurar que as declarações a prestar por certas pessoas se processem sem inibição, sem intimidação ou qualquer outra perturbação, bem como salvaguardar a integridade física e psíquica de quem depõe»
No caso em apreço, foi a própria assistente que requereu o afastamento temporário do arguido da sala de audiências, alegando que a sua presença a perturbava e por isso as suas declarações podiam não ser tão “profícuas à produção de prova.
Receio que encontra um suporte objetivo nos factos que constam do despacho de pronúncia, integradores do crime de violência doméstica, bem como na medida de coação aplicada ao arguido, de proibição de contactar e de se aproximar a menos de 250 metros da assistente.
Neste contexto, mostra-se preenchido o factualismo que permite o afastamento do arguido da sala durante a prestação de declarações da assistente, previsto na al. a) do nº 1 do artigo 352.º do Código de Processo Penal.
Note-se que o direito de presença do arguido na audiência não é um direito absoluto, admitindo esta restrição, posto que se mantém salvaguardado o princípio do contraditório, com a presença do defensor na sala e com comunicação posterior ao próprio arguido, pelo tribunal, do que se passou na sua ausência (cf. nº 2 do mesmo artigo 352.º)[4].
Nenhuma censura merecendo o despacho recorrido, que é legal, se encontra devidamente fundamentado e não afronta princípios/garantias constitucionalmente asseguradas.
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Passamos agora para a discordância do despacho que indeferiu o requerimento do arguido para que fosse lida em audiência a denúncia apresentada pela assistente.
Fundamentou o arguido esse requerimento em alegada discrepância entre as afirmações da assistente quando apresentou queixa pente o órgão de polícia criminal e as declarações que prestou em audiência, invocando o disposto no artigo 356.º, nº 2, al. b) do Código de Processo Penal.
A tal se opuseram o Ministério Público e a assistente.
Sobre a reprodução ou leitura permitida de autos e declarações, rege o artigo 356.º do Código de Processo Penal.
Salienta com pertinência o despacho recorrido, que o Auto de Notícia não contem declarações da assistente, devendo ser «interpretado como uma súmula do que foi percecionado pelo OPC que elaborou esse auto de notícia e, nessa medida, percebe-se a epígrafe que precede esse relato de onde se fez constar "factos observados pelo OPC".»
No mesmo sentido, que também subscrevemos, conclui o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18.04.2023, proferido no processo n.º 130/21.5PAABT.E1, Relator Fernando Pina[5], em cujo sumário se pode ler:
«I. A participação/denúncia dos factos que deram origem aos autos, não deverá ser lida na audiência de julgamento, conforme resulta do disposto no artigo 356.º, § 2.º CPP, mesmo que comprovada em declarações posteriores por testemunha devidamente constituída. Neste caso estas declarações testemunhais é que serão meio de prova de determinados factos, nomeadamente se prestadas por quem apresentou queixa ou fez a denúncia.
II. Com efeito o auto de denúncia constitui prova documental e, nessa medida, o denunciante que é testemunha pode na audiência de julgamento ser diretamente confrontada com o teor de tal documento e solicitada a comentar ou esclarecer o que turvo se apresente (356.º, § 3.º CPP).
III. Mas não deverá ser confrontada com o que naquele documento declarou, como se tratasse de auto de inquirição de testemunha (declarações anteriormente prestadas nessa qualidade), por o não serem. Nessas circunstâncias tal requerimento deverá ser indeferido (artigo 340.º, § 3.º CPP), por ser legalmente inadmissível.»
Nenhuma censura merecendo por isso o despacho recorrido, que indeferiu a leitura do Auto de Notícia.
Aliás, mesmo a considerar-se, como o recorrente, que o auto de denúncia contém declarações da assistente prestadas perante OPC, o que só por mera hipótese de raciocínio se concede, também não se verificaria o circunstancialismo legal que permitiria a sua leitura, constante do artigo 356.º, nº 2, al. b) do Código de Processo Penal, invocado pelo recorrente, pois que o Ministério Público e a assistente manifestaram oposição à sua leitura.
Naufragando mais esse ponto do recurso.
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Alega também o recorrente, que no decurso da audiência requereu a inquirição do agente autuante CC, cujo depoimento era importante para o apuramento da verdade material, o que foi indeferido pelo Tribunal, que dessa forma «violou o princípio da investigação ou da verdade material plasmado no art. 340º, nº1 do Cód. Proc. Penal e que impõe ao julgador penal que apure a verdade material, quer atendendo aos meios de prova relevantes que os sujeitos processuais lhe proponham, quer, igualmente, procedendo oficiosamente à produção de prova cujo conhecimento se lhe afigure essencial ou necessário à descoberta da verdade
 Vejamos.
A alegação do recorrente reporta-se à omissão pelo tribunal de julgamento, de uma diligência probatória que no seu entender devia ter sido ordenada, por se reputar essencial para a descoberta da verdade.
Não entrando sequer na questão da essencialidade da audição da testemunha indicada pelo mandatário do arguido, na sessão de 26.09.2024, o certo é que o indeferimento da sua inquirição configuraria sempre, e apenas, a nulidade processual relativa (sanável) prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal («…omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade…»), a arguir «antes que o ato esteja terminado» (artigo 120º, n.º 3, al. a)), que servirá de eventual fundamento de recurso (cf. artigo 410.º, n.º3 do Código de Processo Penal)[6].
Porém, compulsados os autos, designadamente as atas das sessões da audiência de julgamento, constata-se que embora o próprio arguido e o seu mandatário estivessem presentes na sessão em que foi proferido o despacho de indeferimento da inquirição da testemunha em causa (cf. ata da sessão de 26.09.2024), não arguiram a respetiva nulidade no decurso dessa sessão, nem até ao encerramento da audiência, pelo que a mesma, a existir, considera-se sanada, nos termos do disposto nos artigos 120.º, n.º 2 al. d) 2ª parte e n.º 3 al. a) e 123.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal.
Assim e sem necessidade de mais considerações, é manifesta a improcedência deste ponto do recurso.
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C. Recurso interlocutório de dois despachos proferidos oralmente na sessão da audiência de 11.10.2024 (despacho indeferindo a pretensão do arguido de que fossem lidas em audiência as declarações prestadas em sede de inquérito pela testemunha BB; e despacho indeferindo o requerimento do arguido de que o depoimento das testemunhas não versasse sobre os factos contidos na acusação da assistente.).

O recorrente insurge-se com o despacho que indeferiu a leitura das declarações prestadas em sede de inquérito e perante OPC, pela testemunha BB (mãe da assistente), argumentando existirem divergências entre estas e a prestação de testemunho no julgamento, sendo que tal requerimento mereceu a não oposição pelo Ministério Público, mas tão só e isso sim, a oposição solitária da assistente.
O despacho recorrido tem o seguinte teor:
«Uma vez que, estando em causa, em ambas as situações, depoimentos prestados em sede de inquérito em diligência presidida por OPC, a pretendida leitura só seria possível com o acordo de Ministério Público e da assistente, o que não se verifica relativamente a este último sujeito processual.
Consequentemente, ao abrigo do disposto no artigo 356.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal, indefere-se o requerido, por não preenchimento dos pressupostos legais exigidos para a leitura.
Notifique.»
Sustenta o recorrente que esta norma, assim interpretada, é inconstitucional, por violar os artigos 219.º, n.º 1 e 203.º da Constituição da República Portuguesa.
Mas desde já se adianta que sem razão.
Como se considerou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1052/96, de 10.10.1996, Relator Conselheiro Monteiro Diniz[7], «… a norma posta em crise só consente a leitura do depoimento da testemunha - presente na audiência de julgamento - prestado no inquérito perante um órgão de polícia criminal, desde que se verifique acordo por parte do Ministério Público, do arguido e do assistente.
Este condicionamento acha-se fundado, desde logo, na circunstância de as declarações cuja leitura se pretende não terem sido prestadas com observância das formalidades estabelecidas para a audiência ou perante juiz, não existindo quanto a elas as garantias dialéticas de contraditoriedade constitucionalmente asseguradas. Por outro lado, achando-se presente na audiência a testemunha em causa, há-de dizer-se que quanto ao seu depoimento e à sua razão de ciência o arguido tem a possibilidade legal de exercer um pleno direito de defesa (the accused has the right [...] to meet witnesses face to face, como se escreve no artigo 1º, secção 9, da Constituição dos Estados Unidos da América).
A exigência de um consentimento alargado ao Ministério Público, ao arguido e à defesa, para que a leitura das declarações seja possível não se apresenta como encurtamento ou restrição inadequada ou inadmissível das garantias de defesa, traduzindo-se, ao contrário, numa linha de concretização do princípio geral sobre a produção de prova em audiência constante do artigo 355.º, nº 1, o qual visa essencialmente a garantia da posição processual do arguido.»
Com base nesta argumentação, que subscrevemos, não se vislumbra qualquer violação de normas constitucionais, designadamente dos artigos 219.º, n.º 1 (Funções e estatuto do Ministério Público) e 203.º (Independência dos tribunais), da Constituição da República Portuguesa.»
Improcedendo este ponto do recurso.
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Insurge-se ainda o recorrente com o despacho proferido na mesma sessão da audiência de 11.10.2024, a determinar que o julgamento prosseguisse os seus normais termos, com a inquirição das testemunhas indicadas pela demandante/assistente, de acordo com a ordem de trabalhos prevista. 
Argumentando que o despacho recorrido, mais uma vez, erra não no que decide directamente – a inquirição das testemunhas da acusação da assistente –  mas no que deixa pressuposto, ou seja, a admissão da acusação pela assistente…deixando pressupor que o Tribunal iria julgar a acusação pelo assistente, sem que esta tivesse sido notificada ao arguido em sede de inquérito e sem que o Tribunal se pronunciasse no momento saneador do processo sobre a mesma admitindo-a ou rejeitando-a ou aquilatando da sua legalidade, o que, em seu entender, integra a nulidade insanável prevista no artigo 119.º, al. c) do Código de Processo Penal.
A questão suscitada é precisamente a mesma que subjaz ao recurso interlocutório do despacho de 13.09.2024, com a referência ...40, já supra decidida no ponto A.
Pelo que aqui se reitera toda a argumentação a esse propósito já expendida, ou seja, que embora o arguido não tenha sido notificado da acusação da assistente no final do inquérito, remetidos os autos ao tribunal de julgamento, foi em 06.06.2024 proferido despacho de saneamento do processo e admissão do pedido de indemnização civil deduzido pela assistente BB, bem como da prova que o acompanha, na sequência do que, na mesma data, o recorrente e seu mandatário foram notificados de tal despacho, da decisão de pronúncia, bem como da acusação deduzida pela assistente e do pedido de indemnização civil (cf. referências ...44 e ...46 de 06.06.2024).
A omissão da notificação ao arguido da acusação da assistente no final do inquérito, bem como a falta de referência expressa à mesma no despacho a que alude o artigo 311.º do Código de Processo Penal, mesmo a considerarem-se desconformidades com as regras processuais penais, o que é inclusive duvidoso[8], nunca seriam suscetíveis de constituir nulidades.
É que o nosso sistema processual penal consagra o princípio da legalidade das nulidades, plasmado no nº 1 do artigo 118º, do Código de Processo Penal, segundo o qual, a violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei. Sendo o ato irregular nos casos em que a lei não determinar expressamente a nulidade (n.º 2 do mesmo artigo).
Ora, não há norma que determine que a omissão, na fase de inquérito, da notificação ao arguido da acusação deduzida pela assistente acompanhando a acusação pública constitui nulidade.
Como também não há norma que determine que constitui nulidade a falta de menção expressa a essa acusação da assistente no despacho a que alude o artigo 311.º do Código de Processo Penal.
Repare-se que, em casos como o dos autos, em que o procedimento é por crime de natureza pública (violência doméstica), a instrução só é admissível por factos pelos quais o Ministério Público deduziu acusação e não também pelos factos constantes da acusação do assistente que acompanha a acusação pública e dela depende, como decorre diretamente do artigo 287.º, n.º 1 al. a) do Código de Processo Penal. A abertura da instrução por factos constantes da acusação do assistente só é admissível em caso de procedimento dependente de acusação particular.
Pelo que a omissão, no final do inquérito, da notificação ao arguido da acusação da assistente que acompanhava a acusação do Ministério Público por um crime de violência doméstica, não lhe coartou o direito de requerer a abertura da fase de instrução, neste caso só admissível relativamente à acusação pública e que, aliás, foi requerida pelo arguido e realizada.
Ocorreu assim nos autos, quando muito, uma mera irregularidade, mas sem consequências suscetíveis de afetar a validade dos atos subsequentes.
Tendo o arguido recorrente acabado por vir a ser notificado da acusação da assistente em momento ainda anterior ao da audiência de julgamento, onde dela se poderá defender, encontra-se assim sanada qualquer irregularidade nesse âmbito.
Neste contexto, é inconcebível a integração da situação no circunstancialismo previsto como nulidade insanável na al. c) do artigo 119.º do Código de Processo Penal, como pretende o recorrente, pois que a falta detetada não foi suscetível de integrar a ausência do arguido ou defensor – seja física seja processual – em qualquer caso em que a lei exige a sua presença.
Não havendo violação dos princípios do Estado de direito democrático nem das garantas do processo criminal, consagrados nos artigos 2.º e 32.º n.ºs 1, 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
Nenhuma censura merecendo a decisão recorrida, que se limitou a determinar que o julgamento prosseguisse os seus normais termos, com a inquirição das testemunhas indicadas pela demandante/assistente, de acordo com a ordem de trabalhos prevista.
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D. RECURSO DA SENTENÇA.

D.1 O recorrente começa por arguir a inconstitucionalidade do artigo 152.º, n.º 2, al. b) do Código Penal, argumentando com a inexistência de definição do conceito de namoro, que redunda na indefinição do objeto da punição, torna o julgador no legislador, criando e recriando “definições e regimes legais” quanto a esta matéria, protegida por reserva de lei; para além de conferir injustificadamente um tratamento idêntico ao “namoro” e ao casamento ou à união de facto com coabitação ou sem coabitação; em violação dos princípios da legalidade, da tipicidade, da separação dos poderes e da proporcionalidade, constitucionalmente consagrados.
Todas as questões suscitadas neste âmbito pelo recorrente foram já apreciadas pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 325/2023, de 30.05.2023, proferido no Processo n.º 326/22, da 2.ª Secção, Relatora Conselheira Assunção Raimundo[9], que concluiu pela constitucionalidade da norma do artigo 152.º, nº 1, alínea b), do Código Penal, na parte em que faz depender a incriminação por violência doméstica da existência de uma relação de namoro.
Pode ler-se nesse Acórdão:
«Transportando para o caso sub judice as apreciações supratranscritas, concluímos, acompanhando o Ministério Publico nas suas contralegações, que a relação de namoro, constituindo embora um conceito indeterminado, ele é compatível com o princípio da legalidade criminal. A relação de namoro tem, para qualquer destinatário de normal discernimento, uma evidente tradução factual de fácil apreensão. Ou seja, a noção de “relação de namoro”, em geral, não é aberta ao ponto de qualquer destinatário de normal entendimento deixar de compreender o que nela pode estar factualmente implicado. Vale isto por dizer que se trata, para os efeitos ora relevantes, de lei certa, não ocorrendo, então, violação do princípio contido no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição.
Não cabendo ao Tribunal Constitucional (re)apreciar se os factos que preencheram a norma foram estes ou outros, mas apenas – como se referiu – aferir se a letra da norma comporta o sentido da aplicação normativa e se este sentido se apresenta suficientemente definido na previsão normativa, é forçoso concluir que previsão “relação de namoro” é suficientemente clara, discernível, objetiva, definida e certa para os seus destinatários compreenderem o conjunto de condutas proibidas e, em particular, para incluir, sem equívocos, a interpretação segundo a qual pratica o crime correspondente quem age conforme agiu o ora recorrente.
11. Quanto à violação do princípio da separação de poderes, resulta do atrás referido, que a interpretação e concreta aplicação da norma do artigo 152.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, no segmento relativo a “relação de namoro”, se inscreve na normal tarefa hermenêutica dos tribunais penais compatível com o artigo 29.º, n.º 1, da CRP. Com efeito, ao julgador não são atribuídos poderes legislativos e o legislador realizou integralmente a sua função legislativa ao estabelecer o preceito nos termos assinalados, deixando ao julgador a função de julgar.
Não ocorre qualquer violação dos artigos 2.º, 111.º, n.º 1, e 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP.
12. Quanto à alegada violação do princípio da proporcionalidade, da proibição do excesso e da culpa, em virtude de a lei conferir um tratamento idêntico ao namoro e ao casamento ou a união de facto com coabitação, punindo o crime de violência doméstica com a mesma pena num e noutro caso, deveremos ter em conta que o crime de violência doméstica se encontra integrado nos chamados “crimes de relação”, no âmbito dos quais uma relação de namoro, um casamento, ou uma união de facto com coabitação têm uma natureza idêntica para efeitos de tratamento criminal. O que releva é a especial relação de proximidade entre agente e ofendido, se não física, ao menos existencial, ou seja, de partilha (atual ou anterior) de afetos e de confiança – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de novembro de 2018, Proc. n.º 574/16.4PBAGH.S1.
Nesta conformidade, não resulta claro que factos integradores do crime de violência doméstica mereçam menor censura por serem praticados numa relação de namoro, por comparação, por exemplo, com factos praticados no âmbito do casamento. Tudo depende, naturalmente, dos factos concretos e, nomeadamente, da sua gravidade. E sendo a moldura penal do crime de violência doméstica suficientemente ampla (de um a cinco anos de prisão), a adequação da pena às circunstâncias concretas do caso, terá necessariamente em atenção o grau de culpa e ilicitude manifestados pelo agente (art. 71.º do Código Penal). Razão por que não se vislumbra qualquer violação do princípio da proporcionalidade, nomeadamente na sua vertente de proibição do excesso.»

Subscrevemos inteiramente todas as considerações constantes do transcrito excerto, pelo que em sintonia com o Tribunal Constitucional, que é a instituição mais vocacionada para a fiscalização da constitucionalidade, também nós entendemos que a norma do artigo 152.º, n. º 1, alínea b), do Código Penal, não enferma da inconstitucionalidade que lhe é assacada pelo recorrente.
Naufragando este ponto do recurso.
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D.2 Sustenta também o recorrente que não constavam da acusação e da pronúncia, nem foram dados como provados, factos concretos que permitam concluir pela existência de uma relação de namoro.
Analisado o texto da sentença recorrida, logo se constata que resultou provado que o arguido e a assistente mantiveram uma relação de namoro no período compreendido entre meados do mês de setembro e o dia 19 de novembro do ano de 2022, não tendo o arguido aceitado o término do relacionamento que mantiveram (pontos 1 e 2 dos Factos Provados).
Por outro lado, na motivação da matéria de facto provada e não provada o tribunal a quo explicou exaustivamente as razões pelas quais concluiu que a relação entre o arguido e a assistente foi de namoro, como ilustram os seguintes excertos dela retirados:
«A assistente BB confirmou que (…) em dia que não soube especificar, mas que terá sido em meados de setembro de 2022, no âmbito de uma discussão sobre a água do poço o arguido tomou a sua posição e a defendeu, sentiu-se protegida e aproximou-se do arguido.
Então, nesse mesmo dia, o arguido levou-a a fazer compras, e quando regressaram, foi a casa dele onde tiveram relações sexuais. Desde essa data segundo as suas palavras mantiveram um “namoro”, saíam quase todos os dias, iam passear, almoçavam juntos e frequentavam a casa um do outro, mas não pernoitavam, porque apesar da vontade do arguido para que tal acontecesse a assistente não queria “juntar-se ou casar-se” e regressavam às respetivas casas.
Referiu como uma data especialmente importante para si, o dia 19 de setembro, posterior ao início do relacionamento com o arguido, porque decidiu nesse dia deixar a medicação (Zolpidem) e reestabelecer-se, tendo regressado ao seu trabalho na repartição de Finanças ... no dia 1 de outubro de 2022.
O arguido, desde o referido dia 1 de outubro, disponibilizou-se para lhe dar boleia para o trabalho, o que aceitou e veio a suceder.
(…) O que sucedia todos os dias úteis, ao passo que ao fim de semana também estavam juntos.
(…)  o arguido … explicou que após a primeira relação sexual com a assistente só não teve mais, porque “não quis magoá-la” dizendo que “ela passava o tempo em casa a ver televisão” e que tentou aumentar-lhe a autoestima, conseguindo convencê-la a ir a uma consulta de ginecologia no dia 10 de outubro de 2022, porque ela estava com um problema da assistente de índole sexual, frisando que pagou essa consulta e a medicação, e que retomaram relações sexuais logo que esse problema foi tratado.
Resulta cristalino, pelo que o próprio arguido disse ao tribunal, que nas últimas semanas de setembro continuou a encontrar-se com a assistente e a fazê-lo em ambiente íntimo, discutindo com ela questões privadas.
Conjugados todos os elementos apurados, que convergem das declarações do arguido e da assistente, o tribunal não teve dúvidas de que, pelo menos, desde meados de setembro de 2022 e até 19 de novembro de 2022, o arguido e a ofendida se encontraram regularmente, se relacionaram de forma íntima, frequentaram a casa um do outro, e saíram juntos publicamente para compras e consultas médicas.
A reforçar tal factualidade, BB, mãe da assistente, com um discurso isento e objetivo, disse que nada tinha contra o arguido e que desconhecia como ele e a filha se envolveram. Percebeu que algo havia entre eles porque uma vez foi a casa da filha, encontrando-a ela a dormir e ao arguido ali sentado.
E ..., testemunha da defesa, tio e vizinho da assistente, disse que ouviu falar de um envolvimento entre a assistente e o arguido, que o viu andar pela casa da assistente, desconhecendo, contudo, pormenores.
Tendo em consideração que o arguido à data dos factos era casado com uma sobrinha destas duas testemunhas, compreende-se que as mesmas não quisessem afirmar que havia uma relação íntima ou amorosa entre arguido e a assistente, mas, ao explicarem aquilo que percecionaram direta e pessoalmente, evidenciaram que o relacionamento entre ambos era notória e estava à vista de quem os rodeava.
Bem assim, os colegas de trabalho de BB confirmaram essa mesma publicidade da relação do arguido com aquela, e que sabiam tratar-se de um namoro.
Com efeito, GG, HH, II e JJ, todos colegas de trabalho da assistente, afirmaram univocamente, que viram o arguido no café ao lado da repartição, “Café ...”, por diversas ocasiões, quer de manhã, quer hora de almoço. Sabiam quem ele era e que havia uma relação de namoro entre a assistente e o arguido.
A testemunha GG explicou que a assistente lhe mostrou uma mensagem escrita que recebeu do arguido, evidenciando ciúmes, a dizer “vais abandonar-me por esse colega”, isto após os ter visto a almoçar no “Café ...”, mensagem essa que JJ também afirmou ter lido, ao que acrescentou ter assistido a uma “cena de ciúmes” do arguido, quando uma vez no café ele se zangou porque a assistente se sentou numa mesa com os colegas de trabalho e não junto dele.
E a testemunha HH disse que quando via o arguido e a assistente juntos no café lhe parecia que eles tinham uma boa relação, até que mais tarde soube através de colegas de trabalho que teria havido uma discussão com violência entre eles e em agosto de 2023 recebeu uma queixa contra a assistente, por parte do arguido, que interpretou como sendo retaliação pelo final do relacionamento.
Para além da exteriorização e manifestação do relacionamento em causa de modo que foi percecionado publicamente como uma relação de namoro, veja-se a perspetiva que o próprio arguido teve dessa relação.
É que se em julgamento o arguido em sua defesa disse que nunca teve qualquer intenção de namoro com a assistente, não é isso que de forma cristalina se retira das várias mensagens escritas que enviou através do seu telemóvel com o número ...33, tal como admitido pelo próprio, mesmo após o dia 19.11.2022, data em que para assistente terminou o namoro.
A título ilustrativo, entre as várias mensagens que constam juntas a fls. 368 a 379 dos autos, destacam-se as seguintes:
- No dia 14.10.2022, às 21h33m, “És a menina mais amorosa que já conheci. Amo-te muito”;
- No dia 16.10.2022, às 21h35m, “Hoje eu não fui muito boa companhia para ti porque estava triste. Amanhã espero poder recompensar-te, Um grande beijo que te ama muito”;
- No dia 21.10.2022, às 20h08m, “Parece que eu só durei 1 mês. Tendo em conta que parecias gostar de mim, pensei que era para durar, ou para durar bastante mais tempo. Escolheste mal o dia para me deixares”;
- No dia 12.11.2022, às 00h16m, “Não consigo dormir, Deixaste-me mal. Este fim de semana necessito pensar o que vou fazer visto que tudo o que eu faço te chateia. Na segunda feira vou te levar às 8:30. Se não quiseres que o faça avisa-me para eu não ficar à espera”;
- No dia 14.11.2022, às 02h08m, “Levaba-te ao altar se tu quisesses, mas sobre esse assunto ainda estou magoado contigo e não mudei de ideias, pois tu também não quisestes fazer-me mudar. Acho que preciso e necessito de ti, ainda que tu digas que não precisas de ninguém. Claro que isso são palavras irrefletidas, mas ainda assim custa ouvir isso”;
- No dia 15.11.2022, às 22h20m, “Sim, Claro. Ainda somos namorados. Ou não?”;
- No dia 15.11.2022, às 22h23m, “Ainda que agora me digas o contrário sabes que vais ser minha mulher e não só amante”
- No dia 16.11.2022, às 05h45m, “Necessito muito de ti. Acho que és a pessoa certa por muitas razões. Já não fazemos amor há uma semana e estou a ficar com excesso de desejo que me está a perturbar o raciocínio. Põe-te bonita porque eu quero ver a mulher que amo”
- No dia 19.11.2022, às 21h41min, “Tentei de tudo para evitar acabar a relação, mas sem sucesso porque é isso que queres. Não me culpes”
- No dia 21.11.2022, às 23h50m, “Estás livre para fazeres o que quiseres. Não precisas voltar a telefonar mais para mim por amor. Podes anunciar o fim do namoro aos teus colegas e família. Eu já me consegui libertar da loucura do amor por ti. Pede desculpa por mim à tua mãe porque eu prometi-lhe que te ia ajudar, mas não consigo porque tu consideras-me inimigo. Espero que fiques bem e que te mantenhas longe do veneno dos medicamentos. Quanto ao meu futuro é uma incógnita. Sê feliz. Beijinhos”
- No dia 26.11.2022, às 20h09m, “BB, não quero passar de teu namorado a teu inimigo, e acho que tu também não queres isso. Acho que devíamos ser bons amigos, se não somos namorados. Se já não me amas não acho que valha a pena insistir, mas podes sair com o teu melhor amigo para ires onde quiseres. E já agora falar comigo, mesmo que aches que não precisas de mim, visto que eu vou tratar-te como apenas como amiga”
Como sobressai, a simples leitura do teor dessas mensagens é por demais elucidativa da autoproclamação pelo arguido da sua qualidade de namorado da assistente.
Em face de tudo quando se vem de expor, e para mais, o tribunal percecionou que existiram laços afetivos entre o arguido e a assistente, ainda que a relação que tiveram, fosse de curta duração. Tendo-se ainda por certo, não obstante o curto desfecho, que o arguido perspetivava que a relação fosse mais duradoura, tanto que referiu em mensagens que faria da assistente sua mulher e não só amante, e que casaria com ela.
E essa apreensão resultou da forma emotiva como ambos prestaram as suas declarações.
A ofendida, por um lado, autopenalizando-se por ter iniciado o relacionamento com o arguido, explicando que se tudo começou porque ele lhe deu sentimentos de segurança e proteção mas que rapidamente se sentiu sufocada por ele estar sempre a rodeá-la, e assustada, quando ele no dia 19.11.2022 desferiu pancadas na sua porta.
O arguido, por outro lado, manifestando sempre que quis ajudar a assistente, que a pedido da mãe dela prontamente tratou de alguns assuntos, a consternação que sentiu quando percebeu que a assistente em apenas um fim de semana tomou medicação que seria para durar um mês.
É evidente que a relação entre ambos quedou em insucesso o que justifica que a assistente referisse ao longo das suas declarações que desprezava o arguido e que não mais o queria ver. O que não significa que no início dessa relação não fossem outros os seus sentimentos o que, aliás, serve para explicar os atuais sentimentos de mágoa e rancor.»
Não há assim qualquer dúvida de que a relação que o arguido e a ofendida mantiveram durante cerca de dois meses foi uma relação de namoro e que ambos manifestaram reiteradamente vontade nesse sentido.
Nada obstando a que dos Factos Provados conste apenas a menção a relação de namoro, e não, também, às específicas circunstâncias fáticas decorrentes da prova produzida e consubstanciadoras desse relacionamento, que levaram o tribunal a convencer-se da existência dessa relação, cujo lugar próprio é na motivação factual.
A relação de namoro é, em si, uma realidade fática, pois que, como pertinentemente observa o próprio Tribunal Constitucional, no acórdão nº 325/2023 (já supracitado em D.1) «…tem, para qualquer destinatário de normal discernimento, uma evidente tradução factual de fácil apreensão. Ou seja, a noção de “relação de namoro”, em geral, não é aberta ao ponto de qualquer destinatário de normal entendimento deixar de compreender o que nela pode estar factualmente implicado.»
Por sua vez, fica prejudicada a questão também suscitada da inconstitucionalidade da «interpretação que se extraia do disposto no artigo 152º nº1 al. b) do Código Penal no sentido de que o tribunal pode dar como provada uma relação de namoro, sem que se prove qualquer manifestação de vontade nesse sentido por banda do agente», pois, contrariamente ao alegado, não há a mínima dúvida de que essa manifestação de vontade existiu e se provou. Não tendo a sentença recorrida feito a interpretação que se lhe imputa.
Improcedendo mais este ponto do recurso.
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D.3 Argumenta o recorrente que a factualidade apurada contém imputações genéricas, com indefinição temporal e circunstancial, que já não podiam sustentar uma acusação e, muito menos, uma condenação penal, impedindo o contraditório e violando o direito de defesa e o princípio do processo equitativo.
Concretizando serem vagas e imprecisas, devendo ter-se por não escritas, as expressões “relação de namoro”, “intimidade estável e continuidade distinta das relações fortuitas”; “deveres que impendem sobre o arguido”, “forçar o contacto com a ofendida” e “temendo”.
Analisando o texto da sentença recorrida, logo se depreende a manifesta improcedência deste ponto do recurso, já que o conjunto de factos considerados apurados e imputados ao arguido e já constantes da pronúncia, se encontram perfeitamente concretizados e com indicação das datas e locais onde ocorreram.
 No que respeita à menção da existência de uma “relação de namoro” entre o arguido e a ofendida, remetemos para o que a propósito já se disse no ponto anterior, em que se concluiu que uma “relação de namoro” constitui, em si, uma realidade fática, pois que tem, para qualquer destinatário de normal discernimento, uma evidente tradução factual de fácil apreensão e não aberta ao ponto de um destinatário de normal entendimento deixar de compreender o que nela pode estar factualmente implicado.
A expressão “intimidade estável e continuidade distinta das relações fortuitas”, contrariamente ao alegado, não se encontra sequer incluída nos factos provados.
Quanto à expressão “deveres que impendem sobre o arguido”, quer o recorrente referir-se ao ponto 11 dos Factos Provados, com a seguinte redação:
«11. Não obstante estar ciente de que tinha para com BB especiais deveres de cuidado, respeito e solidariedade, atenta a relação que entre ambos existiu, AA não se coibiu de agir como agiu, bem sabendo que lesava gravemente a vítima na sua saúde física e mental, na sua honra, consideração e dignidade pessoal, na sua tranquilidade e na sua liberdade pessoal, fazendo-a recear o seu comportamento, o que quis e conseguiu»
Com efeito, a realidade fática da existência de uma relação de namoro inclui sempre um grau de interação e intimidade, que podendo variar de intensidade, tem sempre de estar presente. O que justifica, aliás, a sua inclusão nos chamados “crimes de relação”, no âmbito dos quais uma relação de namoro, um casamento, ou uma união de facto têm uma natureza idêntica para efeitos de tratamento criminal.
Sendo que a essência dessa natureza reside nos laços criados pela interação e intimidade, a que, moderna e socialmente, correspondem deveres de cuidado, respeito e solidariedade, também entre os namorados. Deveres que são especiais relativamente aos que derivam de outro tipo de relações, como sejam, por exemplo, profissionais e até de amizade.
Nenhuma censura merecendo, assim, a redação do ponto 11 dos Factos Provados.
O mesmo acontecendo com as expressões “forçar o contacto com a ofendida”, e “temendo”, insertas nos pontos 3 e 5 dos Factos Provados, respetivamente, que não podem ser retiradas do contexto.
Se lermos integralmente a factualidades descrita no ponto 2, não há a mínima dúvida de que nela se encontra temporal e circunstancialmente concretizado que o «Após o referido dia 19 de novembro de 2022, e até, pelo menos, ao dia 14.02.2023, por não aceitar o término do relacionamento que mantiveram, AA procurou, por diversas vezes, forçar o contacto com a BB, continuou a frequentar o café junto ao local de trabalho da mesma, enviando-lhe ainda diversas mensagens escritas, procurando, por essa via, reatar o relacionamento.» Reproduzindo-se logo depois, nos pontos seguintes, o teor de duas mensagens de correio eletrónico, enviadas pelo arguido à ofendida no dia 14.02.2023, pelas 07h01m e pelas 19h08m; e narrando-se que, pelas 19h20m do mesmo dia, «o arguido deslocou-se à residência de BB, sita na Rua ..., em ..., ..., com o pretexto de recolher objetos que havia oferecido à mesma no decurso do relacionamento.»
Também a referência a “temendo”, no ponto 5, tem de ser integrada no contexto fático em que se encontra inserida, constante do mesmo ponto, onde se pode ler que no dia, hora e local mencionados, «o arguido desferiu diversos pontapés na porta de entrada da residência da vítima, o que fez com que a mesma, temendo o comportamento daquele, abrisse a referida porta».
De tudo decorrendo que o conjunto de factos apurados e imputados ao arguido se encontra devidamente concretizado quanto à descrição de cada uma das suas ações e consequências, com especificação do momento temporal e do local onde tiveram lugar, o que assegura objetivamente a possibilidade de o arguido se defender eficazmente.
Não havendo, por essa via, a mínima ofensa aos direitos de defesa do arguido, designadamente do contraditório e princípio do processo equitativo, constitucionalmente consagrados.
Improcedendo este ponto do recurso.
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D.4 Invoca o recorrente a nulidade da sentença, argumentando com a introdução nos pontos 1, 2 e 3 dos Factos Provados de matéria que não constava da acusação, sem cumprimento do disposto nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal.

Vejamos.
O Senhor Juiz de Instrução pronunciou o arguido pela de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea b), 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal, agravado nos termos do disposto no artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro (Regime Jurídico das Armas e Munições), sendo ainda aplicável a pena acessória de interdição de detenção, uso e porte de armas.

Na factualidade descrita na pronúncia, que também já constava da acusação pública (que define o objeto do processo e limita o objeto do julgamento) pode ler-se (para além do mais) que:

«1. AA e BB mantiveram uma relação de namoro no período compreendido entre meados do mês de setembro e o final do mês de outubro do ano de 2022.
2. Após o referido mês de outubro de 2022, e até, pelo menos, ao dia 29.07.2023, por não aceitar o término do relacionamento que mantiveram, AA procurou, por diversas vezes, forçar o contacto com a vítima, surpreendendo-a junto à residência e junto ao local de trabalho da mesma, enviando-lhe ainda diversas mensagens escritas e diversos e mails, procurando, por essa via, reatar o relacionamento.
3. No dia 14.02.2023, pelas 07h01m, fazendo uso do endereço de correio eletrónico ..........@....., o arguido enviou um e mail à vítima, para o endereço de correio eletrónico ..........@....., pela mesma utilizado, no qual a apelidou de “promíscua”, “mentirosa”, “narcisista”, “egoísta”, “sociopata”, “infantil”, “toxicodependente”, “irresponsável”, “canalha” e “egocêntrica”.»
Porém, na sentença recorrida foi dado como provado, nos pontos 1, 2 e 3, que:
«1- AA e BB mantiveram uma relação de namoro no período compreendido entre meados do mês de setembro e o dia 19 de novembro do ano de 2022.
2- Após o referido dia 19 de novembro de 2022, e até, pelo menos, ao dia 14.02.2023, por não aceitar o término do relacionamento que mantiveram, AA procurou, por diversas vezes, forçar o contacto com a BB, continuou a frequentar o café junto ao local de trabalho da mesma, enviando-lhe ainda diversas mensagens escritas, procurando, por essa via, reatar o relacionamento.
3- No dia 14.02.2023, pelas 07h01m e pelas 19h08m, fazendo uso do endereço de correio eletrónico ..........@....., AA enviou dois e-mails a BB, para o endereço de correio eletrónico ..........@....., pela mesma utilizado, com o seguinte teor:
às 07h01m:
“Olá BB,
Sabes que sempre te amei e tive paciência com a tua toxicodependência, quando me enganavas para ir ao Hospital ... para ir buscar receitas para o teu veneno, ou me pedias para ir a farmácias distantes para tentares sacar os teus venenos sem receita.
Sei das histórias dos taxistas teus dealers. Das    tuas consultas de toxicodependência. Das dívidas que tens por todo o lado. Das tuas sessões sexuais com o teu ex-marido. Do sexo violento que tinhas com ele na posição de gatas em que te puxava o cabelo e te insultava, mesmo quando já estavas divorciada dele. Fica sabendo que se era dinheiro que querias de mim, fizeste mal em me destratares porque apesar de não parecer tenho mesmo muito mais dinheiro do que tu pensas e vontade de o gastar para te agradar.
Estou farto de dizeres que te fiz algo de mal e andas a difamar-me entre as pessoas que conheces. Afinal que te fiz eu? Tu sabes bem que nada te fiz.
Será que é porque continuo a falar com a tua mãe? Achas que ela é tua propriedade?
Lembra te quando vês televisão, ouves música, te vestes, vês as horas, ou fazes pagamentos, quem te deu essas prendas. Foi esse o mal que te fiz? Acho que o mal deve ter sido não te ter comprado as prendas dda ... que tu querias. Afinal disseste-me que o DD te roubou a pulseira e a tua mãe teve que lhe pagar para ele se ir embora. Pelo que sei. ele não te roubou, mas sim tu que o roubaste a ele. Acho que ele gostaria de ser minha testemunha em tribunal sobre a difamação. Que prendas me deste tu a mim? Foi a mentira, o desprezo e a calúnia.
Não te comprei as coisas da ... porque te ía comprar uma oferta em ouro da ... para o teu aniversário. Tu não és nada esperta, pois nem percebeste que eu andava a ver que tipo de colar em ouro tu gostavas da .... Comprei mais de 10 mil euros em ouro à EE para lhe agradar, enquanto estava a adiar fazer isso contigo porque estava a sentir que me estavas a afastar de ti.
Será que foi porque procurei obter uma justificação para quando achaste que era hora de saltares para novo pasto mais verde? Sabes que só tive relações sexuais contigo durante cerca de 3 semanas, em que me dizias que era o homem perfeito. Depois disso passaste a deixar o telemóvel na sala em silencio. Sei, porque tu me disseste que estavas a receber mensagens de amor nessa data e falaste do tal outro AA.
Será que é porque sei que gostas de estar sempre a mudar de parceiro sexual? Também me dissestes que o DD de ... era má pessoa, mas sei agora que a má pessoa és tu. Usas as pessoas e descartas-as difamando-as de forma infantil e canalha para te fazeres de vítima.
Sei por ti própria que traíste o teu ex marido por diversas vezes com várias pessoas, e ele até ele conhece um tal de ..., não é? E o tal filho do homem da casa de praia que encontras-te nas Finanças ...? Também te fartaste dele ao fim de algumas semanas? Será que ele deixou de pagar? Será que o AA sabia que andavas com ele?
Ao fim de algum tempo achei que estavas a usar-me demasiado para ser teu motorista e porta moedas para o que querias. Comprei-te e dei-te tudo o que achei ser razoável, até quando já dizias que não precisavas de mim nem de ninguém. Sei que te aproveitaste do amor que tenho por ti.
Sei que és promíscua, mentirosa, nascisista, egoísta, sociopata, infantil, toxicodependente, irresponsável e muito mais, mas ainda assim acho que te disse que isso para mim não é problema porque te aceito como és porque te amo e sempre te amei.
Pensa bem no que andas a fazer. Eu sou pai de filhos e tenho reputação. Vê se paras de andar a dizer mentiras a respeito de mim. Está bem?
Se andas a falar com as filhas do FF para te aconselhares, não é de admirar que andas com a cabeça confusa.
A EE não me quer deixar e precisa de mim. Se achas que ela me despreza estás muito enganada. Ela sempre soube que eu te amava, mas ainda assim quiz casar comigo. Ela aceita o divórcio sem problemas porque sabe que eu sou uma pessoa responsável e não a vou deixar passar dificuldades.
Espero que te portes como uma pessoa adulta, assumas responsabilidades pelos teus actos, deixes de me difamar e me trates com o respeito que acho que mereço pelo que sempre fiz por ti.
Tenho estado limitado na minha movimentação para evitar cruzar-me contigo. Foste tão canalha que mesmo sabendo que não tinha Internet em casa e necessitava usar o café, mesmo nas duas ocasiões em que tive videoconferências e falei contigo, és tão egocêntrica que achaste que fui lá para te ver.
Eu moro a meio dúzia de metros de ti. Se eu quisesse te ver pessoalmente isso não era problema. Eu tenho feito o possível para não me cruzar contigo, não o contrário.
Não cries guerras porque isso não é bom para ti, nem para mim. Espero que sejas honesta comigo e me digas o que eu te fiz.
Espero que fales comigo para que eu possa seguir em frente com a minha vida.
AA”

- às 19h08m:
“BB,
Tal como disseste que o fazias espero que me devolvas os seguintes itens:
porta moedas da ...
Headphone da ...
 Relógio de pulso da ...
televisão de 32”
camisola de lã”»

Com efeito, é inequívoco que os factos descritos na pronúncia não coincidem exatamente com aqueles que viram a ser considerados apurados na sentença recorrida. Respeitando os factos novos:
- à data do termo da relação de namoro entre o arguido e a assistente, que na pronúncia se dizia ter decorrido «no período compreendido entre meados do mês de setembro e o final do mês de outubro do ano de 2022» e, na sentença, «no período compreendido entre meados do mês de setembro e o dia 19 de novembro do ano de 2022».
- ao período em que «por não aceitar o término do relacionamento que mantiveram, AA [arguido] procurou, por diversas vezes, forçar o contacto com a vítima, surpreendendo-a junto à residência e junto ao local de trabalho da mesma, enviando-lhe ainda diversas mensagens escritas e diversos e mails, procurando, por essa via, reatar o relacionamento.», período esse que na pronúncia é situado «Após o referido mês de outubro de 2022, e até, pelo menos, ao dia 29.07.2023» e, na sentença, «Após o referido dia 19 de novembro de 2022, e até, pelo menos, ao dia 14.02.2023»
- à concretização da conduta que o arguido teve para com a ofendida após o termo da relação: que na pronúncia inclui o envio de uma única mensagem para o correio eletrónico daquela, no dia 14.02.2023, às 07h01m, com a singela referência a que nela o arguido apelidou a ofendida de “promíscua”, “mentirosa”, “narcisista”, “egoísta”, “sociopata”, “infantil”, “toxicodependente”, “irresponsável”, “canalha” e “egocêntrica”.»; e, na sentença, consigna o envio não de uma, mas de duas mensagens para o correio eletrónico, ambas no dia 14.02.2023, a primeira às 07h01m e a segunda às 19h08m. Ao que acresce que a factualidade considerada apurada na sentença revela também o teor integral da primeira mensagem, que não se circunscreve a apelidar a ofendida de “promíscua”, “mentirosa”, “narcisista”, “egoísta”, “sociopata”, “infantil”, “toxicodependente”, “irresponsável”, “canalha” e “egocêntrica”.», como refere a pronúncia, já que, para além disso, nela o arguido também  confronta a assistente com alegadas realidades da vida íntima desta e convicções que sobre ela tem, que relatadas naquele contexto, são objetivamente suscetíveis de humilhar e perturbar qualquer mulher de mediana sensibilidade, como tudo indica que o é a ofendida, bem como de revelar uma já inquietante fixação do arguido na pessoa da ofendida.
Com efeito, dá-se como provado na sentença (sem que constasse da pronúncia) que, no aludido primeiro email, o arguido, para além de apelidar a ofendida com epítetos já mencionados, dirigindo-se igualmente a ela, escreveu ainda:
«(…) Sei das histórias dos taxistas teus dealers. Das tuas consultas de toxicodependência. Das dívidas que tens por todo o lado. Das tuas sessões sexuais com o teu ex-marido. Do sexo violento que tinhas com ele na posição de gatas em que te puxava o cabelo e te insultava, mesmo quando já estavas divorciada dele. Fica sabendo que se era dinheiro que querias de mim, fizeste mal em me destratares porque apesar de não parecer tenho mesmo muito mais dinheiro do que tu pensas e vontade de o gastar para te agradar.
Estou farto de dizeres que te fiz algo de mal e andas a difamar-me entre as pessoas que conheces. (…)
Lembra te quando vês televisão, ouves música, te vestes, vês as horas, ou fazes pagamentos, quem te deu essas prendas. Foi esse o mal que te fiz? Acho que o mal deve ter sido não te ter comprado as prendas dda ... que tu querias. Afinal disseste-me que o DD te roubou a pulseira e a tua mãe teve que lhe pagar para ele se ir embora. Pelo que sei. ele não te roubou, mas sim tu que o roubaste a ele. Acho que ele gostaria de ser minha testemunha em tribunal sobre a difamação. Que prendas me deste tu a mim? Foi a mentira, o desprezo e a calúnia
(…) Será que foi porque procurei obter uma justificação para quando achaste que era hora de saltares para novo pasto mais verde? Sabes que só tive relações sexuais contigo durante cerca de 3 semanas, em que me dizias que era o homem perfeito. Depois disso passaste a deixar o telemóvel na sala em silencio. Sei, porque tu me disseste que estavas a receber mensagens de amor nessa data e falaste do tal outro AA.
Será que é porque sei que gostas de estar sempre a mudar de parceiro sexual? (…) sei agora que a má pessoa és tu. Usas as pessoas e descartas-as difamando-as de forma infantil e canalha para te fazeres de vítima
(…) traíste o teu ex marido por diversas vezes com várias pessoas, e ele até ele conhece um tal de ..., não é? E o tal filho do homem da casa de praia que encontras-te nas Finanças ...? Também te fartaste dele ao fim de algumas semanas? Será que ele deixou de pagar? Será que o AA sabia que andavas com ele?
(…) estavas a usar-me demasiado para ser teu motorista e porta moedas para o que querias.
(…) Vê se paras de andar a dizer mentiras a respeito de mim. Está bem? (…)»

Quanto à segunda mensagem de correio eletrónico enviada pelo arguido para a ofendida, no mesmo dia 14.02.2023, pelas 19.01 h, que não constava da pronúncia, é objetivamente suscetível de intensificar a ideia de fixação do arguido na pessoa da ofendida, num momento em que a relação que mantiveram já tinha terminado.
Estes factos novos introduzidos na sentença são objetivamente relevantes para a concretização das condutas do arguido integradoras do crime de violência doméstica e também do período de tempo e que se desenvolveram.
Não obstante, em momento algum foi dado conhecimento ao arguido e seu defensor daqueles novos factos, que não derivaram de factos alegados pela defesa.
Embora estas alterações fácticas não tenham por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, não integrado por isso uma alteração substancial dos factos (cf. artigo 1.º, al. f) do Código de Processo Penal), o certo é não são alterações inócuas, pois interferem com os contornos que assumiu a própria conduta típica integradora do crime de violência doméstica. Sendo suscetíveis, pelo menos, de assumir relevância ao nível da intensidade da culpa do agente e grau de ilicitude, com as respetivas consequências jurídico-penais.
É, pois, evidente que ocorreu uma alteração dos factos constantes da pronúncia e que essa alteração, ainda que não substancial, tem repercussões relevantes no processo.
Não podendo o arguido ser surpreendido com esses novos factos apenas aquando da leitura da sentença, momento em que deles já não se pode defender.
Impunha-se nesse ponto o exercício do contraditório, a fim de assegurar uma eficaz e integral defesa, que foi vedada ao arguido, pois estava dependente do prévio cumprimento do artigo 358º, nº 1 do Código de Processo Penal, que o Tribunal a quo omitiu.
Esta omissão determina a nulidade da sentença, tornando-a inválida, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal.
Perante o que se impõe a reabertura da audiência, para suprimento do vício apontado e posterior elaboração de nova sentença.
**
Face à declaração de nulidade da sentença, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso, que pressupõem a existência de uma sentença válida e factualmente estabilizada.
***
III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães, em:

A. Julgar improcedente o recurso interlocutório interposto pelo arguido AA, do despacho de 13.09.2024, com a referência ...40.
 Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 (três) Ucs (artigos 513º, nº 1 e 514º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa a este último diploma legal).
*
B. Julgar improcedente o recurso interlocutório interposto pelo arguido AA de três despachos proferidos oralmente na sessão da audiência de 26.09.2024; (o despacho que determina o afastamento do arguido da sala durante a prestação de declarações pela assistente BB; o despacho que indefere o requerimento do arguido de leitura do auto de notícia e das declarações nele constantes; e o despacho que indefere o pedido de inquirição do agente autuante.).
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 (três) Ucs (artigos 513º, nº 1 e 514º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa a este último diploma legal).
*
C. Julgar improcedente o recurso interlocutório interposto pelo arguido AA de dois despachos proferidos oralmente na sessão da audiência de 11.10.2024 (o despacho que indefere a pretensão do arguido de que fossem lidas em audiência as declarações prestadas em sede de inquérito pela testemunha BB; e o despacho que indefere o requerimento do arguido de que o depoimento das testemunhas não versasse sobre os factos contidos na acusação da assistente.)
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 (três) Ucs (artigos 513º, nº 1 e 514º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa a este último diploma legal).
*
D. Julgar parcialmente procedente o recurso da sentença interposto pelo arguido AA (na parte em que foi conhecido), declarando-se a nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal, a qual deve ser reformulada pelo mesmo tribunal, após realização de todas as diligências que se reputem de necessárias e essenciais para a supressão do vício detetado, proferindo-se nova decisão.
O recurso da sentença não tem tributação (cf. artigo 513.º, nº 1, última arte, a contrario).
*
Guimarães, 27 de maio de 2025
(Texto integralmente elaborado pela relatora e revisto pelas suas signatárias – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal –, encontrando-se assinado na primeira página, nos termos do artigo 19.º da Portaria nº 280/2013, de 26.08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20.09.)

Fátima Furtado (Relatora)
Paula Albuquerque (1ª Adjunta)
Anabela Rocha (2ª Adjunta)
Ana Teixeira (Presidente da secção)


[1] Cf. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[2] Como sustenta a Exma. Senhora Procuradora-Geral adjunta, no seu parecer, «a acusação deduzida pelo assistente, nos termos do artigo 284.º do Código de Processo Penal, isto é, quando acompanha a acusação pública nos casos de crimes públicos e semipúblicos, não tem que ser notificada ao arguido durante a fase de inquérito. É o que resulta da conjugação do disposto nos artigos 283.º a 285.º do Código de Processo Penal, uma vez que o artigo 283.º, n.º 5 prevê a notificação da acusação deduzida pelo Ministério Público, o artigo 285.º, n.º 3 prevê a notificação da acusação deduzida pelo assistente, para os casos de crimes particulares, mas o artigo 284.º não prevê qualquer notificação, durante o inquérito, da acusação deduzida pelo assistente que acompanha a do Ministério Público nos casos de crimes públicos e semipúblicos. Como a esse respeito se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-05-2014, proferido no processo n.º 85/10.1GDTVD.L1-9 (Relator: João Abrunhosa, disponível em www.dgsi.pt), “não se trata de um lapso ou de uma omissão do legislador, mas de uma opção assumida, uma vez que seria uma notificação inútil, com meros efeitos de dilação processual, porque neste caso não pode o arguido ter qualquer reação à acusação do assistente e, por outro lado, sempre esta acusação lhe será notificada, aquando da notificação do despacho que designa data para a audiência, nos termos do artigo 313.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, no caso de ser aceite pelo juiz (artigo 311.º/2-b) do Código de Processo Penal)”
[3] Código de Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar e outros, 1ª. ed., p.1112.
[4] Cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotado, 17ª ed. p. 801.
[5] Disponível em www.dgsi.pt.
[6] Neste sentido, cf., entre outros, o acórdão do TRG de 27.04.2009, proferido no Proc. nº 12/03.2TAFAF.G1, relator Cruz Bucho, disponível em www.dgsi.pt.
[7] Citado no Parecer da Exma. Senhora Procuradora-Geral adjunta.
[8] Como sustenta a Exma. Senhora Procuradora-Geral adjunta, no seu parecer, «a acusação deduzida pelo assistente, nos termos do artigo 284.º do Código de Processo Penal, isto é, quando acompanha a acusação pública nos casos de crimes públicos e semipúblicos, não tem que ser notificada ao arguido durante a fase de inquérito. É o que resulta da conjugação do disposto nos artigos 283.º a 285.º do Código de Processo Penal, uma vez que o artigo 283.º, n.º 5 prevê a notificação da acusação deduzida pelo Ministério Público, o artigo 285.º, n.º 3 prevê a notificação da acusação deduzida pelo assistente, para os casos de crimes particulares, mas o artigo 284.º não prevê qualquer notificação, durante o inquérito, da acusação deduzida pelo assistente que acompanha a do Ministério Público nos casos de crimes públicos e semipúblicos. Como a esse respeito se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-05-2014, proferido no processo n.º 85/10.1GDTVD.L1-9 (Relator: João Abrunhosa, disponível em www.dgsi.pt), “não se trata de um lapso ou de uma omissão do legislador, mas de uma opção assumida, uma vez que seria uma notificação inútil, com meros efeitos de dilação processual, porque neste caso não pode o arguido ter qualquer reação à acusação do assistente e, por outro lado, sempre esta acusação lhe será notificada, aquando da notificação do despacho que designa data para a audiência, nos termos do artigo 313.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, no caso de ser aceite pelo juiz (artigo 311.º/2-b) do Código de Processo Penal)”
[9] Disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20230325.html