Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
EXECUÇÃO
EMBARGOS DE EXECUTADO
DECLARAÇÃO DE QUITAÇÃO
JUROS DE MORA
JUROS COMPULSÓRIOS
Sumário
I – O devedor ou o terceiro que realize a prestação em sua substituição (arts. 767º e 768º do CC) tem o direito a exigir ao credor ou àquele que receba a prestação (arts. 769º e 770º do CC) que lhe disponibilize um documento – designado quitação – que facilite a prova de que a prestação foi realizada; enquanto a quitação não for dada pelo credor pode o devedor licitamente recusar-se a cumprir (n.º 2 do art. 787º do CC). II – Não cabe no objecto da execução, nem dos respectivos embargos de executado, discutir e decidir se na acção declarativa estavam reunidos os requisitos para o devedor ser condenado a pagar juros de mora à taxa comercial. III – Considerando que o título dado à execução consubstancia uma sentença homologatória duma transação que estabelece e condena no pagamento em prestações de uma determinada quantia pecuniária, sendo omissa quanto à estipulação dos juros moratórios, deve ser interpretada como abrangendo o direito a juros de mora à taxa legal prevista para os juros civis.
Texto Integral
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. Relatório.
EMP01..., Lda ofereceu embargos à execução intentada por EMP02..., Lda., visando a respectiva extinção da execução.
Invocou o pagamento parcial, a prescrição dos juros, a falta de interpelação (com concomitante inexistência da perda de beneficio do prazo), a excepção de não cumprimento, a contabilização de juros a taxa superior à acordada e o direito à recusa da prestação por falta de quitação.
*
Recebidos liminarmente, a exequente/embargada apresentou contestação na qual concluiu pela improcedência dos embargos de executado, salvo quanto ao pagamento parcial, que reconheceu e que determinou já tivesse requerido a redução do valor exequendo (ref.ªs ...88 e ...15).
*
Realizada audiência prévia, frustrou-se a conciliação das partes.
*
Posteriormente, foi proferido despacho saneador, no qual se julgaram improcedentes as excepções de prescrição, da falta de interpelação para perda de benefício do prazo e da excepção de não cumprimento (ref.ª ...77).
No mais, foi declarada válida e regular a instância, tendo sido fixado o objecto do processo e enunciados os temas da prova, não tendo sido oferecida qualquer reclamação.
*
Procedeu-se à audiência de julgamento (ref.ªs ...90 e ...65).
*
Por sentença proferida a 17.02.2025 foi decidido julgar parcialmente procedentes os embargos, determinando-se a extinção da execução quanto ao valor de € 18.500,00 e juros respectivos e o prosseguimento da execução no demais (ref.ª ...81).
*
Inconformada com esta sentença, dela interpôs recurso a embargante/executada (ref.ª ...38), tendo rematado as suas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«I - Salvo o devido respeito por diferente entendimento, os factos não provados sob os números 1), 2), 3), 4) e 5) da douta sentença recorrida, deveriam e deverão ser, ao invés, dados como provados. Tal resulta dos documentos juntos aos autos pela própria exequente/embargada, que nos documentos de quitação não reconhece qualquer redução resultante da transação judicial celebrada e homologada por sentença. II – É forçoso concluir que aquando do pagamento no montante global de 18.500,00€, a “EMP03..., LDA.” se recusou a emitir o(s) recibo(s) de acordo com o transacionado, e a assumir e reconhecer a redução do pedido; Referindo no mesmo que o pagamento era por conta e a deduzir a uma das faturas iniciais, nomeadamente a n.º29, de 30/12/2010, vencida em 29/01/2010, no valor de 74.412,82€, do qual se dava quitação do valor 17.500,00€. III – Impugna-se o depoimento da testemunha AA no sentido de que os recibos foram emitidos de acordo com as regras contabilísticas aplicáveis à realidade jurídica existente. No sentido de que a transação não teria de ser lançada contabilisticamente, e de que redução da dívida global das faturas só teria de ser feita a final, se e caso o acordo fosse cumprido - Cf., Depoimento de 24/01/2025, com início às 14:16 e fim às 14:26, mormente dos 5m:00sgs aos 7m:37sgs IV – A transação não continha qualquer cláusula penal que o previsse ou permitisse, pelo que as declarações de quitação não foram emitidas nos termos exigíveis. E tanto assim é, que a carta de interpelação enviada pela exequente à embargante, não reflete a redução da dívida resultante da transação. Sendo que a prova definitiva de que tal é assim, é o facto de a embargada ter ajuizado a própria execução, reclamando a quantia integral inicial das faturas! V - Não se pode aceitar que a embargada se prevaleça da transação para o que lhe interessa, nomeadamente a exigibilidade da dívida; E simultaneamente não reconheça a transação - durante e para efeitos do seu cumprimento - para o que já não lhe interessa, nomeadamente para o que toca à definitiva redução da alegada dívida que reclamava. VI - Em da não emissão de declaração de quitação em conformidade, em violação do direito que assistia e assiste à embargante, cabia-lhe a faculdade de suspender e não efetuar outros pagamentos (art.787.º do Código Civil). Devendo ser reconhecido, o direito da embargante de não cumprir a sua obrigação, enquanto a obrigação da “EMP03..., LDA.” de emitir corretamente as declarações de quitação, não fosse cumprida. VII - A quantia exequenda, quando da entrada da execução, não estava vencida, nem era exigível. Não estão vencidos quaisquer juros. VIII – Mesmo não se provando o acordo quando à taxa de juros aplicável, estando omissa na transação a taxa de juros de mora aplicável, os mesmos seriam devidos à taxa legal de 4%, por ser a supletiva, ou seja, a taxa vigente na falta de previsão em contrário. O que deve ser valer em sede de interpretação da transação (art.s 236.º e 238.º, ambos do Código Civil). IX - Os juros compulsórios também não são devidos, em função do não vencimento e não exigibilidade da quantia exequenda. E apenas poderiam ser considerados os reclamados na ação executiva – i.é., “desde a data em que for atribuída força executiva ao presente requerimento (...)” - como aforamento do princípio do dispositivo. E não outros, ao menos na metade que deles caberia à exequente (quando não a metade que caberia ao Estado). X – A douta sentença recorrida violou as normas e princípios legais supra citados, que deveriam ter sido interpretados e aplicados como supra exposto. Deve nessa medida ser revogada, julgando-se procedente os embargos deduzidos, com as demais e legais consequências. Nestes termos, requer Vossas Excia.s se dignem, conceder provimento ao presente recurso, com as demais e legais consequências. Assim se fazendo, JUSTIÇA!».
*
Contra-alegou a embargada/exequente, pugnando pelo não provimento do recurso interposto pela parte contrária e manutenção da sentença recorrida (ref.ª ...39).
*
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (ref.ª ...18).
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. Delimitação do objeto do recurso
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber:
i) – Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
ii) – Da faculdade de suspender os pagamentos pela não emissão de declaração de quitação, nos termos do disposto no art. 787.º do Código Civil;
iii) – Da taxa de juro aplicável;
iv) – Dos juros compulsórios.
*
III. Fundamentos
IV. Fundamentação de facto
A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos:
Do requerimento executivo:
a) No âmbito das respetivas atividades, a executada contratou a “EMP03..., Lda.” para que esta executasse os trabalhos inerentes à empreitada denominada “Construção do Relvado Sintético no Seminário – ...”.
b) A EMP03... prestou à executada os serviços constantes das seguintes faturas:
- 2009/14, no valor de 120.198,67€, vencida em 2009-08-29;
- 2009/29, no valor de 119.214,15€, vencida em 2010-01-29;
- 2010/21, no valor de 7.500,00€, vencida em 2010-05-31;--
c) A EMP03... emitiu e entregou à executada todas as faturas supra identificadas e, tendo rececionado as mesmas, delas não reclamou.
d) Por conta da fatura 2009/29 a executada pagou a quantia de 44.801,33€, em 13-10-2010;--
e) Por conta da fatura 2010/21, a executada nada pagou.
f) Por requerimento de injunção apresentado em 29-01-2011, a EMP03... requereu a notificação da executada para o pagamento da quantia de 92.309,26€, sendo que 81.912,82€ correspondem a capital, 10.319,94€ a juros de mora, e 76,50€ relativos a taxa de justiça paga, tendo o processo seguido termos com o nº 28752/11.5YIPRT, pelo 2º Juízo Cível do Tribunal de Vila Nova de Famalicão;--
g) E no qual a EMP03... e a executado celebraram o acordo, homologado por sentença, transitada em julgado, datada de 09-05-2012, e junto ao requerimento executivo, cujo teor se dá por reproduzido e aqui dado à execução;--
h) A EMP02..., Lda. incorporou, por fusão, em 2019, a sociedade por quotas denominada EMP03..., Lda., com o NIPC ...51;--
Da petição de embargos
i) Em cumprimento do acordo referido em g), a aqui executada pagou à “EMP03..., LDA.”:
- Em 24/07/2012, a quantia de 17.500,00€ (dezassete mil e quinhentos euros);
- Em 02/01/2014, a quantia de 1.000,00€ (mil euros);--
j) A EMP03... emitiu o recibo para o pagamento em 24/7/2012 referindo no mesmo que o pagamento era por conta de uma fatura n.º ...9, de 30/12/2010, vencida em 29/01/2010, no valor inicial de 74.412,82€, do qual se dava quitação do valor 17.500,00€;--
Apurou-se ainda que:
k) A EMP02... apresentou, após a dedução dos embargos, requerimento de redução do pedido nos autos principais, nos termos constantes do requerimento de 13/11/2023, cujo teor se dá por reproduzido.--
l) A EMP04..., SA incorporou por fusão a EMP02..., Lda., estando tal fusão registada pela Ap. ...31.--
*
B) Factos não provados:---
Com relevância para a decisão a proferir, não se demonstrou que:
---Da petição de embargos:--
1) Aquando do pagamento inicial, a “EMP03..., LDA.” recusou-se a emitir o recibo de acordo com o transacionado, e a assumir e reconhecer a redução do pedido;--
2) A aqui executada solicitou a correção do recibo, o que foi prometido e nunca foi feito;--
3) Em face da recusa de emissão de declaração de quitação em conformidade a executada suspendeu os pagamentos;--
4) A “EMP03..., LDA.” informou a executada que por motivos internos não poderia reconhecer oficialmente, desde logo na sua contabilidade, os pagamentos efetuados;--
5) Aquando da celebração da transação, foi aventado pela executada que poderia, surgir algum atraso pontual no pagamento das prestações;--
6) Tendo sido então acordado entre as partes, que em caso de mora e pagamento de juros, os mesmos seriam devidos à taxa civil e não à taxa comercial.--
*
V. Fundamentação de direito.
1. Da impugnação da decisão da matéria de facto.
1.1. Em sede de recurso, a apelante/embargante impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância.
Para que o conhecimento da matéria de facto se consuma, deve previamente o/a recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o (triplo) ónus de impugnação a seu cargo, previsto no artigo 640º do CPC, no qual se dispõe:
“1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; (…)».
Aplicando tais critérios ao caso, constata-se que a recorrente indica quais os factos que pretende que sejam decididos de modo diverso, inferindo-se por contraponto a redacção que deve ser dada quanto à factualidade que entende estar mal julgada, como ainda o(s) meio(s) probatório(s) que na sua óptica o impõe(m), incluindo, no que se refere à prova gravada em que fazem assentar a sua discordância, a indicação dos elementos que permitem a sua identificação e localização, pelo que podemos concluir que cumpriu suficientemente o triplo ónus de impugnação estabelecido no citado art. 640º.
*
1.2. Sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, preceitua o art. 662.º, n.º 1, do CPC, que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Aí se abrangem, naturalmente, as situações em que a reapreciação da prova é suscitada por via da impugnação da decisão sobre a matéria de facto feita pela recorrente.
Por referência às suas conclusões, extrai-se que a embargante/executada pretende:
i) - A alteração da resposta negativa para positiva dos pontos n.ºs 1 a 5 dos factos não provados da sentença recorrida.
Os referidos pontos impugnados têm a seguinte redacção: «1) Aquando do pagamento inicial, a “EMP03..., LDA.” recusou-se a emitir o recibo de acordo com o transacionado, e a assumir e reconhecer a redução do pedido;-- 2) A aqui executada solicitou a correção do recibo, o que foi prometido e nunca foi feito;-- 3) Em face da recusa de emissão de declaração de quitação em conformidade a executada suspendeu os pagamentos;-- 4) A “EMP03..., LDA.” informou a executada que por motivos internos não poderia reconhecer oficialmente, desde logo na sua contabilidade, os pagamentos efetuados;-- 5) Aquando da celebração da transação, foi aventado pela executada que poderia, surgir algum atraso pontual no pagamento das prestações;--»
Em sede de erro do julgamento da matéria de facto, especifica a recorrente que a facticidade impugnada deveria ser dada como provada, por tal resultar dos documentos juntos aos autos pela própria exequente/embargada, pois nos documentos de quitação não reconhece qualquer redução resultante da transacção judicial celebrada e homologada por sentença, mais impugnando o depoimento da testemunha AA, no sentido de que os recibos foram emitidos de acordo com as regras contabilísticas aplicáveis à realidade jurídica existente.
Cumpre, pois, analisar das razões de discordância invocadas pela apelante e se as mesmas se apresentam de molde a alterar a facticidade impugnada, nos termos por si invocados.
Antes, porém, de iniciarmos a nossa análise sobre se a discussão probatória fundamentadora da decisão corresponde, ou não, à prova realmente obtida, importa deixar consignadas duas breves notas/considerações:
i) - Com vista a ficarmos habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada, procedemos à audição integral da gravação do depoimento da testemunha AA, não nos tendo restringido aos trechos parcelares, exíguos e/ou truncados (desse depoimento) invocados na apelação como justificadores da impugnação da matéria de facto; para além disso, analisámos todos os documentos carreados aos autos.
ii) - No caso vertente, após a audição integral do mencionado depoimento testemunhal e análise de toda a prova documental produzida, desde já podemos adiantar ser de sufragar, na íntegra, a valoração/apreciação explicitada pelo Tribunal recorrido, o qual – contrariamente ao propugnado pela recorrente –, em obediência ao estatuído no art. 607º, n.º 4 do CPC, fez uma análise crítica objetiva, articulada e racional da globalidade da prova produzida, que se mostra condizente com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, logrando alcançar nos termos do n.º 5 do citado normativo uma convicção quanto aos factos em discussão que se nos afigura adequada, lógica e plausível, em termos que (como explicitaremos) nos merece total adesão.
*
1.3. Dito isto, vejamos, então, os meios de prova produzidos e a matéria da impugnação.
Com a petição de embargos de executado a Recorrente apresentou apenas dois documentos, referentes a dois recibos emitidos pela Recorrida a seu favor, nos valores, respetivamente, de 17.500,00€ e de 1.000,00€ (ref.ª ...70)
Estes valores, como deles consta, foram imputados contabilisticamente a facturas vencidas, constando como devedora a recorrente.
Na decorrência do pagamento dessas quantias pela recorrente, a recorrida procedeu à emissão dos respetivos recibos, respetivamente a 24/07/2022 e 2/01/2014.
Da cláusula 4.ª da transação dada como título executivo à execução e acerca da emissão de recibos, constava especificamente apenas o seguinte: “(…) 4.º O pagamento será efectuado por cheque a enviar para o escritório da autora, obrigando-se a mesma a remeter à ré o recibo respectivo. (…)”
Por sua vez, a contestação apresentada pela recorrida/exequente aos embargos de executado foi acompanhada por sete documentos de prova (ref.ª ...37), quais sejam:
a) Certidões permanentes comerciais – Docs. 1 e 2;
b) Transacção dada como título executivo à execução – Doc. 3;
c) Recibos – Docs. 4, 5 e 6;
d) Comunicação enviada pela recorrente à recorrida, datada de 24 de janeiro de 2013, tendo como assunto “plano de liquidação”, na qual aquela pedia uma moratória até junho de 2023 da liquidação do valor em falta e propunha a amortização da dívida em prestações semestrais a partir dessa data, sendo que, para o efeito, se comprometia ainda a apresentar no decorrer do mês de março o montante da amortização após conclusão da restruturação do plano financeiro – Doc. 7;
e) Carta de interpelação, datada de 8/08/2022, enviada pelos mandatários da recorrida à recorrente – Doc. 8.
Ora, da análise dos mencionados documentos carreados aos autos não resulta que a recorrida se recusou a emitir o recibo de acordo com a transação celebrada e a assumir a redução da dívida resultante do pagamento transacionado.
Os recibos emitidos pela recorrida relativamente aos montantes liquidados pela recorrente por conta desta transação, no valor global de 18.500,00€ [17.500,00€ + 1.000,00€], datam de 24 de julho de 2012 e 02 de janeiro de 2014, correspondente à data da efetivação de tais pagamentos.
Por sua vez, a testemunha AA, colaboradora da exequente/recorrida desde 2011 e que exerce as funções de director financeiro, confirmou não ter conhecimento de qualquer solicitação de correção dos recibos emitidos, rejeitando negando, consequentemente, ter-se recusado a fazê-lo [refutando ter-se recusado a emitir algum recibo para a executada ou mesmo outrem a seu mando, acrescentou que “sempre que há uma entrada de valor, obrigatoriamente tem que ficar registado, se há pagamento, eu tenho que emitir um recibo”]; esclareceu que procedeu à emissão dos recibos de acordo com o que contabilisticamente lhe é exigível e que nunca foi contactado pelo departamento financeiro da empresa no sentido de lhe transmitir ou explicar as razões da falta do pagamento das prestações pela executada.
Mais atestou que não havia outras facturas em dívida pela recorrente em conta corrente para além das que foram consideradas na transacção dada à execução.
Acresce que, confrontado com os Docs. n.ºs 5 e 6 da contestação da Recorrida, correspondentes aos recibos emitidos à Recorrente por conta dos pagamentos efetuados por esta no valor total de 18,500,00€, explicou que, além das que faziam parte da transacção dada à execução, não havia outras facturas em dívida pela Recorrente para com a Recorrida, pelo que a imputação dos pagamentos que foram sendo feitos por conta dessa transacção foi indexado às facturas que dela faziam parte.
Mais esclareceu que, aquando da efectivação do último pagamento, se os valores lançados contabilisticamente não corresponderem ao valor acordado, é emitida a respectiva nota de crédito “para limpar a conta corrente”.
Em suma, quer da prova documental junta aos autos, quer da prova testemunhal produzida (testemunha AA) não resulta demonstrada a facticidade alegada nos pontos 1 a 4 dos factos não provados, designadamente que a recorrente tenha suspendido os pagamentos em face da recusa, pela recorrida, de emissão de declaração de quitação em conformidade com a transacção.
E, como bem salienta a recorrida nas contra-alegações apresentadas, «a atitude da Recorrente demonstra exatamente o contrário, já que efetuou dois pagamentos por conta da transação celebrada pelas partes, para os quais foram emitidos dois recibos, um datado de 24 de julho de 2012 e o outro de 02 de janeiro de 2014. Portanto, não obstante o que alegou na sua contestação - suspensão de pagamento por conta da não emissão de correspondente declaração de quitação – a verdade é que entre a emissão do primeiro e do segundo recibo, efetuou um pagamento. Mais, entre a emissão de um e outro recibo, a que corresponderam esses dois (únicos) pagamentos por conta da transação, enviou uma comunicação à Recorrida a pedir uma moratória, comprometendo-se a apresentar os termos da amortização da divida em prestações semestrais, em função da reestruturação do seu plano financeiro».
Por fim, a facticidade objeto do ponto 5 dos factos não provados não foi corroborada por nenhum dos meios de prova indicados, seja documental ou testemunhal.
Serve isto para dizer que, face à explicitação que antecede, forçoso será concluir que a nossa convicção coincide com a da Mm.ª Julgadora da 1ª instância, inexistindo razões para dela divergir.
Em suma, é de concluir de que os concretos meios probatórios invocados como fundamento do erro de julgamento na apreciação das provas não impõem uma decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida,
Consequentemente, importa concluir pela total improcedência da impugnação da matéria de facto deduzida pela embargante, mantendo-se inalterada a decisão sobre a matéria de facto fixada na sentença recorrida.
*
2. Da faculdade de suspender os pagamentos pela não emissão de declaração de quitação, nos termos do disposto no art. 787.º do Código Civil (CC).
Sob a epígrafe “Direito à quitação”, diz-nos o art. 787º do CC:
«1. Quem cumpre a obrigação tem o direito de exigir quitação daquele a quem a prestação é feita, devendo a quitação constar de documento autêntico ou autenticado ou ser provida de reconhecimento notarial, se aquele que cumpriu tiver nisso interesse legítimo. 2. O autor do cumprimento pode recusar a prestação enquanto a quitação não for dada, assim como pode exigir a quitação depois do cumprimento».
Competindo ao credor alegar e provar os factos constitutivos do seu direito de créditos (art. 342º, n.º 1, do CC), recai sobre o devedor, enquanto facto extintivo do direito do credor, o ónus da prova do cumprimento (art. 342º, n.º 2, do CC). O devedor ou o terceiro que realize a prestação em sua substituição (arts. 767º e 768º do CC) tem, por isso, o direito a exigir ao credor ou àquele que receba a prestação (arts. 769º e 770º do CC) que lhe disponibilize um documento que facilite a prova de que a prestação foi realizada. Esse documento designa-se quitação[1].
É através da chamada quitação, ou seja, da declaração do credor, demonstrativa do recebimento da prestação, que o devedor observará normalmente aquele ónus da prova, sobretudo quando estiverem em causa obrigações pecuniárias ou de prestação de coisa.
Para que a obrigação de dar quitação seja cumprida basta que o credor declare ter recebido a prestação.
Tal como referem Pires de Lima e Antunes Varela[2], «a quitação ou recibo é um documento particular, no qual o credor declara ter recebido a prestação. Supõe, portanto, a indicação do crédito, a menção da pessoa que cumpre, a data do cumprimento e a assinatura do credor».Trata-se, por conseguinte, de uma simples declaração de ciência, certificativa do facto de que a prestação foi realizada e recebida pelo credor, mas não é uma declaração de vontade.
Enquanto a quitação não for dada pelo credor pode o devedor licitamente recusar-se a cumprir (n.º 2 do art. 787º do CC). Não pode, contudo, o devedor exigir que a quitação seja entregue antes de a prestação ter sido realizada.
Apesar de o devedor da prestação ser credor da quitação, a verdade é que não existe uma relação de sinalagmaticidade entre a obrigação de prestar a obrigação e a obrigação de dar quitação que justifique o reconhecimento ao devedor da exceção de não cumprimento (art. 428º).
Recusando-se a cumprir até receber a quitação, não há mora do devedor relativamente à obrigação não cumprida, porque existe uma causa de exclusão da ilicitude. A falta de quitação consubstancia uma ausência de colaboração do credor que determina a existência de mora do credor (art. 813º do CC), relativamente à prestação oferecida pelo devedor[3]. Haverá aqui a considerar que o credor não praticou um acto, imputável a si, fundamental para o cumprimento da obrigação.
Sustenta a recorrente que, não tendo sido emitida a declaração de quitação, em violação do direito que assistia e assiste à embargante, cabia-lhe a faculdade de suspender e não efectuar outros pagamentos (art. 787.º do CC), pugnando pelo reconhecimento do seu direito de não cumprir a sua obrigação, enquanto a obrigação da exequente/embargada de emitir corretamente as declarações de quitação não fosse cumprida.
Donde, no seu entendimento, a quantia exequenda, aquando da instauração da execução, não estava vencida, nem era exigível[4].
Sucede que a referida pretensão recursória estava intrinsecamente dependente do êxito da impugnação da decisão da matéria de facto, condição essa que não se tem por verificada.
Com efeito, a recorrente não provou que a recorrida não tivesse dado quitação das prestações que pagou por conta da transação dada à execução.
Especificamente, não resultou provado que, aquando do pagamento inicial, a “EMP03..., LDA.” recusou-se a emitir o recibo de acordo com o transacionado, e a assumir e reconhecer a redução do pedido; que a executada solicitou a correção do recibo, o que foi prometido e nunca foi feito (cfr. resposta aos pontos 1 e 2 dos factos não provados).
E provou-se que foi emitido o recibo para o pagamento em 24/07/2012, no qual se deu quitação do valor 17.500,00€. Mais resulta ter sido emitido o recibo para o pagamento em 2/01/2014, onde se deu quitação do valor 1.00,00€ (Doc. 2 junto com a petição de embargos).
É por isso de acompanhar a sentença recorrida quando nela se refere que tais recibos de quitação satisfazem a previsão normativa do art. 787º do CC e que, por outro lado, «não resulta do alegado pela embargante – que, refira-se, não o provou – que a emissão dos recibos nos termos em que foi efectuada obstasse à regularidade dos mesmos ou lhe trouxesse algum prejuízo».
Pelo exposto, é de confirmar o juízo de improcedência deste fundamento (da apelação) que tinha por objeto a falta de vencimento e exigibilidade da obrigação exequenda.
*
3. Da taxa de juro aplicável (juros comerciais ou civis).
Defende a recorrente que, mesmo não se provando o acordo quando à taxa de juros aplicável, estando omissa na transacção a taxa de juros de mora aplicável, os mesmos seriam devidos à taxa legal de 4%, por ser a supletiva, ou seja, a taxa vigente na falta de previsão em contrário, remetendo para o efeito nesta parte para os arts. 236.º e 238.º do CC, a respeito da interpretação da transacção.
Na sentença recorrida, a Mm.ª Juíza “a quo” explicitou que a embargante não logrou provar «que tenha sido acordado entre as partes a fixação de taxa de juro diversa da prevista para as dívidas comerciais, sendo que por estar em causa dívida resultante de prestação de serviços no âmbito da actividade comercial da exequente (e também da embargante), é aplicável a taxa de juro prevista para os créditos titulados por empresas comerciais (art. 102º § 3 do Cód. Comercial)».
Em abono dessa posição, nas contra-alegações apresentadas a recorrida aduziu a seguinte argumentação: «(…) o que importa aqui aferir para a determinação da taxa legal aplicável, civil ou comercial, é a natureza da relação estabelecida pelas partes. Ora, a Recorrente e a Recorrida são ambas sociedades comerciais. A transação dada à execução resultou de uma divida pela Recorrente à Recorrida relativa a faturas emitidas no âmbito da atividade comercial de ambas. Pelo que a esta divida e consequentemente, à transação celebrada pela Recorrente e Recorrida para pagamento da mesma, é aplicável, por força da aplicação do art.º 102.º do Código Comercial, a taxa de juro comercial, prevista para os créditos titulados por empresas comerciais. De tal modo que, não se tendo provado que tivesse sido acordada pelas partes a aplicação de uma taxa de juro diferente daquela que legalmente lhe é aplicável – comercial – não pode proceder a alegação da Recorrente também nesta parte».
Essencialmente, está em causa saber se a sentença judicial dada à execução, que homologou uma transação da qual consta que as partes acordaram que a executada pagaria à exequente a quantia global de 71.000,00, em quatro prestações, no caso de mora comporta juros moratórios à taxa comercial ou à taxa civil.
Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva (art.º 10º, n.º 5 do CPC).
Para que o credor possa intentar uma ação executiva torna-se necessário que disponha de um título executivo (arts. 10º, n.º 5 e 703º do CPC), mas também que a obrigação seja “certa, exigível e líquida” (art. 713º do CPC).
De entre as espécies de títulos executivos taxativamente previstos na lei adjetiva, figuram as sentenças condenatórias (art. 703º, n.º 1, al. a) do CPC).
Consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante (n.º 2).
Esse regime não é afastado ainda que, no caso da sentença, não tenham sido peticionados juros moratórios na respetiva acção declarativa. Nesse caso, mercê das limitações decorrentes do princípio do pedido[5], se o autor no âmbito da acção declarativa não peticionou o pagamento dos juros vencidos e vincendos, por força do citado normativo só terá direito a receber os juros que se vencerem após a data da prolação da sentença. De igual modo e pela mesma razão, se o exequente não efectuou no requerimento executivo a liquidação dos juros vencidos, só deverá receber os que se vencerem após a data da instauração da execução (art. 716º, n.º 1 do CPC)[6].
Dirigindo-se o n.º 2 do art. 703º seguramente à aplicação supletiva da taxa de juros resultante do art. 559º do CC, nada impede que sejam consideradas outras taxas, máxime a que supletivamente vigora para os créditos de que sejam titulares empresas comerciais, desde que do título executivo ou do requerimento inicial (art. 724º, n.º 1, al. e), do CPC) resultem todos os elementos de que depende a sua incidência[7].
Fundando-se a execução em sentença, a oposição só pode ter algum dos fundamentos seguintes: a) Inexistência ou inexequibilidade do título; (...) e) Incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não supridas na fase introdutória da execução; (...) (art. 719º do CPC).
É unanimemente reconhecido que os juros são frutos civis [art. 212º, n.ºs 1 e 2 do CC], constituídos por coisas fungíveis que representam o rendimento de uma obrigação de capital, ou seja, a compensação que o obrigado deve pela utilização temporária de certo capital, que se determina em função do valor do capital devido, do tempo durante o qual se mantém a privação deste pelo credor e da taxa de remuneração fixada por lei ou convencionada pelas partes[8].
Distinguem-se os juros quanto à sua fonte entre legais e voluntários ou convencionais (art. 806º, n.º 2, do CC): os primeiros, previstos no art. 559º, n.º 1 do CC, são, como o nome indica, os devidos por simples decorrência da lei e que se vencem independentemente da existência de qualquer acordo de vontades; os segundos, são aqueles em que a sua taxa ou quantitativo é estipulada pelas partes (arts. 1145º, n.º 1, e 1146º do CC), dentro dos limites legalmente estabelecidos.
No tocante à sua função ou finalidade económica e social, podem ainda distinguir-se entre juros remuneratórios, compensatórios, moratórios, indemnizatórios e compulsórios.
Os juros moratórios (únicos que na economia da questão em apreço relevam) têm uma natureza indemnizatória dos danos causados pela mora, visando recompensar o devedor pelos prejuízos em virtude do retardamento no cumprimento de uma obrigação pecuniária pelo devedor (art. 806º do CC). O mesmo é dizer que correspondem à indemnização dos custos induzidos pelo atraso no recebimento de quantias que deveriam ter sido recebidas em certo tempo e que o não foram[9]. Os juros devidos são os juros legais, salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou as partes houverem estipulado um juro moratório diferente do legal (n.º 2).
Quanto ao titular, de harmonia com a natureza dos intervenientes na operação, os juros podem ser civis[10] (art. 559º do CC), comerciais[11] (art. 102º do Código Comercial) ou das instituições de crédito e sociedades financeiras decorrentes de operação de crédito.
A execução de que os presentes embargos de executado são dependentes tem por base uma sentença condenatória que homologou uma transação celebrada entre as partes no âmbito do procedimento de injunção.
Na referida transação nada foi acordado quanto a juros de mora.
No presente enquadramento adjetivo importa sobretudo saber, por um lado, se a obrigação de juros, abrangida pelo título executivo dado à execução, por referência à obrigação dela constante, tem em vista os juros comuns, civis, ou os juros comerciais, previstos na lei mercantil, ou seja, trata-se, em suma, e mais do que tudo, uma tarefa interpretativa do título executivo.
Não obstante a alegação da comercialidade da dívida reclamada no âmbito do procedimento de injunção, certo é que da transação outorgada não resulta se as partes acordaram que, em caso de incumprimento das prestações acordadas, seria devido o pagamento de juros comerciais ou meramente de juros civis.
Não decorre, pois, do título executivo que os juros legais de mora a que se refere sejam aqueles que estão previstos no art. 102º do Código Comercial.
A delimitação dessa questão deveria ter sido feita na transação celebrada em sede de açcão declarativa.
Com efeito, entende-se não caber no objecto da execução nem dos respectivos embargos de executado discutir e decidir se na acção declarativa estavam reunidos os requisitos para o devedor ser condenado a pagar juros de mora à taxa comercial[12].
Nesta medida, o cerne da discussão em causa é saber se o dispositivo da sentença dada à execução deve ser interpretado como englobando juros comerciais, não sendo objecto desta apelação curar de saber se havia razões de direito substantivo para o dispositivo da sentença contemplar a condenação a título de juros comerciais.
Ora, tendo sido omitida essa questão, não se afigura legítima a ilacção de que os juros resultantes da obrigação exequenda o são à taxa comercial.
Temos, pois, que, na interpretação do título executivo em causa, o único critério interpretativo efectivo consiste na determinação do sentido objectivo da decisão condenatória: a fixação do pagamento da quantia global de 71.000,00, a efetuar em quatro prestações, cuja falta de pagamento pontual, sem prejuízo da prorrogação do prazo de pagamento acordada, implicava o vencimento das demais.
No que tange à interpretação de uma sentença constitui jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal de Justiça que «os despachos judiciais, como as sentenças, constituem actos jurídicos a que se aplicam, por analogia, as normas que regem os negócios jurídicos – art. 295º C. Civil» e por esse motivo «a decisão judicial há-de valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, possa deduzir do conteúdo nela expresso, ainda que menos perfeitamente – arts. 236º-1 e 238º-1 C. Civil»[13].
Ainda em sede de enquadramento geral é de atender à orientação jurisprudencial do STJ que considera que, à falta de outros elementos interpretativos, a decisão judicial dada à execução, condenando a embargante a pagar à autora uma indemnização acrescida de juros calculados à taxa legal, deve ser interpretada como abrangendo o direito a juros de mora à taxa legal prevista para os juros civis que decorrem da aplicação do art.º 559.º do CC, e não os juros comerciais que decorrem dos §§ 3.º e 4.º do art.º 102.º do CCom.
No caso, como se disse, nada foi acordado quanto aos juros de mora.
Ora, não basta que no procedimento de injunção a autora tenha alegado como causa de pedir que é uma sociedade comercial e invocado factos tendentes a demonstrar que é titular de um crédito sobre a ré para que se possa considerar que a sentença condenatória que constitui o título executivo, consubstanciada na homologação da transacção, lhe atribui juros de natureza comercial, de maior montante e por isso mais penalizantes para a executada.
Isto porque, ainda que nessas circunstâncias tivesse direito a receber juros de mora calculados nos termos da Portaria a que se refere o § 3 do artigo 102.º do Código Comercial, a natureza disponível do direito à indemnização e ao seu montante, não exclui a opção pelas partes intervenientes na transacção pelos “juros civis”. Note-se que, conforme foi evidenciado no citado Ac. do STJ (AUJ n.º 9/2015), de 14/05/2015, no que concerne à formulação do pedido de condenação em juros estamos no âmbito da disponibilidade da relação material controvertida, usando as palavras do AUJ: «Será de acrescentar que esta vinculação do tribunal aos termos em que o pedido foi formulado, que caracteriza o princípio do pedido, sendo ditada por razões de certeza e segurança jurídicas, tem subjacentes também a disponibilidade da relação material e os princípios da liberdade e da autonomia da vontade das partes e da autorresponsabilidade destas». Ou seja, da mesma forma que um autor pode não formular de todo o pedido de condenação do réu em juros, pode também peticionar os juros civis (taxa legal mais baixa) em vez de juros comerciais, admitindo que tenha direito a estes. A omissão do pedido de condenação em juros comerciais pode implicitamente demonstrar essa disposição da relação material controvertida como, diversamente e em alternativa, evidenciar um menor cuidado na formulação do pedido e no enquadramento substantivo do mesmo. Acresce que, no caso em apreço, a transacção comportou concessões recíprocas com vista a ser colocado termo ao litigio judicial que as dividia, pelo que não é de excluir que as partes tenham ponderado a consagração de juros civis, ao invés dos juros comerciais.
Por conseguinte, considerando que a sentença dada à execução é omissa sobre os juros de mora, os juros moratórios abrangidos pelo título executivo da respetiva obrigação exequenda são os que decorrem da aplicação do art.º 559.º do CC, e não os juros comerciais que decorrem dos §§ 3.º e 4.º do art.º 102.º do CCom.
Procede, assim, este fundamento da apelação.
*
4. Dos juros compulsórios.
Refere a recorrente que os juros compulsórios também não são devidos, em função do não vencimento e da não exigibilidade da quantia exequenda.
Acrescenta que «apenas poderiam ser considerados os reclamados na ação executiva – i.é., “desde a data em que for atribuída força executiva ao presente requerimento (...)” - como aforamento do princípio do dispositivo. E não outros, ao menos na metade que deles caberia à exequente (quando não a metade que caberia ao Estado)».
Sob a epígrafe “Sanção pecuniária compulsória”, prescreve o art. 829.º-A do CC:
«1 - Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso. 2 - A sanção pecuniária compulsória prevista no número anterior será fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar. 3 - O montante da sanção pecuniária compulsória destina-se, em partes iguais, ao credor e ao Estado. 4 – Quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização a que houver lugar».
Do citado normativo resulta a configuração de duas espécies de sanção pecuniária compulsória: uma, prevista no n.º 1 do art. 829.º-A, designada por sanção pecuniária compulsória judicial, de natureza subsidiária, destinada a compelir o devedor à execução específica da generalidade das obrigações de prestação de facto infungível; outra, prevista no n.º 4 do mesmo artigo, apodada de sanção pecuniária compulsória legal ou de juros legais compulsórios[14], tendente a incentivar e pressionar o devedor ao cumprimento célere de obrigações pecuniárias de quantia certa, decorrentes de fonte seja negocial seja extranegocial com determinação judicial, que tenham sido, em qualquer dos casos, objecto de sentença condenatória transitada em julgado.
A segunda espécie – única que ao caso releva – consiste num adicional automático (ope legis) de juros à taxa de 5% ao ano, independentemente dos juros de mora ou de outra indemnização a que haja lugar.
A referida sanção pecuniária compulsória prescrita no n.º 4 do art. 829.º-A do CC emerge da própria lei, de modo taxativo e automático, em virtude do trânsito em julgado de sentença que condene o devedor no cumprimento de obrigação pecuniária, sem necessidade de intermediação judicial[15]. O que significa que é independente de qualquer decisão judicial e não carece de requerimento por parte do credor numa ação declarativa (muito embora devam os juros ser requeridos na acção executiva, se o exequente pretender que lá sejam atendidos)[16].
Porém, em ambas essas modalidades, como refere Calvão da Silva[17], o espírito é o mesmo: levar o devedor a encarar as coisas a sério e a não desprezar o interesse do credor e o tribunal.
Como se explicitou no Ac. do STJ de 12/09/2019 (relator Tomé Soares Gomes), in www.dgsi.pt., a «natureza específica da sanção pecuniária compulsória pelo incumprimento da prestação de facto infungível prescrita no n.º 1 do art.º 829.º, do CC, atentos o casuísmo e as razões de equidade com que é fixada, é de molde a gerar controvérsia em sede da sua própria execução, o que bem justifica sujeitá-la ao impulso processual do exequente, de modo a permitir o exercício inicial do contraditório por parte do executado. Porém, tais razões já não militam em sede de aplicação da sanção compulsória legal, que é de fixação taxativa e automática».
Pois bem, no que concerne ao primeiro fundamento invocado pela recorrente é de julgar o mesmo improcedente, visto que, como já antes demos conta, não se verifica a falta de vencimento e a não exigibilidade da obrigação exequenda.
No tocante ao segundo fundamento aduzido – termo inicial dos juros compulsórios –, a questão nem chegou a ser aflorada na sentença recorrida – não fazendo parte do objecto do litigio –, pelo que inexiste base para eventual revogação do que não foi decidido, sendo certo que também não foi invocada a nulidade da sentença por omissão de pronúncia (art. 615º, n.º 1, al. d), 1ª parte, do CPC).
De qualquer modo, no tocante aos juros legais compulsórios devidos à exequente sempre se dirá que os mesmos apenas serão devidos a contar da data da propositura da execução– e não desde a data do trânsito em julgado da sentença condenatória exequenda, como estabelecido no art. 829.º-A, n.º 4, do CC –, atentas as limitações decorrentes da conformação do princípio do pedido formulado no requerimento executivo[18].
Isto porque não deve confundir-se o automatismo previsto no n.º 4 do art. 829.º-A do CC com a dispensa da formulação do respetivo pedido. Uma coisa é os juros compulsórios serem automaticamente devidos e outra será a sua liquidação automática sem que tenham sido pedidos. O automatismo a que se refere o mencionado preceito apenas significa que os juros compulsórios são devidos desde que o credor tenha direito ao pagamento de uma determinada quantia em dinheiro, não sendo para esse efeito necessário que esteja munido de sentença que os reconheça. Por isso, deverá entender-se que o aludido automatismo só releva para o efeito de saber se os juros compulsórios estão abrangidos pelo título executivo em respeito pelos limites previsto no n.º 5 do art. 10º do CPC[19].
*
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 527º do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que lhes tiver dado causa, presumindo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção.
Assim, as custas da apelação, mercê da sua parcial procedência, são da responsabilidade de ambas as partes na proporção do respetivo decaimento (idêntico critério valerá para as custas dos embargos de executado na 1ª instância).
*
VI. DECISÃO
Perante o exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação e, em consequência, revogando parcialmente a sentença recorrida, decidem que o título executivo apenas abarca os juros moratórios civis, extinguindo-se parcialmente a execução quanto aos peticionados juros comerciais.
Quanto ao mais, confirmam a sentença recorrida.
Custas da apelação (bem como dos embargos de executado na 1ª instância) a cargo de ambas as partes, na proporção do respetivo decaimento.
*
Guimarães, 11 de junho de 2025
Alcides Rodrigues (relator)
Ana Cristina Duarte (1ª adjunta)
José Cravo (2º adjunto)
[1] Cfr. Ana Taveira Fonseca, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações - Das obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 2018, p. 1079 [em anotação ao art. 787º do CC]. [2] Cfr. Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., 1986, Coimbra Editora, pp. 39/40. [3] Cfr. Ana Taveira Fonseca, obra citada, pp. 1079/1080 [em anotação ao art. 787º do CC]. [4] A obrigação é exigível quando o seu pagamento não depende de termo ou condição, nem está sujeita a outras limitações. Trata-se de uma obrigação vencida, não paga no prazo acordado. É após o vencimento que o credor pode exigir o cumprimento da obrigação; e não sendo atendido, terá havido inadimplemento do devedor, que é o pressuposto prático ou substancial da execução forçada. [5] De acordo com o Ac. do STJ (AUJ n.º 9/2015), de 14/05/2015, DR, 1.ª série, n.º 121, de 24/06/2015, “[s]e o autor não formula na petição inicial, nem em ulterior ampliação, pedido de juros de mora, o tribunal não pode condenar o réu no pagamento desses juros”. [6] Cfr. Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Acção Executiva Anotada e Comentada, 4ª ed., Almedina, 2024, p. 182. [7] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II - Processo de Execução, Processos Especiais e Processo de Inventário Judicial, Artigos 703º a 1139º, Almedina, 2020, p. 22. [8] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª ed., Almedina, pp. 870. [9] Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, vol. I, Almedina, p. 120. [10] Taxa supletiva de juro legal no caso civil, de 4 % ao ano, segundo a Portaria n.º 291/2003, de 08.04. [11] No caso comercial, vigoram as taxas sucessivamente aplicáveis no âmbito da Portaria n.º 277/2013, de 26.08.2013. [12] Cfr. Ac. da RP de 3/12/2020 (relator Aristides Almeida) e o Ac. da RL de 19/03/2024 (relator Luís Filipe Pires de Sousa), in www.dgsi.pt. [13] Cfr. Neste sentido, Acs do STJ de 22/03/2007 (relator Alves Velho), de 1/07/2021 (relatora Rosa Tching), de 16.12.2021 (relator Fernando Baptista) e de e de 19/09/2024 (relatora Maria da Graça Trigo), in www.dgsi.pt. [14] Os juros compulsórios consagrados no n.º 4 do art. 829º-A do CC não constituem remuneração de capital, nem tão pouco se destinam a satisfazer indemnização pela mora, funcionando, sim, como elemento de pressão para o devedor cumprir. [15] Cfr. Ac. do STJ de 12/09/2019 (relator Tomé Soares Gomes), in www.dgsi.pt. [16] Cfr. Maria Victória Rocha, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações - Das obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 2018, p. 1238 [em anotação ao art. 829º-A do CC]. [17] Cfr. Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª ed., Almedina, 2002, p. 456. [18] No requerimento executivo a exequente reclamou:
“20. A este valor acrescem os juros vincendos, à taxa de juro comercial em vigor, desde a data da entrada da presente execução até efetivo e integral pagamento, bem como uma sobretaxa de 5% a título de sanção pecuniária compulsória - art.º 829.º CC - desde a data em que for atribuída força executiva ao presente requerimento e até integral pagamento” (sublinhado nosso).
Assinale-se que a exequente não faz referência à data da atribuição da força executiva ao título executivo, mas antes ao requerimento executivo. [19] Cfr. Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Acção Executiva Anotada e Comentada, 4ª ed., Almedina, 2024, p. 182.